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VIVER EM PORTUGUÊS
A literatura do nosso tempo
Índice
Introdução................................................................................................................................2
Resultados da aprendizagem............................................................................................3
1.Conceito de literatura.......................................................................................................4
2.Conceito de texto literário..............................................................................................6
3.A literatura portuguesa do século XX.......................................................................14
4.A relação da literatura portuguesa do século XX com outras formas de
expressão artística..............................................................................................................18
5.Os autores e a sua produção literária - que géneros literários e que
temáticas................................................................................................................................25
5.1.Agustina Bessa Luís.................................................................................................25
5.2.António Lobo Antunes.............................................................................................28
5.3.David Mourão Ferreira............................................................................................32
5.4.Dinis Machado...........................................................................................................35
5.5.José Cardoso Pires....................................................................................................38
5.6.José Saramago..........................................................................................................42
5.7.Lídia Jorge...................................................................................................................46
5.8.Manuel Alegre............................................................................................................49
5.9.Sophia de Mello Breyner Andersen....................................................................52
5.10.Vergílio Ferreira......................................................................................................55
Propostas de atividade......................................................................................................59
Sugestões de trabalho:..............................................................................................59
Bibliografia.............................................................................................................................62
Formadora: Joana Ribeiro 1
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A literatura do nosso tempo
Introdução
O módulo intitulado ”A literatura do nosso tempo” está pensado segundo
perspetivas de informação e de formação.
Pensamos que, no contexto de um segundo nível de formação académica,
os formandos não deverão ignorar o que está temporalmente mais próximo
de si, em qualquer área do saber, e também ao nível do que em literatura
se escreve e de quem o faz.
Os media divulgam, algumas vezes, o que de mais recentemente se publica,
mas é importante que paralelamente haja um acompanhamento mais
especializado, no sentido de levar cada formando ao melhor aproveitamento
possível daquilo que a literatura lhe pode oferecer.
O presente módulo deverá, pois, ser aplicado nesta perspetiva, de molde a
que os formandos se tornem cada vez mais atentos à escrita literária,
desenvolvam competências de autonomia de leitura, de apreço pela arte e
capacidade de retenção de informação, por esta via.
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A literatura do nosso tempo
Resultados da aprendizagem
Identificar características genéricas do texto literário.
Caracterizar genericamente os diferentes géneros literários.
Distinguir os vários géneros literários.
Estabelecer relações entre a literatura portuguesa do século XX e
outras formas de expressão artística.
Identificar fontes de influência de diferentes correntes ou autores
nacionais e estrangeiros.
Reconhecer um conjunto de autores representativos do século XX e
relaciona-os com a sua forma de escrita e principais obras.
Desenvolver capacidades de leitura, interpretação, análise crítica e
de apreço pela arte
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A literatura do nosso tempo
1.Conceito de literatura
A palavra literatura deriva do termo latim litterae, que faz referência ao
conjunto de conhecimentos e competências para escrever e ler bem. O
conceito está relacionado com a arte da gramática, da retórica e da poética.
De acordo com o Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora, a
literatura é a arte de compor obras em que a linguagem é usada
esteticamente e em que é usada uma língua como meio de expressão.
Também é usado este termo para definir o conjunto das produções literárias
de um país, de uma época ou de um género/sector de conhecimento (como
a literatura persa, por exemplo) e o conjunto de obras que tratam sobre
uma arte ou uma ciência (literatura desportiva, literatura jurídica, etc.).
A literatura traduz, assim, um conjunto de textos escritos (muitas vezes
também fixados na tradição oral), esteticamente elaborados a partir da
linguagem comum, que dão conta da especificidade cultural de uma
comunidade.
A definição de obra literária poderá variar, mas uma análise histórica
salienta os denominados clássicos da literatura, obras que, pela sua
importância social e cultural, marcaram determinadas épocas. A obra
literária a reconstituição de um acontecimento através da comunicação
escrita, sendo que fundamentalmente atendendo a função semiótica,
representa a execução do ato primário, comunicar.
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A literatura do nosso tempo
Importa valorizar uma visão linguística, cultural e artística da literatura e,
particularmente, do ensino da literatura, no sentido de poder garantir
conhecimentos, experiências e hábitos fundamentais, necessários aos
adolescentes que hoje frequentam a escola, para que possam ser membros
de direito de um património comum.
Anualmente, os grandes feitos da literatura vêem-se recompensados com a
atribuição do Prémio Nobel, em que os felizes laureados recebem os
respetivos prémios pelas mãos da Academia Sueca.
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A literatura do nosso tempo
2.Conceito de texto literário
Conceito
A literatura pode ser entendida como uma imitação pela palavra assente na
ficcionalidade, que apresenta dois valores nucleares: o valor de significado
(semântico) e o valor formal (de expressão linguística). Há manifestamente
uma intenção estética, artística, altamente polissémica.
Aquilo que define o texto literário é, “mais do que a vontade de
comunicação, a sua capacidade de significar”. Este texto vive “do que a
mensagem contém e não do que ela simplesmente diz”. O texto literário
emprega as palavras da língua com liberdade, recorrendo ao seu sentido
conotativo ou metafórico.
O texto literário é o instrumento essencial no ensino/aprendizagem da
língua portuguesa, inserido num programa educativo que valorize a
interpretação, a capacidade imaginativa e o poder de análise.
Indubitavelmente, o texto literário projeta ao máximo a multifuncionalidade
da língua, conciliando o prazer da leitura ao desenvolvimento da
compreensão/expressão escrita. Essa leitura deverá ser atenta, reflexiva,
capaz de esmiuçar sentidos, de ensinar a descobrir as potencialidades do
português.
Um texto transporta sempre informação nova, novos questionamentos,
novos estímulos à reflexão. Essa novidade interage com os conhecimentos,
conceitos, ideias pré-existentes e, dessa interação, resulta uma
representação única, individual, composta pelos saberes particulares do
sujeito, originando a interpretação.
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A literatura do nosso tempo
Esta interpretação é subjetiva e motiva uma discussão produtiva e uma
troca de ideias que partem de uma base comum, o texto, mas cuja
significação difere de indivíduo para indivíduo já que, cada um, de acordo
com os seus esquemas conceptuais, constrói as suas próprias
representações.
Ao ler um texto, o leitor apropria-se da sua informação básica e elabora,
sobre este, uma representação individual que se distinguirá de qualquer
outra porque é moldada pelo seu conhecimento do mundo. Ao elaborar a
sua própria representação individual do texto, o leitor está a construir um
modelo interpretativo, ou seja, um modelo situacional.
A interpretação de um texto exige a sua compreensão prévia, isto é, o
sujeito tem de estar habilitado a compreender a língua escrita, possuindo
conhecimentos específicos acerca do domínio cognitivo no qual se insere a
temática do texto, uma vez que o conhecimento do mundo que a leitura
proporciona, aumenta a sua competência para a compreensão de novos
textos.
Assim, espera-se de quem ensina que seja capaz de conduzir os alunos
nesse processo de descoberta, que vai da palavra à frase e da frase ao
texto, abrindo trajetos, navegando pelas linhas que desenham o texto
escrito. E, da parte de quem quer aprender a gostar de ler, que se interesse,
que se deixe surpreender pelas escolhas efetuadas.
Saber ler é, hoje e sempre, mais do que uma condição de sucesso pessoal,
escolar, profissional e social. É o fator de sucesso coletivo de uma nação.
Por isso, o direito à leitura tornou-se uma questão de justiça social, o que
implica que uma das grandes prioridades de qualquer sistema educativo
seja o desenvolvimento da competência de leitura para todos os alunos.
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Saber ler e gostar de ler são os passos para o desenvolvimento. E quanto
mais se gostar de ler, mais se lê e se sabe fazê-lo. Porém, só quem sabe ler,
gosta de ler. Para isso a literatura é a mais do que a melhor opção. A
literatura é a solução.
Géneros literários
Texto narrativo (Romance)
No romance há uma regra uma ação central relativamente extensa,
eventualmente complicada por ações secundárias dela derivadas. As
personagens, normalmente em quantidade e complexidade mais elevadas
do que nos restantes géneros narrativos, são atravessadas por conflitos
íntimos, traumas e obsessões.
Género por natureza propenso à representação do real, o romance tem no
espaço uma categoria com funções particularmente relevantes: o espaço do
romance, pela sua amplidão e pormenor de caracterização, revela
potencialidades consideráveis de representação económico-social, em
conexão estreita com as personagens que o povoam e com o tempo
histórico em que vivem.
A este tempo histórico não é estranho, naturalmente, o tempo como
fundamental categoria narrativa, com incidências na história e no discurso
narrativo do romance (o tempo da historia pode ser objetivamente
calculado, mas é reelaborado pelo modo como é representado na narrativa),
e com aspetos muito diversificados: enquadramento histórico propriamente
dito, implicações psicológicas (tempo filtrado por vivências das
personagens), alusões sociais.
Texto Dramático (Teatro)
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A literatura do nosso tempo
Entender-se-á por drama toda a representação direta de uma ação
consumada num tempo relativamente concentrado.
O facto de essa representação ser direta implica não só a sua concretização
perante um público, mas também a ausência de narrador; por outro lado, o
facto de o drama ser sobretudo ação faz com que os acontecimentos sejam
apresentados quase sempre de forma muito viva, processando-se os
avanços bruscos no tempo com o auxílio de artifícios específicos (por
exemplo a mudança de ato ou cenário).
Isto significa que a representação dramática afirma -se como resultado da
interação de recursos de três naturezas: literários, humanos e técnicos.
