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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA – UFRB CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE CAMPUS DE SANTO ANTONIO DE JESUS-BA MARCELLE EVARISTO BORGES DE CASTRO AMPLIANDO A CLÍNICA: AS ARQUIBANCADAS DE UM GINÁSIO DE ESPORTES COMO DISPOSITIVO DE ESCUTA E CUIDADO EM SAÚDE MENTAL Santo Antônio de Jesus-Ba Março, 2018

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Page 1: MARCELLE EVARISTO BORGES DE CASTRO final... · mental implica a captura de um fenômeno social - a loucura - nas malhas do corpo conceitual da medicina científica emergente na virada

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA – UFRB CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE

CAMPUS DE SANTO ANTONIO DE JESUS-BA

MARCELLE EVARISTO BORGES DE CASTRO

AMPLIANDO A CLÍNICA: AS ARQUIBANCADAS DE UM GINÁSIO DE ESPORTES COMO DISPOSITIVO DE ESCUTA E CUIDADO EM

SAÚDE MENTAL

Santo Antônio de Jesus-Ba Março, 2018

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MARCELLE EVARISTO BORGES DE CASTRO

AMPLIANDO A CLÍNICA: AS ARQUIBANCADAS DE UM GINÁSIO DE ESPORTES COMO DISPOSITIVO DE ESCUTA E CUIDADO EM

SAÚDE MENTAL

Relatório final apresentado à Banca Avaliadora como parte das exigências do Componente Curricular CCS257 - Estágio Específico de Ênfase em Saúde, sob supervisão do Prof. Dr. Rafael Coelho Rodrigues.

Santo Antônio de Jesus-BA Março, 2018

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AGRADECIMENTOS

“Não tenho palavras pra agradecer tua bondade. Dia após dia me cercas com

fidelidade. Nunca me deixes esquecer, que tudo que tenho, tudo que sou e o

que vier a ser vem de Ti Senhor”.

Ao Deus da Bíblia pelo cuidado em toda minha vida, principalmente nesses

últimos cinco anos. Sua presença foi notória em toda minha trajetória acadêmica, e,

certamente sem Ele eu não teria conseguido. Ao meu marido Aécio por todo amor e

companheirismo. Dividir minha vida com você nos últimos dois anos tornou a

caminhada mais possível. Aos meus pais Nanci e Durval pelo apoio, em especial à

minha mãe (que também é meu pai) pelas orações, pelas palavras de ânimo nos

momentos difíceis e por ter me ensinado que é possível fazer muito com tão pouco. Ao

meu irmão Marcelo, aos meus avós Zoca, Nelson e Durval (em memória), a todos

os meus primos e tios, especialmente minhas tias-mães Elisete (minha grande

incentivadora nos estudos, minha referência de pessoa, mãe, esposa...) e Elisabeth (uma

tia tão presente em toda minha vida, sempre com bons ensinamentos, com jargões do

tipo: “se tirar zero, pega ele, coloca debaixo do braço, levanta a cabeça e segue!”.

RESILIÊNCIA e CUIDADO lhe define). A todos os familiares e amigos que

acompanharam a minha trajetória e sempre torceram por mim. Aos colegas de estágio

e do curso, principalmente Natiara, minha irmã e madrinha de casamento, obrigado

pela amizade sincera e pelo companheirismo. Nós nos permitimos cuidar uma da outra.

À Igreja Batista Betânia por me permitir vivenciar um crescimento exponencial na fé

e um amadurecimento na vida conjugal. Ao querido Grupo Efraim por me possibilitar

experimentar genuinamente o amor filéo, pelo acolhimento, pelo cuidado e pelas

orações. Vocês tornaram Santo Antônio de Jesus menos árida. Ao meu orientador

Rafael Coelho por todo conhecimento compartilhado e pela relação de afetação

construída. Aos queridos professores em especial Lílian Canário, Josineide Alves,

Marta Alfano e João Mendes por me apresentarem uma PSICOLOGIA ÉTICA

ESTÉTICA E POLÍTICA. Vocês foram/são referências na minha formação

profissional. Enfim, gratidão a todas as pessoas que contribuíram direta e indiretamente

com essa grande conquista!

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO....................................................................................................5

1.1. REFORMA PSIQUIÁTRICA...............................................................................5

1.2. POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE MENTAL..............................................12

2. ATIVIDADES DESENVOLVIDAS...................................................................15

2.1. UMA “CIRANDA” PELO SERVIÇO: EM BUSCA DA CONSTRUÇÃO DE

VÍNCULO COM OS USUÁRIOS.................................................................................15

2.2. ACOMPANHAMENTO DE ALGUMAS OFICINAS TERAPÊUTICAS........20

2.3. ACOMPANHAMENTO DE VISITAS DOMICILIARES.................................24

3. CASO EÇAIARA: AQUELA QUE FOI ESQUECIDA.....................................27

4. EFEITOS/DESDOBRAMENTOS DA EXPERIÊNCIA....................................34

5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..............................................................39

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1. INTRODUÇÃO

No presente relatório se esboçam reflexões oriundas das experiências vivenciadas

nos Estágios Supervisionados I e II, do curso de Psicologia da Universidade Federal do

Recôncavo da Bahia, sob a supervisão do docente Dr. Rafael Coelho Rodrigues. O

objetivo do trabalho é relatar e analisar a experiência de estágio, e, além disso,

problematizar a produção de cuidado no CAPS Nova Vida, a partir do caso de uma

usuária especificamente (EÇAIARA). A escolha do tema e do caso se deu como efeito

da relação estabelecida com a usuária, a partir do modo como estive presente no serviço,

qual seja, acompanhando de forma participativa a sua rotina e as questões que ali

emergiam.

Esse relatório subdivide-se em duas etapas: a primeira consiste numa revisão

bibliográfica acerca da loucura e suas representações na sociedade ao longo da história,

da Reforma Psiquiátrica e das Políticas Públicas no campo da Saúde Mental

(especialmente os Centros de Atenção Psicossocial - CAPS). A segunda é composta

pela descrição das atividades realizadas durante o estágio, o acompanhamento da rotina

de atividades do Centro de Atenção Psicossocial – II (CAPS Nova Vida) do município

de Santo Antônio de Jesus – BA, mais especificamente as oficinas de música e de futsal

e as visitas domiciliares. Além disso, será feita a apresentação e discussão do caso da

usuária Eçaiara (nome fictício). O estágio aconteceu no período de maio de 2017 a

março de 2018.

1.1. REFORMA PSIQUIÁTRICA

É a história que aqui se escreve com esse peso da sinceridade d’uma pena

leve; é uma trajetória de lutas e disputas em defesa deste ente que não é

“normal”; deste dito doido que não se encaixa em grade e nem se limita a ser

tão breve (Sérgio Pinho1).

O modo como a sociedade atual concebe e se relaciona com a loucura difere das

concepções existentes em outros períodos da história. Na Grécia antiga a loucura não

1 Fala proferida no V Congresso Brasileiro de Saúde Mental, em São Paulo, em 2016. Sérgio Pinho compôs a mesa como representante dos usuários da rede de saúde mental.

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era considerada como algo negativo, pelo contrário, era vista como um privilégio. De

acordo com Pelbart (1989), nesse período é feita uma diferenciação entre a loucura

humana e a loucura divina, havendo uma supervalorização desta última, pois era

presente a compreensão de que através do delírio alguns privilegiados tinham acesso a

verdades divinas.

Na idade média houve uma intensa disseminação da lepra (hanseníase) e em

consequência disso foram criados os leprosários, local que funcionava como depósito

dos milhares de leprosos que eram obrigados a abandonar as cidades. A lepra era

compreendida pela igreja católica como um castigo divino. No final da idade média,

conforme Foucault (1972), desaparecida a lepra, as estruturas da exclusão permanecem,

e, dois ou três séculos depois passam a ser ocupadas por pobres, vagabundos e “cabeças

alienadas” (loucos).

Somente a partir do século XVIII a loucura torna-se sinônimo de doença mental e,

consequentemente, objeto do saber médico. Assim, a criação do conceito de doença

mental implica a captura de um fenômeno social - a loucura - nas malhas do corpo

conceitual da medicina científica emergente na virada do século XVIII para o século

XIX (GABBAY e VILHENA, 2010). No Brasil, a partir da chegada da Família Real

(século XIX), a loucura torna-se objeto de intervenção do Estado (MACHADO ET AL,

1978 APUD AMARANTE, 1994). Mais especificamente em 1830, uma comissão da

Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro realiza um diagnóstico da situação dos loucos

na cidade, e, a partir daí, os loucos passam a ser considerados doentes mentais,

merecedores, portanto, de um espaço social próprio, para sua reclusão e tratamento

(AMARANTE, 1994).

Desse modo, a transformação da loucura em doença mental culminou na retirada

da cidadania das pessoas em sofrimento psíquico, uma vez que, conforme Rosa e

Vilhena (2012), a figura do doente mental não equivalia à figura do cidadão, pois o

“louco” não era definido como um sujeito de razão e de vontade. Assim, para os sujeitos

desprovidos de razão só havia uma caminho: a impossibilidade de conviver com os

detentores da razão (os normais), o afastamento do convívio em sociedade, a internação.

Mas, “quem são esses loucos”? As esparsas referências demonstram que podem ser

encontrados preferencialmente dentre os miseráveis, os marginais, os pobres, e, mais

especificamente no contexto brasileiro, trabalhadores camponeses desempregados,

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índios, negros, ‘degenerados’, perigosos em geral para a ordem pública, retirantes que,

de alguma forma ou por algum motivo, padecem de algo que se convenciona englobar

sobre o título de doença mental (AMARANTE, 1994).

Como o número de pessoas que se encaixavam nos critérios para a exclusão do

convívio em sociedade era altíssimo, houve um fenômeno denominado Grande

Internação, o qual teve como marco a criação do Hospital Geral de Paris em 1656.

Portanto, hospitais gerais e posteriormente hospitais psiquiátricos, serviam como

mecanismo de controle do Estado sobre a população. Assim, não coincidentemente,

a loucura recebeu o estatuto de doença mental no momento em que o

capitalismo emergiu como modo de produção, havendo uma relação intrínseca

entre ambos: o doente mental, por não laborar, não dispunha das posturas

necessárias para conviver na sociedade capitalista nascente, uma vez que sua

lógica não correspondia à racionalidade que imperava (QUEIROZ, 2009 p.25)

Diante disso, torna-se inevitável a compreensão de que o objetivo da criação do

hospital psiquiátrico não foi estritamente terapêutico, mas, teve como foco estabelecer a

proteção social para salvaguardar os sãos e produtivos de um contingente de insanos e

improdutivos. Tal conclusão é corroborada pela seguinte afirmação:

historicamente o manicômio nasceu para a defesa dos sãos. Os muros serviam

para excluir e isolar a loucura, afim de que não invadisse o nosso espaço [...].

Dentro dos muros, que o psiquiatra faça o que puder. Concedam-lhe ou não os

meios para trabalhar, consistiam-lhe ou não tratar de quem lhe foi confiado, ele

deve antes de tudo responder pela segurança da sociedade, que quer ser

defendida do louco (BASAGLIA, 2005, p.49).

