margarida e sara lucas, f.l.s. - uma adaptação

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Escola Secundária Artística António Arroio Frei Luís de Sousa uma adaptação Prof.ª Eli Margarida Catela, n.º 14 Sara Lucas, n.º 19 Turma N 11.º ano 2010-2011

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Escola Secundária Artística António Arroio - Margarida, n.º 14 e S. Lucas, n.º 19 - 11.º ano - Turma N - professora eli - 2010-2011

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Page 1: Margarida e Sara Lucas, F.L.S. - uma adaptação

Escola Secundária Artística António Arroio

Frei Luís de Sousa

uma adaptação

Prof.ª Eli

Margarida Catela, n.º 14

Sara Lucas, n.º 19

Turma N – 11.º ano

2010-2011

Page 2: Margarida e Sara Lucas, F.L.S. - uma adaptação

Introdução

Foi-nos pedido, no âmbito da disciplina de Português, para adaptar a

peça Frei Luís de Sousa, de Almeida Garrett, à época contemporânea. Era-nos

permitido fazer as alterações que quiséssemos, mantendo, porém, algo

original da peça.

Decidimos, portanto, que nos iríamos concentrar num dos dilemas da

peça, o do regresso de um Salvador que acaba por ser indesejado – neste caso,

D. João de Portugal – e criar uma história a partir deste facto.

Desta forma, embora nos tenhamos baseado em períodos distintos da

história de Portugal, alterámos alguns aspectos em termos cronológicos.

Assim, para situar melhor no tempo e espaço, caso a peça não esteja

clara o suficiente, vamos dar, desde já, algumas informações.

No universo paralelo que criámos para esta peça, a monarquia

portuguesa estendeu-se até 1980, sendo que nessa data se deu uma revolução,

a revolução republicana. O Rei – D. João – foi dado como morto em 1977.

Vinte um anos de república depois, Portugal encontra-se mergulhado

numa violenta guerra civil, e membros de vários partidos tentam tomar o

poder.

Através desta peça, vamos explorar ambas as questões de “salvador” e

“liberdade”, tendo como suporte o panorama político e emocional das

personagens e do Portugal ficcionado que concebemos.

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PRIMEIRO ACTO

PESSOAS

Madalena de Vilhena

Manuel de Sousa Coutinho

Maria de Noronha

Bispo Jorge Coutinho

Telmo Pais

O Vagabundo

Localização: LISBOA (primeiramente Avenida da Liberdade, depois Igreja da Sé)

Page 4: Margarida e Sara Lucas, F.L.S. - uma adaptação

CENA I

(Sala luminosa, usada como estúdio, com vários quadros e folhas espalhados

pelo chão e encostados às paredes. Junto deles, três estantes a abarrotar de livros. Uma

secretária, repleta de tintas e esboços, encontra-se num dos cantos; noutro, uma

escadaria que dá para o andar inferior. Na parede, encontra-se uma reprodução do

artista Eugène Delacroix, ampliada, ao lado da porta de vidro da varanda. No centro

da sala, um cavalete.

Madalena passeia-se por entre os quadros, examinando cada um com interesse.

Pára em frente à reprodução e exibe uma expressão pensativa. É o quadro “La liberté

guidant le peuple – A liberdade guiando o povo”.)

CENA II

(Telmo Pais sobe as escadas e pára atrás de Madalena, que se vira para ele com um

sorriso)

TELMO – A admirar o quadro outra vez, Madalena?

MADALENA (voltando-se de novo para a imagem) – Sim... tem uma força

extraordinária.

TELMO – De facto, é belíssimo. Deveria ser mostrado a todo o povo

português; estão nele representados os ideias deste nosso país – Igualdade,

Fraternidade e Liberdade.

MADALENA – Quem sabe se um dia Maria não pintará assim… com uma

pincelada tão firme, tão marcante,…

TELMO – Lá que tem tentado... (Telmo olha em volta para os vários quadros,

fazendo Madalena sorrir de novo) Se bem que Portugal, hoje, precise de muito

mais do que quadros...

