manual de roteiro - l. saraiva e n. cannito

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  • CONRAD EDITORA DO BRASIL LTDA.

    CONSELHO EDITORIALAndr ForastieriCristiane MontiRogrio de Campos

    GERENTE DE PRODUTO

    Kate Souza

    CONRAD LIVROS

    DIRETOR EDITORIAL

    Rogrio de Campos

    COORDENADOR EDITORIAL

    Alexandre Linares

    CHEFE DE REDAO HQ / MANGS

    Arthur Dantas

    ASSITENTE EDITORIAL

    Alexandre Boide

    COORDENADOR DE PRODUO

    Ricardo Liberal

    ASSISTENTES DE ARTE

    Jonathan YamakamiHeda Maria Lopes

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  • Leandro Saraiva e Newton Cannito

    Apresentao de Fernando Meireles

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  • Copyleft 2004. livre a reproduo para fins estritamente no comerciais,desde que o autor e a fonte sejam citados e esta nota, includa.

    CAPA: Denis C. Y. TakataFOTO DE CAPA: Adriano Goldman (atores: Darlan Cunha e Douglas Silva)REVISO: Rita Narciso e Otaclio NunesDIAGRAMAO: Osmane Garcia FilhoPRODUO GRFICA: Priscila Ursula dos Santos (gerente), Leonardo Borgiani,Alberto Veiga e Alessandra VieiraGRFICA: Palas Athena

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)(Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Saraiva, LeandroManual de Roteiro, ou Manuel, o primo pobre dos manuais de

    cinema e TV / Leandro Saraiva e Newton Cannito ; -- So Paulo :Conrad Editora do Brasil, 2004.

    ISBN 85-7616-054-4

    1. Cinema - Roteiros 2. Televiso - Roteiros I. Saraiva, Leandro. II.Cannito, Newton. III. Ttulo. IV. Ttulo: Manuel, o primo pobre dosmanuais de cinema e TV.

    CDD-791.437-791.45704-6577

    ndice para catlogo sistemtico:1. Roteiros cinematogrficos 791.4372. Roteiros para televiso 791.457

    CONRAD LIVROSRua Simo Dias da Fonseca, 93 CambuciSo Paulo SP 01539-020Tel: 11 3346.6088 Fax: 11 [email protected]

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  • 7Agradecimentos

    Um livro como este se aperfeioa no contato direto com os leitores.Por isso agradecemos aos mais de quatrocentos alunos e dezoito professo-res de roteiro que, por quatro meses, utilizaram uma verso anterior des-te livro durante as aulas Workshop de Roteiro Cidade dos Homens. Essaexperincia foi fundamental no aperfeioamento do mtodo de ensinode roteiro que propomos no Manual Fics de Roteiro, agora publicado.

    Devemos ainda agradecimentos especiais equipe de realizao doWorkshop. Pelo lado da O2 Filmes, destaque a Fernando Meirelles, queacolheu a idia, e a Bel Berlink. Pela Educine, a toda a vasta equipe, emespecial a Dolores Papa, Mauricio Cardoso e Maria Gercina Bastos.

    Por fim agradecemos a Eduardo Benaim, Fabio Dias Camarneiro eLeandro Maciel, que colaboraram na pesquisa necessria para a redaodeste livro.

    OS AUTORES

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  • Dedicamos este livro a

    Carl Sagan e Jacques Cousteau,

    ao Cosmos e ao Fundo do Mar.

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  • 9Apresentao

    Na capa est escrito que este livro um manual, mas deve ter sido umerro da grfica. Este o Manuel, o primo pobre dos manuais. Pobre masmuito mais esperto, porque o Manuel no faz listas de regras nem d re-ceita de como fazer um roteiro. mais inteligente que isso. Ele bate umpapo com o roteirista, ajudando-o a entender sua prpria histria por di-versos ngulos.

    O Manuel foi escrito para servir de apoio a um curso de roteiros queusava a srie Cidade dos Homens, na qual estou envolvido, comoexemplo. Sorte minha. Atravs dessa leitura, pude compreender melhormeu prprio trabalho. Na terceira temporada da srie convidamos os au-tores do Manuel para integrar a nossa equipe.

    interessante ler o Manuel numa sentada, conforme proposto na in-troduo, mas faz mais sentido ainda ir lendo durante o processo de cria-o de algum projeto. a que as questes levantadas adquirem relevn-cia e a leitura passa a ser realmente til.

    Para encerrar: O Manuel gosta de filmes inteligentes, mas filmes deque o pblico tambm gosta. O que mais diferencia e torna este trabalhointeressante o fato de no estar apoiado no modelo da indstria norte-americana, mas tambm no olhar essa indstria com preconceito. DzigaVertov, Truffaut, Antonioni, David Mammet, Sydney Lumet, Mike Leigh,Guel Arraes, Jorge Furtado, Godard, Billy Wilder. O que h de melhorcomo referncia est aqui.

    Este camarada pode vir a se tornar seu grande amigo. O Manuel.

    FERNANDO MEIRELLES

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    Apresentao dos autores

    Fabricando formas de produo

    Este livro foi escrito originalmente para o Workshop de Roteiro Cida-de dos Homens, curso realizado pela FICs (Fbrica de Idias Cinemticas),com apoio da O2 Filmes, entre abril e julho de 2003, reunindo quase qui-nhentos alunos de vrios estados brasileiros para quatro meses de prtica deroteirizao. As aulas foram ministradas num ambiente virtual e tinhamcomo base uma verso anterior do texto que agora publicado. O Work-shop possibilitou que o mtodo de criao de roteiro desenvolvido nesteManual fosse testado e aperfeioado com a imensa contribuio de todosos alunos e professores envolvidos, a quem os autores deste manual agra-decem.

    O Workshop e o Manual FICs de Roteiro so exemplos do mtodode criao praticado pela FICs. Essa entidade atua como agncia de iden-tificao, coordenao e potencializao de talentos dispersos, reunidosem funo de uma produo audiovisual ao mesmo tempo seriada e ex-perimental.

    A FICs acredita num modelo de criao que combina o melhor do po-tencial individual com o melhor da organizao coletiva industrial, supe-rando tanto as limitaes criativas impostas pelo oligoplio das corporaesde produo de contedo como a atomizao da produo artesanal.

    Como Vertov, acreditamos que o homem se multiplica na relao or-ganizada com os outros homens. Como Godard, no acreditamos na dis-tino entre realizao e reflexo. Filmar, editar, escrever, exibir, debaterso meios diferentes e simultneos de buscar a representao do mundocontemporneo. Por isso a FICs pretende ser uma fbrica que no se dis-tingue de uma escola: a formao e a produo so processos que se ali-

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    MANUAL DE ROTEIRO

    mentam continuamente. Para isso a FICs atua na publicao de livros, naproduo e distribuio de filmes e na constante catalisao de processoscriativos atravs de eventos e workshops.

    Nossa misso a construo de pontes entre grupos culturais e sociaiscriativos, algo como fios que ligam pontos com diferenas de potencial,gerando a corrente eltrica da inovao. Acreditamos na produo cultu-ral como atividade iconoclasta de quebra de fronteiras para criar encon-tros, processos e produtos surpreendentes e diversos, altura do imensopotencial cultural brasileiro.

    Nosso principal objetivo contribuir para a ampliao dos setores so-ciais que realizam audiovisual no pas, criando novos canais de distribuiodessas obras, incentivando o enraizamento regional e a descentralizaoeconmica dos empreendimentos de produo. So esforos coordenadosnesse sentido que propiciaro a multiplicao de obras inovadoras.

    Consideramos o Manual FICs de Roteiro um tijolo a mais nesse pro-cesso de construo e esperamos que ele sirva para motivar realizadoresdispostos a contribuir com a renovao do audiovisual brasileiro.

    Mais informao sobre a FICs no site www.cinematico.com.br.

    EQUIPE FICS

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    Introduo

    O Manual que quer ser Manuel

    No fornecemos receitas de bolo. Por favor, no insista

    Este um manual de roteiro com crise de identidade, j que no acei-ta nem assume sua condio de manual. Na verdade, desconfiamos bas-tante de manuais de roteiro. Estamos convencidos de que a escrita de umroteiro depende, basicamente, de processos subjetivos e intransferveisque no podem ser traduzidos em regras simples e absolutas.

    De modo algum prometemos algo como um guia para o roteiro semdor, do tipo fcil; basta seguir esses simples passinhos sugeridos. Osmanuais de roteiro americanos (Syd Field e outros da mesma pipa) costu-mam confundir roteiro com culinria ou hobbies do tipo do it yourself(Construa a casa de seu cachorro em sete passos simples). Fugimos disso.

    O que lhe oferecemos um conjunto de ferramentas para aprimorar,lapidar, sua criao, a partir da matria-prima que s o seu trabalho podefornecer. Batizamos nosso livro de Manuel porque procuramos fugirdo carter normativo caracterstico dos manuais. Nosso Manual quer serManuel porque um primo pobre dos manuais, mais humilde em suaconversa. Manuel daqueles sujeitos que, em vez de julgamentos e re-gras, preferem a conversa sugestiva, que parte do que o interlocutor dizpara colocar-lhe perguntas, estimul-lo a ver as coisas sob vrios ngulos.Cada captulo trata, mais do que de uma parte ou de um passo, deuma dimenso do roteiro. A tentativa de, atravs de indagaes, prem foco conjuntos de problemas que surgem no trabalho de constru-o do roteiro, como se cada captulo fornecesse lentes especficas quepermitissem ver determinado espectro de questes (como se passsse-

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    MANUAL DE ROTEIRO

    mos, de um captulo a outro, da imagem produzida por um telescpiopara a de um radiotelescpio).

    Por isso, o melhor que o leitor pode fazer tratar o Manuel com aque-la sem-cerimnia que possibilita os bons papos. Pode bem ser que, s ve-zes, o Manuel lhe diga coisas que voc ache descabidas, ou que voc noentenda, no aproveite. Pacincia, a vida assim mesmo. O importante a nica coisa que importa o seu trabalho criativo. O Manuel est apara lhe servir, e servir para que voc encontre os melhores caminhos emseu trabalho. Mas, repetimos, quem caminha, quem ESCREVE, voc.

    O processo criativo ou Como e por que no fazemos auto-ajuda

    A verdade bom que voc, caro leitor, saiba desde j que somosmeio chatos. No achamos que voc superlegal, nem que voc tem umaimensa riqueza interior prestes a se expressar. Tampouco achamos que vocno a tenha. Sinceramente, no, a gente nem te conhece e no temos a m-nima idia de suas potencialidades artsticas.

    O que sabemos que possvel potencializar sua perfomance na rea-lizao de um roteiro. Apostamos num processo de trabalho bem orien-tado e planejado, baseado em esforo, estudo, reflexo e em reescrever,reescrever, reescrever. Inspirao existe, sim. o nome do estado de qua-se transe que por vezes alcanamos, durante o qual tudo d certo. Comoos estados de iluminao espiritual, a inspirao s rola como resultadode muito esforo disciplinado. E tambm se desmancha muito facil-mente, devolvendo-nos ao trabalho duro.