Destarte, em nenhum outro período da humanidade tantas pessoas foram

internadas e solapadas em seu direito de conviver com os de sua própria espécie

(PESSOTTI, 1996 APUD ROSA e VILHENA, 2012). Nunca antes a violência da

imposição normativa se fez tão presente sobre o espírito (geist) que apenas busca

formas conflitantes e desesperadoras de solução de suas próprias incongruências

(ROSA e VILHENA, 2012). Somente a partir da Segunda Guerra Mundial, diante dos

altos índices de cronificação e incapacitação social das pessoas com sofrimento

psíquico, emergiram preocupações com relação à impotência terapêutica da psiquiatria

(BIRMAN e COSTA, 2002). Nesse contexto, a internação psiquiátrica tornou-se alvo

de críticas e a sua eficácia no “tratamento” a pessoas com sofrimento psíquico passou a

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ser questionada. Assim, as discussões e problematizações em torno da internação

psiquiátrica resultaram em ações que posteriormente compuseram o movimento de

reforma psiquiátrica.

A reforma psiquiátrica configura-se como um novo paradigma na conjuntura da

saúde mental que não se encaixa numa condição de sistema estático e concluído, mas de

um processo social e político complexo. Caracteriza-se não apenas pela reformulação,

mas, sobretudo pela subversão, pela transformação radical do tratamento destinado às

pessoas com sofrimento psíquico (“loucos”). Para Amarante (1995, p. 87), ela é

definida como “um processo histórico de formulação crítica e prática, que tem como

objetivos e estratégias o questionamento e a elaboração de propostas de transformação

do modelo clássico e do paradigma da psiquiatria”. Logo, o processo da reforma

psiquiátrica vai além da modificação de técnicas e instituições de cuidado, ela

representa um novo modo de olhar para a loucura e para o lugar que esta ocupa na

sociedade.

No cenário internacional, novas propostas de tratamento emergiram após as

críticas e problematizações ao modelo psiquiátrico tradicional, dentre elas a

Comunidade Terapêutica Inglesa, a Psicoterapia Institucional Francesa, a Psiquiatria de

Setor Francesa, a Psiquiatria Preventiva/Comunitária, a Antipsiquiatria e a Psiquiatria

Democrática Italiana. As duas primeiras mantiveram a crença no hospital psiquiátrico

como lugar de cuidado e defendiam que ele passasse por uma reforma interna que lhe

tornasse mais humanizado e que tivesse como foco a reinserção no mercado de trabalho.

A reforma nos espaços asilares atualiza-se, então, enquanto imperativo social e

econômico ante o enorme desperdício de força de trabalho (AMARANTE, 1995, p. 29).

A Psiquiatria de Setor Francesa reivindicava a transformação do manicômio, mas

não a sua extinção, isto é, a internação hospitalar continuava a ser uma opção, uma

etapa do “tratamento” quando fosse julgado necessário (QUEIROZ, 2009). No tocante

à Psiquiatria Preventiva/Comunitária, ainda segundo essa autora, tal experiência tinha

como foco a prevenção primária dos adoecimentos mentais, acreditando que

identificando precocemente a doença mental , seria possível tratá-la mais rapidamente,

intervindo nas suas prováveis causas. Quanto à Antipsiquiatria,

“ela não deve ser encarada simplesmente como uma reformulação ou uma

nova proposta de assistência psiquiátrica, já que não só questionou a

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psiquiatria como a própria doença mental. Tentou mostrar que a psiquiatria,

como forma de conhecimento, como saber elaborado para tratar a questão

mental, não estava conseguindo responder aos problemas surgidos com a

doença mental” (VENANCIO ET AL, 2003 p.26 APUD QUEIROZ, 2009 p.

38).

Entretanto, um dos problemas da antipsiquiatria foi não conceber a loucura como

experiência de sofrimento (MEYER, 1975 apud QUEIROZ, 2009). Por fim, a

Psiquiatria Democrática Italiana (PDI) caracterizou-se como uma corrente de

pensamento crítico sobre a instituição psiquiátrica, propiciando a instauração de uma

ruptura radical com o saber/prática psiquiátrica, na medida em que promoveu uma

mudança paradigmática (QUEIROZ, 2009). A PDI surgiu a partir das iniciativas de

desinstitucionalização protagonizadas pelo psiquiatra Franco Basaglia na Itália, mais

especificamente nas cidades de Gorizia e Trieste.

Tal movimento propunha que melhorar as condições de hospedaria e o cuidado

técnico destinado aos internos em hospitais psiquiátricos não seria suficiente, sendo

necessárias transformações profundas e radicais tanto no modelo de assistência

psiquiátrica quanto nas relações que a sociedade estabelece com a loucura. Conforme

Amarante (1994), Basaglia adotou a abertura das portas, a supressão das grades, das

camisas-de-força, enfim, de todas as formas violentas e desumanas de “tratamento”. Ele

foi o primeiro a colocar em prática a extinção do modelo hospitalocêntrico, criando

serviços alternativos ao manicômio, construídos em forma de rede de atenção, bem

como elaborando novas estratégias para o cuidado com as pessoas em sofrimento

mental (FARIA e SCHNEIDER, 2009).

A proposta Basagliana de desinstitucionalização representou um corte

epistemológico na forma de tratar a “loucura” ao constatar que o hospital

psiquiátrico tradicional era antiterapêutico, sinalizando para a necessidade de

criar um rol de serviços abertos e comunitários que fossem capazes de

assegurar ao sujeito em sofrimento psíquico um tratamento eficaz desde a

“crise aguda”, as demandas por cuidado psicológico, até as necessidades mais

amplas de caráter social (VASCONCELOS, 2000 APUD QUEIROZ, 2009

p.40).

Desse modo, a experiência italiana de reforma psiquiátrica influenciou diversas

cidades e países, inclusive o Brasil. O processo de Reforma Psiquiátrica no Brasil

emergiu do Movimento de Reforma Sanitária, na década de 70, o qual objetivou a

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mudança dos modelos de atenção e gestão nas práticas de saúde, a defesa da saúde

coletiva, da eqüidade na oferta dos serviços, e do protagonismo dos trabalhadores e

usuários dos serviços de saúde nos processos de gestão e produção de tecnologias de

cuidado (BRASIL, 2005a). Embora contemporâneo da Reforma Sanitária, o processo de

Reforma Psiquiátrica brasileira tem uma história própria, inscrita num contexto

internacional de mudanças pela superação da violência asilar (BRASIL, 2005a).

Movimentos em defesa dos direitos das pessoas com transtorno mental foram

protagonizados, a priori, por trabalhadores do campo da saúde mental (MTSM), e,

posteriormente pelas próprias pessoas com sofrimento psíquico e seus familiares

(QUEIROZ, 2009). Com o objetivo de discutir e encaminhar propostas de

transformação na assistência psiquiátrica, o MTSM denunciava a violência dos

manicômios, a mercantilização da loucura, a hegemonia de uma rede privada de

assistência, além de construir coletivamente uma crítica ao saber psiquiátrico e ao

modelos hospitalocêntrico (BRASIL, 2005a).

Em 1987 houve o II Congresso Nacional do MTSM em Bauru-SP, com o lema

“Por uma sociedade sem manicômios”, e, neste mesmo ano, funda-se o primeiro CAPS

no Brasil, mais especificamente na cidade de São Paulo (BRASIL, 2005a). Em 1989, o

deputado federal Paulo Delgado lançou um projeto de lei propondo a extinção e a

substituição dos serviços do tipo manicomial, mas somente em 2001, após 12 anos de

tramitação no Congresso Nacional, foi aprovada a lei 10.216 de 06/04/2001 (BRASIL,

2005a).

Assim, a partir destes marcos, passou-se a privilegiar a criação de serviços

substitutivos ao hospital psiquiátrico, quais sejam: Centros de Atenção Psicossocial

(CAPS), ambulatórios de saúde mental, leitos psiquiátricos em hospitais gerais,

residências terapêuticas, respeitando-se as particularidades e necessidades de cada local

(HIRDES, 2009, p. 298). Entretanto, vale ressaltar que a Reforma Psiquiátrica

Brasileira não pode ser concebida como um evento concluído, ou apenas como um

marco na história da saúde coletiva, mas, como um movimento em curso, onde desafios

são superados e novos se apresentam, configurando um cenário de luta constante. No

cenário nacional atual, isso tem sido evidenciado através dos retrocessos das políticas

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públicas de saúde e saúde mental que o atual governo neoliberal tem realizado, e que

demandam novos embates, novas lutas2.

A política de saúde mental no Brasil ao adotar como eixos principais a

desmanicomialização, a organização de rede de serviços de saúde mental

substitutivos e o reconhecimento dos direitos de cidadania das pessoas com

transtorno mental, demanda transformações profundas nos modos de conceber

o cuidado e organizar os serviços em confronto com as concepções e

estratégias tradicionais, o que implica na definição de novos perfis

profissionais (MANGIA e MURAMOTO, 2006 p.02).

Ao profissional de saúde mental é indispensável a compreensão de um conceito

ampliado de saúde, de clínica ampliada, noção de rede e de territorialidade, de trabalho

em equipe, trabalho interdisciplinar e intersetorial. Conforme Guljor (2003), ao

discutirmos a transformação do modelo de assistência em saúde mental, nos deparamos

com uma mudança na elaboração de um modus operandi que pressupõe uma

ressignificação de papéis, principalmente no que se refere ao engessamento das

especialidades profissionais em funções cristalizadas e a rediscussão do papel social do

saber técnico. Destarte, são muitos os desafios enfrentados e superados ao longo do

processo de Reforma Psiquiátrica, e atualmente outros emergiram, ou reapareceram de

outra forma. Mas, como não é a minha pretensão esgotá-los, nas páginas seguintes,

discorrerei sobre as políticas públicas em saúde mental, em especial o CAPS, instituição

que compõe a rede de atenção em saúde mental.

2 Atualmente, uma série de mudanças têm sido proposta e aprovada em relação à Política Brasileira de Saúde Mental. Conforme ABRASCO e ABRASME (2017), dentre tais modificações, que são verdadeiros retrocessos do processo de Reforma Psiquiátrica no Brasil, destaca-se: 1- a inclusão de Hospitais Psiquiátricos na Rede de Atenção Psicossocial, com o estímulo de internações nessas instituições através de reajustes financeiros no pagamento de diárias para as mesmas; 2- o fim do Programa Nacional de Avaliação dos Serviços Hospitalares (PNASH) para Hospitais Psiquiátricos; 3- o repasse de recursos financeiros do SUS no montante de duzentos e quarenta milhões de reais por ano para a contratação de vinte mil vagas em comunidades terapêuticas, entre outras. Tais medidas afrontam as diretrizes da política de desinstitucionalização prevista na lei 10.216/2001, além de violar as determinações legais em relação à atenção e ao cuidado de pessoas com transtorno mental, estabelecidas também na Convenção sobre Direitos das Pessoas com Deficiência e na Lei Brasileira de Inclusão.

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1.2. POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE MENTAL

Porque a reforma psiquiátrica avança bruta, com a ética

dos que ali suam (Sérgio Pinho3).