Page 5: Margarida e Sara Lucas, F.L.S. - uma adaptação

MADALENA – És demasiado racional e científico para o poderes apreciar...

TELMO – É uma das consequências desta minha profissão de médico. Tira-

me a poesia da vida. Maria é das poucas pessoas que ma consegue devolver.

Contudo, não me arrependo de ter escolhido este trabalho, permitiu-me

ajudar várias gerações da nobre família real, e agora a vossa.

MADALENA – E como nos tens ajudado! Noto melhoras no estado de Maria.

Parece-me que encontrámos finalmente a combinação certa de medicação.

TELMO – Mas continua a ser necessário manter constantemente os olhos

postos em Maria, é impossível prever o retorno das vozes.

CENA III

(Ambos voltam as cabeças na direcção das escadas, ao ouvir Maria, que aparece de tela

branca debaixo do braço)

MARIA – A invadir o meu estúdio, Mãe? E tu também, Telmo?

MADALENA – Estávamos a ver os teus novos trabalhos, tens feito

progressos...

MARIA – Sinceramente, nesta casa só faltam câmaras de vigilância! Além

disso, parecem muito mais interessados nesse quadro do que nos meus...

(Maria pousa a tela no cavalete e aproxima-se de Telmo e de Madalena, admirando o

quadro com fascínio) A revolução. Tal como aconteceu connosco. Oh, quem me

dera ter presenciado tal acontecimento! O triunfo da liberdade, o começo de

uma nova era...

TELMO (murmurando em tom crítico, com expressão amargurada) – Uma

catástrofe disfarçada...

MARIA – E pensar que o pai foi um dos responsáveis! Que orgulho!

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MADALENA – Sim, filha, mas foi com muito esforço que o conseguiu. Não

desejes tais coisas de ânimo leve, não tens noção do caos e sacrifícios que

causam.

TELMO – A tua mãe tem razão. Foi exactamente esse tipo de entusiasmo que

colocou o país no estado em que está. Todo esse idealismo revolucionário,

repleto de ingenuidade, que nos divide, que nos destrói, que...

MADALENA – Telmo! Cale-se! Estou farta de ouvir falar nisso, ainda por

cima à frente de Maria! Já chega, vamos embora. Deixamos-te a trabalhar,

filha. (beija Maria na bochecha) Anda, Telmo!

(Madalena dirige-se, decidida, para as escadas, Telmo segue-a levemente

envergonhado e cabisbaixo. Maria espreita pela varanda)

MARIA – Talvez seja melhor. Preciso de me inspirar...

CENA IV

(Sala de estar em tons de branco e preto, com um sofá longo em “L”, uma chaise

longue, com aparelhagem encostada a uma das paredes. No centro, uma televisão

plasma. Duas estantes, com livros e fotografias emolduradas. Duas janelas numa

parede garantem a luminosidade natural da sala, embora seja menor do que a do

estúdio.

Madalena anda pela sala e vira-se subitamente para Telmo, enfurecida)

MADALENA – Sempre as mesmas desgraças, Telmo! Não entendes que é o

pior que podes fazer a Maria? Tu próprio o disseste, o que ela precisa é calma

e estabilidade!

TELMO – Madalena, olhe em seu redor! (Telmo empurra as cortinas da janela)

As manifestações na rua, os ataques terroristas, as ameaças, as greves...

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MADALENA – Pois bem, enquanto depender de mim, nada disso entrará

nesta casa! Que a guerra fique lá fora, nas ruas, com a multidão que a criou!

(Vai até à janela, colocando-se à frente de Telmo e cerra as cortinas)

TELMO (aproximando o seu rosto do de Madalena) – Pois, foi o nosso próprio

povo que deu azo a esta calamidade. (afasta-se e enterra o rosto das mãos)

Maldita aquela revolução de oitenta... não há um único dia que não lamente

tal acontecimento! (ergue a cabeça e deixa pender os braços, com os punhos cerrados)

Colocou o nosso Portugal nas mãos daqueles que assassinaram o nosso Rei, o

querido...