    No compramos a hoje to proclamada inutilidade da teoria. No acre-ditamos que na prtica a teoria outra, que s se aprende fazendo e ou-tras teorias empiristas-obscurantistas da mesma linha. Nenhum arquitetoaprende sua arte na prtica, construindo Braslia. Aprende fazendo ma-quetes (exerccios de simulao da prtica, como estaremos propondo noManuel), analisando em detalhe a obra dos grandes realizadores e para

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    INTRODUO

    alm do domnio tcnico do metier estudando uma gama variada e inde-terminada de assuntos, capaz da apoiar a formao de uma viso pessoal domundo. Alm disso, nossa experincia na prtica, no dia-a-dia da criao,nos mostrou que a teoria (que preferimos chamar de reflexo) muitotil no processo criativo. Se, por um lado, a criao precede a reflexo, poroutro, a reflexo a corrige e a reorienta, num movimento pendular.

    No entanto, isso tudo s ser til se houver matria-prima sobre aqual refletir. Se voc ouviu falar que um sujeito vendeu um roteiro poruma fortuna e, no meio dessa nossa crise nacional sem fim, pensou: ta umaboquinha, at nos solidarizamos com seu desespero, mas no recomen-damos a leitura deste livro. Ou um roteiro expresso de uma tentativade ver a vida sob novos ngulos e a podemos sugerir perguntas paratornar essa expresso mais eficiente ou no vale a pena e a nossas per-guntas vo cair no vazio. Tentar forar o surgimento de idias a partir donada faz com que seja necessrio impor regras preestabelecidas que resul-tam apenas em roteiros medocres, cheios de caretices, clichs e obvie-dades. Trocando em midos: se voc no tem nada de novo a dizer, v vi-ver um pouco, lutar, se apaixonar por idias e pessoas certas e erradas, seiludir e desiludir, ler coi-sas mais importantes que este Manuel. Comoauto-ajuda, s o que temos a dizer.

    O que este livro ou por que o Manuel melhor que osoutros

    Acreditamos, entretanto, que nosso Manuel traz algo de novo mesmoqueles mais acostumados leitura de manuais de roteiro.

    A grande maioria dos livros de roteiro baseia-se num modelo narrati-vo que o absolutiza, apresentando-o como se fosse o nico. Para o pen-samento nico de Syd Field e sua turma, a forma do drama, barateadonum modelo standard, tudo o que existe em termos narrativos. Nessaforma os personagens tm programas de ao, conflitos e psicologia pre-to no branco, como um discurso de Bush, enredos de desenho aerodin-

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    MANUAL DE ROTEIRO

    mico como um caa de Top Gun, paradas to bem planejadas como as dometr de NY.

    Em geral, essa concepo dramtica apresentada como aristotlica,o que j mostra que h algo de podre nesse reino de gramados bem apara-dos. Onde est o terror da tragdia? E onde est o coro, que impunhaaos heris gregos o confronto com as regras da coletividade?

    Mas deixando Aristteles em paz, no alto de seu merecido olimpo,esse drama de manual, com pretenso e naturalizado D maisculo, faz vis-ta grossa mesmo aos grandes dramaturgos americanos deste sculo! Quan-tos erros encontramos nos monlogos interiores de Eugene ONeil ou nadebilidade das mulheres de Tennessee Williams!

    Alguns republicanos diro que isso teatro, que cinema questode indstria e, como tal, requer aplicao de frmulas testadas e aprova-das. Digamos, por um instante (esquecendo que at o sucesso industrialse faz com invenes ousadas), que sim. Cinema, ento, Cidado Kane,no ? Mas que roteiro aquele? Como algum deu dinheiro para se fazerum filme que termina sem que compreendamos direito o protagonista? Eque confuso, que falta de unidade!

    Ou seja, todas essas regras de ouro (tais e tais divises, o modo corre-to de construir o personagem etc. etc) so receitas para fazer um bolobem especfico, que at pode ser gostoso, como clssicas tortas de ma,mas que certamente no esgota as imensas possibilidades de invenoculinria.

    Anlise flmica o nosso instrumental

    Nosso Manuel, em vez de tomar algum modelo narrativo como defi-nitivo, analisa, do ponto de vista da escrita do roteiro, vrios filmes j rea-lizados, buscando compreender seus mecanismos (muito diversos e com-plexos). como desmontar vrios relgios para entender seu mecanismoe, assim, orientar as questes que surgem quando se quer fazer um.

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    INTRODUO

    Nos apoiamos bastante na anlise flmica, um mtodo de observaoformal e estrutural do cinema. Ou seja, em vez de perguntar o que o fil-me quer dizer, investigamos como ele est construdo, levando emconsiderao todos os elementos expressivos empregados na sua realiza-o: montagem, trabalho de cmera, fotografia, mise-en-scne, cenrios,objetos, msicas, rudos, dilogos, interpretao.

    A anlise flmica um campo de pesquisa que se desenvolveu princi-palmente dentro das universidades (no Brasil temos, em especial, a obrade Ismail Xavier), em especial a partir dos anos 1970. Mas, antes disso, al-guns textos de cineastas (com destaque para as obras tericas de Eisensteine dos formalistas russos, escola crtica sua contempornea), j indicavam apotencialidade desse caminho de anlise formal. Trata-se do resultado deum esforo para criar uma forma de estudo especfica ao cinema.

    Nosso mtodo se apia nas conquistas desse campo de pesquisa.Com isso, somos capazes de orientar a redao de um roteiro trabalhan-do a partir de suas prprias caractersticas internas, e de faz-lo tendo emvista no apenas a histria contada e a encenao, mas todo o amplo le-que de recursos que s a narrativa audiovisual tem.

    Para alm do modelo dramtico

    Roteiro, como o nome diz, um guia para um percurso a ser realiza-do. Escrever um roteiro no o mesmo que escrever uma pea ou um ro-mance. Um roteiro no ainda uma obra, mas um plano para uma obra.Isso no detalhe, fundamental. Escrever para cinema ou vdeo envolveelementos que vo alm dos que compem o drama; vo muito alm dotexto escrito.

    O interessante que as regras do sucesso dos manuais no se apli-cam grande maioria dos filmes realizados hoje, mesmo os chamadoscomerciais ou de indstria. Basta assistir Cidade de Deus e Cidade dosHomens, assim como muitos especiais para TV de Jorge Furtado, JooFalco ou Guel Arraes (entre eles algumas das melhores obras audio-

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    MANUAL DE ROTEIRO

    visuais nacionais dos ltimos anos, que privilegiamos nas anlises destelivro) para ver que os roteiros dessas obras no cabem nos modelitos deorigem dramtica que circulam por a.

    Basicamente, esses autores costumam trabalhar criativamente com amediao de um narrador entre a cena e o espectador. Quer dizer, a cmera,a montagem e a trilha sonora contam (mostram) para ns o que acontece,como quem diz: veja isto, agora veja este detalhe, agora veja o que aconte-ceu dez dias antes, agora oua o comentrio deste personagem sobreposto aesta cena de ao, mostrada sem som....

    Em termos conceituais, a presena dessa mediao da cmera torna anarrativa audiovisual uma combinao das formas dramtica, lrica e pica.Em termos prticos, nosso livro incorpora essas especificidades da lingua-gem audiovisual, no como ferramentas a mais, como um tpico entreoutros (algo do tipo: o uso da iluminao), mas como um jeito visual depensar e escrever, que deve estar presente para o roteirista o tempo todo.

    Propomos que se deixe de lado a idia de que o roteiro basicamentedilogo. Essa viso, derivada da absolutizao da forma dramtica, pode edeve ser superada por uma viso mais especificamente cinematogrficado roteiro, que o encare como um estmulo visualizao da narrativa,envolvendo os dilogos e as vozes off no conjunto do fluxo audio-visual com elipses, montagens paralelas, manipulaes temporais, msi-ca, iluminao etc.

    Essa defesa de uma escrita audiovisual, vale a pena sublinhar, algobem mais profundo que a mera formatao do roteiro. Em nossa experin-cia didtica, percebemos certa ansiedade dos interessados em escrever rotei-ros com alguma formatao da pgina preestabelecida. Isso outra feti-chizao, to ilusria e simplificadora como a obsesso com as tcnicas deroteiros que definem uma cartilha clssico-dramtica para as histrias.Esse espantalho da formatao uma falsa questo. Para que no se falemais nisso: basta que as indicaes definam claramente o espao a ser fil-mado, o que importante para a anlise tcnica que a produo far, pre-parando a filmagem. Ou seja, basta que o famoso cabealho interiornoi-tesala do fulano seja feito com clareza, indicando cada nova mudana deespao. O resto detalhe. Um roteiro um instrumento de comunicao edeve ser escrito de modo a facilitar ao seu leitor a visualizao da histria.

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    INTRODUO

    Como ler o Manuel

    Por fim, apresentamos nosso plano de vo:

    Este manual est dividido em duas partes. Na primeira, em cinco ca-ptulos, so discutidas idias e procedimentos que orientam o roteiristano traado do plano geral de criao do texto, isto , no trabalho de de-finio de grandes blocos, rsticos, sem lapidao. Nessa fase inicial oroteirista explorar seu prprio material, tomando conscincia dos limi-tes e das tenses da obra em gestao. Em termos prticos, na primeiraparte do livro o roteirista dominar conceitos que o ajudaro a construirum primeiro esboo do roteiro. Num segundo momento, a partir do sex-to captulo, o roteirista receber orientao sobre como analisar, desen-volver e retrabalhar continuamente seu texto, seguindo uma pauta dequestes mais tcnicas.

    A segunda parte visa a orientar o trabalho de desenvolvimento e rees-crita do roteiro. Em vez de discutir as tcnicas de roteiro de forma genri-ca e impositiva, optamos por organizar o texto em uma srie de pergun-tas que o roterista deve fazer sua prpria obra.

    Cada captulo dedicado a um nvel de considerao do roteiro: cur-va geral e escaleta (cap. 6), seqncia (cap. 7), cena (cap. 8 e 9) e repeti-es (cap. 10). No se trata insistimos de passos para escrever um ro-teiro, mas de nveis de reflexo e ajuste do trabalho criativo, que NOse desenvolve como a demonstrao de um teorema, do princpio abstra-to at os detalhes de mise-en-scne. Um roteirista pode comear o dia tra-balhando num dilogo ou nas rubricas de uma cena, passar para experi-mentaes com inverses temporais na escaleta e terminar ponderandovantagens e desvantagens de uma apresentao mais melanclica ou di-nmica. Quer dizer que, na prtica, o roteirista se defronta simultanea-mente com as questes aqui analiticamente separadas em captulos.

    Nossa experincia com este texto que serviu de apostila para umworkshop on line de escrita de roteiros sugere que um bom mtodo l-lo uma primeira vez por inteiro, de um s flego, para depois retomarcada captulo como leitura de consulta reflexiva, de acordo com interes-ses especficos.

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    MANUAL DE ROTEIRO

    Mas, como tudo mais no livro, isso apenas uma sugesto. Fizemosnossa parte construindo o personagem Manuel, mas agora ele j nonos pertence e ser recriado conforme sua relao com ele.