Inicialmente, é importante salientar que as políticas públicas de saúde mental

deram origem aos serviços substitutivos ao modelo hospitalocêntrico, os quais,

gradativamente foram tecendo a rede de atenção à saúde mental brasileira, que

caracteriza-se por ser essencialmente pública, uma vez que é parte integrante do Sistema

Único de Saúde (SUS). Tal rede é constituída tanto pela atenção básica em saúde

(unidades básicas de saúde) quanto pelos serviços especializados, incluindo

ambulatórios de saúde mental, os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), hospitais-

dia, serviços de urgência e emergência psiquiátricas, leitos ou unidade em hospital geral

e serviços residenciais terapêuticos (BRASIL, 2001).

Compreendendo que uma rede não comporta centro, é mister reiterar que o CAPS

não é o único serviço de cuidado a pessoas em sofrimento psíquico, como durante muito

tempo o hospital psiquiátrico tentou ser. Ele é uma das principais estratégias de

assistência à saúde mental, mas não atende (e nem é a sua pretensão) a todas as

demandas de saúde das pessoas que dele faz uso. De acordo com Yasui (2006), o CAPS

é meio, é caminho, não fim. É a possibilidade da tessitura, da trama, de um cuidado que

não se faz em apenas um lugar, mas é tecido em uma ampla rede de alianças que inclui

diferentes segmentos sociais, diversos serviços, distintos atores e cuidadores.

Nesse contexto, os CAPS visam a transformação do modelo asilar de assistência

em saúde mental e a garantia de direitos dos usuários, já que tem se constituído na rede

como “serviço que se diferencia das estruturas tradicionais e que se orienta pela

ampliação do espaço de participação social do sujeito que sofre, pela democratização

das ações, pela não segregação do adoecimento psíquico e pela valorização da

subjetividade, com base nas ações multiprofissionais” (TAVARES e SOUSA, 2009,

3 Fala proferida no V Congresso Brasileiro de Saúde Mental, em São Paulo, em 2016. Sérgio Pinho compôs a mesa como representante dos usuários da rede de saúde mental.

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p.254). Assim, os CAPS constituem-se enquanto um serviço ambulatorial de atenção

diária que funciona segundo a lógica do território (BRASIL, 2002).

A perspectiva de entendimento de território aqui apresentada supera a noção de

uma delimitação geográfica, visto que

[...] o território pode ser relativo tanto a um espaço vivido, quanto a um

sistema percebido no seio do qual um sujeito se sente "em casa". O território é

sinônimo de apropriação, de subjetivação fechada sobre si mesma. Ele é o

conjunto de projetos e representações nos quais vai desembocar,

pragmaticamente, toda série de comportamentos, de investimentos, nos tempos

e nos espaços sociais, culturais, estéticos, cognitivos (GUATTARI; RONILK,

2010, p.388).

Essa é a lógica do território que o CAPS como estratégia deve seguir:

de território como relação entre o natural e o social, por um lado como

produção de subjetividades aprisionadas, mas também como potencialidade de

disrupção, de criação de novos territórios existenciais, de espaços de afirmação

de singularidades autônomas. O que significa encontrar e ativar os recursos de

singularização locais existentes. Por exemplo, estabelecer alianças com grupos

e movimentos de arte ou com cooperativas de trabalho, para potencializar as

ações de afirmação das singularidades e de inclusão social. Trata-se de criar

uma intensa porosidade entre o serviço e os recursos do seu entorno (YASUI,

2006 p. 120).

A mudança paradigmática no campo da saúde mental deve englobar a relação que

se estabelece entre usuário, equipe, família e a comunidade, e, a mudança de papéis, a

democratização das instituições, o envolvimento e responsabilização da comunidade

devem somar-se aos objetivos técnicos do novo modelo assistencial (OLIVEIRA ET

AL, 2014). Desse modo, os CAPS se configuram como serviços

territoriais/comunitários, que assumem o papel de articulador da rede de saúde mental e

desta com a rede de saúde, de modo que o cuidado aos usuários se dê de forma integral

e não fragmentada.

Entretanto, tal modo de cuidar, de prestar assistência à saúde dos usuários tem

sido um desafio para os profissionais da saúde. A dificuldade se situa em produzir uma

atuação coerente com os princípios do SUS e da reforma psiquiátrica, que propõem

atividades de cuidados integrais, deslocando o setting dos consultórios para o território e

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a perspectiva das abordagens individualizantes para dispositivos coletivos, grupais e

institucionais, capazes de superar as práticas tradicionais, individualizantes,

segregadoras e ineficientes (SILVA, COSTA e NEVES, 2010).

Para o profissional da Psicologia, a apropriação do campo da saúde pública por si

só já é um desafio, uma vez que a sua inserção ocorreu recentemente. A entrada dos

psicólogos no campo da saúde pública guarda uma relação estreita com os rumos

tomados pelo movimento de Reforma Sanitária e Psiquiátrica ocorrido no Brasil a partir

de meados dos anos 70, momento no qual se instaurou uma crítica ao projeto privatista

de cuidados em saúde, cuja ênfase recaía no aspecto curativo, individual, orientado para

o lucro e para o privilégio do produtor privado desses serviços (DIMENSTEIN e

MACEDO, 2012).

A atuação na saúde pública demanda do psicólogo um modus operandi diferente

do que é regido pelos norteadores teórico-técnicos da clínica tradicional. Requer

disposição para retirar-se do lugar de detentor do saber e lançar mão da estratégia de

cuidado que se dá pelo estabelecimento de confiança e vínculo, tendo como principal

“ferramenta técnica” a escuta clínica. Trata-se de uma perspectiva ampliada de clínica,

que possibilita a ampliação da democracia, que amplia o acesso, que tem como foco o

sujeito e não a doença - sem objetificá-lo - que é construída na relação com o sujeito e

com o território. Desse modo, o trabalho nesse locus exige grande coeficiente de

criatividade, processos de trabalho menos estruturados, o uso das tecnologias leves

como dispositivo de cuidado relacional, capaz de criar um campo entre trabalhador e

usuário no momento do seu encontro, operando aí os fluxos de intensidades (FRANCO

e GALAVOTE, 2010).

Por fim, e não menos importante, a atuação do psicólogo no campo da saúde

pública necessariamente deve ser consoante com os princípios e diretrizes do SUS e da

Política Nacional de Humanização (PNH). No senso comum o termo humanização é

utilizado como sinônimo de bom tratamento, porém, as práticas de humanização

previstas nas políticas públicas de saúde, extrapolam a ideia de um sorriso acolhedor, de

bom atendimento, e alcançam um novo modo de interação entre trabalhadores de saúde

e usuários, e destes entre si, cuja dinâmica é sustentada pela co-construção, a garantia

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dos direitos, a produção de saúde e de subjetividades4. A humanização como política de

saúde se faz pela experimentação conectiva/ afectiva entre os diferentes sujeitos, entre

os diferentes processos de trabalho constituindo outros modos de subjetivação e outros

modos de trabalhar, outros modos de atender, outros modos de gerir a atenção

(PASSOS e BENEVIDES, 2006).

2. ATIVIDADES DESENVOLVIDAS

2.1. UMA “CIRANDA” PELO SERVIÇO: EM BUSCA DA CONSTR UÇÃO

DE VÍNCULO COM OS USUÁRIOS

O procedimento é um ritmo, ao passo que o

processo é uma dança [...].

Jean-Clet Martin

A prática de estágio no CAPS-II (Nova Vida) foi norteada pelo método

cartográfico formulado por Gilles Deleuze e Félix Guattari (1995), o qual tem como

objetivo acompanhar um processo - entendendo o processo como processualidade

(BARROS E KASTRUP, 2014) - e não simplesmente representar um objeto.

A cartografia como método de pesquisa-intervenção pressupõe uma orientação

do trabalho do pesquisador que não se faz de modo prescritivo, por regras já

prontas, nem com objetivos previamente estabelecidos. No entanto, não se

trata de uma ação sem direção, já que a cartografia reverte o sentido tradicional

de método sem abrir mão da orientação do percurso da pesquisa. O desafio é o

de realizar uma reversão do sentido tradicional de método – não mais um

caminhar para alcançar metas prefixadas (metá-hódos), mas o primado do

caminhar que traça, no percurso, suas metas. A reversão, então, afirma um

hódos-metá (PASSOS e BENEVIDES, 2014 p.17).

4 A compreensão aqui adotada para subjetividade é que esta não é algo interno ao sujeito, ou construída

de modo individual, mas que ela é resultante de tudo que perpassa o sujeito. Logo, a subjetividade é construída à partir do contexto, do seu território. “Quem é cada um de nós senão uma combinatória de experiências, de informações, de leituras, de imaginações? Cada vida é uma enciclopédia, uma biblioteca, uma amostragem de estilos, onde tudo pode ser continuamente remexido e reordenado de todas as maneiras possíveis” (CALVINO, 1990 APUD PELBART, 2000 p. 19).

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Para tal perspectiva metodológica, é no caminhar que as metas vão sendo

formuladas e reformuladas. E, se as metas precisam ser construídas durante o percurso

de um caminho, é necessário ter em vista outros modos de caminhar. Esses novos

modos de construir caminhos são vislumbrados durante o caminhar, pois é somente a

partir da realidade que um trabalho em saúde pode ser construído de forma afetiva e

efetiva. Assim, é importante salientar que conhecimento teórico e conhecimento prático

não se dão de forma separada, e, o primeiro não necessariamente precisa anteceder o

segundo. Toda pesquisa é intervenção e exige do cartógrafo um mergulho no plano da

experiência, onde conhecer e fazer se tornam inseparáveis (PASSOS e BENEVIDES,

2014).

A proposta do estágio não foi ir ao CAPS com metas definidas, com propostas

prontas de atividades a serem desenvolvidas, nem com a intenção de colocar em prática

todo conhecimento teórico adquirido até então, mas, de acompanhar as atividades

realizadas no serviço, de modo que a própria realidade se encarregaria de apontar o que

poderia ser feito. Esse modo de estar no serviço - um diferente modo de fazer clínica -

me possibilitou um mergulho profundo na experiência, de modo que o sentido para tal

foi sendo construído ao longo do caminhar. No entanto, isso só foi possível pela via da

abertura ao novo, pela não dissociação entre teoria e prática, pela recusa a qualquer

tentativa de programar a experiência, pela aposta no encontro com toda sua

imprevisibilidade.

[...] A experiência não pode ser antecipada. Não se pode saber de antemão qual

vai ser o resultado de uma experiência, onde pode nos conduzir, o que vai

fazer de nós. Isso porque a experiência não tem a ver com o tempo linear da

planificação, da previsão, da predição, da prescrição, senão com o tempo da

abertura. A experiência sempre tem algo de imprevisível (do que não se pode

ver de antemão) imprevisível (do que não se pode ver de antemão), de

indizível (do que não se pode dizer de antemão, do que não está dito), de

imprescritível (do que não se pode escrever de antemão, do que não está

escrito). E mais, a incerteza lhe é constitutiva. Porque a abertura que a

experiência dá é a abertura do possível, mas também do impossível, do

surpreendente, do que não pode ser. Por isso a experiência sempre supõe uma

aposta pelo que não se sabe, pelo que não se pode, pelo que não se quer. A

experiência é um talvez. Ou, o que é o mesmo, a experiência é livre, é o lugar

da liberdade. [...] (LARROSA, 2011 p.16).