MADALENA – Não! (tapa-lhe a boca com a mão) Não dirás esse nome nesta

casa. Sabes que está mais que morto e enterrado esse meu passado distante.

Preciso de te relembrar? Estou agora casada com Manuel, o mais republicano

de todos os portugueses, ter pertencido em tempos à família real em nada

altera esse facto. Este assunto está encerrado! (vai até ao sofá, senta-se e liga a

televisão. Telmo junta-se a ela, um pouco atordoado. )

(As notícias ouvem-se em voz off : Última hora, eléctrico armadilhado mata doze

pessoas e fere muitas mais, causando o caos em Belém...)

MADALENA (com uma expressão de horror) – Mas foi para aí que o Manuel foi

hoje! Para a sede do partido!

(Continuação das notícias: Deduz-se que tenha sido uma resposta às medidas

tomadas pelo Presidente por parte do grupo radical FRC...)

MADALENA (alarmada) – Depressa, depressa, liga-lhe, Telmo!

(Telmo tira o telemóvel do bolso, marca o número e encosta-o ao ouvido. Fica com um

rosto desiludido e ansioso)

TELMO – Tem o telefone desligado...

MADALENA (levanta-se, os olhos abertos, dominada pela ansiedade) – O quê?!

Liga para a sede do partido! Liga para os hospitais! Liga para o presidente!

Descobre onde está o meu marido, Telmo, peço-te!

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CENA V

(Ouve-se uma porta a ser aberta e Manuel entra, juntamente com cinco outros

homens, militantes armados do partido, e com o irmão, o Bispo Jorge Coutinho.

Madalena suspira de alívio e atira-se para os braços do marido. Telmo fica tenso,

apreensivo, olha para os companheiros de Manuel.)

MADALENA – Que susto me pregaste, meu amor! Que momentos de horror,

julguei que poderias estar perdido... houve um novo atentado, em Belém

ainda por cima!

MANUEL (libertando-se do abraço da esposa com um beijo rápido) – Bem sei. Esses

meliantes não desistem! Fui avisar justamente o Presidente, sou neste

momento considerado um potencial alvo, já nem o meu passado na revolução

me salva agora. Já o previa, tracei um plano. Temos de sair desta casa hoje

mesmo, ao anoitecer!

MADALENA – O quê? (Madalena afasta-se, chocada) Como? Para onde iremos?

JORGE (colocando-se à frente de Madalena) – Para a Igreja da Sé. Temos acolhido

vários refugiados e vítimas da guerra; por muito que o FRC despreze a

religião, certamente não se atreverá a destruir os monumentos da cidade.

MANUEL – É só até conseguirmos apanhar os radicais. Depois, logo se vê...

MADALENA (com lágrimas nos olhos) – Então e Maria? Isto vai desequilibrá-la

profundamente, sabes como me tenho esforçado para que nada a perturbe!

Ela não está preparada!

MANUEL – É um risco a correr. Já me sacrifiquei pela liberdade, voltarei a

fazê-lo...

MADALENA – Mesmo que te custe a família?

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MANUEL (aproximando-se de Madalena e envolvendo-a com os braços) – Mesmo

que me custe a vida. Jurei viver e morrer pelo ideal – Fraternidade, Igualdade

e Liberdade. Sabes que Maria me vai apoiar...

MADALENA – Ela não sabe o que diz...

MANUEL – Como podes dizer isso? A Maria tem idade suficiente para

perceber o que se passa, aliás, sempre teve, é a miúda mais inteligente que

conheço. Ela pode ajudar-nos. Sempre soubeste que a certa altura ela teria que

conhecer mais que o estúdio, que a pintura... a própria Maria está sedenta

deste nosso mundo!

MADALENA – Mas o mundo está perigoso, Manuel! E ela não aguenta...

MANUEL – Isso é o que veremos! Maria!

CENA VI

MARIA (entra a correr) – Oh, pai! Não sabia que já tinhas chegado! Queria

mostrar-te uma coisa...(interrompe-se ao notar o ambiente da sala)... que se passa?