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  • Manual de Roteiro

    Ou Manuel, o primo pobre dosmanuais de cinema e TV

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    Sumrio

    Parte I ARQUITETURA E ALICERCES: DEFININDO AS BASESDO ROTEIRO, 29

    Captulo 1 QUAIS SO SUAS INTENES? EM BUSCADO ROTEIRO, 31

    Comeando a escrever, 33

    Por que fazer esse filme? ou: quais so as minhas intenes?, 34

    Preparado voc no est, 35

    As intenes veladas dos narradores ou Dialogando com

    adolescentes e maches, 38

    Exemplo de anlise: A Coroa do Imperador, 41

    Captulo 2 CRIAO: AS TCNICAS DA ARTE, 45

    O mito romntico da originalidade, 47

    Multiplicando idias, 50

    Repertrio cultural e curiosidade iconoclasta, 51

    A experincia da escrita: profissionalismo e arte zen, 53

    Captulo 3 SER OU NO SER DRAMTICO?, 57

    Diferenas entre as formas dramtica, lrica e pica, 59

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    MANUAL DE ROTEIRO

    Drama: um outro mundo possvel, 60

    a) Situao dramtica, 62

    b) Dilogo, 63

    c) Progresso, 65

    d) Suspense, 66

    Os limites do drama, 68

    Alm do drama, 69

    Formas no dramticas, 72

    a) Lrico, 73

    b) pico, 74

    Os limites do drama e o cinema moderno, 77

    Captulo 4 OS QUATRO REINOS DO DRAMA:TRAGDIA, COMDIA,MELODRAMA E FARSA, 79

    Introduo desconfiada, 81

    A nossa classificao, 83

    a) Melodrama, 85

    b) Farsa, 87

    c) Tragdia, 91

    d) Comdia, 93

    Captulo 5 PROJETO E ESTRUTURA GERAL, 97

    Os grandes vetores de uma histria (ou: mudanas na situaodramtica e nos personagens), 101

    a) Trs partes?, 104

    A dimenso pica (ou solte a franga ou, ainda, TV Pirata eJean-Luc Godard), 105

    Exemplo de anlise: projeto e estrutura de Cidade de Deus, 108

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    SUMRIO

    Parte II DA CONSTRUO AO ACABAMENTO: TCNICASDE TRATAMENTO DO ROTEIRO, 113

    Captulo 6 CURVA DRAMTICA: ESCALETA E TOM, 115

    Curva dramtica e escaleta, 117

    Plot, 119

    Pontos cruciais, 120

    a) Ponto de partida, 121

    b) Ponto de clmax, 121

    c) Ponto sem retorno (desenlace ou crise), 122

    d) Pontos de identificao e de comentrio, 124

    Variaes tonais, 126

    a) Pausas e preparaes, 128

    b) Foco narrativo, 129

    c) Variaes temporais (flashbacks, sumrios edeslocamentos), 132

    Exemplo de anlise: escaleta de Ulace e Joo Vitor, um

    programa da srie Cidade dos Homens, 135

    Captulo 7 RELAES INTERNAS A UMA SEQNCIA:RITMO, 141

    Dadinho o caralho!, 143

    a) Movimento geral da seqncia, 146

    b) Elipses e manipulao do tempo, 147

    c) Flashbacks e sumrios, 150

    Exemplo de anlise: seqncia de abertura de Cidade de Deus, 157

    Captulo 8 CENA: LINHAS DRAMTICAS, 161

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    MANUAL DE ROTEIRO

    O ncleo da cena, 164

    A curva da cena, 165

    Pequena digresso metodolgica, 165

    Anlise: a estrutura do clmax de Sabrina, 167

    a) Ponto de partida, 167

    b) Desenvolvimento, 167

    c) Clmax, 168

    d) Fecho, 168

    Cortar ou no cortar?, 169

    Mostrar ou narrar?, 170

    Cenas com mais de uma linha de ao, 171

    Anlise: a despedida de Ben (Cidade de Deus), 173

    a) Ponto de partida, 173

    b) Desdobramento, 173

    c) Ponto de virada, novo clmax, 173

    d) Respiro, 174

    e) Clmax, 174

    f ) Fecho, 175

    Intervenes no dramticas na cena, 176

    Exemplo de esboo de cena: O carteiro de Cidade dosHomens, 178

    Captulo 9 CENA: CARPINTARIA DA MISE-EN-SCNE, 179

    Marcao dos atores ou quem manda na cena?, 181

    O clmax de Sabrina: mise-en-scne, 182

    a) Ponto de partida, 183

    b) Desenvolvimento, 183

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    SUMRIO

    c) Clmax, 185

    d) Fecho, 186

    Dilogos e comportamentos, 186

    a) Diversidade das falas, 188

    b) Um problema especial: o bife, 191

    c) Falando sem drama, 192

    Espao, 193

    a) Espao pblico e privado, 195

    b) Definir mais ou menos o espao, 196

    c) Digresso modernista sobre o espao, 197

    d) A escrita cinematogrfica: um conto de Alcntara

    Machado, 199

    e) Dramaturgia plstica: os elementos visuais da cena, 204

    Captulo 10 REPETIES: SINAIS AO LONGO DOCAMINHO, 205

    Antecipaes, 210

    Caracterizao dos personagens, 212

    Caracterizao de relaes, 213

    Objetos de desejo, 215

    Digresses por rima visual, 216

    Exemplo de anlise: o vai-e-vem da cmera, 217

    Notas, , 221

    Quem somos, 229

    Quem queremos ser, 231

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    Parte I

    ARQUITETURA E ALICERCES:DEFININDO AS BASES DO ROTEIRO

    Este manual est dividido em duas partes. Na primeira,em cinco captulos, so discutidos idias e procedimen-tos que orientam o roteirista no traado do plano geralde criao do texto, isto , no trabalho de definio degrandes blocos, rsticos, sem lapidao. Nessa faseinicial o roteirista explorar seu prprio material, toman-do conscincia dos limites e das tenses da obra emgestao. Em termos prticos, na primeira parte do livroo roteirista dominar conceitos que o ajudaro a cons-truir um primeiro esboo do roteiro. Num segundo mo-mento, a partir do sexto captulo, o roteirista receberorientao sobre como analisar, desenvolver e retraba-lhar continuamente seu texto, seguindo uma pauta dequestes mais tcnicas.

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  • 31

    Captulo 1

    QUAIS SO SUAS INTENES?EM BUSCA DO ROTEIRO

    Princpios de roteiro para cinema: a importncia e aespecificidade da imagem; a antecipao da filma-gem.

    A escrita como exerccio: contra a paralisia da idiagenial, muitas idias.

    Em busca da inteno: escrever para ver melhor oque se anteviu.

    Por onde comear? A ausncia de regras lgicas nacriao.

    Criao e comunicao: o projeto de roteiro e a in-terpretao da demanda social.

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    Comeando a escrever

    Uma das perguntas mais comuns na hora de comear a escrever umroteiro : por onde devo comear?

    Tecnicamente falando, h inmeras formas de comear seu filme. H pes-soas que comeam com um tema que lhes interessa ou que conhecem bem(vou tratar da violncia brasileira); h quem comece por um conflito pon-tual; outras, por um espao ou imagem, por uma msica, ou ainda pelo vis-lumbre de um personagem. Quer dizer, comece por onde voc bem entender.

    Este manual no lhe fornecer uma receita de bolo, do tipo seja umroteirista em dez lies simples. Cada captulo NO um passo dadosem esforo e guiado de modo seguro em uma viagem sem dor. Acredi-tamos ajudar oferecendo, a cada etapa, um conjunto organizado de ques-tes que pem em foco um aspecto determinado do roteiro. No captulo7, por exemplo, so as relaes que compem o padro rtmico de umaseqncia; j no captulo 10, nossas lentes nosso campo focal mu-dam para pr em destaque as rimas visuais e repeties que atravessam ofilme todo, como uma linha meldica secundria.

    Mas tudo o que podemos fazer ajudar na ordenao, no esforo demelhor construir a forma daquilo que VOC ter de produzir. Acredita-mos que o esforo coordenado e coletivo melhora a qualidade do acaba-mento final, mas sabemos que na raiz da criao est o impulso indivi-dual e, em larga medida, inconsciente. De modo pessoal e intransfervel,cada escritor deve enfrentar a dura tarefa de extrair de si a matria-pri-ma. S o que podemos fazer ajud-lo a lapid-la.

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    MANUAL DE ROTEIRO

    Por que fazer esse filme? Ou: quais so as minhas in-tenes?

    Um filme um objeto improvvel. resultado de um conjunto de es-foros to complexo e to caro que deveramos nos perguntar porque tudo isso, meu Deus?. Ser cineasta no Brasil , ento, como resumiuo cineasta gacho Jorge Furtado, mais ou menos como ser astronauta noChipre1. Sinceramente, pelas recompensas materiais, no vale a pena. Porisso, se for apenas por grana e sucesso, podemos lhe garantir: h muitasmaneiras menos penosas de obter o tilintar das moedas, o alarido daspalmas e os gemidos das mulheres (ou dos rapazes, moas) que, segun-do o cineasta Jos Roberto Torero, so os sons que movem o homem2.

    Para piorar um pouquinho mais, fazer cinema como ser trapezista por mais experincia que voc adquira, seu negcio exige que, a cada vez,voc arrisque o pescoo (se no, no vale a pena). E as pessoas esto l umtanto para ver voc quebrar a cara, alis.

    Tal como diz Eugene Vale (provavelmente o autor do melhor manualde roteiro j escrito at agora, dizem estes modestos trapezistas...), ne-cessrio uma convico audaz3. Ou, como diria Silvio Santos: voc estcerto disso?

    Mas disso o qu? Afinal, do que se trata? Se voc pensou estou certodisso, sim... vou entrar nessa, pois amo o cinema, foi gongado. Quemama as mulheres no ama nenhuma. No existe cinema, existem fil-mes. Voc quer fazer um filme. Por qu? Qual filme voc realmente querfazer? Sidney Lumet diz que a pergunta fundamental sobre a intenofundamental:

    De que trata esta histria? O que foi que voc viu? Qual foi a sua in-teno? o que voc espera que o pblico sinta, pense, viva? Com quedisposio voc deseja que as pessoas saiam do cinema?4

    Falando das intenes de seu Um Dia de Co (Dog Day Afternoon,1975), Sidney Lumet diz o seguinte: uma histria que, na trama, tratava

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    QUAIS SO SUAS INTENES? EM BUSCA DO ROTEIRO

    de um homem que assalta um banco para que o namorado pudesse con-seguir dinheiro para uma operao de mudana de sexo. (...) Um dia deco era um filme sobre o que temos em comum com o comportamentomais chocante5.

    Assistimos a Macbeth para aprender, viver a experincia de ganhar umreino e perder a alma. Guerra nas Estrelas (Star Wars, George Lucas, 1977) um barato, cheio de lasers, naves, batalhas, ETs e planetas explodindo,mas l no fundo se trata da luta de um rapaz para tornar-se homem. Yodafala com todos ns: Preparado voc no est.

    Preparado voc no est

    No pense, no entanto, que voc s pode comear a escrever quandotiver as intenes totalmente claras em sua cabea.

    Como disse Yoda para Luke, preparado voc no est. Mas vocsente que algo em voc exige que escreva um roteiro. Talvez voc aindano seja capaz de responder com clareza e conciso pergunta de Lumet.Afinal, essa uma pergunta que ele, como diretor, faz ao roteirista depoisdo roteiro pronto.

    No incio, um roteiro uma intuio, uma convico audaz de queh algo para ser expresso. O germe do roteiro pode ser a imagem de so-nho que nos perturba, como o navio encalhado de Terra Estrangeira(Walter Salles e Daniela Thomas, 1995). Pode ser uma frase (quandoGregor Samsa acordou, viu-se transformado num imenso inseto6), umpersonagem do qual vislumbramos o vulto (meu nome Mort, EdMort7), uma situao (um grupo de refinados burgueses, por alguma ra-zo inexplicvel, no consegue sair de um salo de festas8) e sabe-se lmais quantas possibilidades. preciso mergulhar nesse germe, aliment-lo. Explore possibilidades como quiser: escreva linhas do dilogo, tentefazer a escaleta ou faa como Borges9 e escreva a crtica do filme que ain-da no existe. Faa como quiser, mas faa! Todo roteiro (alis, tudo) pre-cisa comear de algum lugar. Escrever exerccio.