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A clínica tradicional se sustenta na utópica neutralidade científica e busca técnicas

que assegurem à priori o saber fazer, onde o psicólogo não se aproxima do “seu objeto”,

ao contrário, busca se distanciar dele dando sempre respostas cheias de certezas,

imaginando ser capaz de prever comportamentos. Desse modo, sair das certezas que a

formação tradicional oferece, não ter um lugar seguro onde se apoiar não é tarefa fácil e

nem ocorre sem crises, pois gera dúvidas, angústias e medos (NASCIMENTO,

MANZINI e BOCCO, 2006). Mas, produzir cuidado por meio do encontro de

subjetividades, na perspectiva de uma ruptura epistemológica com as práticas

hegemônicas, significa coragem para correr riscos, abrir-se para a potencialidade

produtiva do encontro, do bom encontro, como nos fala Espinosa (YASUI, 2006).

No bom encontro - o encontro que compõe, que aumenta a potência ou a força de

existir (PASSOS e BENEVIDES, 2006) - a relação não se estabelece de maneira

unidirecional (profissional/estagiário - usuário do serviço), mas bidirecional

(profissional/estagiário - usuário do serviço - profissional/estagiário), visto que ambos

são afetados, atravessados.

A cartografia é uma vivência na qual aquele que pesquisa se sente misturado e

envolvido na experiência existencial que ela proporciona, na produção do

conhecimento. O cartógrafo é um pesquisador implicado, sendo também parte

da experiência. Como tal, ele também se modifica no processo de pesquisa. Há

uma produção do mundo e de si ao mesmo tempo (CARVALHO e FRANCO,

2015 p.7).

Segundo Passos e Benevides (2014), objeto (usuário), sujeito (cartógrafo) e

produção de conhecimento são efeitos coemergentes do processo de pesquisar

(encontros), e, a cartografia como método de pesquisa5 é o traçado desse plano da

experiência que visa acompanhar os efeitos do percurso da pesquisa sobre tais.

Ademais,

O trabalho da clínica é o de acompanhar os movimentos afectivos da

existência construindo cartas de intensidade, ou cartografias existenciais que

registram menos os estados do que os fluxos, menos as formas do que as

forças, menos as propriedades de si do que os devires para fora de si.

5 Embora eu relate que a atuação no serviço foi norteada pelo método da cartografia, nós não realizamos

uma pesquisa no CAPS. Partindo da compreensão de que toda intervenção produz conhecimento, pois, intervimos para conhecer - ao contrário da crença dominante na qual, conhecemos para intervir - nossa intervenção foi pautada pela postura que o cartógrafo tem com o campo, o modo como ele ocupa o campo.

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Traçamos, então, as linhas, sedentárias, nômades, de fuga. Estas últimas são as

que se evadem dos territórios, que desmancham estados pelo efeito do

aumento dos quanta afectivos de uma dada existência (PASSOS e

BENEVIDES, 2006 p.3).

A prática no CAPS-II (Nova Vida) teve como principais atividades a

transitoriedade pelo serviço, o contato e a construção de vínculo com os usuários, o

acompanhamento das atividades que são realizadas no serviço e dos efeitos que elas

produzem na vida dos usuários, mais especificamente a oficina de música (coral) e a

oficina de futsal. Trata-se de um serviço com aproximadamente trezentos usuários, os

quais, frequentam a instituição de um a cinco dias por semana. São muitas pessoas,

muitas histórias de vida, muitos movimentos afectivos a serem acompanhados.

É importante contextualizar a delicada e atípica situação que o serviço se

encontrava no momento que o estágio foi iniciado, pois, segundo Barros e Kastrup

(2014), sempre que o cartógrafo entra em campo há processos em curso. No ano

anterior havia acontecido as eleições municipais para prefeito e vereadores, e, o grupo

político que havia governado a cidade nos últimos quatro anos não foi reeleito. O ano de

2017 começou com a transição da gestão municipal e com todos os efeitos que ela

provoca: instabilidade na gestão, nomeação de novos secretários, processos seletivos

para funcionários, instabilidade nos serviços públicos.

De outubro de 2016 a julho de 2017, o CAPS-II (Nova Vida) estava funcionando

de forma precária, sem ao menos ter montada a equipe técnica mínima: um psiquiatra,

um enfermeiro com formação em saúde mental, quatro profissionais de nível superior

entre as seguintes categorias profissionais: psicólogo, assistente social, enfermeiro,

terapeuta ocupacional, pedagogo ou outro profissional necessário ao projeto terapêutico

(BRASIL, 2002). A equipe técnica foi efetivamente contratada somente em agosto,

momento em que o estágio foi iniciado no serviço.

Os usuários ficaram desassistidos durante sete meses, havendo uma quebra na

continuidade do cuidado. Além disso, com a mudança da gestão e dos profissionais de

saúde e saúde mental, as práticas de cuidado ficam fragilizadas e fragmentadas. Desse

modo, a descontinuidade da assistência à saúde e a fragilidade do vínculo entre o

serviço e a comunidade são alguns dos principais desafios contemporâneos do cuidado

na saúde mental. Tais desafios/problemáticas são resultantes da diversidade de formas

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de contratação, ausência de concursos públicos, alta rotatividade de pessoal,

terceirizações abusivas, ausência de política de qualificação/formação dos profissionais,

entre outras (BRASIL, 2006).

Além de ficar por um longo período sem todos os profissionais, o serviço voltou a

funcionar efetivamente somente durante um turno (manhã), tendo em vista que não

estava sendo servido almoço para os usuários. Outro fator complicador nesse contexto

foi o plano de mudança das instalações físicas onde o CAPS estava funcionando, pois

apresentava vários problemas na estrutura e estado de conservação, e o espaço se tornou

pequeno para as demandas do serviço. Levando em consideração a preferência dos

usuários, já estava definido para onde o CAPS iria mudar (instalações onde o CAPS

funcionou há aproximadamente três anos atrás), no entanto não havia sido fixada uma

data exata.

O imóvel passou por uma grande reforma, conforme solicitação da gestão de

saúde mental. Após finalização da reforma, móveis e objetos (incluindo mesas, cadeiras,

materiais para oficinas, etc.) foram levados pelos profissionais para a nova/antiga casa,

mesmo sem a data da mudança ter sido definida. A expectativa de mudança se estendeu

por vários meses, causando muita ansiedade nos usuários e interferindo no fluxo do

serviço e de algumas oficinas terapêuticas (a de artesanato, por exemplo), visto que os

materiais haviam sido levados para a nova casa. Os usuários estavam sempre

reclamando do ócio “forçado” eles estavam vivenciando no serviço.

Diante desse cenário de instabilidade, a inserção no campo se deu com bastante

cautela, pois, como apontam Barros e Kastrup (2014), o cartógrafo se encontra sempre

na situação paradoxal de começar pelo meio, entre pulsações. De fato, o estágio

começou pelo meio de um processo delicado (interrupção das atividades, reestruturação

do serviço, chegada de novos profissionais, etc.), onde os usuários se encontravam

bastante mobilizados/afetados.

Toda essa situação provocou muitos efeitos nos usuários, não apenas no que diz

respeito ao tratamento, mas também, e principalmente, quanto ao vínculo afetivo que

eles têm com o serviço: alguns pararam de ir, outros manifestavam sua insatisfação pelo

modo de (não)funcionamento do serviço indo para suas casas antes das onze horas da

manhã, e, outros com as seguintes frases:

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“estou muito desanimada, o CAPS está chato!; Eu gosto do CAPS, mas

ultimamente não tá dando vontade de vir, só venho por causa das minhas

amizades; Não tá tendo nada no CAPS, antes era bom, a gente era mais

cuidado, a gente fazia várias atividades, tinha os passeios, uma vez a gente

apresentou uma peça no auditório, a gente se inseria na sociedade, a gente se

sentia útil!”(DIÁRIO DE CAMPO, 2017).

A princípio imaginei que todo esse campo de formas e forças pudesse dificultar a

construção de vínculo com os usuários. De acordo com Escóssia e Tedesco (2014), o

campo de formas corresponde ao plano de organização da realidade (Deleuze e Parnet,

1998) ou plano do instituído (Lourau, 1995), enquanto que o campo de forças equivale

ao plano de consistência ou de imanência (Deleuze e Parnet, 1998) ou, ainda, plano do

instituinte (Lourau, 1995). Porém, eles foram muito receptivos à minha presença e a dos

demais estagiários, deram abertura para que algum tipo de vínculo fosse construído.

Vínculo é uma estrutura complexa que inclui um sujeito, um objeto, e sua

mútua inter–relação com processos de comunicação e aprendizagem. [...] É a

maneira particular pela qual cada indivíduo se relaciona com outro ou outros,

criando uma estrutura particular a cada caso e a cada momento, que chamamos

de vínculo. [...] Nunca existe um só tipo de vínculo, pois as relações que o

sujeito estabelece com o mundo são mistas e o paciente e o terapeuta são

concebidos como uma unidade dialética, atuando um sobre o outro

(RIVIÈRE, 1998 p.3).

Ademais, o vínculo é um elemento essencial para uma prática clínica de qualidade

(YASUI, 2006). Ao longo do estágio fui percebendo que cumprimentá-los pelos seus

respectivos nomes é algo muito significativo para a maioria dos usuários (quiçá para

todos) e que poderia contribuir bastante para a construção do vínculo. Diversas vezes

ouvi as seguintes frases: “Ela lembra meu nome”! “Ela sempre lembra meu nome”!

!Você sabe o nome de todo mundo”! (DIÁRIO DE CAMPO, 2017). E foi no percurso

dos bons encontros, da proximidade, da escuta, do interesse e do modo de implicação,

que a vinculação recíproca com alguns usuários se tornou possível. Jamais esquecerei o

dia em que uma usuária me abraçou e me levantou, ela me pegou no colo e literalmente

me tirou do chão. Ela disse: “quando eu gosto de uma pessoa eu carrego no colo”!

(DIÁRIO DE CAMPO, 2017). É importante salientar que não foi possível construir

vínculo, no sentido estrito da palavra, com todos os usuários, tendo em vista a limitação

do tempo - e a construção do vínculo demanda tempo - e, os diferentes modos de

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afetação que uma relação produz. O vínculo só é possível através do engajamento

subjetivo dos atores, do encontro de suas subjetividades.

2.2. ACOMPANHAMENTO DE ALGUMAS OFICINAS TERAPÊUTICA S

O trabalho em grupo é o principal eixo de tratamento utilizado na proposta do

CAPS, e possuem como objetivos possibilitar maior integração social e familiar,

expressão dos sentimentos e emoções, ao desenvolvimento de habilidades, da

autonomia e ao exercício da cidadania (BRASIL, 2004). Dentre as modalidades de

grupos estão os grupos terapêuticos com mulheres, homens e familiares; as oficinas

terapêuticas, artísticas e esportivas; as oficinas de geração de renda e grupos temáticos

(alcoolistas, tabagistas, etc.) (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2009).