Assim, os recursos literários são constituídos, como se disse, pelo discurso
das personagens e, de um modo geral, pela articulação da ação e das
figuras que lhe dão vida enquanto componentes de um universo de ficção
particular.
Por sua vez, os recursos humanos serão sobretudo os autores que dão vida
e interpretação à fala das personagens, sem os quais o texto dramático não
pode ser ativado.
Finalmente, aos recursos técnicos correspondem todos os instrumentos que
participam direta ou indiretamente na constituição da ilusão dramática:
iluminação, guarda-roupa, efeitos sonoros, cenários, etc.
Texto Lírico (poesia)
A poesia lírica não se enraíza no anseio ou na necessidade de descrever a
realidade empírica, física e social, nem no desejo de representar sujeitos
independentes do Eu, ou de contar uma ação. A poesia lírica enraíza-se sim,
na revelação e no aprofundamento do Eu lírico, tendendo sempre esta
manifestação a interrogar e a revelar a identidade do homem e do ser.
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A literatura do nosso tempo
O mundo exterior, as coisas, os seres, a sociedade e os eventos históricos
não constituem um domínio alheio ao poeta lírico. No entanto, o
acontecimento exterior, quando está presente num texto lírico, tem sempre
como função predominante evocar ou contextualizar uma atitude e um
estado íntimo, suscitados por tal episódio ou tal circunstância na
subjetividade do poeta.
O texto lírico não comporta descrições semelhantes às de um texto
narrativo; através dos elementos descritivos projetam -se simbolicamente
as emoções, os estados íntimos do Eu. Assim, no texto lírico, quer os
elementos narrativos, quer os elementos descritivos, revelam a
interioridade do Eu.
O texto lírico é alheio ao fluir do tempo - Nos textos líricos, a temporalidade,
quando é representada, é como um elemento do mundo interior do Eu,
concorrendo para a representação do que é central no universo lírico: uma
ideia, uma emoção, uma sensação, etc.
O texto lírico é marcado pela concentração emotiva e expressiva - A grande
maioria dos textos líricos tem uma extensão relativamente reduzida.
O texto lírico realiza, de modo singular, a simbiose da língua falada e da
língua escrita - Se as características do texto lírico referidas pressupõem a
performance oral do poema - mesmo que processada apenas interiormente
através de uma leitura silenciosa - os aspetos relativos à forma impressa do
texto pressupõem a compreensão e a fruição do poema como texto escrito,
como objeto espacial de natureza visual.
Como fazer um comentário a um texto literário
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Ao abordares um texto literário, com vista à sua análise, deverás ter em
conta um pressuposto fundamental:
Analisar um texto não é resumi-lo;
Analisar um texto não é parafraseá-lo.
1. Em primeiro lugar, deverás lembrar-te que uma primeira leitura pode ser
insuficiente. Um texto literário é um sistema complexo de relações entre
palavras e ideias. O que, à primeira vista, parece evidente pode não sê-lo.
Compreender um texto envolve um trabalho lento de aproximação e, por
vezes, a primeira leitura revela-nos apenas uma impressão geral nem
sempre correspondente à essência do texto.
É preciso, pois, ler o texto tantas vezes quantas as necessárias para que a
mensagem comece a tornar-se explícita. E se o texto é um tecido composto
por malhas que se entrelaçam (as palavras nas suas múltiplas relações) é
necessário desfazer a teia (analisar palavras, frases, conjuntos de frases)
para compreender a lógica interna que presidiu à sua construção.
No desfazer dessa teia têm cabimento todas as operações que possam
contribuir para uma melhor compreensão do texto:
Procurar saber o significado de todas as palavras, mesmo as mais
incomuns;
Procurar interpretar as várias conotações de que as palavras e as
expressões se revestem; - agrupar palavras e expressões em campos
semânticos (sobretudo se verificares que no texto se insiste neste ou
naquele campo de significação);
Fazer o levantamento de classes de palavras que, por vezes,
imprimem uma determinada dimensão ao texto (repara, por exemplo,
no valor expressivo de muitos adjetivos);
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Reparar na pontuação utilizada (muitas vezes, um simples ponto de
exclamação ou umas reticências vêm dar a uma expressão um
sentido novo);
Ter em conta (sobretudo no texto poético) o valor fónico de algumas
palavras, uma vez que a insistência em determinados sons e as
combinações sonoras (a rima, por exemplo) podem ter um papel
importante;
Analisar a organização estrutural do texto.
Enfim, fazer o levantamento dos vários recursos estilísticos que foram
usados no texto a nível fónico, morfossintático e semântico.
2. Depois desse trabalho de análise, ser-te-á fácil tirar algumas conclusões.
Terás, com certeza, compreendido qual o tema do texto e poderás passar,
então, a uma 2ª fase do teu trabalho - a elaboração escrita da análise
interpretativa. Trata-se, agora, de escrever o teu texto sobre o texto.
A redação do teu comentário poderá obedecer ao seguinte plano:
A Introdução
Geralmente breve, poderá apresentar informações sobre os seguintes
aspetos:
Tipo de texto, género literário a que pertence;
Período literário em que está inserido;
Integração na obra (se for um excerto);
Tema.
O Desenvolvimento
A parte mais importante, não apenas pela sua extensão, mas porque deverá
corresponder a uma explicitação das várias etapas de análise e
interpretação do texto. Contemplará todos os aspetos referidos
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anteriormente e que serão ordenados agora consoante o que te parecer
mais eficaz para a desmontagem do texto.
Deverás referir todos os elementos que te pareçam pertinentes a nível
estrutural e temático, pois só assim te será possível aproximares-te da
mensagem expressa, descodificar as ideias, as emoções, os sentimentos,
tendo sempre presente que, em relação a um texto literário «não basta
perceber o que diz mas também como o diz».
Se no pedido de comentário, num teste, forem explicitados os tópicos a
desenvolver, deverás fazê-lo articuladamente, fundamentando sempre as
tuas afirmações.
Com todos estes elementos, poderás agora reconstituir o texto, confirmar o
que disseste quando enunciaste o tema. É como se tivesses andado à roda
das palavras até concluíres o círculo.
A Conclusão
Nunca muito longa, deverá ser uma espécie de balanço (resumido, claro) do
anteriormente exposto.
Poderá também apresentar dois outros aspetos:
Relação (breve) do texto com os outros textos do mesmo autor ou da
mesma época;
Opinião pessoal sobre o texto (apenas quando tal te for pedido).
A análise textual é pois um fator formativo e valorativo do indivíduo e
implica acima de tudo escrever com correção.
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3.A literatura portuguesa do século XX
A literatura portuguesa desenvolve, nas suas origens, um lirismo de intenso
fulgor, com a poesia trovadoresca, e muito particularmente com as cantigas
de amigo, que se prolonga na lírica camoniana e clássica de uma maneira
geral, renovando-se a partir do Romantismo, com personalidades
destacadas:
Garrett e o nacionalismo romântico de expressão amorosa;
Cesário Verde e o quotidiano urbano simultaneamente idealizado e
banal;
Antero de Quental e a dilaceração do pensamento implicado na
existência concreta;
Camilo Pessanha e o sonho da perfeição verbal na corrosão do tempo
humano
E um grande número de poetas contemporâneos.
Luís de Camões (séc. XVI) e Fernando Pessoa (séc. XX) são, no entanto,
considerados os maiores escritores da literatura portuguesa; de facto, o
Modernismo encontra em Pessoa (fundador da revista Orpheu) uma
expressão complexa e personalizada, já que a galáxia dos seus heterónimos
(nomes de personalidades diferenciadas com as quais compôs a sua obra)
constitui um fenómeno marcante na sua composição literária e na
experiência humana correspondente, com resultados literários
surpreendentes, que configuram uma autêntica ficção da arte de escrever.
Mas a ficção (especialmente o romance) conhece também particular brilho
na literatura portuguesa.
Formadora: Joana Ribeiro 14
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Desde Bernardim Ribeiro (séc. XVI), mas sobretudo a partir do Romantismo
e do Realismo, aumenta a produção literária deste género, com crescente
interesse do público e da crítica, e acentuando os aspetos diversos que a
prosa narrativa tem incessantemente criado a partir da relação indivíduo-
sociedade que caracteriza centralmente o apogeu do romance no século
XIX:
Construção da intriga,
Acentuação da personagem,
Dominância social,
Problemática da existência,
Conflitos subjetivos,
Fluxo temporal,
Exercício de escrita,
Hibridismo de géneros,
Reescritas paródicas e
Desconstrução do relato discursivo.
Escritores como Camilo Castelo Branco, Eça de Queirós, Raul Brandão,
Aquilino Ribeiro e, mais recentemente, Vergílio Ferreira, Agustina Bessa-
Luís, José Cardoso Pires, José Saramago e António Lobo Antunes são
algumas das figuras mais emergentes neste capítulo, onde os
contemporâneos se destacam pelo seu número e qualidade.
De entre os contemporâneos, salientam-se figuras de obra numerosa e
repartida por diferentes géneros, especialmente a poesia, o romance e o
conto, mas, em certos casos, também o teatro, crítica, ensaio e escrita
autobiográfica e diarística.
Estão neste caso escritores já desaparecidos, mas que até há pouco tempo
marcaram a cena intelectual portuguesa, com as suas personalidades
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multímodas e com a força diversificada do seu talento, de uma maneira
geral empenhado em praticar uma aliança, porventura conflituosa, entre o
trabalho poético e a existência concreta, e em afirmar a capacidade lúcida
(isto é: inteligente e radiosa) da literatura para entender o real.