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  • 36

    MANUAL DE ROTEIRO

    Cada captulo deste manual apresentar uma srie de orientaes, umconjunto de perguntas de carter estrutural (coisas do tipo: a preparaopara o clmax est feita num ritmo adequado?). No considere essas li-nhas gerais como planos arquitetnicos para uma redao poste-rior. So reflexes sobre possibilidades de lapidao, como dissemos. Seno houver o rduo trabalho paralelo de trazer luz o material a ser lapi-dado, nada acontecer. Para criar, no espere orientaes. Crie, de modoimediato e intuitivo. Depois, pare para pensar.

    Os exerccios da escrita podem ser vistos como uma srie de experin-cias em busca da inteno de Lumet, da motivao profunda que exigeque o filme seja escrito. No h ordem lgica na criao. Voc no tem,necessariamente, primeiro a idia, a inteno, e depois deduz a histria.Voc no v e depois escreve para contar o que viu. Voc escreve paraver o que anteviu (Confie na fora, Luke!). O roteirista busca algo queele no sabe de antemo o que ; como uma lembrana bem remota, al-gum episdio da nossa vida que sabemos (sentimos na memria) comomuito dramtico, forte, mas, de imediato, no conseguimos descreverem detalhes. Escrever o roteiro desenvolver essa intuio, esse senti-mento sobre o ponto na memria; desdobr-lo em seus detalhes e dra-maticidade. O prprio conjunto do roteiro como uma experincia dequmica artstica, buscando que a inteno se precipite.

    Talvez, depois do roteiro pronto, voc nunca fique satisfeito com suaprpria maneira de expressar a sua inteno. Talvez um crtico seja capazde faz-lo melhor do que voc. Mas, como roteirista, voc sentir se o ro-teiro tem ou no essa inteno. Enquanto voc no sentir que a inten-o se realizou, o roteiro no estar pronto. Se, uma vez pronto o roteiro erealizado o filme, ele for assistido e continuar sendo assistido, e as pessoasconversarem e pensarem sobre ele, e discutirem sobre a inteno, vocter cumprido sua misso.

    Se um dia voc for trabalhar com Sidney Lumet, ele lhe perguntar:Sobre o que seu filme?. Ele pode at discordar de sua prpria inter-pretao e, mesmo assim, achar seu roteiro timo. Mas ele vai querer ou-vir a sua interpretao. H quem diga que ficar pensando sobre o que sequer dizer mata a criatividade, que os filmes so, e pronto. Filme so-

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    QUAIS SO SUAS INTENES? EM BUSCA DO ROTEIRO

    bre seria chato, cerebral, no brotaria das profundezas do ser. H umpouco de verdade nisso: ainda que muito do que brota das profundezasdo ser no cheire bem e talvez preferssemos no expor nossas tripasem praa pblica , disso, em grande medida, que se trata. Se voc seprotege de seus medos atrs de algum bom tom preconcebido, jamaisescrever algo de valor. Escrever no um ato bem educado: est maispara um charivari do que para um ch das cinco. Agora, se voc ficar naexpresso visceral, na necessidade de pr pra fora, pode ser difcil dis-tinguir sua arte de outras atividades visceralmente humanas, mas menosinteressantes.

    No acredite no papo de que refletir sobre a obra mata a criao.Eisenstein, Pasolini, Glauber, Alea, Visconti, Godard, Truffaut, Rohmer,Bresson, Fassbinder, Wenders ou seja, o pessoal do primeiro time noacreditaram. Desde que no se caia na distoro racionalista (tambmmortal) de achar que a obra deve seguir e ilustrar a reflexo, voc s ter aganhar misturando seu crebro a suas vsceras. Conforme enfatizaremosno transcorrer de todo este livro, Criar e criticar so dois movimentoscomplementares. O bom roteirista um excelente crtico do seu prpriotrabalho. Ponha as mos obra at os cotovelos, lambuze-se nas prpriasprofundezas e depois reflita sobre o que fez, tal como um pintor que recuafrente ao quadro em andamento. Misturam-se a os esforos de narraodo fato com os esforos de interpretao, de compreenso do que estavaem jogo no fato. Esse um movimento contnuo. a que o uso das tc-nicas de roteiro se torna criativo. Provavelmente voc passar por vriosquadros compostos, basicamente, por um conflito principal (a busca daresoluo detona o movimento da histria), personagens que o vivem (co-nhecer o personagem e acompanhar a histria so, nos bons roteiros, duasfaces da mesma moeda), o tom em que a histria ser contada (cmico,dramtico) e uma hiptese sobre a inteno disso tudo. Como exerccio, acada filme que voc considerar bom, tente ultrapassar os recursos no es-senciais (visuais e narrativos) mobilizados e se pergunte sobre a intenofundamental e sobre como histria e personagens a revelam. Experimenteimaginar mudanas, na histria e no quadro de personagens, que altera-riam a inteno do filme, para melhor ou pior. Voc estar se aproximan-do mentalmente das angstias do roteirista.

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    MANUAL DE ROTEIRO

    As intenes veladas dos narradores ou Dialogando comadolescentes e maches

    No ofcio do roteirista assim como na vida quase nunca a melhorforma de dizer o que se quer a forma direta e explcita. Insinuar uma vi-so torna-a mais poderosa, faz com que ela penetre pelos poros, em vezde passar pela porta da frente, submetendo-se ao crivo de nossa crtica.No se trata, de modo algum, de enganar o pblico, mas de tentar ofe-recer algo que nem mesmo o pblico sabe que quer. Um dos argumentosmais irritantes na defesa da mesmice : Eu dou o que o pblico quer.Ora, todo mundo sabe que o que realmente queremos no pode ser pos-to em palavras claras. Queremos o proibido, o que nos negado at nonvel da formulao do desejo. Um dos papis de quem se pretende artis-ta burlar essas fronteiras. Isso comea na luta consigo mesmo para ten-tar materializar a tal da inteno fundamental, muitas vezes pouco cla-ra para o prprio artista. Prolonga-se no modo de composio da obra,que deve absorver os nveis de represso e desejo que formatam nossas al-mas segundo padres vigentes.

    Um equvoco paralelo ao do eu dou o que o pblico quer o noestou nem a para o pblico. Isso virtualmente impossvel. claro quequem cria algo no vai, antes, fazer pesquisa para conhecer o pblico(no se trata de publicidade). Mas quase um pressuposto lgico que,quando se escreve algo, haja como pano de fundo a imagem de um p-blico ideal. Guimares Rosa ou melhor, o livro Grande Serto: Veredas projeta um leitor ideal que domine umas vinte lnguas e tradies cul-turais. Talvez apenas o celebrado tradutor alemo de Rosa, ou nem ele, rea-lize esse projeto de leitor ideal. No importa: ele est implcito no livro. bom que voc, como roteirista, pense nisso, esforce-se para tornar cons-ciente seu espectador ideal. Isso mais crucial no caso do cinema, uma artede massas. Lumet conta que quando estava fazendo Um Dia de Co pensa-va nos maches que freqentavam o boteco do bairro operrio onde cres-ceu. Como fazer para que aqueles caras dessem uma chance a Sonny, umsujeito que assalta um banco para conseguir a grana da operao de trocade sexo do namorado?

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    QUAIS SO SUAS INTENES? EM BUSCA DO ROTEIRO

    A fim de trazer a questo para bem perto, faamos um exerccio de a-profundamento de reflexo sobre a inteno fundamental e o modo deapresent-la, com base em um filme recente de um dos melhores roteiristasbrasileiros, Houve uma Vez Dois Veres (Jorge Furtado, 2002). Imaginemosum dilogo com jeito socrtico:

    Por que Dois Veres era um filme necessrio? Porque no existem comdias romnticas adolescentes nacionais. O

    filme centrou-se num pblico especfico e numa realidade especfica, econtribui com a representao de questes ausentes na maioria dos filmesbrasileiros. S pela escolha do recorte, o filme j foi altamente inovador.

    Mas esse filme precisava realmente ser feito, em termos cul-turais, e no apenas de mercado? O que ele tem de igual e o quetem de diferente?

    Por ser um bom roteiro de comdia romntica, o filme oferece aosadolescentes algo de substancial sobre suas experincias, partindo no defora, mas de dentro dessas experincias.

    O filme parte do modelo da jornada do heri10. Chico tem de passarpor peripcias para se tornar um adulto realizado. Em vez de um caa dosrebeldes, Chico pilota mquinas de fliperama e sua Fora o velho Amor.Guiado por ela, ele acerta no mago de Roza, destri sua Estrela da Mor-te de femme fatale, e a resgata do Lado Negro.

    Mas isso o padro Guerra nas Estrelas. O filme no oferecenada de novo?

    Oferece. Esse padro apenas um esqueleto muito geral. O filmeconstri personagens a partir da experincia do adolescente contempor-neo. Usa a estrutura-padro, mas inova nos personagens.

    Alm disso, o filme tem o cuidado de assumir o ponto de vista ado-lescente e evita o moralismo adulto comum na representao do tema.Uma crtica bem-intencionada disse, na poca do lanamento, que Dois

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    MANUAL DE ROTEIRO

    Veres era um filme saudvel. Os guris tomam suco de laranja, no cer-veja. Baseado, ento, nem pensar. Ele seria uma comdia romntica leve esaudvel como um suco tomado na praia.

    Mas, para um olhar atento, o filme bem mais do que isso. Filmesaudvel o vdeo de ginstica da Jane Fonda. Dentro da garrafa de su-quinho de Furtado tem dinamite. O filme uma ode ao amour fou deum filhinho da mame por uma putinha de praia! Foda-se o bom senso,o cinismo crtico e inteligente do amigo egosta: ame loucamente, des-preze as convenes. Todo mundo merece amor, pelo menos se, apesardas bandidagens, ainda for capaz de guardar uma ficha de fliperama porrazes sentimentais. Seguindo a Fora, Chico/Luke tira a mscara deRoza/Darth Vader: ela no uma putinha: uma moa que cria sozinha,contra tudo e contra todos, o irmozinho menor (como diria Billy Wil-der que bem poderia ser o patrono secreto desse filme , ningum perfeito). O filme oferece aos adolescentes de hoje, em geral indivi-dualistas e moralistas, algo para mexer com suas emoes. E sem agredirningum. Em vez de agredir, o filme quer conversar. Como quem querconversar, o filme aceita os padres convencionais do romantismo atual:Chico acaba casado, como sempre quis. As coisas mais importantes noso bvias.

    Como se no bastasse, o filme ainda embute na narrativa um ganchopara espectadores mais velhos (atravs de uma trilha de velhos sucessos dorock), possibilitando-lhes uma apreciao nostlgica do primeiro amor e,talvez, uma reflexo sobre o quanto de generosidade perdemos junto comos cabelos e o flego. De quebra, ainda reflete (atravs de uma srie de co-mentrios e sinais, como joguinhos eletrnicos, moedas, combinatrias denmeros de telefone etc.) uma reflexo sobre o papel do acaso na determi-nao do destino.