MANUEL – Vais ter que ser corajosa quando ouvires o que te irei dizer

(Manuel coloca a mão no ombro de Maria, olhando-a nos olhos) Tens de arrumar as

tuas coisas, filha.

MARIA – Porquê?!

MANUEL – Já não é seguro aqui.

MARIA – Mas... porquê?

(Uma pedra quebra os vidros e entra pela sala, fazendo os vidros espalharem-se.

Madalena grita e Maria agarra-se ao pai, olhando para a janela com fascínio)

MANUEL (pesaroso) – Por isto.

(Manuel pega na pedra e ergue-a. Todos se entreolham, com rostos ansiosos e

preocupados, num silêncio sepulcral)

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CENA VII

(Crepúsculo. Manuel, juntamente com os militantes, destrói os seus pertences,

perante o olhar aterrorizado de Madalena. Está cada um com a sua mala, Maria e

Telmo estão de mãos dadas, observando a cena. Maria está entusiasmada, Telmo está

apreensivo)

MARIA - Quebra a televisão, pai... tens que dar a ilusão que a casa foi

completamente invadida! Eu até rasguei alguns dos meus quadros!

MADALENA - Ai, filha, não me digas que fizeste isso! (Madalena apoia-se na

parede)

MARIA - É um sacrifício! Por Portugal, tudo vale a pena!

MANUEL (ergue-se e pega na mala) - A Maria tem razão. É necessário. (vira-se

para os seus companheiros, que continuam armados) Escondam-se. As bestas, não

tarda, chegam aqui. A porta, já a estragámos de forma a parecer que foi

arrombada. Quando os virem entrar, já sabem...

JORGE – Temos que ir, Manuel! (Jorge sai )

MANUEL – Então, vamos. Boa sorte! Viva Portugal! (pega na mão de Madalena

e saem de cena, seguidos por Maria e Telmo. Ficam os militantes, na escuridão, de

pistolas em punho.)

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SEGUNDO ACTO

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CENA I

(Um quarto fechado, sem janelas, três camas e respectivas mesas de cabeceira. Paredes

brancas mas sujas, com alguma pedra à vista. As malas estão junto às camas.

Madalena encontra-se deitada sobre uma, Maria está ajoelhada ao seu lado, Telmo

atrás dela, sentado na outra cama.)

MARIA – Tantas vezes esteve a minha mãe tal e qual como eu estou... só

agora me apercebo de como é penoso.

TELMO – Já sofremos muito por si. Mas sempre com as melhores das

intenções. Não comece a apoquentar-se por sua mãe, ela está óptima, precisa é

de descanso; aliás, como todos nós. (olha para o chão e acrescenta, em murmúrio)

Este sítio poderá não lhe trazer as melhores memórias.

MARIA – Como, Telmo?

TELMO – Nada, Maria. Quer que lhe traga algum material de pintura?

MARIA – Não, há pouca luz e ainda menos inspiração. (levanta-se e senta-se ao

lado de Telmo) Se queres mesmo que deixe de me preocupar com a mãe,

podias-me fazer uma visita guiada...notei quando chegámos que conheces

esta Igreja como a palma da tua mão.

TELMO – Pois conheço, Maria. Esta Igreja faz-me lembrar uma época mais

antiga, que a menina despreza, mas que foi a mais feliz da minha vida...

MARIA – E que época é essa, Telmo?

TELMO – Nada de que valha a pena falar agora. (suspira) Quer então uma

visita guiada?

MARIA – Sim, se faz favor!

TELMO – Então, siga-me. (Telmo e Maria saem de cena)

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CENA II

(Capela com o túmulo do Rei D. João VII. Quadros da casa real portuguesa rodeiam-

no. Telmo admira o túmulo e parece estar quase a chorar, Maria lê a inscrição)

MARIA – D.João VII de Portugal, “O Martirizado”, nascido a três de

Fevereiro de 1951, morreu a um de Dezembro de 1977. (volta-se para Telmo) Foi

este o último rei daquela maldita dinastia, que os nossos valorosos

revolucionários conseguiram derrubar?