Principais nomes: Miguel Torga, Vitorino Nemésio, Jorge de Sena, Carlos de
Oliveira e David Mourão-Ferreira. Também nesse sentido se afirmam os
corifeus da poesia contemporânea (cultores embora de outras formas de
expressão literária), de entre os quais se destacam António Ramos Rosa,
Sophia de Mello Breyner Andresen, Eugénio de Andrade e Herberto Helder.
Na prosa, dedicados a um tipo de ficção que reelabora a novelística
tradicional para a aproximar de outros géneros (crónica, poema em prosa, e
outros tipos de escrita estranhos à convenção literária), e praticando novas
modalidades de articulação no discurso narrativo, emergem figuras
femininas centrais: Maria Judite de Carvalho, Maria Velho da Costa e Maria
Gabriela Llansol.
A divulgação da literatura nas escolas tem sido alvo de amplo debate, sendo
praticamente impossível chegar-se a uma conclusão sobre que autores
incluir nas cadeiras ligadas à língua e cultura portuguesa.
Os hábitos de leitura nunca foram grandes (e, sobretudo, nunca foram
devidamente fomentados) entre os Portugueses, embora haja aumentado o
número de bibliotecas, e novas formas de ocupação dos tempos livres
mostram-se, de certo modo, adversárias da literatura, pelo menos na sua
forma mais tradicional.
Alguns jovens autores, muito em especial na área da poesia, como, por
exemplo, José Luís Peixoto ou Jacinto Lucas Pires (também com incursões no
teatro), têm sido bem-sucedidos na aceitação dos seus trabalhos, não
Formadora: Joana Ribeiro 16
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descurando uma linguagem mais próxima da que é usada no dia-a-dia pelas
camadas mais jovens e procurando formas atuais (especialmente no
primeiro caso) de divulgação das suas obras.
A transição do século XX para o século XXI testemunha também o
aparecimento duma literatura leve (é frequentemente chamada de “light”),
fenómeno algo recente em Portugal mas desde há décadas bastante
comum noutras latitudes (com designações como, por exemplo, “literatura
de aeroporto”) e que, se bem que recebida, no mínimo, com reticências por
parte dos círculos mais literatos, trouxe, pelo menos, a vantagem de ter
conseguido atingir assinaláveis volumes de vendas.
Se os recém-conquistados leitores decidirão “atravessar a ponte” e alcançar
uma outra margem literária, formal e ideologicamente mais complexa, é
uma questão que fica em aberto para o novo século.
Formadora: Joana Ribeiro 17
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4.A relação da literatura portuguesa do século XX
com outras formas de expressão artística
Modernismo
Ambiência estética cosmopolita que define as artes e a cultura europeia e
internacional na viragem do século, e, muito em especial, durante as suas
primeiras duas ou três décadas.
Em Portugal, está ligada às figuras de Fernando Pessoa, Mário de Sá-
Carneiro, Almada Negreiros e muitos outros, e polariza-se em tomo da
revista Orpheu (1.º número, 1915).
Estética por excelência da diversidade (patente em outras estéticas
adjacentes e movimentos de vanguarda - sensacionismo, paulismo,
intersecionismo, etc.), da questionação dos valores estabelecidos ética e
literariamente, da euforia face às invenções da técnica, da libertação da
escrita literária de todas as convenções e de todas as regras, o modernismo
marcou o século XX de um modo muito agudo, a tal ponto que com ele se
articulam constantemente as teorias e as polémicas em torno de outras
duas noções histórico-literárias e estéticas relativamente indeterminadas
(modernidade e pós-modernismo), que só a sua matriz pode ajudar a
explicitar.
Na literatura portuguesa, a revista Presença (de José Régio e João Gaspar
Simões) é por uns entendida como «a contrarrevolução do modernismo»
(Eduardo Lourenço), e, por outros, como «um segundo modernismo».
A arte moderna surgiu em rutura com o séc. XIX: rompe-se com os códigos,
com a perspetiva, com o conceito de belo, etc.
Formadora: Joana Ribeiro 19
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A literatura do nosso tempo
A pintura modernista misturou as delicadas e elegantes formas do gótico
com o simbolismo romântico, tendo como resultado uma pintura de um
grande erotismo e naturalidade.
Enumeram-se o cubismo, o abstracionismo, o futurismo e o surrealismo
como alguns dos mais importantes movimentos modernistas na pintura. O
modernismo não tardou a chegar a Portugal. Destacam-se nomes como
Amadeo de Souza-Cardoso; Almada Negreiros e Santa-Rita pintor.
Amadeo de Souza-Cardoso, Entrada, 1917
Neorrealismo
Corrente literária de influência italiana que anexa algumas componentes da
literatura brasileira, nomeadamente a da denúncia das injustiças sociais do
romance nordestino. Quer na poesia, quer na prosa, o neorrealismo assume
uma dimensão de intervenção social, agudizada pelo pós-guerra e pela
sedução dos sistemas socialistas que o clima português de ditadura mitifica.
Formadora: Joana Ribeiro 20
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A literatura do nosso tempo
A sua matriz poética concentra-se no grupo do Novo Cancioneiro, coleção
de poesia, com Sidónio Muralha, João José Cochofel, Carlos de Oliveira,
Manuel da Fonseca, Mário Dionísio, Fernando Namora e outros.
No romance, Soeiro Pereira Gomes, com Esteiros, e Alves Redol, com
Gaibéus, de 1940, inauguraram, na ficção, uma obra extensa e
representativa, que também muitos dos outros poetas mencionados
(sobretudo os quatro primeiros) contribuíram para enriquecer.
O romance neorrealista reativa os mecanismos da representação narrativa,
inspirando-se das categorias marxistas de consciência de classe e de luta de
classes, fundando-se nos conflitos sociais que põem sobretudo em cena
camponeses, operários, patrões e senhores da terra, mas os melhores dos
seus textos analisam de forma acutilante as facetas diversas dessas
diversas entidades.
Aderindo às propostas do Neorrealismo literário, alguns pintores lançam
uma pintura Neorrealista, fundada no figurativismo e numa crítica social de
raiz Marxista, retratando as condições de vida das classes mais
desfavorecidas e do operariado industrial.
Em Portugal, destacam-se Augusto Gomes, Júlio Pomar, Manuel Filipe, M.
Ribeiro de Pavia, Lima de Freitas, Cipriano Dourado, Vespeira, Rogério
Ribeiro, Querubim Lapa, Alice Jorge ou José Dias Coelho
Sobre a forte influência do Neorrealismo nas artes em Portugal ver o texto
sobre o Modernismo. Em Portugal o Neorrealismo surge no mesmo período
que o Surrealismo e o Abstracionismo, gerando-se entre estes movimentos
acesa polémica sobre a natureza e o papel das artes.
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A literatura do nosso tempo
Augusto Gomes, Os pescadores, 1962
Modernidade
Não é uma corrente estética, mas uma noção, muito frequente, com a qual
se qualifica muitas vezes, e em termos positivos, a qualidade de uma obra.
Desligada semanticamente do conceito de modernismo, evoca outros
momentos históricos de renovação estética e cultural.
Em nosso entender, Pessoa é um grande poeta porque, através da
diversidade dos seus heterónimos, está mais ligado a uma noção de
modernidade do que ao conceito de modernismo, assim como Almada
Negreiros; António Boto e Irene Lisboa, presencistas imperfeitos, são-no na
medida em que elaboram também a sua quota-parte de modernidade.
A renovação do romance praticada na segunda metade deste século (a
partir de Agustina Bessa-Luís, em A Sibila, 1954, e a sua obra posterior,
assim como os romances de Vergílio Ferreira, e vários outros autores, ex.
José Cardoso Pires, Augusto Abelaira), assim como a obra de alguns poetas
(António Ramos Rosa, Eugénio de Andrade, Herberto Helder), configuram
uma modernidade indistinta, diferenciada e recorrente no vocabulário
crítico que, a despeito de definir de facto um universo idêntico, provoca
Formadora: Joana Ribeiro 22
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A literatura do nosso tempo
algumas confusões, sobretudo na medida em que, em certos casos, se
confunde com a noção entretanto posta em voga de pós-modernismo.
Vieira da Silva, 25 de Abril
Pós-modernismo
Etiqueta polémica que se apõe a vária da produção literária contemporânea,
vulgarizada pelas controvérsias filosóficas, mas do ponto de vista literário
seriamente encarada por grupos e autores americanos e canonizada por
inúmeros trabalhos científicos e teses em universidades dos EUA e da
Europa do Norte.
Em Portugal, o seu funcionamento na literatura é não só temido mas ainda
denegado e recalcado.
De qualquer modo, a indiferenciação de modalidades narrativas, o gosto da
reescrita e da paródia, a sedução pela alteração e correção dos
acontecimentos do passado, o gosto do fantástico, a recusa das axiologias e
a tendência para o aleatório podem entrever-se em textos tão diversos
quanto Finisterra, de Carlos de Oliveira, Alexandra Alpha, de José Cardoso
Pires, Paixão do Conde de Fróis, de Mário de Carvalho, História do Cerco de
Lisboa, de José Saramago, Contos do Mal Errante, de Maria Gabriela Llansol,
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A literatura do nosso tempo
Os Guarda-Chuvas Cintilantes, de Teolinda Gersão ou Olhos Verdes, de
Luísa Costa Gomes.
Sendo a pós-modernidade uma época de inovações técnicas, sociais,
artísticas, literárias e políticas, entre outras, opõe-se naturalmente ao
Modernismo ou à Modernidade, sendo que o declínio das vanguardas deste
mesmo Modernismo marca a transição entre estes dois períodos. Um destes
aspetos foi a progressiva implantação do abstracionismo na figuração, no
que se refere à arte, por exemplo, impondo-se progressivamente a "crise da
representação”.