    Um bom roteiro isso, ento? Ele no precisa ser bem escrito?

    claro que precisa. Mas uma boa e clara proposta dramatrgica oresultado final do uso criativo de todos os recursos tcnicos. Na verdadeas duas coisas esto interligadas: ns s percebemos a boa propostadramatrgica porque ela foi construda com uma srie de tcnicas.

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    QUAIS SO SUAS INTENES? EM BUSCA DO ROTEIRO

    H uma poro de conflitos secundrios, piadas e metforas fazendoeste esqueleto ficar vigorosamente de p, mas isso a carpintaria, o qued corpo intuio fundamental, inteno que Furtado persegue.

    Tirando da uma lio para nosso uso: um manual de roteiro podeajud-lo a melhorar sua carpintaria, mas se voc no for movido pela for-a da inteno fora semelhante a um amour fou como o de Chico, quebusca se realizar sem respeitar regras no haver roteiro (pelo menosno digno desse nome). Estudar harmonia no garante a composio deboas msicas. Se voc no dominar a tcnica, a ausncia de tcnica o do-minar. De boas intenes o inferno est cheio.

    Exemplo de anlise:A Coroa do Imperador

    A Coroa do Imperador, primeiro episdio da srie Cidade dos Ho-mens (Rede Globo), busca apresentar tanto os protagonistas da srie Acerola e Laranjinha como o contexto social em que eles vivem (ou,mais especificamente, a lgica de guerra imposta pelo trfico).

    Para isso, o filme entrelaa dois nveis de desenvolvimento:

    a) O primeiro o das digresses explicativas, didticas, sobre o funciona-mento do trfico e suas conseqncias. Esse o ncleo duro do epi-sdio, que aposta numa demanda documental por parte do pblico:as pessoas querem conhecer como funciona a coisa.

    b) A segunda vertente dramtica, as aventuras de Acerola e Laranjinha.Afinal, aposta-se na curiosidade do pblico sobre a situao real, masno se imagina que seja possvel fazer um audiovisual, com slides, so-bre o trfico. preciso envolver a informao no entretenimento. E preciso apresentar a dupla dinmica.

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    MANUAL DE ROTEIRO

    Como faz-lo?

    a) Dando uma moldura didtica a todo o episdio: em torno da Co-roa, o filme comea e termina na sala de aula, com a professora expli-cando as guerras napolenicas.

    b) Criando situaes dramticas que envolvem a dupla, que permitamdigresses explicativas sobre o contexto da situao, assim como refle-xes sobre a sua lgica.

    c) Usando a narrao (voz off ) de Acerola como veculo das digresses.Abusa-se da inteligncia de Acerola. Literalmente, palavras so postasna boca dele, explicando e comentando tudo com muita argcia. Ape-sar de a elaborao desses comentrios ser meio inverossmil, ela ajudaa apresentar o personagem como crebro da dupla.

    d) Enxertam-se, no meio do filme, cenas de documentrio explcito,com os prprios atores dando depoimentos sobre casos de violnciaem suas vidas. Fazendo isso no meio do filme, quando o espectadorj est ganho, sacia-se a vontade documental sem dor e reveste-setodo o filme de autenticidade.

    Exerccio

    Esboce seu projetoTalvez voc no consiga, de incio, formular um projeto to acabado

    como o apresentado no exemplo acima (sobre A Coroa do Imperador).Mas tente apresentar as linhas gerais do seu projeto, nos termos em quevoc o antev no momento. Voc pretende tratar de algum tema (religiosi-dade dos traficantes, por exemplo) ou voc no sabe sobre o que seuprojeto, mas sabe qual o ncleo da histria (um pastor desafia um trafi-

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    QUAIS SO SUAS INTENES? EM BUSCA DO ROTEIRO

    cante para um duelo verbal na rdio local)? Ou voc quer explorar umpersonagem (um traficante que tem um amante)? Agarre o que voc tem etente dizer como (de modo bem geral) voc pretende estruturar o roteiro.

    No se justifique, no se explique: apenas apresente as suas idias,de modo seco e sucinto.

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    Captulo 2

    CRIAO: AS TCNICAS DA ARTE

    A experincia da escrita.

    A busca de um caminho prprio.

    Importncia do repertrio esttico e cinematogrfico.

    O mito romntico da originalidade contra a recom-binao criativa do tipo Lavoisier.

    Criao e crtica da prpria obra.

    Liberdade e repertrio cultural: a curiosidade icono-clasta como caracterstica do roteirista.

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    O mito romntico da originalidade

    A originalidade plena uma inveno romntica datada do incio dosculo XIX. O gnio, demiurgo que faz das trevas luz, uma expressotransfigurada do individualismo burgus ento em ascenso. Esse super-heri respondia s angstias dos artistas que viviam as contradies de ummundo que exaltava o indivduo, ao mesmo tempo em que submetia to-dos ao ritmo da produo capitalista. No por acaso, foi na Alemanha,economicamente atrasada e culturalmente desenvolvida, que a geniali-dade romntica floresceu, dando sentido experincia de artistas e pensa-dores altamente capacitados, mas que se viam impotentes diante da trans-formao acelerada do mundo.

    A crena no valor absoluto da originalidade no mais do que umaidia reguladora. Ela no deixa de ser importante, pois aponta para um va-lor ainda significativo em nossa cultura. Mas num mundo recoberto porcamadas e camadas de linguagem, no qual as prticas cotidianas so emgrande medida operaes com materiais culturais acumulados, apostar nacriao de obras absolutamente novas , no mnimo, duvidoso. Alis, empocas anteriores ao romantismo, no havia esse tipo de cobrana. maisdo que sabido que Shakespeare para ficarmos num terreno acima dequalquer suspeita tinha por prtica partir dos enredos de outros. De qual-quer maneira, independentemente dessas discusses histricas, o que se man-tm como central a busca de uma viso nova sobre as coisas.

    Podemos conciliar essa busca pela novidade da viso (e a relativizaosobre a novidade dos materiais) com a mais que conhecida mxima do

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    MANUAL DE ROTEIRO

    qumico Lavoisier: No mundo nada se cria, nada se perde, tudo se trans-forma. No se trata de incentivar o plgio ou cpias baratas, mas deapostar que com a combinao que se produz a novidade. As idias de-vem ser lapidadas, fundidas e por fim construdas.

    O socilogo italiano Vilfredo Pareto aproxima-se dessa concepo,afirmando que a criatividade a capacidade de estabelecer novas relaesentre os elementos de um repertrio comum a todos11. A tarefa do roteiris-ta desse tipo: dar forma nova a relaes entre fatos supostamente desco-nexos da vida.

    Tomemos o exemplo de um fenmeno cultural contemporneo alta-mente significativo: o rap. Esse ritmo, que surgiu na Jamaica na dcadade 1960, chegou aos guetos nova-iorquinos em meados dos anos 70. Naorigem, era um texto falado sobre o cotidiano das pessoas de classes so-ciais excludas e acompanhado por msicas que j tocavam nas rdios. Osrappers utilizam uma linguagem altamente cinematogrfica, explorando asimagens e o desenvolvimento de narrativas, histrias de grande identifica-o com o pblico-alvo. No Brasil, o ritmo ganhou novas nuanas, her-dadas principalmente do samba. A inspirao funciona dentro de trilhosculturais que so expresses coletivas de momentos histricos.

    Mergulhe nas influncias, busque afinidades (e identifique diferen-as) na massa de criaes humanas. E no tenha pudores de apropriar-sedas criaes alheias, como os DJs que criaram, em sua prtica, o termosamplear, um dos mais contemporneos verbos que correm pelas in-tensas redes de comunicao mundiais.

    Vale aqui a citao de um trecho de Verdade Tropical, no qual Caeta-no Veloso comenta a composio de Alegria, alegria (com a elucidaodas relaes criativas de um artista com seu repertrio, aprendemos como lder tropicalista a importncia da lucidez sobre as demandas s quaisuma obra de arte responde num momento determinado).

    H um critrio de composio de Alegria, alegria que, embora tenhasido adotado por mim sem cuidado e sem seriedade, diz muito sobre asintenes e as possibilidades do momento tropicalista. Em flagrante e in-tencional contraste com o procedimento da bossa nova, que consistia emcriar peas redondas em que as vozes internas dos acordes alterados se mo-

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    CRIAO: AS TCNICAS DA ARTE

    vessem com natural fluncia, aqui opta-se pela justaposio de acordesperfeitos maiores em relaes inslitas. Isso tem muito a ver com o modocomo ouvamos os Beatles de que no ramos grandes conhecedores.Na verdade, foi uma composio de Gil, Bom dia, segundo ele influen-ciada pelos Beatles, que sugeriu a frmula. A lio que, desde o incio, Gilquisera aprender dos Beatles era a de transformar alquimicamente o lixocomercial em criao inspiradora, reforando assim a autonomia dos cria-dores e dos consumidores. (...)

    No ano anterior ao lanamento de Alegria, alegria, ele [Chico Buar-que] tinha vencido o festival [da TV Record] com uma marchinha singela eantiquada chamada A banda, uma crnica da passagem de uma bandinhade msica de sabor oitocentista por uma rua triste (...) Alegria, alegria,com sua exibida aceitao da vida do sculo XX, mencionando a Coca-Cola pela primeira vez numa letra de msica brasileira, e vindo acompa-nhada por um grupo de rock [Os Mutantes], apresentava um contraste gri-tante com a cano de Chico.

    (...) A banda, se podia servir como porta de entrada num mercado maisamplo via TV, ou como massificao da atmosfera lrica da persona pblicade Chico, no representava o alto nvel de sofisticao composicional de suaproduo. Pois bem, o que eu imaginara para Alegria, alegria era um papelsemelhante, guardadas (ou melhor, superexpostas) as diferenas de projeto eestilo entre mim e Chico. Na verdade, o fato de ser uma marchinha fazia deAlegria, alegria, no contexto do festival, uma espcie de anti-Banda queno deixava de ser outra Banda. Os trs primeiros versos das duas can-es so permutveis sobre as respectivas melodias, e no apenas por se-rem heptasslabos, o metro mais freqente na poesia brasileira (e na poesiaibrica em geral). A letra de A banda na melodia de Alegria, alegria soaparticularmente natural. Isso revela que ambas as canes se dirigiram a ex-pectativas formais bem sedimentadas no gosto do pblico ambas so, por-tanto, igualmente antiquadas e ressalta o parentesco entre o personagemque diz Estava toa na vida (A banda) e o que se diz caminhando contra ovento, sem leno, sem documento (Alegria, alegria).12

    O caso emblemtico por se tratar de canes to vivas na memria detodo brasileiro e to aparentemente marcantes em suas diferenas. Mas

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    MANUAL DE ROTEIRO

    poderamos citar muitos outros trechos do livro, que um riqussimo en-saio testemunhal sobre a amplitude de referncias mobilizadas no processocriativo de um artista inovador contemporneo.

    Multiplicando idias

    Um dos mitos que alimentam manuais e botecos artsticos, e precisa serdesmitificado, o da grande idia. Bons filmes no so resultado de umanica boa idia. So feitos de muitas idias. Se a pessoa diz tenho uma boaidia para um filme, a resposta direta Como assim? S uma? Isso s ocomeo e ainda no garante nada. Arrume outras, muitas outras. S a,quem sabe, poder fazer um bom filme. O fato que num bom filme hidias de vrios nveis: desde idias mais gerais (relacionadas a histrias, per-sonagens e ao tom de tratamento do filme) at idias que resolvem deter-minada cena ou problema dramtico. Todas so importantes e as segundasesto sempre em funo das primeiras, isto , em funo da construo daunidade: so idias a servio do projeto do filme.