TELMO – Valorosos... cometeram um vil assassinato! Fazer despenhar um

avião para o oceano não é feito heróico, é cobardia! O nosso Rei, que estava há

anos a tentar resolver os conflitos, foi vítima do mais cruel atentado e o povo

ainda rejubilou de alegria! E, para provar ainda mais o quão traidor é, aboliu

a monarquia, instaurou a República, e semeou o caos!

(Telmo treme de emoção, Maria pega-lhe na mão)

MARIA – Calma, Telmo...não sabia que eras monárquico.

TELMO – Mas sou, Maria. Tenho o seu pai na mais alta consideração, mas

desprezo os seus companheiros. Não sou capaz de viver mais neste país,

desta maneira, como um hipócrita, desejando o regresso de um Rei e servindo

o maior revolucionário republicano. Se não fosse a minha afeição por si e pela

sua mãe... onde já eu devia andar...

MARIA – Fala-me então deste teu Rei.

TELMO – Era um homem fantástico, verdadeiramente extraordinário. Tivesse

ele nascido uns séculos antes, seria um grande herói histórico, tinha perfil

para isso. Culto, inteligente, um óptimo mediador, mas firme quanto às suas

ideias. Era um pacifista, que foi obrigado a tomar medidas drásticas quando

os republicanos começaram a recorrer à violência para se fazerem ouvir. Era

atencioso, embora pudesse passar por um homem frio. Era terrivelmente

divido, tanto na vida pessoal como na vida pública, não conseguia estar

completamente contra ninguém. Por fim, numa viagem ao estrangeiro,

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algures a sobrevoar o Mediterrâneo, foi accionada uma bomba dentro do

avião, tinha lá sido posta pelos republicanos. Despenhou-se, nunca mais se

ouviu falar no Rei. (Telmo fica com um ar desconfortável, a tentar conter as

lágrimas) Eu tinha uma certa esperança no seu retorno...porém, agora até teria

vergonha que ele visse o estado actual do País.

MARIA – Se fosse assim tão bom como dizes, talvez o pusesse em ordem.

TELMO – Sim, mas a que custo? Basta uma medida um pouco mais apertada

para cada partido político se manifestar, pela liberdade, a liberdade... não

conseguem perceber que eles próprios a estão a prejudicar, ao colocar o país

numa situação de guerra? Se cada um puxa para o seu lado, se as pessoas têm

medo de sair de casa, que raio de liberdade, igualdade e fraternidade é essa?

MARIA – Por isso mesmo, há que lutar!

TELMO – Lutas, estamos a travá-las faz vinte e um anos. Não há quem se

entenda.

MARIA – Que pessimismo...vamos mudar de assunto. Telmo, posso fazer-te

uma pergunta?

TELMO – Sim, Maria.

MARIA – Há bocado, no quarto, disse algo sobre como a minha mãe tem más

memórias deste local. Porquê?

TELMO – Porquê, o quê?

MARIA – Pareceu-me estranho, principalmente porque o meu pai sempre me

disse que foi aqui, na Sé, que se conheceram.

TELMO – Provavelmente não lhe disse as circunstâncias. Mas isso não me

compete a mim dizer-lhe, Maria. Pergunte a seu pai, ele poderá explicar-lhe se

assim o desejar.

MARIA – Sempre a ocultar-me coisas, estou farta! (fica com uma expressão

sombria) Sabes, às vezes, parece-me ouvir murmúrios, risos macabros, vozes

que me sussurram os piores segredos acerca da minha família... fico confusa,

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baralhada, e ninguém me pode esclarecer! Tenho mil e uma perguntas e só

me dão meias respostas, enigmas.

TELMO – Como assim, vozes? Maria, onde estão os medicamentos?

MARIA – Deixei-os lá em casa. (encolhe os ombros) Já estou boa, para quê

trazê-los?

TELMO – Oh, não, Maria! (empurra-a para fora de cena) Vá para o quarto, já,

junte-se à sua mãe! Tenho de ir chamar Manuel, é absolutamente necessário

arranjar-lhe a medicação!