José de Guimarães, Homenagem a Magritte, 1984
Surrealismo
Muito tardio, na literatura portuguesa, é representado por grandes poetas
(António Pedro, Manuel de Lima, Mário-Henrique Leiria, Mário Cesariny) e
tem grande impacto na configuração do discurso poético da modernidade,
de Herberto Helder ao grupo de escritores da publicação Poesia-61 (Gastão
Cruz, Fiama Hasse Pais Brandão, Luiza Neto Jorge, Maria Teresa Horta), não
esquecendo Ruy Belo, Casimiro de Brito e João Rui de Sousa.
Formadora: Joana Ribeiro 24
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A literatura do nosso tempo
Favorece as associações vocabulares livres, as relações semânticas
insólitas, e estabelece o primado da imaginação.
Salienta-se de novo que o surrealismo teve uma forte expressão noutros
campos artísticos para além da Literatura, nomeadamente nas artes visuais
- pintura, escultura, fotografia. Em Portugal, Mário Cesariny, António
Dacosta e Cruzeiro Seixas, por exemplo, destacam-se não só na literatura
mas também na pintura.
António Dacosta, Melancolia, 1942
Experimentalismo
Corresponde a um modo de intervenção estética, assumido como
vanguarda, de poetas aliás muitas vezes ligados a outros movimentos,
nomeadamente ao neorrealismo e ao surrealismo, e tem como expoentes
principais, que se mantém fiéis a esse modo desde há quatro décadas, E. M.
de Melo e Castro e Ana Hatherly (esta também autora de uma novela
importante de tipo surrealista, O Mestre).
Formadora: Joana Ribeiro 25
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A literatura do nosso tempo
Mário Botas, Pietá
5.Os autores e a sua produção literária - que géneros
literários e que temáticas
5.1.Agustina Bessa Luís
Vila Meã, Amarante, 1922
Agustina Bessa-Luís nasceu a 15 de Outubro de 1922, em Vila Meã,
Amarante. Dela António José Saraiva afirma ser, depois de Fernando Pessoa,
o segundo milagre do século XX português, referindo-se à originalidade e
densidade literária da sua obra romanesca, constituída por mais de quatro
Formadora: Joana Ribeiro 26
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dezenas de títulos, a que se somam peças de teatro, biografias, ensaios,
livros de viagens e de crónicas.
Da sua obra de ficção narrativa para adultos, refiram-se apenas alguns
títulos como A sibila (1954), As pessoas felizes (1975), Fanny Owen (1979),
O mosteiro (1980), Os meninos de ouro (1983), Vale Abraão (1991), Ordens
menores (1992), Um cão que sonha (1997), entre muitos outros que
poderiam ser mencionados.
Com obras traduzidas em vários países e algumas adaptadas quer à
linguagem cinematográfica (por Manoel de Oliveira, por exemplo), quer à
linguagem teatral, também produziu textos expressamente destinados a
crianças.
As características omniscientes e demiúrgicas dos seus narradores
contribuem para uma quebra da organização canónica do texto, em que
vários espaços e tempos se entrecruzam na tentativa de explicação dos
comportamentos assumidos pelas personagens.
Estas, por sua vez, caracterizam-se por uma força vital assombrosa ou, pelo
contrário, por uma fragilidade, uma impotência perante a vida, que ainda
vem reforçar as características das personalidades dominadoras. É essa
força telúrica que transforma as suas personagens em personagens
mágicas que reorganizam o mundo à volta delas.
Os seus textos narrativos são construídos através da integração de longos
momentos descritivos em que a autoridade do saber do narrador se impõe,
como se as suas caracterizações físicas, psicológicas ou sociais
ultrapassassem, transcendessem os atributos possíveis de cada
personagem ou de cada espaço.
Formadora: Joana Ribeiro 27
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A literatura do nosso tempo
Nos contos para crianças, o carácter sentencioso da sua escrita parece
suavizar-se pela diminuição dos argumentos utilizados, mas reaparece
através das características de um discurso formado por frases mais curtas e
incisivas. As metáforas e imagens utilizadas também ora estão próximas do
mundo da infância e assumem o humor impiedoso das crianças, ora
denunciam a crítica mordaz que se esconde por detrás da experiência
adulta.
Formadora: Joana Ribeiro 28
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"E, bruscamente, Germa começou a falar de Quina.
Era em Setembro, e a casa, temporariamente habitada expulsava o
seu carácter de abandono e de ruína, com aquele calor de vozes e
de passos que amarrotam folhelhos amontoados em todos os
sobrados. O tempo estava morno, impregnado dessa quietude de
natureza exaurida que se encontra num baque ondulante de folha
ou na água que corre inutilmente pela terra eriçada de canas donde
a bandeira de milho foi cortada. Desde a morte de Quina, nunca
mais a casa tivera aquela emanação de mistério grotesco ou
ingénuo; e Germa não encontrava mais sabor nos serões ao
boralho, mexendo as achas, fazendo rodinhas de fogo-preso com o
atiçador esbraseado, ou catando nos escanos o rapa do Natal, em
cujas faces as letras tinham sido desenhadas com tinta venenosa
de bagominhas. Ah, Quina, tão estranha, difícil, mas que não era
possível recordar sem uma saudade ansiada, quem fora ela?
Joaquina Augusta nascera nessa mesma casa da Vessada, setenta e
seis anos antes. Era uma menina de aspeto pouco viável, roxa,
moribunda, e que apresentava no pulso esquerdo uma mancha cor
de sépia, motivada pelo facto de sua mãe ter sido salpicada de
fígado de porco, por ocasião de uma matança, estando ela nos
primeiros tempos da gravidez."
Agustina Bessa-Luís, in A Sibila, 1953
Formadora: Joana Ribeiro 29
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5.2.António Lobo Antunes
Lisboa, 1942
António Lobo Antunes nasceu em Lisboa, em 1942. Psiquiatra de profissão,
iniciou a publicação da sua obra literária, para adultos, em 1979, com
Memória de elefante, a que se seguiram mais de vinte romances – como
Fado alexandrino (1983), As naus (1988), Não entres tão depressa nessa
noite escura (2000), O arquipélago da insónia (2008), Que cavalos são
aqueles que fazem sombra no mar? (2009), Sôbolos rios que vão (2010) –,
além de livros de crónicas.
As vivências da Guerra Colonial (que presenciou em Angola, durante dois
anos) constituem parte do substrato temático dos seus romances.
Atualmente, é um dos autores portugueses mais traduzidos no estrangeiro e
a sua obra tem sido muitas vezes premiada.
António Lobo Antunes começou por utilizar o material psíquico que tinha
marcado toda uma geração: os enredos das crises conjugais, as
contradições revolucionárias de uma burguesia empolgada ou agredida pelo
25 de Abril, os traumas profundos da guerra colonial e o regresso dos
colonizadores à pátria primitiva. Isto permitiu-lhe, de imediato, obter um
Formadora: Joana Ribeiro 30
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reconhecimento junto dos leitores, que, no entanto, não foi suficientemente
acompanhado pelo lado da crítica.
As desconfianças em relação a um estranho que se intrometia no meio
literário, a pouca adesão a um estilo excessivo que rapidamente foi
classificado de «gongórico» e o próprio sucesso de público, contribuíram
para alguns desentendimentos persistentes que se começaram a
desvanecer com a repercussão internacional (em particular em França) que
a obra de António Lobo Antunes obteve.
Ultrapassado este jogo de equívocos, António Lobo Antunes tornou-se um
dos escritores portugueses mais lidos, vendidos e traduzidos em todo o
mundo. Pouco a pouco, a sua escrita concentrou-se, adensou-se, ganhou
espessura e eficácia narrativa. De um modo impiedoso e obstinado, esta
obra traça um dos quadros mais exaustivos e sociologicamente pertinentes
do Portugal do século XX.
A sua obra prosseguiu numa contínua renovação linguística, tendo os seus
romances seguintes (Exortação aos Crocodilos, Não Entres Tão Depressa
Nessa Noite Escura, Que Farei Quando Tudo Arde? Boa Tarde às Coisas Aqui
em Baixo), bem recebidos pela crítica, marcado definitivamente a ficção
portuguesa dos últimos anos.
Formadora: Joana Ribeiro 31
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«Nada a não ser de tempos a tempos um arrepio nas árvores e cada
folha uma boca numa linguagem sem relação com as outras, ao
princípio faziam cerimónia, hesitavam, pediam desculpa, e a seguir
palavras que se destinavam a ela e de que se negava a entender o
sentido, há quantos anos me atormentam vocês, não tenho
satisfações a dar-vos, larguem-me, isto em criança, em África, e
depois em Lisboa, a mãe chegava-se ao armário da cozinha onde
guardava os remédios
– São as vozes Cristina?
aqui na Clínica silêncio, com as injeções as coisas desinteressam-se
de mim, uma frase, às vezes, mas sem ameaças nem zangas, o
nome apenas
– Cristina
uma amabilidade pressurosa
– Como estás Cristina?
ou uma queixa
– Nunca mais nos ligaste
a cama, a mesa e as cadeiras quase objetos de novo, embora se
perceba um ressentimento à espera, não se atrevia a tocar-lhes,
deitava-se pesando o menos possível na esperança que a almofada
ou os lençóis não a sentissem e pode ser que se distraiam e não
sintam, não devem sentir porque nenhum
– Como estás Cristina?
desde há semanas, tirando as folhas num capricho do vento e as
bocas de regresso um instante, o que me incomodam as bocas, o
diretor da Clínica
– Ando a pensar dar-lhe uns dias de licença na condição de tomar os
comprimidos
não havia a sombra de uma sugestão, um conselho, a ordem
Formadora: Joana Ribeiro 32
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A literatura do nosso tempo
– Tens de matar o teu pai com a faca
graças a Deus ausente, quase paz se houvesse paz e não há, há
pretos a correrem em Luanda, camionetas de soldados, tiros, gritos
numa ambulância a arder na praia, sob pássaros que se escapavam,
e ao terminar de arder nenhum grito, o pai foi padre, não era padre
já e a mãe zangada
– Quem te contou isso miúda? (…)»
António Lobo Antunes, Comissão das Lágrimas, 2011
Formadora: Joana Ribeiro 33
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5.3.David Mourão Ferreira
Lisboa, 1927 - Lisboa, 1996
Poeta, ficcionista, ensaísta, crítico literário, dramaturgo, tradutor e professor
universitário.