    No entanto, ao contrrio de inibi-lo, a necessidade de haver uma infi-nidade de boas idias deve funcionar como incentivo para voc comeara escrever um roteiro. Afinal, uma idia inicial apenas uma entre tantasoutras e, portanto, no garantir muita coisa no resultado final. Ela noprecisa ser genial, pois aos poucos outras idias surgiro. Por isso, o pro-blema no ter uma idia para comear o filme. Desde que se busqueformular algo que realmente precise ser dito, as idias viro no exercciode sua busca.

    Comear superar a tal crise do papel em branco s isso mesmo:comear, apenas um primeiro passo. Se voc ficar esperando por uma ilumi-nao, uma revelao que o leve alm de Eisenstein e Billy Wilder, talvez de-more um pouco... Para esse primeiro passo, temos uma sugesto mais sim-ples: roube uma idia. Como se diz num truque de mgica, escolha umaidia, qualquer uma.

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    CRIAO: AS TCNICAS DA ARTE

    Pegue, por exemplo, Velocidade Mxima (Speed, Jan de Bont, 1994):um nibus em alta velocidade. Se diminuir, explode. Dois caras preci-sam se entender para resolver o pepino. E a comece a adaptar, a variar.Ok. Sai nibus, entra bondinho do Po de Acar. Se parar, explode.Seus protagonistas l dentro. Com eles, um grupo de gente que, ao esti-lo de No Tempo das Diligncias (Stagecoach, John Ford, 1939), formauma micro-sociedade: nossos heris favelados, uma emergente metidaa besta, uma carola do interior de Minas, um tcnico do bondinho, umvereador petista etc.

    Mais adiante, voc pode substituir o mote inicial do bondinho porqualquer coisa (um culto pentecostal invadido por ladres, algo assim).Ou seja, com o decorrer de seu trabalho, aquele pontap inicial roubadovai se tornar irreconhecvel, justamente porque ele no era a essncia doque voc queria dizer, no era a sua inteno. Como dissemos no cap-tulo 1, a inteno vai sendo descoberta conforme o trabalho avana.

    Repertrio cultural e curiosidade iconoclasta

    Existem vrios livros que sugerem tcnicas de criatividade (coisas dotipo: Escreva uma pgina por dia de modo automtico, sem parar parapensar). Eles podem ou no ser teis. Isso uma questo individual.Tem gente que precisa se vestir como quem vai sair para conseguir traba-lhar disciplinadamente. Outros acordam no meio da noite com idias,que anotam num caderninho previamente deixado na cabeceira. Enfim,cada um que descubra ou invente as suas mandingas criativas. O que no bom fetichizar tcnicas, como se houvesse alguma receita mgica paraser criativo.

    O que podemos indicar o sentido geral do processo de criao. Adinmica geral de apropriao de elementos e recombinaes tem umadimenso muito mais profunda, que est como que por trs dos exerc-cios dirios do criador o rio profundo da busca, que conduz todo o pro-

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    MANUAL DE ROTEIRO

    cesso. H muito de inconsciente nesse movimento, mas mesmo assim po-demos dizer algumas coisas sobre ele.

    No limite, todo filme dialoga, em maior ou menor grau, com todosos filmes a que o roteirista assistiu ao longo de sua vida. Possuir um am-plo e diversificado repertrio cinematogrfico de grande utilidade noofcio de roteirista.

    Em primeiro lugar, e de modo mais fundamental, trata-se da velha his-tria: ver mais longe por se apoiar sobre ombros de gigantes. Se voc senteque a sua explorar a abolio subjetiva da ordem temporal, dos labirin-tos da alma onde convivem nossas lembranas de dois anos de idade comnossas idias de pessoas adultas, no ler Proust , simplesmente, bobagem.Por outro lado, se seu interesse por tudo que fica no dito, a cada frasesimples que dizemos, Hemingway e Raymond Carver sero lacnicoscompanheiros de viagem. Nesse nvel profundo, trata-se de encontrar a suaturma. Ser dentro dos caminhos abertos por aqueles que o antecederamque voc vai criar. Simplesmente no h outro modo. Quem acha que suacriatividade pura e inaugural, sem influncias, est apenas ignorando suasfontes, no s literrias, mas vitais (uma vez que essas tradies podem noser literrias). J que o dilogo com tudo que nos antecede constitutivo,por que no procur-lo ativamente, estimul-lo, ir em busca de nossos pares?Ampliando nosso repertrio s temos a ganhar, no apenas como quem re-colhe ferramentas ou produtos num supermercado, mas como quem fazamigos, deixa-se influenciar e influencia. Fazer amigos e influenciar pessoas uma legenda do trabalho de escrever, mesmo para o mais solitrio e ensi-mesmado escritor.

    provvel que voc j seja uma pessoa com fome de cultura, j queum roteirista , de certo modo, um aglutinador dos discursos do mundo.Mas h alguns riscos a respeito dos quais bom falar. Um deles limitar-se cultura culta e perder de vista a riqueza das formas de expresso po-pulares, muito mais corporais do que livrescas. Outro problema a afo-bao. Mastigue bem antes de engolir. Por vezes, o ambiente culturalcontemporneo tende a nos entupir de produtos. A isso, devemos con-trapor uma relao de contato humano e no de consumo com as ex-presses criadas por outros seres humanos ( disso que se trata). Absorva

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    CRIAO: AS TCNICAS DA ARTE

    o que o amplo cardpio do mundo tem a lhe oferecer no ritmo de suasprprias descobertas. O objetivo desse jogo no empanturrar-se de(pretensa) cultura, mas aprimorar sua viso sobre a vida. Ou seja, a suarelao com o repertrio cultural s sua, depende da sua histria e deseus desejos. Sua atividade criativa comea pela criao de seu caminhoprprio atravs da floresta cultural.

    Citemos dois exemplos significativos, de artistas que souberam en-contrar e se relacionar criativamente com sua turma.

    O roteirista Brulio Mantovani tem profunda admirao por Eisens-tein. No trabalho de escrita do roteiro de Cidade de Deus (Fernando Mei-relles, 2002), ele estava diante do desafio de transpor, do livro para o cine-ma, um churrasco narrado sob o ponto de vista de um galo. Brulio, emvez de cortar a cena, encarou-a mobilizando o repertrio da montagemeisensteiniana. O resultado a brilhante cena de abertura do filme.

    Jorge Furtado diz que Houve uma Vez Dois Veres surgiu da vontadede fazer uma comdia romntica para adolescentes brasileiros, como seufilho, somada ao desejo de reunir Romeu e Falstaff num filme de praiagacho. O resto foi trabalho e trabalho: uma unidade dramtica rgida(regra: Chico no pode ficar nem cinco minutos sem estar perseguindoRoza) recheada de piadas.

    A experincia da escrita: profissionalismo e arte zen

    Muitas das grandes obras de arte do mundo foram feitas sob enco-menda, e no s no cinema dos estdios. Reza a lenda que Mozart com-ps a abertura de Don Giovanni algumas horas antes da estria da pe-ra e que os msicos receberam suas partituras com a tinta ainda fresca(Isso que opresso dos produtores!). Michelangelo, que no pode serquestionado em matria de talento, fez a Capela Sistina sob encomenda.

    Faa, ento, como os profissionais: mesmo que simuladamente (adata de um edital com um tema definido ou que voc defina para si mes-

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    MANUAL DE ROTEIRO

    mo), estabelea uma demanda, e a absorva, no decorrer do trabalho, den-tro de seus prprios parmetros. Imponha-se uma tarefa e aproprie-sedela. Uma das grandes vantagens que a obrigao profissional impe anecessidade de trabalho diligente. O amador pode se dar ao luxo das visi-tas espordicas da musa inspiradora. O profissional trabalha todo dia efaz da musa sua parceira de trabalho. Ser que isso implica sufocar a es-pontaneidade? Bom, se voc souber conduzir suas atividades, talvez a dis-ciplina de trabalho seja, justamente, o caminho da espontaneidade.

    O zen sempre afirmou que o esvaziamento da mente, ou melhor, aindissociao entre mente individual e mundo, o caminho da liberta-o. Sem maiores aprofundamentos msticos, para nossos fins basta quelembremos aqueles momentos de entrega sem reservas a alguma ativida-de, quando o tempo parece no existir e, de repente, voc est fazendotudo de modo tranqilo e infalvel como Bruce Lee. Isso pode acontecerquando se est jogando futebol, tricotando um bluso ou at estudandomatemtica. Por que no escrevendo um roteiro? Chamar esse transe cria-tivo de inspirao apenas dar o nome certo s coisas.

    Mas os mestres zen tambm ensinam que somente com uma continua-da e rigorosa prtica especfica voc poder liberar a mente. As artes zendo arco e a cerimnia do ch so caminhos como esse. Robert Pirsig, emZen e a Arte da Manuteno de Motocicletas, tentou traduzir esse princpiopara o mundo moderno, dizendo que o Buda mora no circuito eltrico13.A manuteno de motocicletas, ensina Pirsig, tambm pode ser uma artezen: voc dever pratic-la durante anos, religiosamente. Precisar criaruma rotina, que inclui horrios fixos, ambiente propcio, reunio de todasas ferramentas necessrias e, sobretudo, um exerccio permanente de con-trole de suas ansiedades e frustraes, durante a longa jornada de superaode sua ignorncia e inpcia (no caso, no campo das motocicletas). Lenta-mente, voc ir adquirir confiana, e a manuteno comear a rolar.Ainda mais lentamente, essa sensao de tranqilidade (que Pirsig chamade brio) vai se espalhar para outros momentos de sua vida (ou seja, vocpassar a viver melhor, com menos sofrimento).

    Essa experincia sempre repetida pelos msicos: h um longo pero-do de exerccios e tcnicas, a partir do qual o msico no apenas se forma

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    CRIAO: AS TCNICAS DA ARTE

    tecnicamente, mas se torna capaz de utilizar-se da tcnica para deixar fluir aexpresso, a inspirao.

    Stephen Nachmanovitch, msico e artista grfico, autor de Ser Cria-tivo (que tem o ttulo original muito mais interessante de Free Play The power of improvisation in the life and the arts), diz o seguinte:

    A prtica no s necessria arte, ela arte.

    No precisamos praticar exerccios maantes, mas temos de fazer al-gum exerccio. Se achar um exerccio chato, no fuja dele, mas tambmno precisa suport-lo. Transforme-o em algo que lhe agrade. Se voc sechateia em repetir uma escala, toque as mesmas oito notas em outra or-dem. Ento, mude o ritmo. Depois, mude a tonalidade. Voc estar im-provisando. (...) Em qualquer arte possvel tomar a tcnica mais bsicae simples, modific-la e personaliz-la at transform-la em algo que nosmotive.