As oficinas terapêuticas são ferramentas de grande relevância no cuidado a

pessoas com sofrimento psíquico, pois, conforme Cardoso, Borri e Martinez (2009), se

configuram enquanto iniciativas que buscam reduzir o poder cronificador e desabilitante

de tratamentos tradicionais, para acolher a demanda dos usuários nos cenários sociais

dos quais participam cidadãos comuns. As novas instituições de saúde mental não são

mais unidades de produção de procedimentos médicos ou psicológicos, mas locais de

produção de cuidados, de produção de subjetividades mais autônomas e livres, de

espaços sociais de convivência, sociabilidade, solidariedade e inclusão social, lugares

para articular o particular, o singular do mundo de cada usuário, com a multiplicidade,

com a diversidade de possibilidades de invenções terapêuticas (YASUI, 2006).

Pensando nas oficinas como componentes de cuidado, Rocha (2012, apud

Guimarães e Guazzelli, 2016) aponta que é necessário propor ao usuário a possibilidade

de escolha dentre as atividades oferecidas, para que o mesmo defina a que mais lhe

interessar, pois importante mesmo, é que a atividade exercida na oficina lhe proporcione

sentido.

As oficinas serão terapêuticas ou funcionarão como vetores de

existencialização caso consigam estabelecer outras e melhores conexões que as

habitualmente existentes entre produção desejante e produção da vida material

[...]. Se deseja que as oficinas, o trabalho e a arte possam funcionar como

catalisadores da construção de territórios existenciais, ou de 'mundos' nos quais

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os usuários possam reconquistar ou conquistar seu cotidiano (RAUTER, 2000

p.269-270).

Dentre as oficinas que acontecem no CAPS-II (Nova Vida), destaco a “Oficina de

Música - Coral” realizada às segundas-feiras, terças-feiras e quartas-feiras, e a “Oficina

Esportiva - Futsal” realizada às terças-feiras e quintas-feiras, as quais acompanhei

durante o estágio. A oficina de música é uma das poucas que estava acontecendo

durante o período em que estive no serviço, e, é bastante frequentada pelos usuários. As

músicas cantadas são escolhidas pelos próprios usuários, mas passam pela “aprovação”

do oficineiro. Parte significativa são religiosas (gospel), e a outra pequena parte é

composta por MPB (Música Popular Brasileira).

Foi montada uma pasta com as músicas selecionadas, e, há meses são cantadas as

mesmas músicas (salvo poucas variações), quase sempre na mesma ordem. Como um

dispositivo com tanta potência, capaz de produzir subjetividades, pode tornar-se algo

repetitivo, monótono? Para alguns usuários, mesmo nessa lógica de repetição, a oficina

de música parece ser interessante. Já para outros, “é muito chato, dá agonia” (DIÁRIO

DE CAMPO, 2017). Alguns, durante a oficina dançam mais do que cantam. Certo dia, a

oficina foi conduzida por um estagiário do curso de medicina da UFRB que é músico, e

o mesmo introduziu músicas diferentes no repertório (nordestinas e baianas). Os

usuários se envolveram de tal maneira que deixaram as cadeiras, cantaram e dançaram

como em nenhum outro dia em que eu estive presente. Foi um ato disruptivo, de ruptura

da linha da repetição, onde foi possível a operação de uma linha de fuga, a qual pode ser

definida como:

estas não consistem nunca em fugir do mundo, mas antes em fazê-lo fugir,

como se estoura um cano, e não há sistema social que não fuja/escape por

todas as extremidades, mesmo se seus segmentos não param de se endurecer

para vedar as linhas de fuga (DELEUZE e GUATARRI, 1996 p.72).

A linha de fuga é uma desterritorialização. Os franceses não sabem bem o que

é isso. É claro que eles fogem como todo mundo, mas eles pensam que fugir é

sair do mundo, místico ou arte, ou então alguma coisa covarde, porque se

escapa dos engajamentos e das responsabilidades. Fugir não é renunciar às

ações, nada mais ativo que uma fuga. É o contrário do imaginário. É também

fazer fugir, não necessariamente os outros, mas fazer alguma coisa fugir, fazer

um sistema vazar como se fura um cano [...]. Fugir é traçar uma linha, linhas,

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toda uma cartografia. Só se descobre mundos através de uma longa fuga

quebrada (DELEUZE e PARNET, 1998 p.30).

No que tange à oficina de futsal, é possível afirmar que esta também é uma das

poucas que acontecia com regularidade enquanto estive presente no CAPS. Uma oficina

majoritariamente masculina, participada por grande parte dos usuários (homens), e, a

princípio, por apenas uma mulher, uma usuária com um pouco mais de sessenta anos

que exerce a função de juíza/técnica das partidas. Usuária do CAPS há

aproximadamente onze anos, Dona Valentina6 frequenta o serviço apenas nos dias do

futsal, única atividade que atualmente ela participa afetiva e efetivamente. Dona

Valentina se auto-denomina “marcadora do jogo do CAPS”, tarefa que desempenha

com muita seriedade e empolgação. Sentada à sua mesa, ajuda na “escalação” dos times,

controla o tempo das partidas e registra os gols. Ela representa uma figura de autoridade

para os usuários que participam do futsal e para outros de modo geral, sendo que alguns

a chamam de “mãe” e lhe pedem a bênção.

Os usuários que participam do futsal frequentam assiduamente o serviço nos dias

em que essa oficina acontece, e são bem engajados afetivamente nessa atividade, tanto

que nos dias em que não havia transporte para levá-los, eles deslocavam-se para o

ginásio de esportes à pé, inclusive dona Valentina. Além dos usuários do CAPS-II,

alguns profissionais do serviço participam regularmente dos jogos, e, estagiários do

curso de medicina da UFRB e usuários do CAPS-AD participaram esporadicamente ao

longo do tempo em que acompanhei esta oficina. Ainda, três usuários que não

frequentavam mais o serviço por diversos motivos, participavam com regularidade do

futsal, sendo que iam diretamente das suas casas para o ginásio e vice-versa, sem

nenhum contato direto com o CAPS-II.

Inicialmente, a única presença feminina no futsal era a de Dona Valentina. Depois

que eu e outra estagiária começamos a frequentar essa oficina, algumas usuárias

passaram a ir conosco acompanhar os jogos. Durante as partidas, torcíamos e

vibrávamos, mas também conversávamos sobre vários assuntos, inclusive algumas

usuárias compartilhavam situações particulares que estavam vivendo. Em um desses

momentos, duas usuárias dividiram comigo a insatisfação com relação ao café da manhã

do serviço:

6 Todos os nomes próprios utilizados no texto são fictícios.

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-Eçaiara7: “eu sou diabética, não tomo café no CAPS porque é com açúcar e

também por causa do pão. A maioria das coisas que eles dão eu não posso

comer”. -Maria: “Eu não sou diabética, mas evito coisa doce. Muitas pessoas

lá do CAPS são diabéticas, porque eles não pensam nisso?” (DIÁRIO DE

CAMPO, 2017).

Em outra partida de futsal essas mesmas usuárias falaram sobre o Benefício de

Prestação Continuada (BPC):

-MARIA: eu não queria a aposentadoria por invalidez, para mim é um

dinheiro ruim, um dinheiro vindo de doença. Eu queria poder trabalhar como

antes, acordar cedo, tomar meu banho e sair para o meu trabalho.

-EÇAIARA: “eu entendo o que tu tá falando Maria, mas pior é se tu não

tivesse esse dinheiro. Eu mesmo queria ter direito a esse dinheiro, lá em casa

a coisa tá difícil, meu marido e minhas filhas estão desempregados, a gente tá

passando necessidade. A gente tá vivendo de ajuda de pessoas e de uma igreja

que às vezes dar uma cesta básica porque também tem muita gente

precisando. A gente às vezes passa fome. -ESTAGIÁRIA: a senhora já foi no

CRAS? -EÇAIARA: já fui na Assistência Social várias vezes, mas nunca

consegui uma cesta básica. Uma vez a mulher disse que ia levar, eu liguei pra

minha filha pra ela não sair de casa pra receber e quando eu cheguei em casa

quase de noite minha filha disse que não teve ninguém lá [...]

As arquibancadas do ginásio de esportes tornaram-se potentes dispositivos de

escuta clínica, de engajamento e trocas subjetivas, catalisadores de atos produtores de

cuidado. Tornaram-se palco de importantes conversas, onde usuárias que muitas vezes

se apresentam no serviço como fundo, passaram à posição de figura8. O episódio

supracitado foi um marco decisivo na escolha do caso de Eçaiara como dispositivo

analisador no meu relatório de estágio. Como aponta Yasui (2006), recepcionar e

acolher são atitudes que pressupõem esse lugar especial de escuta, possuidor de uma

plasticidade para se refazer de acordo com a demanda que se apresenta.

2.3. ACOMPANHAMENTO DE VISITAS DOMICILIARES

7 Um pouco mais à frente no texto essa usuária aparecerá como protagonista do trabalho, mais especificamente no tópico 3: CASO EÇAIARA: AQUELA QUE FOI ESQUECIDA 8 Conforme Koffka (1975), entende-se por figura qualquer processo que se destaca de um fundo.

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A visita domiciliar (VD) compõe a grade de serviços oferecidos pelo CAPS-II

(Nova Vida), e constitui-se como uma estratégia de atenção fora dos muros da

instituição, mais especificamente na residência do usuário, no seu território. Nessas

visitas busca-se entender a dinâmica familiar do usuário, o que facilita o planejamento

do seu projeto terapêutico, além de conhecer as possibilidades de envolvimento da

família no cuidado ao sujeito (REINALDO e ROCHA, 2002).

A Visita Domiciliar (VD) é uma prática de saúde pública historicamente

construída e que podemos definir como o conjunto de ações que abrange

principalmente o aspecto educacional em saúde, priorizando as orientações

para o autocuidado. Sendo a ação domiciliar que mais se destaca entre as

estratégias do Programa de Saúde da Família (PSF). A VD diz respeito à

manutenção ou monitoramento na residência de situações específicas,

temporárias ou não, de saúde, bem como o acompanhamento das demais

situações presentes no contexto familiar, buscando ações de promoção da

saúde. [...] A VD, organizada a partir de um planejamento coletivo com a

equipe, opera com o caráter de sigilo visando a proteção, o respeito e a

privacidade do usuário (ABRAHÃO e LAGRANGE, 2007).

Durante o estágio, acompanhei quatro visitas domiciliares, duas delas realizadas à

protagonista desse trabalho (Dona Eçaiara). Ir ao território do usuário, conhecer seus

familiares e vizinhos, entrar em contato com a sua realidade promove uma aproximação

entre “quem cuida e quem é cuidado”, podendo gerar uma compreensão mais ampla

sobre o processo de saúde/doença e sobre as estratégias de cuidado adotadas pelo

usuário e pela família. As visitas a Dona Eçaiara aconteceram por minha insistência

junto à equipe, e, através dela foi possível conhecer o seu ambiente familiar, o seu

contexto de vida, e, ter acesso a informações sobre a situação que estava vivenciando. A

VD foi uma das principais ações produzidas após a escuta prestada à usuária.