Depois de frequentar o Colégio Moderno, onde foi aluno de Álvaro Salema e
colega de Mário Soares, licenciou-se em Filologia Românica, em 1951, com
uma tese sobre Sá de Miranda, na Faculdade de Letras da Universidade de
Lisboa, aí tendo tido como mestres Hernâni Cidade, Vitorino Nemésio,
Jacinto do Prado Coelho, Maria de Lourdes Belchior e como colegas
Sebastião da Gama e Lindley Cintra, entre outras personalidades da cultura
portuguesa contemporânea de quem foi amigo e que muito o marcaram na
sua formação pessoal e académica.
Entre 1957 e 1963 foi assistente da Faculdade de Letras da Universidade de
Lisboa, onde foi readmitido, como professor auxiliar, em 1970. Aí marcou
várias gerações de estudantes na regência das cadeiras de Teoria da
Literatura e de Literatura Portuguesa e numa prática da docência onde o
tom às vezes retórico do discurso não inibia a capacidade de diálogo e
Formadora: Joana Ribeiro 34
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A literatura do nosso tempo
parecia corresponder antes, na abordagem teórica da literatura e no gosto
da sua partilha, à mesma exigência de rigor formal que punha na escrita, ao
mesmo gosto de articular palavras e de as organizar em versos como quem
nelas articula os seus mais antigos arquétipos culturais.
Ao publicar nos últimos anos de vida recolhas poéticas de inequívoca
tematização do erotismo (O Corpo Iluminado e Música de Cama), David
Mourão-Ferreira expôs-se, «entre o estuar dos sentidos e o desencanto do
nada» (Urbano Tavares Rodrigues, «Don Juan e o donjuanismo: na literatura
portuguesa», in Dicionário de Literatura dirigido por Jacinto do Prado Coelho,
1978), a análises injustamente redutoras da sua obra poética.
E no entanto parece tão fácil reconhecer que, nessa escrita, ora lúdica, ora
dramática, Das sílabas a espátula/ começa pouco a pouco/ a modelar-te em
alma/ o que era apenas corpo/ [ ...] e O que era apenas alma/ volve-se
agora corpo («Corpoema»), tão insignificante é do ponto de vista poético a
diferença.
Um Monumento de Palavras (1996) é simultaneamente reconstituição de
um percurso íntimo e testamento poético, numa curiosa cronologia
sentimental e poética que, já elegíaca, mas lucida, tranquilamente se
enuncia e antologicamente se organiza em disco pela voz do Poeta.
Poucas vezes um escritor terá visto a sua morte tão publicamente
anunciada, tão mediática, mas sinceramente, chorada.
Formadora: Joana Ribeiro 35
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A literatura do nosso tempo
E POR VEZES
E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
Nunca mais são os mesmos E por vezes
Encontramos de nós em poucos meses
O que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes
Ao tomarmos o gosto aos oceanos
Só o sarro das noites não dos meses
Lá no fundo dos copos encontramos
E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
Num segundo se envolam tantos anos.
David Mourão-Ferreira, Obra poética 1948-1988
Formadora: Joana Ribeiro 36
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5.4.Dinis Machado
Lisboa, 1930 - Lisboa, 2008
Escritor. Iniciou a sua carreira como jornalista desportivo e crítico de
cinema. Trabalhou nos jornais Record, Norte Desportivo, Diário Ilustrado e
Diário de Lisboa. Organizou nos princípios dos anos sessenta os primeiros
Ciclos de Cinema da Casa da Imprensa e fez crítica cinematográfica na
revista Filme.
Nos anos setenta foi diretor, com António Ramos, da edição portuguesa da
revista de banda desenhada, Spirou. Sob o pseudónimo de Dennis McShade
deu a lume três romances policiais. Traduziu, com Rita Alves Machado,
Truman Capote (Um Natal, 1983).
Sobre o seu romance O Que Diz Molero – grande êxito editorial, traduzido
em várias línguas e objeto de uma versão teatral de Nuno Artur Silva –
afirmou Eduardo Lourenço tratar-se «de um livro-chave do nosso tempo».
António Mega Ferreira considerou-o o «mais importante texto de ficção que
se publicou em Portugal nos últimos anos [...] páginas miraculosamente
Formadora: Joana Ribeiro 37
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A literatura do nosso tempo
repletas de sinais da mais bela, inteligente e emocionada escrita produzida
por um escritor português na década de 70.»
E Luiz Pacheco fala de «uma cavalgada furiosa de episódios, uma feira, um
tropel de gente, uma festa popular de malucos e malucas, tudo chalado,
uma alegria enorme quase insensata, o sentimento nos momentos doloridos
mas tudo tão próximo de nós e tão naturalmente reproduzido na escrita.»
Formadora: Joana Ribeiro 38
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A literatura do nosso tempo
“Chegou uma esquadra”, disse Austin, “e aqueles a quem
chamavam os camones invadiram a cidade, tingindo-a com a
brancura das suas fardas. Meia dúzia deles enfiou pela rua acima,
passou pelos Vai ou Racha, estes cuspiram para o chão em sinal de
desprezo, o Zuca foi atrás deles de braço estendido, esfregando o
dedo polegar no indicador, eh, camone, money, money, um camone
atirou um monte de moedas ao ar e a miudagem lutou bravamente
para apanhar o dinheiro”. “essas excursões a bairros
desconhecidos desvendam mundos novos”, interrompeu Mister
DeLuxe. “fiz duas ou três desse género e tirei excelentes
fotografias”. Austin sorriu. “bem”, disse ele, “os camones
continuaram a subir a rua, pararam junto ao Ângelo, que estava
sentado no seu banco de madeira a experimentar a harmónica, um
deles aproximou-se e disse girls, e fez com o braço o movimento
respetivo, we want girls, o Ângelo disse girl é a tua mãezinha, estás
a perceber ou precisas de explicador?, sim, a tua mãezinha, o
camone riu-se para os outros, um deles avançou e fez uma espécie
de passe à Fred Astaire, conta quem sabe, e de repente o Ângelo já
tinha guardado os óculos e a harmónica no bolso, começou a
despachar os camones, enfiou um pela loja de móveis do Ventura,
outro foi cair numa das cadeiras da Barbearia Hollywood,
exatamente em cima do Pimentel, que estava a ser escanhoado
pelo Joaquim Navalhinhas, um terceiro mergulhou no tanque de
roupa da Miquelina Fortes, outro ainda foi também remetido para a
loja do Ventura, encontrou o primeiro no caminho, vinha de
regresso, e estatelaram-se os dois numa cama de casal, o Ângelo
com os pés, com as mãos, com a cabeça, vai disto, os camones
enfiavam por tudo quanto era porta, positivamente distribuídos ao
Formadora: Joana Ribeiro 39
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A literatura do nosso tempo
domicílio, o Zuca diria mais tarde que Ricardito entre Chamas e
Bandidos, a sua fita número um, ao pé daquilo não era nada.
Dinis Machado, O que diz Molero, 1977
5.5.José Cardoso Pires
S. João do Peso/Castelo Branco, 1925 - Lisboa, 1998
Vem viver para Lisboa muito jovem. Após concluído o liceu, frequenta o
curso de Matemáticas Superiores da Faculdade de Ciências, que abandona
para se alistar na Marinha Mercante como praticante de piloto sem curso.
Viaja então por toda a costa de África, até ser forçado ao abandono dessa
atividade.
Desde então, a sua atividade profissional centrou-se em torno da literatura
e do jornalismo cultural, tendo sido diretor literário de várias editoras,
diretor da revista Almanaque (cuja redação era constituída por Luís de Sttau
Monteiro, Alexandre O'Neill, Vasco Pulido Valente, Augusto Abelaira e o
escultor José Cutileiro e que contava com a direção gráfica de Sebastião
Formadora: Joana Ribeiro 40
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A literatura do nosso tempo
Rodrigues), diretor-adjunto do jornal Diário de Lisboa (1974), redator da
Gazeta Musical e de Todas as Artes e crítico literário da revista Afinidades.
Autor vário, do romance à sátira política, passando pelo teatro e pela
crónica, José Cardoso Pires é considerado um dos maiores e melhores
prosadores e contadores de histórias da literatura portuguesa
contemporânea, tendo obras traduzidas numa quinzena de línguas.
Nunca tendo integrado qualquer corrente literária específica – considerava-
se a si próprio um «integrado marginal» –, acusa, no entanto, influências
várias, desde o neorrealismo, no início da carreira, ao surrealismo, passando
por Tchekov e por autores americanos como Poe, Hemingway, Melville.
Resulta daqui um realismo crítico de estilo muito pessoal, caracterizado por
grande depuração, tanto ao nível narrativo como sintático e vocabular, uma
prosa viva e objetiva que foi tendo na atividade jornalística, desenvolvida ao
longo dos anos, a sua oficina permanente.