    O exerccio no chato ou interessante em si mesmo; somos nsque o tornamos chato ou interessante (...) Para criar, preciso ter tcnicae libertar-se da tcnica. Para isso precisamos praticar at que a tcnica setorne inconsciente. (...) Parte da alquimia gerada pela prtica uma esp-cie de livre trnsito entre consciente e inconsciente. Um conhecimentotcnico deliberado e racional surge da longa repetio, a ponto de poder-mos executar nosso trabalho at dormindo. (...) Embora possa parecerum paradoxo, descobri que ao me preparar para criar j estou criando; aprtica e a perfeio se fundem numa coisa s.14

    Exerccio

    Um saco de idiasFaa uma lista de idias, retiradas das mais diversas fontes, das quais

    voc possa lanar mo durante a escrita de seu roteiro. Solte-se, no tenteainda costurar as idias. Como uma criana, junte coisas de que voc gos-

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    MANUAL DE ROTEIRO

    ta para brincar com elas mais tarde. Coisas do tipo: a cmera fotogrficade Cidade de Deus (voc pode transform-la num gravador usado por umpersonagem com vocao de reprter); o corte do som numa cena deviolncia como em Ran (Akira Kurosawa, 1985); um longussimo travellingapresentando personagens, como no incio de Os Bons Companheiros(The Goodfellas, Martin Scorsese, 1990) pode ser usado para apresentaros moradores de um beco da favela; ou uma montagem paralela rtmica,sem conexo dramtica, entre aes desses moradores chupada deDelicatessen (Marc Caro e Jean-Pierre Jeunet, 1991); vale tambm o jeitosilencioso-bobo de um primo seu que as mulheres tomam por charme decara duro, mas s bobeira mesmo; msicas para trilha ou quem sabeum conceito para seleo de msicas: a trilha sonora brega dos anos1970 em Domsticas, o filme (Fernando Meirelles e Nando Olival, 2001)ou regravaes brasileiras de clssicos do rock, como em Houve uma VezDois Veres; imagens religiosas do cotidiano (santinhos, crucifixos, SoJorges, Pombas-Gira, velas etc.). Divirta-se!

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    Captulo 3

    SER OU NO SER DRAMTICO

    As diferenas entre forma dramtica, lrica e pica.

    Os fundamentos do drama: situao dramtica, ao,conflito e deciso, unidade e progresso dramtica,presente imediato, a construo da comicho dosuspense.

    Alm do drama: pico e lrico.

    Os limites do drama e o cinema moderno.

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    Diferenas bsicas entre as formas dramtica, lrica e pica

    Mesmo numa primeira aproximao, til que faamos a distinoentre as formas bsicas das obras ficcionais.Trata-se de perceber em quetermos a experincia humana apresentada. Como introduo, recorra-mos ao resumo cristalino de Anatol Rosenfeld:

    Pertencer Lrica todo poema de extenso menor, na medida emque nele no se cristalizarem personagens ntidos e em que, ao contrrio,uma voz central quase sempre um Eu nele exprimir seu prprio es-tado de alma. Far parte da pica toda obra poema ou no de exten-so maior, em que um narrador apresentar personagens envolvidos em si-tuaes e eventos. Pertencer Dramtica toda obra dialogada em queatuarem os prprios personagens sem serem, em geral, apresentados porum narrador.15

    importante notar que nenhuma dessas categorias absoluta. Em al-guns casos, o pico pode estar contaminado por lirismo e, em outros, o dra-ma pode quase escorregar em direo ao pico (quando a presena donarrador se insinua nas cenas). Alm disso, um roteiro pode perfeitamentepossuir momentos lricos, picos e dramticos, mas desejvel que ele tam-bm possua certa unidade para no criarmos uma mistura confusa. impor-tante saber, de maneira geral, em qual categoria seu filme se encaixa. Da paraa frente, nada o impede de burlar essa definio e construir, dentro de um fil-me pico, cenas ou seqncias dramticas. A coroa do imperador, porexemplo, funciona assim: com fortes traos picos (Acerola narra as diferen-as entre a favela e o asfalto, apresenta os conflitos entre os traficantes e ain-

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    MANUAL DE ROTEIRO

    da explica didaticamente o jogo de poder entre eles), o filme tambm possuimomentos dramticos (a necessidade de ir ao passeio em Petrpolis, a ne-cessidade de levar o remdio para a av de Laranjinha).

    muito comum ouvirmos dizer que a natureza do cinema dram-tica, mas essa naturalizao um simples efeito do grau de domnio des-sa forma, eleita pelo cinema americano como carro-chefe desde os temposde Griffith.

    Neste captulo vamos tentar relativizar essa naturalizao, apostandono potencial de enriquecimento da narrativa cinematogrfica atravs daconscincia de alternativas e possibilidades de combinao entre as trsformas da fico.

    Drama: um outro mundo possvel

    O drama apresenta um mundo ficcional que existe em si. Como sehouvesse mesmo esse outro mundo possvel e, por alguns instantes,fssemos capazes de contempl-lo. A existncia do narrador apagada eos personagens existem a partir de seus desejos e suas intenes. Assim,um dos mais importantes componentes do drama a primazia das rela-es intersubjetivas, isto , da ao dramtica.

    Na tragdia grega, os personagens tinham seus destinos traados pe-los deuses e, geralmente, falava-se do embate entre o homem e a vontadedos deuses (ou do destino). J no drama moderno, falamos do embateentre o homem e a vontade de outros homens. Aqui, temos indivduos li-vres, que podem tomar decises e que, por essa razo, acabam entrandoem conflito. A liberdade do indivduo, o livre arbtrio, questo centralpara o drama moderno. No drama, as questes so individuais, com asrelaes entre os homens se dando atravs de uma forma privilegiada: odilogo.

    A ao e o desenrolar da histria tornam-se fruto das decises toma-das pelos personagens e da resoluo dos conflitos que se interpem ao

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    SER OU NO SER DRAMTICO

    heri. Em quantas histrias dramticas o personagem principal no pre-cisa escolher entre a paixo e o dever? Entre se salvar ou salvar outrem?

    Alm de os personagens se apresentarem como indivduos que tmprofundidade psicolgica e motivao, temos ainda duas exigncias for-mais para o drama: unidades dramticas definidas e claras (necessrias aoentendimento do contedo: as relaes intersubjetivas) e, finalmente, aorganizao temporal unvoca, do presente para o futuro.

    Uma unidade dramtica clara pode ser entendida como conseqn-cia da unidade de ao16 proposta por Aristteles: todas as aes de umroteiro devem preferencialmente convergir para um mesmo objetivo. As-sim, as relaes entre os personagens se do de maneira causal, tudo sen-do conseqncia de algo anterior (uma coisa gera outra, que gera outra,que gera outra) e convergindo para um mesmo fim (o que causa a neces-sidade de uma progresso dramtica).

    A organizao temporal unvoca, do presente para o futuro, cria asensao de presente imediato. Diferentemente do pico, que narra fa-tos passados, o drama mostra um mundo que est acontecendo no exa-to momento em que o flagramos. Nas palavras de In Camargo: O di-logo cria por si mesmo o tempo do drama, o presente-que-engendra-o-futuro: cada instante da ao dramtica deve conter em si o germe do fu-turo, e o encadeamento desses instantes obedece implacvel lgica dacausalidade.17

    No limite, no drama no h lugar para a dimenso pica, pois a supre-macia do dilogo no aceita interferncias do narrador, do coro ou dequalquer outra instncia que se sobreponha histria que est sendo mos-trada. O drama, pois, no representa, ele se apresenta. O drama presente.

    Respeitadas as regras do drama, conjugando forma e contedo, se-guem-se algumas conseqncias naturais: o respeito religioso quartaparede, que assegura a passividade do espectador; a identificao destecom a trajetria e o ponto de vista do heri; o abandono completo de te-mas histricos e coletivos que envolvam processos sociais complexos, am-bguos ou contraditrios o que no significa a excluso dos personagenshistricos, desde que eles mantenham a primazia da ao dramtica (adeciso pessoal e intransfervel sobre os rumos de sua vida).

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    MANUAL DE ROTEIRO

    a) Situao dramtica

    Uma situao a apresentao de uma relao tensa, a qual prenunciae impe um campo de ao possvel que terminar em uma resoluo ouum relaxamento. o reino das possibilidades do drama. Pegue um filmecomo Apollo 13 (Ron Howard, 1995), por exemplo. Trs astronautas en-frentam problemas em sua nave na rbita da Terra. A partir das situaesgeradas por esse problema inicial (os problemas tcnicos a serem resolvi-dos, as dificuldades de relacionamento entre os astronautas, as disputaspessoais e o embate entre suas personalidades), temos situaes dramti-cas que so limitadas pela vontade dos personagens e pela verossimilhan-a interna da histria.

    Todo drama possui um ponto inicial de relaxamento (que no necessa-riamente precisa estar na primeira cena do roteiro, podendo simplesmenteser deduzido pelo pblico) e, aps uma srie de tenses e relaxamentos,atinge outro estgio de relaxamento, que determina o final do filme. A re-lao entre os personagens, a tenso entre suas motivaes, obriga uns ououtros a agir, a romper a perfeita arquitetura desse primeiro momento.Ento, dos conflitos surgidos a partir dessas motivaes pessoais, chega-sea um novo relaxamento.

    Portanto, para fazer jus denominao de situao dramtica, oprincpio de transformao da histria deve ser identificado com a aodos personagens. Ou seja, a situao de tenso deve levar algum persona-gem a agir, pondo assim em movimento um processo de aes e reaes um conflito. No modelo dramtico, ento, ao uma deciso, umaao humana com inteno. Os homens agem e implicam-se nessa ao,assumem as responsabilidades e conseqncias de seus atos. Sendo assim,as situaes so laboratrios da experincia humana.

    A criao no tem regras. Ela pode comear por qualquer elemento:uma imagem, um gesto, uma frase; qualquer coisa pode detonar sua bus-ca de expresso. Mas voc s vislumbrar uma histria quando tiver umasituao fundamental. Falamos de situao, no singular, referindo-nosao ncleo de foras que age sobre a relao entre os personagens, mas isso uma frmula esttica. Para que a histria surja, esse ncleo deve ser des-dobrado no tempo, numa srie de situaes. Falando numa linguagem

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    SER OU NO SER DRAMTICO

    um tanto matemtica, se houver um princpio de transformao comuma essa srie (a unidade de ao aristotlica), a histria ter uma unidade.

    Conclumos que uma boa situao dramtica no simplesmente umgrupo de personagens colocados juntos. bvio que o personagem pea-chave nesse quebra-cabea: ele o que h de mais vivo numa narrativa, eexistem mesmo personagens que parecem viver para alm da histria. Masisso efeito, justamente, da eficcia da narrativa. Voc pode at conceberpersonagens soltos, escrever fichas, inventar biografias que recuem dezgeraes (qualquer mtodo criativo vale a pena), mas s ter um germe dehistria quando os personagens comearem a se relacionar. E eles s se tor-naro vivos at o limite de parecerem reais e independentes, na medida emque essas relaes os revelarem. Ou seja, to importante quando a qualidadedos personagens a capacidade que as situaes criadas pelo autor tm derevel-los.

    b) DilogoO conflito dramtico exige ao. E no queremos dizer correria ou

    porrada. So decises poderamos dizer de-cises, cises na vida ,atos de vontade que tero de enfrentar outras vontades. O drama surgiuno Renascimento porque a forma que pe a liberdade humana no cen-tro de tudo. Mas, como disse Kant (e repetem as mes responsveis naeducao de seus filhos), a liberdade de um vai at onde comea a do ou-tro18. Como ningum se acerta muito com essas fronteiras, liberdade econflito acabam sendo duas faces da mesma moeda.

    Num bom drama, os confrontos adquirem formas verbais. Ao contr-rio do que dizem por a, as palavras machucam, e muito. O dilogo a are-na do drama. Como diz Szondi (Teoria do Drama Moderno), o dilogoque cria o tempo e o espao da cena dramtica19. Nada existe fora do duelodos livres faladores.