CENA III

MANUEL – Telmo, porque é que estás a gritar feito louco?

TELMO – Louco, disse bem! Maria não trouxe os medicamentos. É necessário

eu sair, tenho de lhe arranjar outros! Com estas mudanças súbitas, este

ambiente carregado...Manuel, se não arranjar maneira de controlar a doença,

tenho medo dos efeitos que possa ter.

MANUEL – Tens razão. Vou avisar Jorge. Eu já estava a planear encontrar-me

com alguns companheiros hoje, vens comigo e tentamos voltar o mais rápido

possível.

TELMO – Mesmo depressa, Manuel. Não há tempo nenhum a perder, nunca

se sabe com o que se está lidar quando se trata de esquizofrenia!

(Telmo sai e Manuel segue-o)

CENA IV

(Capela, Jorge está a rezar em frente ao altar. Manuel entra apressado.)

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JORGE (levantando-se) – Ah, Manuel! Madalena acordou, parece-me estar

muito melhor...

MANUEL – Agora o problema é Maria. Não trouxe os medicamentos. Tenho

de ir buscá-los com Telmo.

JORGE – Não será demasiado arriscado? Hoje, há espiões por todo o

lado...devem estar lá fora neste momento, quem sabe.

MANUEL – Não há outra hipótese! Maria está no quarto, fechada. Com isto

tudo, deu-lhe outra crise...Madalena está preocupada, mas Maria não a deixa

entrar. Cuida delas enquanto estamos fora, por favor!

JORGE – Claro que sim. Boa sorte! Que Deus te proteja.

MANUEL – É, esperemos que sim...

(Manuel sai. Jorge continua as rezas)

CENA V

MADALENA (entra a correr, ofegante) – Jorge! Jorge!

JORGE – Já sei o que se passou, Madalena.

MADALENA – Eu... eu pensava que ela estava bem desta vez! Eu pensava

que estava tudo bem, eu... oh Jorge! (Jorge envolve-a com os braços e

Madalena chora convulsivamente) É este sítio, é maldito!

JORGE – Então, Madalena, não digas isso...foi aqui conheceste Manuel...

MADALENA – Sim...! (liberta-se do abraço de Jorge) No dia do meu

casamento com D. João, Rei de Portugal! (deixa-se cair de joelhos) Eu era tão

jovem e ingénua... julgava-me tão cheia de sorte...casar-me com o Rei, quem

diria… parecia-me um sonho... até que pus os olhos em Manuel, a liderar uma

multidão de protestantes, e tudo se transformou num pesadelo. Claro que

nunca me aproximei verdadeiramente dele, não até à morte do Rei, mas

apaixonar-me pelo revolucionário, enquanto a família real me acolhia...

sempre que D. João me confidenciava os seus planos para o futuro, as suas

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resoluções para os problemas, logo me recordava do rosto de Manuel, que ia

contra tudo o que o D. João defendia. Parecia-me estar a traí-lo duas vezes...

JORGE – Mas D. João morreu há muito tempo, Madalena, já és livre...

MADALENA (levantando-se) – Livre? A memória dele assombra-me

constantemente! Sempre que ouço alguém a defender o retorno da monarquia

lembro-me que ainda tenho direito ao trono, ainda que já ninguém o queira.

Estou constantemente dividida, entre os ideais com que fui criada e aqueles

que Manuel defende! Sinto-me obrigada a apoiar o meu marido, mas... ao

mesmo tempo, sempre que elogio a república, parece-me estar a dar mais

uma facada sobre a memória de D. João...

JORGE – Mas ele, ainda vivo, já tinha percebido o teu fascínio por Manuel,

não?

MADALENA – Oh, era uma suspeita, algo que ele nem queria aprofundar. Os

problemas do país ocupavam-lhe tanto tempo que estávamos praticamente

separados... embora ele ainda me amasse de uma maneira quase assustadora.

JORGE - Para quê mergulhares nesse passado tão doloroso?

MADALENA – Porque o futuro afigura-se ainda pior.

JORGE – Ai, Madalena, Madalena...

(interrupção…por motivos de força maior…)