A ligação do autor ao jornalismo começou na adolescência e manteve-se
regularmente, sendo os marcos mais importantes deste percurso as
passagens pela revista Almanaque, pelo Jornal do Fundão, pelo Diário de
Lisboa e pelo Público.
É também apontado à sua escrita um cariz cinematográfico, de certa forma
corroborado pelas várias adaptações de textos seus para o cinema. A mais
recente adaptação foi o filme Balada da Praia dos Cães, realizado por José
Fonseca e Costa, sobre o romance homónimo de 1982 que valeu a Cardoso
Pires o Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de
Escritores.
Formadora: Joana Ribeiro 41
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A literatura do nosso tempo
O mudo ouvia, modestamente, girando a garrafa de cerveja sobre a
mesa. Um artista que tinha ficado conhecido pelo fado do Arsenal e
por outros fados de exclusivo não merecia ver-se assim moço de
cego, a estender a mão à caridade pública. Os narradores de
taberna não só chamavam a atenção dos forasteiros para a
injustiça que estavam a presenciar como se olhavam entre si com
piedade. Um deles abriu os braços, resignado:
«Azares», disse ele. «A gente cá em Portugal chama a isto
azares, que é que se há-de fazer?»
«Mister, na nossa terra passa-se muita dificuldade», disse outro.
Com mais algumas rodadas as tristezas já não pagavam dívidas
e, sendo assim, alguém começou a cantar o Hino do Benfica
acompanhado à guitarra pelo cego. Depois vieram uns versos ao
jocoso, com licença da senhora, e até quadras populares onde a
própria Sophia fez coro. Foi então que se ouviram na guitarra as
notas do Fado do Arsenal: o bando dos bêbados calou-se
imediatamente porque o mudo se tinha posto de pé e levantava a
mão a impor silêncio e concentração.
Lado a lado, ele e o cego enfrentaram a assistência, a guitarra a
aclarar o tom, a afinar. E na altura própria, o mudo abriu as goelas.
E pronunciou sem soltar um som a letra do Fado do Arsenal,
batendo os lábios ao ritmo do instrumento e com as pausas, as
voltas e os arrastados que mandava a regra. Fazia os gestos
sentidos do fadista de raça, o meneio dos ombros, o prolongado
fechar dos olhos, o peito arrogante na tirada mais funda. Mas sem
uma palavra, sem uma nota. Parecia um homem a cantar numa
redoma isolada à prova de som.
Um por um, segunda surpresa, a assistência de bêbados pôs-se
a cantar. Cantava com os olhos no silabar do fadista sem som,
Formadora: Joana Ribeiro 42
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lendo-lhe a letra nos lábios e seguindo-os pelo ritmo, e era coisa
única, disse François Désanti, ouvir um mudo na voz dum coro de
bêbados. Um fenómeno dramático e grotesco e quase religioso.
Como se fosse um ventríloquo que se fizesse ouvir em várias
figuras ao mesmo tempo.
José Cardoso Pires, Alexandra Alpha, 1987
Formadora: Joana Ribeiro 43
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5.6.José Saramago
Azinhaga/Golegã, 1922 - Lanzarote/ilhas Canárias/Espanha, 2010
Prémio Nobel de Literatura 1998. Nascido no Ribatejo, mas desde muito
novo a residir em Lisboa, José Saramago é um caso paradigmático de
escritor autodidata: com um curso em serralharia mecânica concluído em
1939, vai, ao longo dos anos, repartir a sua atividade profissional pela
tradução, a direção literária e de produção numa casa editora, colaborações
várias em jornais e revistas.
Tendo embora iniciado a sua carreira nas letras em 1947, com o livro Terra
do Pecado, é em 1980, com o romance Levantado do Chão, história da vida
de uma família camponesa do Alentejo desde o início do século até à
revolução de Abril e ao advento da reforma agrária, que José Saramago
produz aquilo a que já se convencionou chamar o seu «primeiro grande
romance».
Primeiro porque a partir daí eles se têm sucedido regularmente como outros
tantos «grandes romances», o maior dos quais, por ter constituído um
Formadora: Joana Ribeiro 44
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A literatura do nosso tempo
autêntico «caso» de celebridade tanto nacional como internacional, com
tradução para uma vintena de línguas e adaptação a libretto de ópera, foi
sem dúvida Memorial do Convento (1982).
Tudo isto é servido por um estilo que passará a constituir forte marca do
autor e que se define, basicamente, pela supressão de alguns sinais de
pontuação, nomeadamente pontos finais e travessões para introduzir o
diálogo entre as personagens, o que vai resultar num ritmo fluido,
marcadamente oral e muito próprio, tanto da escrita como da narrativa.
De romance histórico se tem inevitavelmente falado em relação à produção
romanesca de Saramago, embora o próprio autor recuse tal etiqueta
aplicada às suas obras.
Se o romance de José Saramago é histórico, pela dimensão histórica, e
fantástico, pela dimensão fantástica, ele é principalmente dos homens e das
mulheres na história e da sua capacidade de ver e agir sobre o real para
além do crível e do evidente. Parte da extraordinária recetividade que as
suas obras têm merecido em todo o mundo, e que culminou com a
atribuição do Nobel, dever-se-á, sem dúvida, a esse carácter humanista, a
esse reduto de confiança e esperança no poder do humano que a sua obra
projeta.
De facto, mesmo antes da consagração máxima trazida pelo Nobel,
Saramago era já o autor português contemporâneo mais traduzido, com
livros editados em todo o mundo, da América do Norte à China, e detinha já
um capital de prestígio reconhecido pela atribuição de vários prémios
literários internacionais e nacionais.
Formadora: Joana Ribeiro 45
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A literatura do nosso tempo
Grita o povinho furiosos impropérios aos condenados, guincham as
mulheres debruçadas dos peitoris, alanzoam os frades, a procissão
é uma serpente enorme que não cabe direita no Rossio e por isso
se vai curvando e recurvando como se determinasse chegar a toda
a parte ou oferecer o espetáculo edificante a toda a cidade, aquele
que ali vai é Simeão de Oliveira e Sousa, sem mester nem benefício,
mas que do Santo Ofício declarava ser qualificador, e sendo secular
dizia missa, confessava e pregava, e ao mesmo tempo que isto
fazia proclamava ser herege e judeu, raro se viu confusão assim, e
para ser ela maior tanto se chamava padre Teodoro Pereira de
Sousa como frei Manuel da Conceição, ou frei Manuel da Graça, ou
ainda Belchior Carneiro, ou Manuel Lencastre, quem sabe que
outros nomes teria e todos verdadeiros, porque deveria ser um
direito do homem escolher o seu próprio nome e mudá-lo cem vezes
ao dia, um nome não é nada, e aquele é Domingos Afonso
Lagareiro, natural e morador que foi em Portel, que fingia visões
para ser tido por santo, e fazia curas usando de bênçãos, palavras e
cruzes, e outras semelhantes superstições, imagine-se, como se
tivesse sido ele o primeiro, e aquele é o padre António Teixeira de
Sousa, da ilha de S. Jorge, por culpas de solicitar mulheres, maneira
canónica de dizer que as apalpava e fornicava, decerto começando
na palavra do confessionário e terminando no acto recato da
sacristia, enquanto não vai corporalmente acabar em Angola, para
onde irá degredado por toda a vida, e esta sou eu, Sebastiana
Maria de Jesus, um quarto de cristã-nova, que tenho visões e
revelações, mas disseram-me no tribunal que era fingimento, que
ouço vozes do céu, mas explicaram-me que era efeito demoníaco,
que sei que posso ser santa como os santos o são, ou ainda melhor,
pois não alcanço diferença entre mim e eles, mas repreenderam-me
Formadora: Joana Ribeiro 46
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de que isso é presunção insuportável e orgulho monstruoso,
desafio a Deus, aqui vou blasfema, herética, temerária,
amordaçada para que não me ouçam as temeridades, as heresias e
as blasfémias, condenada a ser açoitada em público e a oito anos
de degredo no reino de Angola, e tendo ouvido as sentenças, as
minhas e mais de quem comigo vai nesta procissão, não ouvi que se
falasse da minha filha, é seu nome Blimunda, onde estará, onde
estás Blimunda, se não foste presa depois de mim, aqui hás-de vir
saber da tua mãe, e eu te verei se no meio dessa multidão
estiveres, que só para te ver quero agora os olhos, a boca me
amordaçaram, não os olhos, olhos que não te viram, coração que
sente e sentiu, ó coração meu, salta-me no peito se Blimunda aí
estiver, entre aquela gente que está cuspindo para mim e atirando
cascas de melancia e imundícies, ai como estão enganados, só eu
sei que todos poderiam ser santos, assim o quisessem, e não posso
gritá-lo, enfim o peito me deu sinal, gemeu profundamente o
coração, vou ver Blimunda, vou vê-la, ai, ali está, Blimunda,
Blimunda, Blimunda, filha minha, e já me viu, e não pode falar, tem
de fingir que me não conhece ou me despreza, mãe feiticeira e
marrana ainda que apenas um quarto, já me viu, e ao lado dela está
o padre Bartolomeu Lourenço, não fales, Blimunda, olha só, olha
com esses teus olhos que tudo são capazes de ver, e aquele homem
quem será, tão alto, que está perto de Blimunda e não sabe, ai não
sabe não, quem é ele, donde vem, que vai ser deles poder meu,
pelas roupas soldado, pelo rosto castigado, pelo pulso cortado,
adeus Blimunda que não te verei mais, e Blimunda disse ao padre,
Ali vai minha mãe, e depois, voltando-se para o homem alto que lhe
estava perto, perguntou, Que nome é o seu, e o homem disse,
naturalmente, assim reconhecendo o direito de esta mulher lhe
fazer perguntas, Baltasar Mateus, também me chamam Sete-Sóis.