    O dilogo nasce no momento em que pronunciado. O esforo doautor fazer com que suas palavras saiam da boca dos personagens nocomo se tivessem sido anteriormente escritas por algum, mas como senascessem no exato momento em que so ditas, frutos unicamente davontade do personagem. Assim, o autor dramtico faz tudo para desa-

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    MANUAL DE ROTEIRO

    parecer sob seus personagens. So eles que escrevem a histria. Esseoutro mundo possvel conseqncia das suas vontades, intenes emotivaes. O ideal do drama que os personagens se tornem de certaforma to independentes de seu criador que o pblico acredite na exis-tncia deles. No drama, o mundo surge espontaneamente, conseqn-cia natural da situao dramtica apresentada.

    O dilogo apresenta a evoluo da ao do drama. Foi assim desdeque o dramaturgo grego squilo introduziu a figura do antagonista econtinua at hoje. No teatro, a voz do ator um elemento dos mais im-portantes e indispensveis. Mas, no cinema, o dilogo pode ser refora-do e at substitudo pela decupagem da mise-en-scne. Em Aurora (Sun-rise, F. W. Murnau, 1927), filme mudo em que no h nenhuma cartelade dilogo, atravs da mise-en-scne o diretor deixa claras as intenesdos personagens, descobre suas motivaes, apresenta seus conflitos e,finalmente, chega a uma resoluo. O detalhe de uma cena trazido ao pri-meiro plano, mos se apertando, um close em um rosto, um movimentominsculo de ps ou mos. Detalhes revelados pela cmera podem substi-tuir dilogos. A capacidade do cinema de narrar por imagens, muitas ve-zes supera a necessidade do dilogo e isso deve ser indicado j no rotei-ro. Por outro lado, um dilogo bem realizado confere brilho a determinadascenas.

    O dilogo a expresso privilegiada, mas no a nica (mesmo na for-ma dramtica), da relao interpessoal entre os personagens. o fato deque so indivduos que esto ali, livres para escolher seu destino; comuma situao lhes apresentando possibilidades de ao; com conflitosque os obrigam a tomar decises, escolher caminhos, assumir responsabi-lidades. Seja por meio do dilogo ou da mise-en-scne, o importante mostrar a motivao dos personagens.

    Quem quiser se aprofundar na arte do dilogo pode se servir de vastaliteratura. Luiz Vilela, Luis Fernando Verissimo e Ernest Hemingway, porexemplo, so grandes dialoguistas. Claro, tambm os autores teatrais: guisa de exemplo, citemos dois norte-americanos (Tennessee Williams eEugene ONeil) e dois brasileiros (Nelson Rodrigues e GianfrancescoGuarnieri). No cinema, Billy Wilder certamente um dos melhores dia-

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    SER OU NO SER DRAMTICO

    loguistas da histria. Convm tambm lembrar Ernst Lubistch, as tiradasde Groucho Marx, de Woody Allen e, entre os brasileiros, de Jorge Furta-do e Ugo Giorgetti.

    c) ProgressoEm um roteiro com unidade dramtica clara (unidade de ao),

    todas as aes tendem a convergir para um mesmo fim. Dessa forma, asrelaes entre os personagens ganham forte caracterstica causal: todaao conseqncia de algo anterior e, por sua vez, cria uma outra con-seqncia. A necessidade de que essa srie de conseqncias atinja umfim, um novo patamar de relaxamento, cria a necessidade de uma pro-gresso dramtica.

    O outro mundo possvel do drama possui relaes causais mais evi-dentes do que a vida real, o que levou o roteirista e diretor norte-america-no David Mammet a escrever que precisamos do drama para tornar nossoprprio mundo manusevel20. Em outras palavras, comeamos a pensarna vida real tambm como um drama, um mundo possvel que, no caso,obedece a estritas relaes de causa e efeito. O drama, para Mammet, seriauma espcie de teoria que v o mundo como uma imensa trama de causase conseqncias.

    Assim, no drama, cada passo deve fazer a ao (as relaes tensas en-tre personagens) progredir, degrau aps degrau, em uma escada que pos-sui um destino certo e definido (mesmo que desconhecido pelo pblico).Mas a progresso dramtica tambm pode comportar elementos picosou lricos (digresses, mergulhos subjetivos). Nesse caso, o roteiro apre-senta os limites entre o drama e o alm do drama. Atravessado esse li-mite, rompemos com o drama e com o cinema clssico e vamos para osfilmes modernos, quase sem progresso dramtica, em que as questeslevantadas so outras. Um exemplo de filme sem progresso O Rio (HeLiu, Tsai-Ming Liang, 1997). Escolhido por acaso para fazer figurao emuma filmagem, um jovem entra em um rio e, a partir da, comea a sentirterrveis dores no pescoo. Tenta vrios tratamentos, mas nada adianta. Aofinal, a dor no desaparece.

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    MANUAL DE ROTEIRO

    Ao modo dos filmes de Antonioni, quase no h progresso. A dorsurge e permanece ali durante todo o filme. As relaes entre os persona-gens tambm avanam muito pouco: ningum parece ter motivao sufi-ciente para tentar alterar o estado de coisas inicialmente mostrado. Umaespcie de letargia toma conta da narrativa. A cmera, normalmente est-tica, parece buscar uma espcie de objetividade o que aproxima o filmedo pico. O tema principal (a incomunicabilidade entre os membros dafamlia do rapaz) mostrado ao mesmo tempo em que se abre mo de re-laes interpessoais mais intensas. As motivaes subjetivas dos persona-gens parecem aprisionadas dentro deles, no havendo mais arena paraos conflitos entre eles. Atravessamos o territrio do drama e estamos emoutro lugar, para alm dele.

    d) SuspenseO cinema clssico, quase sempre, baseia-se no suspense, no atraso da re-

    soluo de uma questo. O mocinho vai ficar com a mocinha? O que acon-tecer com o bandido? Que conseqncias tal cena ter para a histria?

    Nas entrevistas que Alfred Hitchcock concedeu a Franois Truffaut, odiretor ingls apresentou outra definio para suspense, opondo-o idia de surpresa:

    A diferena entre o suspense e a surpresa muito simples e falo delafreqentemente. Ns estamos falando, talvez haja uma bomba sob estamesa e nossa conversa muito banal, no acontece nada de especial e, derepente: bum, exploso. O pblico fica surpreso, mas antes que ficasse, nslhe mostramos uma cena absolutamente comum, desprovida de interesse.Agora, examinemos o suspense. A bomba est sob a mesa e o pblico sabedisso, provavelmente porque viu algum coloc-la. O pblico sabe que abomba explodir a uma hora e sabe que faltam quinze para uma h umrelgio no cenrio; a mesma conversa andina torna-se de repente muitointeressante, porque o pblico participa da cena. Tem vontade de dizer aospersonagens que esto na tela: Vocs no deveriam dizer a coisas to ba-nais, h uma bomba sob a mesa e ela vai explodir logo. No primeiro caso,ofereceram-se ao pblico quinze segundos de surpresa no momento da ex-ploso. No segundo caso, oferecem-lhe quinze minutos de suspense.21

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    SER OU NO SER DRAMTICO

    A esse tipo mais bvio de suspense, que se contrape surpresa, cha-maremos de suspense clssico. Porm, o suspense um conceito mui-to mais amplo. O drama se baseia em relaes causais, o que leva o pbli-co a esperar que os fatos apresentados tenham alguma conseqncia. Essaespera o que podemos chamar genericamente de suspense. De formageral, o suspense toda situao de tenso que aguarda uma resoluo,um relaxamento. Assim, a simples dilatao de uma espera pode causarsuspense. Nas comdias romnticas, por exemplo, normalmente temos,nas primeiras cenas do filme, a oposio entre os integrantes do casalprincipal que, j sabemos, vai terminar junto. O prazer aqui (o suspense) justamente acompanhar a resoluo das tenses que impedem a unio docasal. Outras vezes, o suspense unicamente a expectativa pela resoluo,pelo ponto final que dar sentido a tudo aquilo, o que acontece mesmoem casos radicalmente no-dramticos. No curta Ilha das Flores (JorgeFurtado, 1989), por exemplo, Furtado poderia levar ad infinitum a asso-ciao de idias apresentada na primeira parte do filme. O suspense, nocaso, criado por uma questo provocada no pblico: Aonde que tudoisso vai levar?. Por outro lado, apesar das inmeras variveis possveis, ofilme precisava ter um final. Essa concluso foi dada pelo poema decla-mado pelo narrador, anunciando a esperana de um mundo de homensverdadeiramente livres, subvertendo a lgica capitalista que conduzia asassociaes.

    Para a boa resoluo de um roteiro, o suspense deve ser bem trabalha-do. Apesar de s vezes sabermos logo de incio que o casal principal vaiterminar junto, desejvel saber jogar com essa expectativa. O pblicoprecisa ora acreditar, ora duvidar. No comeo de Sabrina (Billy Wilder,1954), podemos imaginar que a personagem principal est destinada aterminar nos braos de David, o filho playboy e namorador da casa dosLarrabee, onde o pai da garota trabalha como motorista. Porm, em de-terminado ponto do filme, essa expectativa muda e achamos que ela ter-minar nos braos de Linus. Como o roteirista tem conscincia dessas ex-pectativas do pblico, em outro momento somos levados a considerarque talvez ela no fique com nenhum dos dois irmos e que o final seja,enfim, inesperado.

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    MANUAL DE ROTEIRO

    Os limites do drama

    Em O Homem que Matou o Facnora (The Man Who Shot LibertyValance, John Ford, 1962), o personagem de John Wayne representa ohomem simples e rude do Oeste, enquanto o jovem advogado interpreta-do por James Stewart representa o progresso, uma nova lei que vem doLeste. Ambos possuem um inimigo comum, Liberty Valance (LeeMarvin), bandido cruel, o facnora do ttulo em portugus.

    O filme, grosso modo, obedece a estruturas dramticas, mas o interes-sante aqui notar como estamos no limite entre o dramtico e o no-dra-mtico. Grande parte de O Homem que Matou o Facnora a narraofeita por um personagem (James Stewart) para um grupo de jornalistas.O que vemos na tela, portanto, a representao dessa narrativa, o rela-to de algo passado, j acontecido (caractersticas da forma pica). Porm,durante esse longo flashback, fatalmente nos esquecemos de que aquilo uma narrao. No h voz off, no h nenhum elemento que nos lembrede que estamos em um registro pico. Alis, quando John Wayne conta averdade sobre a morte de Liberty Valance, temos uma outra narraodentro da narrao.

    No final, quando o flashback termina, h um pequeno choque: oque vimos no foi um outro mundo possvel, mas uma narrativaconstruda por um personagem. Assim como no drama, aqui somos leva-dos a esquecer a presena dessa figura que, por trs dos panos, controlaa histria narrada. Ao revelar o narrador da histria, John Ford levou odrama ao seu limite, transformando-o em pico.

    Outro elemento interessante de O Homem que Matou o Facnora omodo como o autor consegue transformar contedos intelectuais em ce-nas, situaes puramente dramticas, conduzindo a histria unicamen-te a partir dos conflitos entre os personagens. A idia central do filme mostrar como a ordem vinda do Leste precisa da bravura do Oeste paraestabelecer uma nova lei. Cada personagem possui uma carga simblicaforte: um a fora bruta do Oeste, outro a lei do Leste, a personagemde Vera Miles a alma da nao americana (que se equilibra no amorentre o Leste e o Oeste, tentando organizar uma sntese deles).