Eçaiara está com um problema de saúde, mais especificamente nos ovários e

necessitará de intervenção cirúrgica. Tal problema provoca muitas dores e

secreções com odor. Seu marido não compreende/respeita seu processo de

adoecimento, fica querendo ter relações sexuais sem o seu consentimento, uma

clara situação de violência. Além disso, provavelmente sua cirurgia será

realizada em Salvador-Ba, sendo necessário que ela fique alguns dias longe

de casa. Ela diz: “eu estou com medo de deixar minha filha sozinha com ele

porque quando ela tinha sete anos ele tentou abusá-la sexualmente. Vou fazer

de tudo para que ela vá comigo como minha acompanhante”. A filha diz:

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“não se preocupa mainha, eu não sou mais uma criança,, se eu não consegui

ir com a senhora vou saber me defender” (DIÁRIO DE CAMPO, 2017).

Durante a VD foi possível visualizar as diversas problemáticas que permeiam a

vida de Eçaiara: vulnerabilidade socioeconômica, adoecimento físico, violência sexual

(tanto ela como a filha), etc. É possível entrar em contato com o outro, com sua

realidade, com seu sofrimento e resistência e não ser afetada? Como apontam Benevides

e Passos (2004), toda experiência clínica é uma experiência com as afecções da

existência ou com isso que se produz a partir de nossa posição no mundo, como corpo

em encontro com outros corpos que assim se afetam de modo alegre ou triste. Assim, a

maior aproximação com o contexto de vida dos usuários possibilita a valorização da

dimensão subjetiva das práticas em saúde, das vivências dos usuários, abrindo espaços

de comunicação e diálogo entre saberes e práticas (PAIM e ALMEIDA FILHO, 1998).

Por outro lado, a VD traz algumas questões importantes que requerem do

profissional de saúde atenção e comprometimento ético. Isso porque ela nem sempre é

reconhecida como legítima pelos profissionais que a praticam, às vezes sendo

considerada como mero improviso (NEVES ET AL, 2012). Em duas das visitas que

acompanhei, os profissionais que realizaram não entraram em contato previamente com

as usuárias para marcar a VD. Foram experiências que contribuíram bastante para a

formação profissional, entretanto, a chegada inesperada me causou a incômoda sensação

de estar invadindo a casa e a privacidade das usuárias.

Entrar na casa das pessoas, observar seus hábitos, suas relações intrafamiliares,

sua rotina cotidiana pode ser extremamente rico e importante para o

planejamento e execução das ações. Uma atividade complexa e adotada pelos

principais modelos de atenção à saúde que, se não for efetuada, respeitando a

individualidade da família e em acordo com objetivos estabelecidos pelo

projeto terapêutico, com limites claros e bem definidos, pode se transformar

em poderoso instrumento de controle e vigilância da população (ABRAHÃO e

LAGRANGE, 2007).

A VD já é, em si mesma, uma prática que interfere na rotina do usuário e da

família, e, quando não é feita com seu conhecimento/consentimento nem a partir da sua

disponibilidade de tempo, a sensação é que ela se torna ainda mais invasiva. Portanto,

nem toda ida do profissional ao domicílio do usuário pode ser considerada VD, pois

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para se caracterizar como tal ela precisa ser planejada previamente entre a equipe do

serviço, considerando o horário preferencial do usuário/família.

3. CASO EÇAIARA: AQUELA QUE FOI ESQUECIDA

Sou um homem invisível. Não, não sou um fantasma como os que

assombravam Edgar Allan Poe… Sou um homem de substância, de carne e

osso, fibras e líquidos – talvez se possa até dizer que possuo uma mente. Sou

invisível, compreendam, simplesmente porque as pessoas se recusam a me ver.

Minha invisibilidade também não é, digamos, o resultado de algum acidente

bioquímico da minha epiderme. A invisibilidade à qual me refiro ocorre em

função da disposição peculiar dos olhos das pessoas com quem entro em

contato […].

Ralph Ellison, O Homem Invisível (1952).

Dentre os usuários em que foi possível a construção de uma relação de afetações e

atravessamentos mútuos, destaco Dona Eçaiara. Embora tenha me envolvido de alguma

forma com todos os atores CAPS Nova Vida (usuários, técnicos, profissionais, etc.),

escolhi falar de uma usuária especificamente. Daqui pra frente vamos começar a

mergulhar na sua história, e, a partir dela, acompanhar e analisar as linhas que se

cruzam no cotidiano do serviço, mais especificamente nas relações de produção de

cuidado.

Eçaiara é uma mulher tímida, de poucas palavras e bastante observadora.

Frequenta o serviço duas vezes por semana (segunda-feira e quinta-feira). Foi uma das

primeiras usuárias que tive contato, e, mesmo sendo uma pessoa calada, ela participava

minimamente dos momentos de interação, dos bate-papos espontâneos comigo e com os

usuários. Em uma dessas conversas (nas arquibancadas do ginásio de esportes), mais

especificamente entre mim, ela e outra usuária, Eçaiara compartilhou conosco a

delicada situação que estava enfrentando há alguns meses. Ela reside com o marido e

com uma filha, ambos desempregados. Relatou que tentou várias vezes o BPC

(benefício de prestação continuada), mas nunca conseguiu. Sem renda fixa, estavam

recebendo o apoio de uma igreja evangélica, mas chegaram a passar fome, visto que as

contribuições não são constantes.

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Ouvir o seu relato me afetou bastante, mas ao mesmo tempo me fez perceber que

existia um vínculo entre mim e ela, uma relação de confiança que possibilitou o

compartilhamento de questões da sua vida particular e familiar. De acordo com Yasui

(2006), construir um lugar na relação com aquele que busca os cuidados do serviço

implica em ouvir, fazer falar o sujeito e sua subjetividade, colocar a doença entre

parênteses e olhar para a pessoa e a complexidade de sua existência. O que menos

estava em jogo na nossa relação era a sua psicopatologia, mas, a situação de

vulnerabilidade socioeconômica que ela se encontrava e os efeitos disso na vida dela.

Após essa conversa, Eçaiara passou algumas semanas sem ir ao serviço. Ela reside

em um bairro periférico da cidade, bastante distante do serviço e não dispõe do passe

livre para o transporte público municipal. Conversei com seu técnico de referência e

com o profissional do serviço social sobre suas faltas e sobre a questão socioeconômica,

buscando construir com eles possíveis estratégias de intervenção. A princípio foi difícil

encontrar seu prontuário, pois eu sabia apenas o seu primeiro nome, e com ele os

profissionais não estavam conseguindo identificar. Procuramos no livro de frequência e

também foi difícil encontrar registros da sua presença. No mês de agosto (mês que

iniciei o estágio) ela frequentou o serviço com regularidade (duas vezes por semana),

mas só encontramos uma única assinatura referente a esse mês.

Eçaiara, a protagonista desse trabalho, tem sua trajetória no CAPS marcada pela

invisibilidade: ela passa semanas sem ir ao serviço e ninguém percebe a sua ausência, e,

quando ela vai, não tem sua presença registrada. A escolha do nome fictício Eçaiara foi

feita justamente pelo seu significado, é um nome de origem Tupi que significa “aquela

que foi esquecida”. Alguns profissionais não a consideram como usuária do serviço,

segundo um deles: “ela nunca aderiu ao CAPS” (DIÁRIO DE CAMPO, 2017).

Sobre a sua situação socioeconômica, analisando seu prontuário os profissionais

identificaram que ela “não tem direito” ao BPC nem ao passe livre, porque ambos são

adquiridos de acordo com o diagnóstico. Seu prontuário informa:

Eçaiara, 49 anos, casada, tem quatro filhas, analfabeta e desempregada.

Reside com o marido, uma filha e uma neta no Conjunto Habitacional

Zilda Arns, Santo Antônio de Jesus-Bahia. Compareceu ao serviço pela

primeira vez com as seguintes queixas: é nervosa, ansiosa, agressiva

(verbal e fisicamente), sente uma tristeza profunda, tem insônia, ânsia de

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vômito, seu estabilizador do humor oscila com frequência. É hipertensa,

faz uso de losartana (100 mg), afopic (5 mg). Passou a ter esses sintomas

no momento que se casou , seu cônjuge lhe agredia, ameaçava de morte,

falava palavrões a seu respeito. Seu ambiente familiar é turbulento.

Houve vozes e apresenta constante ideação homicida com relação ao

esposo, realizando algumas tentativas. Queixa-se de dificuldade

financeira para realizar o deslocamento de casa para o serviço. Solicita

passe livre no transporte coletivo municipal, no entanto é negado o

direito. Seu CID é F31 (Transtorno Bipolar).

Na busca por uma alternativa de intervenção, sugeri aos profissionais a realização

de uma visita domiciliar a Eçaiara, de modo que pudéssemos entrar em contato com a

sua realidade e ter acesso a novas informações. Eles consideraram a minha sugestão, e

agendamos a VD para a semana seguinte. Depois de alguns impasses junto à equipe, a

visita finalmente foi realizada. Novas problemáticas surgiram na vida de Eçaiara, para

além da questão socioeconômica, mas que ao mesmo tempo se esbarra nessa esfera. Ela

relatou que parou de ir ao CAPS nas últimas semanas porque está com nódulos nos

ovários, os quais, além de muita dor, produzem secreção com odor forte, o que a

incomoda bastante e a faz tomar vários banhos por dia e a usar absorvente quando sai de

casa. Ela estava bastante triste, e mencionou medo de ser câncer, doença que provocou a

morte da sua mãe e tias.

Eçaiara disse que estava surpresa e inconformada com o aparecimento desses

nódulos, pois há um tempo atrás teve problema no útero a ponto de precisar retirá-lo, e

por isso achava que não mais teria problemas no aparelho reprodutivo. Também já teve

nódulos no seio. Manifestou desânimo diante do longo processo que é necessário passar

para a resolução do problema. Trata-se de uma mulher, negra, usuária do serviço de

saúde mental (“louca”) e em situação de vulnerabilidade socioeconômica. Quando a VD

foi realizada ela já havia sido consultada por um ginecologista, e estava aguardando a

marcação da cirurgia. Mas foi à partir daí que se iniciou um longo, cansativo e

desmotivador processo de preparação para a cirurgia.

Duas semanas após a visita, eu e o técnico de referência entramos em contato com

Eçaiara para saber como ela estava e se a cirurgia já havia sido agendada. Ela relatou

que estava na fase dos exames pré-operatórios, que já havia conseguido fazer alguns,

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mas que os demais não estava conseguindo fazer pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

Continua sentindo dores e expelindo secreção com odor. Quanto ao seu retorno ao

CAPS, ela afirmou que não se sente confortável em voltar, visto que precisa tomar

banho com frequência.

A situação de Eçaiara provocou em mim um sentimento de total impotência. O

lugar de estagiária, ao mesmo tempo que é potente porque possibilita a experimentação

de diferentes modos de estar no serviço e de se relacionar com os usuários, por outro

lado, é permeado por uma série de limitações com relação ao fazer, principalmente pela

brevidade do tempo de permanência no serviço. A dificuldade que Eçaiara encontrou

para conseguir exames, as muitas tentativas, as idas e vindas, o caminhar pela cidade em

busca de uma vaga, tudo isso deixou evidente aos meus olhos o quão violento o seu

processo de busca por tratamento estava sendo. Conversando com alguns profissionais,

perguntei se não havia alguma forma de o CAPS intervir, algum tipo de

encaminhamento que pudesse contribuir para a resolução do impasse com relação aos

exames e cirurgia, mas a informação que obtive é que não havia essa possibilidade.