Formadora: Joana Ribeiro 47
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José Saramago, Memorial do Convento, 1982
Formadora: Joana Ribeiro 48
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5.7.Lídia Jorge
Boliqueime, Loulé, 1946
Romancista, contista e autora de uma peça de teatro, Lídia Guerreiro Jorge
nasceu em Boliqueime em 1946.
Licenciada em Filologia Românica, foi professora liceal em Lisboa e em
África – Angola e Moçambique – para onde partiu em 1970. Ali viveu o
marcante ambiente da Guerra Colonial, que mais tarde descreveria no
romance A Costa dos Murmúrios através da perspetiva de uma personagem
feminina, a mulher de um oficial do exército português de serviço em
Moçambique.
De regresso a Lisboa continuou a atividade docente e, em 1980, publicou o
romance O Dia dos Prodígios, que lhe valeu o Prémio Ricardo Malheiros, da
Academia das Ciências de Lisboa.
Esta sua primeira obra publicada deve um impulso à revolução de Abril de
1974: O Dia dos Prodígios constrói-se como uma alegoria do país fechado e
Formadora: Joana Ribeiro 49
VIVER EM PORTUGUÊS
A literatura do nosso tempo
parado que Portugal era sob a ditadura, permanentemente à espera de uma
força que o transformasse. O romance teve grande impacto junto do público
e da crítica e Lídia Jorge foi de imediato saudada como uma das mais
importantes revelações das letras portuguesas e uma renovadora do nosso
imaginário romanesco.
A linguagem narrativa deste romance e do seguinte – O Cais das Merendas –
remete para a atmosfera do realismo mágico, sobrepondo vários planos
narrativos numa estrutura polifónica de onde se destacam personagens que
adquirem uma dimensão metafórica, ou mesmo mítica.
Nos romances de Lídia Jorge, a condição sociocultural das personagens,
sobretudo as femininas, reflete-se em diálogos, testemunhos a que não é
alheia a atenção que a autora dispensa à tradição oral, em relação direta
com a crónica da nossa história recente, antes e depois da revolução.
A par da atividade literária, Lídia Jorge foi professora convidada da
Faculdade de Letras de Lisboa, atividade que interrompeu para
desempenhar funções na Alta Autoridade para a Comunicação Social, entre
1990 e 1994.
Os seus livros têm-lhe merecido variadíssimos prémios e estão traduzidos
para diversas línguas.
Formadora: Joana Ribeiro 50
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Por entre o barulho que fazia dentro e fora, perguntei-lhe—“Sabe o
que significa o seu nome?”
Helena de Tróia começou a rir—“Não, não sei.”
“Nunca lhe disseram Haec Helena?”
“Não, nunca”—disse ela com pestanas inocentes a baterem ao
longo dos olhos, afastada agora dos crustáceos e da turquês que
lhes quebravam tão bem as eriçadas patas. Quis que Helena
soubesse.
“Dizer Haec Helena é o mesmo que dizer eis a causa do conflito—
gosta?
Era uma bela mulher, despida lembrava um pombo, como outras
lembram uma rã e outras uma baleia. Não era só a voz que
lembrava um pombo, a chamar pelo barco, mas era também a
perna, o seio, alguma coisa estava espalhada por ela que pertencia
à família das columbinas. Talvez o cabelo vermelho, a pele leitosa.
Ela [Helena] pôs uma perna fora do lençol. Os músculos gémeos de
Helena não se vêem, por mais que Helena comprima o peito do pé.
Tenho a perna de Helena na minha mão, peço-lhe que a curve para
ver a atuação dos gémeos.
A perna apenas toma um pouco mais de volume e engrossa. Passa-
se o mesmo com a coxa. Helena abre e fecha a coxa. O seu slip é
tão escasso que melhor fora não o ter. Helena puxa os joelhos,
senta-se, levanta o assento, retira o slip, escorrega-o pelas pernas
sempre unidas, estende-se.
Lídia Jorge, A costa dos murmúrios, 1988
Formadora: Joana Ribeiro 51
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5.8.Manuel Alegre
Águeda, 1936
Poeta. Fez os estudos secundários no Porto, altura em que fundou, com José
Augusto Seabra, o jornal Prelúdio. Do Liceu Alexandre Herculano, do Porto,
passou a Coimbra, em cuja Universidade foi estudante de Direito, de par
com uma grande atividade nas áreas da política, da cultura e do desporto.
Em 1962, foi mobilizado para Angola, tendo aí participado numa tentativa
de revolta militar, pelo que esteve preso no forte de São Paulo de Luanda,
cárcere onde conheceu Luandino Vieira, António Jacinto e António Cardoso.
Libertado da cadeia angolana, foi desmobilizado e enviado para Coimbra em
regime de residência fixa.
Após o 25 de Abril, regressou a Portugal, passando a dedicar-se à política no
seio do Partido Socialista de que é membro da Comissão Política. Fez parte
Formadora: Joana Ribeiro 52
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do 1º Governo Constitucional e tem sido desde então deputado à
Assembleia da República. É também membro do Conselho de Estado, do
Conselho das Ordens Nacionais e do Conselho Social da Universidade de
Coimbra.
Como poeta, começa a destacar-se nas coletâneas Poemas Livres (1963-
1965), publicadas em Coimbra de par com o «Cancioneiro Vértice». Mas o
grande reconhecimento dos leitores e da crítica nasce com os seus dois
volumes de poemas, Praça da Canção (1965) e O Canto e as Armas (1967),
logo apreendidos pelas autoridades, mas com grande circulação nos meios
intelectuais.
Começando por tomar por base temática a resistência ao regime, o exílio, a
guerra de África, logo a poesia de Manuel Alegre evoluiria num registo épico
e lírico que bebe muito em Camões e numa escrita rítmica e melódica que
pede ser recitada ou musicada.
Para além das revistas e jornais já citados, Manuel Alegre tem colaboração
dispersa por muitos outros jornais e revistas culturais, de que destacamos:
A Poesia Útil (Coimbra, 1962), Seara Nova, o suplemento do Diário Popular
«Letras e Artes», Cadernos de Literatura (Coimbra, 1978-), Jornal de Poetas
e Trovadores (Lisboa, 1980-) e JL: Jornal de Letras, Artes e Ideias.
Está traduzido para alemão, francês, italiano, romeno e castelhano, e
incluído em antologias portuguesas e estrangeiras. Poesia sua, declamada
por Mário Viegas, foi gravada em disco.
Formadora: Joana Ribeiro 53
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A RAPARIGA DO PAÍS DE ABRIL
Habito o sol dentro de ti
descubro a terra aprendo o mar
rio acima rio abaixo vou remando
por esse Tejo aberto no teu corpo.
E sou metade camponês metade marinheiro
apascento meus sonhos iço as velas
sobre o teu corpo que de certo modo
é um país marítimo com árvores no meio.
Tu és meu vinho. Tu és meu pão.
Guitarra e fruta. Melodia.
A mesma melodia destas noites
enlouquecidas pela brisa no País de Abril.
E eu procurava-te nas pontes da tristeza
cantava adivinhando-te cantava
quando o País de Abril se vestia de ti
e eu perguntava atónito quem eras.
Por ti cheguei ao longe aqui tão perto
e vi um chão puro: algarves de ternura.
Quando vieste tudo ficou certo
e achei achando-te o País de Abril.
Formadora: Joana Ribeiro 54
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Manuel Alegre, 30 anos de poesia, 1997
5.9.Sophia de Mello Breyner Andersen
Porto, 1919 - Lisboa, 2004
Sophia de Mello Breyner Andresen nasceu no Porto, a 6 de Novembro de
1919, e faleceu em Lisboa, a 2 de Julho de 2004.
A sua infância feliz vivida no Porto propicia-lhe imagens e reminiscências
que, de uma forma ou de outra, se vão entalhar na sua obra lírica e
narrativa, em especial nos contos para crianças: a casa do Campo Alegre e
o seu jardim (atual Jardim Botânico do Porto, que inspirou O Rapaz de
Bronze, A noite de Natal, A floresta), a praia da Granja (na origem de A
menina do mar), as festas de Natal de tradição nórdica (de cuja memória
estão imbuídos O Cavaleiro da Dinamarca e A noite de Natal).
Formadora: Joana Ribeiro 55
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Sophia é reconhecidamente uma das vozes maiores da poesia portuguesa
de todos os tempos (também autora de contos para adultos, de peças de
teatro e de ensaios) e os seus livros infantis tornaram-se verdadeiros
clássicos da literatura portuguesa, tendo sido alguns deles traduzidos para
outras línguas.
A poesia que publicou foi, por mais que uma vez, distinguida com prémios
de prestígio, nacionais e internacionais (Prémio Camões, Prémio Pessoa e
outros), o mesmo acontecendo com a sua obra destinada aos mais novos, a
que foi atribuído o Grande Prémio Calouste Gulbenkian de Literatura para
Crianças.
Inúmeras vezes reeditados, tanto O Rapaz de Bronze (1956), A fada Oriana
(1958), A menina do mar (1958) e A noite de Natal (1960) como O Cavaleiro
da Dinamarca (1964), A floresta (1968), O Anjo de Timor (2004) e os
recontos que é possível ler em A árvore (1985), a par da breve peça teatral
O Bojador (1.ª ed., [1961]; 2.ª ed., 2000), representam, na sua maioria,
momentos altos da história da literatura portuguesa para crianças.