Três meses após a visita, Eçaiara ainda estava tentando fazer os exames que

faltavam. Durante esse tempo, a angústia me acompanhou e o medo que ela morresse

foi absolutamente inevitável. Eu me questionava a todo momento sobre o artigo 196 da

Constituição. Em vez de afirmação, cabe uma interrogação: a saúde é direito de todos e

dever do Estado? E quanto à integralidade do cuidado em saúde? No Brasil, os serviços

públicos de saúde não funcionam, ou pelo menos não deveriam funcionar isoladamente,

mas em forma de rede. Conforme Paim (2014), a ideia de rede supõe certa ligação ou

integração entre os serviços, evitando que atuem de forma isolada, autarquizada, ou

seja, sem comunicação entre si.

No caso de Eçaiara, parece não funcionar a rede de cuidados existente no

território, simplesmente porque alguns profissionais não conseguem vislumbrar a saúde

pública como sendo possível somente em rede, na rede, através da rede. Em uma das

ligações feitas a Eçaiara, o técnico de referência solicitou que ela comparecesse ao

serviço com as requisições dos exames, para que ele entrasse em contato com os setores

competentes (UBS e Policlínica) para a solicitação da marcação dos exames. Na semana

seguinte a essa ligação, perguntei ao técnico de referência se ela havia comparecido com

as requisições e ele fez a seguinte fala:

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-TÉCNICO: “ela não veio. Agora será difícil eu conseguir marcar alguma

coisa porque a pessoa que eu conheço lá dentro e que faz isso pra mim foi

submetida a uma cirurgia de emergência. -ESTAGIÁRIA: e não é possível

pelo fluxo normal da rede? -TÉCNICO: é possível, mas com essa conhecida é

mais fácil, dar pra “passar na frente”. -ESTAGIÁRIA: então tenta fazer o

percurso da rede (DIÁRIO DE CAMPO, 2018).

Isso tem relação com a consideração feita por Bezerra Jr. (2007), no tocante à

formação dos profissionais de saúde para a atuação no SUS, o que para ele é um dos

principais desafios do processo em curso de reforma psiquiátrica:

A maior parte dos novos profissionais da rede de atenção à saúde mental é

formada por jovens que não passaram pelo processo de luta política e

ideológica que envolveu a criação do movimento antimanicomial. [...] Tal

formação compreende uma tarefa complexa, pois se de um lado é preciso dar

aos discentes formandos uma base teórica e técnica sólida, de outro é

indispensável suscitar nos mesmos uma vocação crítica e criativa, de modo a

atender aos desafios que um processo de transformação do porte da Reforma

Psiquiátrica impõe. Isto implica não apenas o entendimento e a colocação em

prática das políticas e modelos propostos, como também a possibilidade de

auto-reflexão, de reavaliação constante do impacto que o trabalho cotidiano

nas atividades assistenciais exerce sobre a própria subjetividade - única forma

de combater os insidiosos “manicômios mentais”, muito mais resistentes à

mudança justamente por não serem objetivos, e sim enraizados em padrões

cognitivos e pautas afetivas profundamente internalizadas (BEZERRA JR.,

2007 p.245).

Cuidar em saúde requer uma ruptura com a racionalidade que instrumentaliza

saberes e práticas psicológicas-psiquiátricas, de modo que seja possível a instauração de

uma relação diferente entre cuidador e sujeito/usuário. E isto se torna factível se

considerarmos o CAPS não só como um serviço, mas como uma ampla produção de

atos de cuidado que se faz em rede, em uma diversidade de estratégias executadas para

além das fronteiras do serviço, integradas e em associação a outras instituições e

serviços (YASUI, 2006). Alguns profissionais de saúde parecem apresentar dificuldade

em dialogar com outros segmentos e serviços.

É um desafio negociar, articular e estabelecer alianças capazes de produzir

uma força sinérgica para criar soluções e respostas aos problemas complexos

que se apresentam, buscando superar a fragmentação dos conhecimentos e a

separação das ações. Numa palavra, busca-se a intersetorialidade na urdidura

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da trama desta rede de cuidados. [...] A intersetorialidade reveste-se de

especial importância e de argumento fundamental para pensarmos o CAPS

como estratégia e não como um serviço isolado. Atribuir a responsabilidade da

organização da rede de cuidados não significa dizer que a totalidade das tarefas

deva ser executada pelo serviço. A organização de um CAPS que assume

isoladamente a responsabilidade de “dar conta” de toda a demanda e toda a

complexidade da vida do sujeito é muito semelhante à proposta pretensiosa e

autoritáriado Hospital Psiquiátrico. Um CAPS, assim, transforma-se em mais

uma “instituição total”. O processo de organização do trabalho deve seguir a

lógica do território, entendido aqui, também, como o desafio da

intersetorialidade, que pode ser considerado como uma espécie de vacina

contra a tendência onipotente dos serviços que querem cercar a vida do usuário

de todos os lados, tornando-o um usuário-dependente de CAPS (YASUI,

2006 p.145-146).

Quando não há cuidado em rede, dois equívocos são possíveis de ocorrer: o

serviço se propõe a dar conta de todas as demandas dos usuários, como bem sinalizou o

autor acima, ou, por outro lado, o serviço entende que ele nada tem a ver com a

demanda do usuário, e, desse modo, se exime de qualquer responsabilidade. O caso de

Eçaiara é um exemplo tácito desse último equívoco, tanto com relação à sua demanda

de saúde, quanto no que diz respeito à situação de vulnerabilidade socioeconômica. De

acordo com Junqueira (1998), assim como a saúde, o processo de adoecimento possui

determinação múltipla e complexa, necessitando da articulação de saberes e

experiências para seus enfrentamentos. A isso chamamos intersetorialidade:

Uma articulação das possibilidades dos distintos setores de pensar a questão

complexa da saúde, de corresponsabilizar-se pela garantia da saúde como

direito humano e de cidadania, e de mobilizar-se na formulação de

intervenções que a propiciem (BRASIL, 2006a, p.13).

A articulação entre sujeitos de setores sociais diversos e, portanto, de saberes,

poderes e vontades diversos, para enfrentar problemas complexos. É uma nova

forma de trabalhar, de governar e de construir políticas públicas que pretende

possibilitar a superação da fragmentação dos conhecimentos e das estruturas

sociais para produzir efeitos mais significativos na saúde da população

(FEUERWERKER e COSTA, 2000).

No caso de Eçaiara e em todos que for necessário, o CAPS enquanto responsável

por organizar/articular a rede de cuidados, precisa acionar os setores e instituições

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competentes para lidar com as diferentes problemáticas/demandas que se apresentaram,

a saber: problema nos ovários, dificuldade na realização dos exames pré-operatórios,

vulnerabilidade socioeconômica, falta de acesso ao transporte público, etc. Para isso, é

indispensável a construção de um Projeto Terapêutico Singular (PTS), pois segundo

Quinderé, Jorge e Franco (2014), ele é o disparador da rede.

O cotidiano de um CAPS é o de pensar para cada um que busca cuidado, um

projeto terapêutico, considerando a sua singularidade, a sua complexidade.

Projeto que contemple uma diversidade de estratégias de cuidado. Um CAPS é

a articulação dos diferentes projetos com os diferentes recursos existentes no

seu entorno ou no seu território (YASUI, 2006 p.107).

Durante a experiência no CAPS Nova Vida, me perguntei inúmeras vezes se não

havia no serviço integralidade, intersetorialidade, construção de projeto terapêutico

singular, cuidado em rede, etc.. Assim como Eçaiara, vários usuários apresentam

demandas para outros setores e segmentos, cabendo ao CAPS a articulação com a rede,

o encaminhamento e o acompanhamento. João é um desses casos, ele estava com alguns

problemas de saúde e com dificuldades na relação com a mãe. Em uma de nossas

conversas ele fez o seguinte desabafo:

“eu estou com uma dor forte na garganta, tossindo muito há um bom tempo.

Conversei com o psicólogo sobre isso e ele disse que a minha questão não é de

saúde mental, é clínica. Mesmo que não seja um problema de saúde mental,

que seja um problema clínico, o CAPS não pode fazer nada? Não pode me

encaminhar? Eu estou precisando fazer alguns exames e o único que o CAPS

conseguiu marcar foi o de sangue. O aluguel social até hoje eu não consegui

[...]” (DIÁRIO DE CAMPO, 2018).

João compreende que não é da alçada do CAPS resolver seu problema na

garganta, ou mesmo a questão do aluguel social, mas também sabe que cabia ao serviço

encaminhá-lo e acompanhá-lo. A intersetorialidade − e a perspectiva de integralidade

nela implícita − busca o estabelecimento de parcerias entre diferentes instituições no

sentido de obterem certa unidade, apesar das diferentes áreas de atuação dos setores

envolvidos, tentando estabelecer vínculos intencionais que superem a fragmentação e a

especialização (AZEVEDO, PELICIONI e WESTPHAL, 2012).

Retomando o caso de Eçaiara, um pouco antes de finalizar o estágio eu

compartilhei com o seu técnico de referência a minha preocupação com a demora na

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realização da cirurgia (justamente pela sua dificuldade de acesso a alguns exames pré-

operatórios), e, a minha inquietação por não terem sido efetivados os princípios da

intersetorialidade e integralidade do SUS, no cuidado à saúde da usuária em questão.

Ele afirmou compreender a minha preocupação e relatou que havia solicitado à usuária

as requisições dos exames para tentar marcá-los, mas que ela não compareceu ao CAPS

conforme solicitado. Mais uma vez ele entrou em contato com Eçaiara e a sua cirurgia

ainda não havia sido realizada, o que de certa forma eu já imaginava. Já se completaram

cinco meses de tentativas, de procura por vagas de exames, enfim, de muita espera e

sofrimento. Mais uma vez o sentimento de impotência me visitou.

Sabemos que o subfinanciamento e a má gestão do SUS fazem com que pessoas

fiquem meses em filas intermináveis, o que acarreta prejuízos muitas vezes

fatais/irreparáveis em determinadas ocasiões. Além disso, muitos profissionais de

diversos serviços públicos (como no caso dos técnicos do CAPS Nova Vida) se

desresponsabilizam em dados momentos pelo cuidado a alguns usuários. A falta de

encaminhamento e de acompanhamento dos usuários na rede - cuidado longitudinal –

pode contribuir para a demora no atendimento ocorrida no SUS em determinadas

situações, como no caso de Eçaiara. O estágio foi encerrado e ela ainda não havia sido

submetida à cirurgia.

4. EFEITOS/DESDOBRAMENTOS DA EXPERIÊNCIA

A propositura do estágio, a princípio, me causou estranhamento e inquietação. A

proposta foi estar no serviço de outro modo, com diferentes intervenções. Fizemos

algumas apostas! Tendo como referência a perspectiva metodológica da cartografia,

onde o pesquisador/cartógrafo vai a campo sem metas definidas, de modo que estas vão

sendo construídas no caminhar, o objetivo do estágio foi acompanhar (acompanhar é

intervir, é mapear afetos, linhas de força) os processos que ali ocorriam. Esse modo de

estar no serviço e de fazer psi, parece ter provocado incômodos e questionamentos nos

profissionais, pois em dados momentos alguns deles demandaram de nós determinadas

intervenções e propostas de oficinas terapêuticas.

Enquanto estagiários, não é nosso papel propor/instituir atividades no serviço, isso

deve ser feito pelos profissionais de modo interdisciplinar. Não somos os responsáveis

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diretos pelo cuidado no serviço, nós tencionamos e contribuímos com a oferta de

cuidado no serviço. Nós ouvíamos os usuários e tentávamos fazer pontes (com os

profissionais, com outros setores e serviços). É importante registrar, que vivenciar essa

experiência e sustentar o objetivo até o final do estágio, foi no mínimo desafiador.

Durante as supervisões, compartilhávamos o mesmo sentimento: “parece que não

estamos fazendo nada no serviço; eles acham que não estamos fazendo nada no

serviço”.

O nosso questionamento era se a nossa aposta estava produzindo algum efeito nos

usuários, e se era possível chamá-la de clínica. No caminhar da experiência fomos tendo

respostas às nossas indagações e inquietações. A cada dia que passávamos no serviço, a

cada conversa espontânea, a cada momento particular com os usuários, foi possível

perceber que o que fazíamos no serviço, que a relação que estabelecemos com os

usuários e a escuta que a eles destinamos compunha uma prática clínica. Isso porque a

nossa compreensão de clínica rompe com a perspectiva da clínica tradicional,

caracterizada por uma postura imparcial/neutra diante do paciente/usuário, a qual

conforme Nascimento, Manzini e Bocco (2006), o psicólogo não se mistura com o seu

objeto, ao contrário, busca se distanciar dele, apresentando respostas cheias de certezas,

acreditando-se capaz de prever comportamentos. A clínica desenvolvida no estágio e

aqui defendida, utiliza como ferramentas de trabalho as tecnologias leves, as quais

permitem a produção de relações envolvidas no encontro trabalhador-usuário

mediante a escuta, o interesse, a construção de vínculos, de confiança; é a que

possibilita mais precisamente captar a singularidade, o contexto, o universo

cultural, os modos específicos de viver determinadas situações por parte do

usuário, enriquecendo e ampliando o raciocínio clínico do médico. Os

processos produtivos nesse espaço só se realizam em ato e nas intercessões

entre profissional e usuário. [...] É nesse território – das relações, do encontro,

de trabalho vivo em ato – que o usuário tem maiores possibilidades de atuar,

de interagir, de imprimir sua marca, de também afetar. Às tecnologias

envolvidas na produção desse encontro chamamos leves (MERHY e

FEUERWERKER, 2009 p.6-7).

A minha experiência em particular, me permitiu um aprofundamento no

conhecimento sobre as políticas públicas de saúde e sobre a perspectiva de clínica

supracitada, denominada de diferentes maneiras, qual seja, clínica ampliada, clínica do

sujeito e clínica de território. Também pude acompanhar e me angustiar profundamente

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com algumas discrepâncias entre o ideal da teoria e a imprevisibilidade do cotidiano, no

que diz respeito à gestão e à assistência/cuidado em saúde.

São muitas as incongruências entre o que está previsto nas políticas e o que de

fato acontece na realidade. No CAPS Nova Vida isso foi percebido em questões como:

infraestrutura inadequada na anterior e atual instalação física (espaços com pouca ou

quase nenhuma ventilação, telhado do refeitório inapropriado, banheiros sem fechadura,

etc.), equipe profissional reduzida, horário de funcionamento reduzido para apenas um

turno (manhã) durante um ano e alguns meses (devido a falta de alimentação),

extinção/suspensão de algumas oficinas e das demais atividades realizadas no serviço e

em outros espaços da cidade (apresentações artísticas e culturais, passeios, viagens,

etc.), entre outras. Tais questões reafirmam que a Reforma Psiquiátrica não acabou, que

não foi um evento pontual, mas se trata de um processo em curso, um movimento vivo

no território marcado por avanços e retrocessos, e fortalecido por lutas constantes.

Ainda, todas as problemáticas envolvendo as práticas de cuidado (atenção) e de

gestão apontam para a falta de aplicação/efetivação da Política Nacional de

Humanização (PNH), a qual se constrói à partir da inseparabilidade entre estas (atenção

e gestão), pela via da transversalidade.

A transversalidade é o grau de abertura que garante às práticas de saúde a

possibilidade de diferenciação ou invenção, a partir de uma tomada de posição

que faz dos vários atores sujeitos do processo de produção da realidade em que

estão implicados. Aumentar os graus de transversalidade é superar a

organização do campo assentada em códigos de comunicação e de trocas

circulantes nos eixos da verticalidade e horizontalidade: um eixo vertical que

hierarquiza os gestores, trabalhadores e usuários e um eixo horizontal que cria

comunicações por estames. Ampliar o grau de transversalidade é produzir uma

comunicação multivetorializada construída na intercessão dos eixos vertical e

horizontal (BENEVIDES e PASSOS, 2005 p.5).

A humanização como política transversal, supõe necessariamente ultrapassar as

fronteiras muitas vezes rígidas, dos diferentes núcleos de saber/poder que se ocupam da

produção da saúde (BENEVIDES e PASSOS, 2005). O próprio modo de funcionamento

do serviço e de atenção à saúde dos usuários expõe as suas fragilidades/dificuldades no

que diz respeito à articulação entre gestão e atenção. Durante o período em que estive

no serviço foi possível perceber que é mínima a comunicação entre os técnicos (não

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havia reuniões de equipe no momento em que estive presente no serviço), entre os

técnicos e os outros profissionais, e, entre técnicos, profissionais e usuários, o que

enfraquece a PNH e o SUS de modo geral. As vulnerabilidades do serviço foram

evidenciadas/exemplificadas no caso de Eçaiara, no tocante à efetivação dos princípios

da transversalidade (PNH), intersetorialidade e integralidade (SUS), o cuidado em rede

e a construção de PTS.

Mesmo com tantas problemáticas e desafios permeando o CAPS Nova Vida, os

usuários foram receptivos à nossa presença. O nosso manejo, a nossa disposição, a

clínica que realizamos possibilitou a construção de uma relação proximal com os

usuários de modo geral, e o estreitamento dos laços com alguns especificamente. No dia

do encerramento do estágio percebemos os fortes laços afetivos que construímos ao

longo desses meses. Alguns mais desinibidos quiseram falar publicamente o quanto a

nossa presença/atuação foi significativa para eles. Outros mais tímidos optaram por falar

pessoalmente. Foi um momento muito especial, onde materializamos a perspectiva

teórico-prática que acreditamos: não há neutralidade/imparcialidade na relação entre

quem cuida e quem é cuidado. Como foi difícil fechar esse ciclo, encerrar um processo

tão potente de produção de subjetividades (neles e em nós). Nos emocionamos muito,

choramos junto com eles!

Para além do questionamento sobre ser ou não clínica a nossa prática (e é

clínica), os efeitos dela decorrentes são incontestáveis (nos usuários e também em mim).

Em mim porque é impossível viver uma experiência com o outro e não ser

afetada/atravessada. A relação com alguns usuários me inquietou, me provocou à ação,

já com outros me fez sentir impotência, me paralisou; com alguns expôs meus medos e

vulnerabilidades, já com outros me fez rir escandalosamente, me fez brincar; com outros

me possibilitou compartilhar o meu saber, já com outros me fez perceber o quanto tenho

a aprender, talvez, principalmente com eles.

Ao longo dos sete meses, vários espaços se tornaram “settings clínicos”, quais

sejam: a rua, o portão, as árvores, o chão, o refeitório, as arquibancadas do ginásio de

esportes, etc.. Os usuários compartilhavam questões íntimas, problemas pessoais e

familiares, medos, dúvidas e sofrimentos, os quais, por diversos motivos eles não

compartilhavam com a equipe. Tudo isso me fez pensar no quanto a formação dos

profissionais de saúde precisa ser ampliada, inclusive dos profissionais da Psicologia.

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Conforme Rossoni e Lamperti (2004), a formação em saúde durante muito tempo tem

reproduzido uma visão centrada nas técnicas biomédicas, com ênfase nos

procedimentos. Destarte, o grande desafio das instituições de ensino superior para este

milênio é formar, na área da saúde, profissionais mais humanistas, capazes de atuar na

integralidade da atenção à saúde e em equipe multiprofissional, características estas

indispensáveis ao profissional que irá atuar em serviços do SUS (CECCIM e ARMANI,

2001).

Por vezes me dirigi a alguns técnicos para falar sobre situações complexas de

determinados usuários e eles nem sabiam o que estava acontecendo. Isso de certa forma

expõe a perspectiva/postura adotada pelos técnicos, para a maneira como eles estão

atuando nos serviços públicos de saúde, muitas vezes reservados em suas salas. O

acesso a questões que atravessavam a vida de alguns usuários só foi possível através do

modo como estávamos no serviço. Escutávamos coisas que aqueles que estavam todos

os dias no serviço não tinham conhecimento. Provavelmente se o estágio não estivesse

sido desse modo, com esse formato, as questões que emergiram, os

movimentos/intervenções realizadas talvez não fossem possíveis.

A extrema objetivação e a focalização do olhar e da ação sobre o corpo

biológico deixam de lado muitos outros elementos que são constitutivos da

produção da vida e que não são incluídos, trabalhados, tanto na tentativa de

compreender a situação, como nas intervenções para enfrentá-la. Mais ainda, a

busca objetiva do problema biológico tem levado a que a ação do profissional

esteja centrada nos procedimentos, esvaziada de interesse no outro, com escuta

empobrecida. Assim, as ações de saúde têm perdido sua dimensão cuidadora e,

apesar dos contínuos avanços científicos, elas têm perdido potência e eficácia

(MERHY e FEUERWERKER, 2009 p.2).

O caso de Eçaiara exemplifica os entraves com relação à formação dos

profissionais de saúde. Talvez se eu não tivesse notado as semanas em que ela esteve

ausente e comunicado à equipe, ela estivesse esquecida até hoje, como acontece com

tantos usuários que deixam de frequentar o serviço e não são contactados. Notar a falta

de Eçaiara, convidar/provocar o serviço a perceber a ausência de uma usuária

invisibilizada foi muito significativo para mim e produziu muitos efeitos. Decerto,

muita coisa poderia ter sido feita pela equipe do serviço. Concluí o estágio, mas não é

possível dar um fechamento ao caso de Eçaiara. Ela continua tentando fazer os exames

pré-operatórios e consequentemente a cirurgia. Talvez depois de muito tempo ela

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consiga, talvez não. Poderia concluir esse relatório com algo mais alegre, com a fala de

algum usuário, ou mesmo com os efeitos dessa experiência em mim, mas não posso

escamotear/negarei meus sentimentos (angústia, preocupação, medo, etc.). Finalizo

dizendo que temo que a morte seja o desfecho desse caso que tanto me mobilizou.

5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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