Sem se assumirem declaradamente como obras moralistas, não restam
dúvidas de que a sua inteligente urdidura aponta para um dever ser, em
que surgem valorizados a Natureza, a harmonia, o equilíbrio e a justiça.
À condenação do egocentrismo e do artificialismo, da hipocrisia e da
perversão originada pelo apego aos bens materiais, opõem-se a amizade, o
amor, a paz e a generosidade, bem como (assim o assinalou Clara Rocha) a
exaltação do humanismo cristão, do valor social e ético da obra de arte e da
fidelidade a princípios antigos e universais.
Formadora: Joana Ribeiro 56
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POEMA
A minha vida é o mar o Abril a rua
O meu interior é uma atenção voltada para fora
O meu viver escuta
A frase que de coisa em coisa silabada
Grava no espaço e no tempo a sua escrita
Não trago Deus em mim mas no mundo o procuro
Sabendo que o real o mostrará
Não tenho explicações
Olho e confronto
E por método é nu meu pensamento
A terra o sol o vento o mar
São a minha biografia e são meu rosto
Por isso não me peçam cartão de identidade
Pois nenhum outro senão o mundo tenho
Não me peçam opiniões nem entrevistas
Não me perguntem datas nem moradas
De tudo quanto vejo me acrescento
Formadora: Joana Ribeiro 57
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E a hora da minha morte aflora lentamente
Cada dia preparada
Sophia de Mello Breyner Andresen, Cem poemas portugueses no feminino,
2005
5.10.Vergílio Ferreira
Gouveia, 1916 - Lisboa, 1996
Vergílio António Ferreira nasceu em Melo (Gouveia), a 26 de Janeiro de
1916, e faleceu em Lisboa, a 1 de Março de 1996.
Em 1940, conclui a licenciatura em Filologia Clássica, na Faculdade de
Letras da Universidade de Coimbra. Tendo sido professor do ensino
secundário, foi como escritor que se distinguiu no panorama da literatura
portuguesa a partir dos anos quarenta do século XX.
Formadora: Joana Ribeiro 58
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Com uma Obra que se inscreve no modo narrativo, e se situa entre, por um
lado, o Neorrealismo (constituindo Manhã submersa, de 1955, um exemplo
modelar da apropriação do romance presencista da adolescência pelos
neorrealistas, segundo alguma crítica) e, por outro lado, o Existencialismo
(principalmente a partir de Aparição, de 1959), cultivou intensamente o
romance, o ensaio e o diário, mas também o conto, ainda que de forma
mais marginal.
Claro que há ainda romance, e até na sua dimensão mais consensual e
acidentalmente romanesca, que é a da história de amor. Mas se, na
sequência da tradição, também aqui o amor é aquilo que só se sabe depois,
diferentemente dela, este depois não é a origem reencontrada mas um
frágil presente que se sustenta apenas da escrita do nome amado, como em
Cartas a Sandra.
Neste presente, que é a perda serena de todas as estórias, desenha-se com
nitidez a dificuldade contemporânea do fazer sentido. É dessa crise (de
cultura e de civilização), das suas várias alíneas polemizantes (marxismo,
estruturalismo, filosofia da linguagem), mas também daquilo que cria a
esperança de um depois dela (a arte, os autores que se amam, a insistência
do pensamento), que falam os inúmeros ensaios que V. F. também
escreveu, com muito particular acerto Carta ao Futuro (1958), Invocação ao
Meu Corpo (1969) e Pensar (1992).
Formadora: Joana Ribeiro 59
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Pela última vez, durmo na casa do Alto. É uma noite sem lua mas
com um céu vivo de estrelas. Mas a minha atenção prende-se à
cidade, à planície. Para os lados da estrada de Viana descubro um
espetáculo extraordinário que me alvoroça, que me fascina: numa
vasta extensão de terreno, um incêndio lavra interminavelmente,
iluminando a noite. É uma "queimada", suponho, o incêndio do
restolho para a renovação da terra. Alinhadas pelos sulcos, as
chamas avançam como um flagelo inexorável. E aos meus olhos
saqueados é como se uma cidade ardesse, uma cidade fantástica,
aberta de quarteirões, de praças, de sonhos. Cidade, minha
cidade... Que a terra tenha razão sobre ti, que essa força que mal
sei te absorva, te revele em cinzas, tire delas outra fecundação e
outro ignorado recomeço - que me importa? A minha vida é "a"
vida, só existe o que sou: não se imagina quem se não é..
Acendo um cigarro, fico-me a olhar o incêndio.
Lembra-me imagens da guerra, de cidades bombardeadas. Alguém
deve ir pegando o fogo por sectores, estabelecendo linhas de
chamas que o vento vai impelindo. O campo arde vastamente, como
uma destruição universal. Quase ouço o crepitar das chamas como
o fervor final de uma inundação. Sinto-me só e nu, escapando ao
desastre.
Mas esta nudez que eu algum dia julguei possivelmente coberta
pela compreensão dos outros, esta redução extrema às minhas
raízes, esta solidão inicial de quem não pode esquecer a sua pobre
condição é o sinal humilde e amigo de que à vida que me deram a
não repudiei, de que cuidei dela, a não perdi, a levo comigo nesta
viagem breve, a aceito ao meu olhar de fraternidade e perdão... A
Formadora: Joana Ribeiro 60
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noite avança, a minha cidade arde sempre. Vou fundar outra noutro
lado. Mas não sabia eu que ela devia arder? Acaso será possível
construir uma cidade como a imagino, a cidade do Homem? Acaso
não dura ela em mim, no meu sonho, apenas porque a penso sem
consequências, a imagino, a não vivo, lhe não exijo
responsabilidades? Não o sei, não o sei...
Mas o que sei é que o homem deve construir o seu reino, achar o
seu lugar na verdade da vida, da terra, dos astros, o que sei é que
a morte não deve ter razão contra a vida nem os deuses voltar a tê-
la contra os homens, o que sei é que esta evidência inicial nos
espera no fim de todas as conquistas para que o ciclo se feche - o
ciclo, a viagem mais perfeita.
Vergílio Ferreira, Aparição, 1959
Formadora: Joana Ribeiro 61
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Propostas de atividade
A literatura deverá chegar aos formandos de uma forma menos académica
e mais em função de aspetos que possam despertar o seu interesse.
Assim, o formador poderá motivar os seus formandos para as diferentes
obras e autores, fazendo apresentações diversificadas:
Leitura de textos previamente selecionados e gravados por uma voz
exterior à sala de aula; (um ator de teatro local, um amigo, um
familiar...)
Referência à obra através da temática que lhe é central, ou da
biografia do autor;
Passagem de um programa televisivo onde se tenha falado de
literatura;
Levar à aula alguém do exterior, que goste de ler e saiba captar a
atenção dos formandos;
Comentário a um artigo, de jornal ou revista, que se refira à
problemática literária, a uma qualquer obra ou autor
Ao longo do trabalho dos diferentes textos, irão sendo apresentados os
elementos caracterizadores dos vários géneros literários, a possível
adaptação a outras formas de arte, a presença, ou não, de elementos
biográficos do autor, etc, etc.
Sugestões de trabalho:
1.Formandos e formador farão a análise comparativa de um texto
jornalístico e de um texto de autor contemporâneo conhecido, (Saramago,
Formadora: Joana Ribeiro 62
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Cardoso Pires, Manuel Alegre,...) tendo em atenção
:
A linguagem informativa
A linguagem estética
A forma/estrutura e o conteúdo
O formador chegará, com a colaboração dos formandos, à organização de
um quadro- síntese, que contenha as diferenças anteriormente encontradas.
2.Apresentação de obras ilustradas por artistas plásticos
Ex: do escultor Francisco Simões na obra poética de David Mourão Ferreira:
”Jogo de Espelhos”
Leitura/interpretação de alguns poemas
Leitura/interpretação das imagens da capa e contracapa da obra
referida
3.Apresentação de obras traduzidas em teatro
Ex:”O que diz Molero ”de Diniz Machado.
Na impossibilidade de ver a peça, seria Importante levar um dos seus atores
à conversa com os formandos.
4.Apresentação de obras traduzidas para o cinema
Ex: “A Manhã Submersa” de Vergílio Ferreira.
5.O formador apresentará uma lista de autores contemporâneos e os
formandos pesquisarão, durante 2/3 semanas, no sentido de conhecerem:
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A biografia do autor
O verdadeiro nome e/ou o pseudónimo
As obras que escreveu, com que temática(s) e em que género(s)
6.O formador pedirá a cada formando que, durante 2/3 semanas, faça uma
recolha de todas as referências feitas a autores de literatura portuguesa
contemporânea:
Em jornais diários e outros
Em jornais da especialidade
Em programas televisivo
Em folhetos culturais
Em publicações locais
Cada formando fará a apresentação oral do autor pesquisado, através de:
Compilação de textos recolhidos
Texto elaborado pelo formando
Imagens(fotografia, postal...) e
Texto.
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Bibliografia
AA VV. Programa de Português: Ensino Secundário, Ed. DGIDC – Ministério
da Educação
Cardoso, Ana, et al. Contextos: Português 12º ano, Manual do professor, Ed.
Asa
Magalhães, Olga, et al., Português claro, Manuais de Português: Ensino
Profissional, Ed. Porto Editora
Sites Consultados
Centro de investigação para as tecnologias educativas – Faculdade
de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa
http://www.citi.pt/
Dicionário de autores – Instituto Português do Livro e das
Bibliotecas
http://www.iplb.pt/
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Instituto Camões – Centro Virtual Camões
http://cvc.instituto-camoes.pt/
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