malerba fu aula magna 2012-06-23

23
Como citar: MALERBA, Jurandir. Aula magna: Atualidade de Sérgio Buarque. Lateinamerika-Institut, Berlim, 13/04/2012. Aula magna proferida na inauguração da Cátedra Sérgio Buarque de Holanda de Estudos Brasileiros Lateinamerika-Institut, Berlim, 13/04/2012. Atualidade de Sérgio Buarque

Upload: alexandre-luiz

Post on 01-Oct-2015

213 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

Filosofia

TRANSCRIPT

  • Como citar: MALERBA, Jurandir. Aula magna: Atualidade de Srgio Buarque.

    Lateinamerika-Institut, Berlim, 13/04/2012.

    Aula magna proferida na inaugurao da

    Ctedra Srgio Buarque de Holanda de

    Estudos Brasileiros

    Lateinamerika-Institut, Berlim,

    13/04/2012.

    Atualidade de

    Srgio Buarque

  • Jurandir Malerba: Atualidade de Srgio Buarque

    2

    Atualidade de Srgio Buarque1

    Carssimos Colegas professores, pesquisadores, estudantes;

    Senhoras e Senhores,

    O Brasil um pas da extenso da Europa, dezessete vezes maior

    que a Alemanha. O caminho para sua ascenso est aberto. O pas

    capaz de acolher e alimentar sem problemas 300 milhes de

    habitantes. Imigrantes afluem de todas as partes do mundo.

    Pases altamente industrializados observam com crescente ateno

    os acontecimentos no Brasil, a enorme ascenso do pas, e sabem: os

    Estados Unidos do Brasil j so hoje um importante mercado para

    seus produtos, e as necessidades do gigante adormecido aumentam

    dia aps dia.

    Assim, esses pases criaram novos rgos que propagam com

    palavras e imagens, e relatam, recordam e anunciam: buscamos

    novas reas de comrcio.

    Poderosos concorrentes esto em primeiro plano.

    A Alemanha no pode ficar de fora. Dois pases que tm tanto a

    oferecer um ao outro precisam se conhecer melhor, precisam se

    aproximar atravs de relaes de amizade e comrcio.

    Queremos tomar a nosso cargo essa tarefa. Queremos ser o

    mensageiro da boa vontade, queremos levar a notcia do Brasil para

    1 Agradeo a Joo Jos Reis, Carlos Fico, Joo Luis Passador e Arthur Assis pela leitura prvia e

    amiga deste texto.

  • Jurandir Malerba: Atualidade de Srgio Buarque

    3 a Alemanha e no Brasil chamar a ateno das realizaes e das

    capacidades de realizao da Alemanha.

    A todos os qualificativos j apostos ao nome de Srgio Buarque de Holanda,

    talvez ainda coubesse em seu epigrama o de visionrio. As palavras que acabei

    de reproduzir agora, to agudas e certeiras, s poderiam ser, como so, de sua

    lavra. Foram publicadas na revista Duco, nesta mesma Berlim, em setembro de

    19292. Hoje aqui estamos, em oficial homenagem, crismando com seu nome esta

    importante ctedra de Estudos Brasileiros na Universidade Livre. De algum modo

    promovendo aquela aproximao que nosso patrono pleiteara h oito dcadas.

    Nesta mesma instituio por onde j passaram grandes expoentes do

    pensamento social e histrico do Brasil, conhecedores profundos da obra

    buarqueana, decidira-se dar-me a honra de inaugurar esta ctedra. Temo no

    fazer jus a tamanha distino, diante da qual, no entanto, no haveria como

    declinar. Aceitei de pronto e deixo publicamente expressos meu reconhecimento

    e minha gratido a meus anfitries e a minha instituio de origem, a PUCRS, que

    me franqueou a licena para esta misso.

    Nestas palavras iniciais, seria uma afronta a Srgio Buarque, pensador radical,

    iconoclasta, avesso a todo tipo de oficialismos, evocar seu legado em tom

    laudatrio. Longe de mim. Nem sou expert de sua obra para propor qualquer

    chave analtica que j no tenha sido feita antes, e com muito maior brilho e

    competncia, por outros a que lhe dedicaram anos de estudo, gente do vulto de

    Antonio Candido, Francisco Iglesias, Maria Odila da Silva Dias, Antonio Arnoni

    Padro, Luiz Costa Lima, Walnice Nogueira Galvo e, entre os mais jovens, Pedro

    Meira Monteiro, Joo Kennedy Eugnio, Robert Wegner e Marcus Vinicius Corra

    Carvalho. Entre tantos.

    Por outro lado, consciente de minhas prprias limitaes, entendi que no teria

    sentido, nesta ocasio, o arrogar-me ousar algo prprio ou novo, que no o

    2 HOLANDA, S. B. Em qualquer lugar de prefcio. In: Escritos coligidos. Sa o Paulo, SP : Editora

    Unesp : Editora Fundac ao Perseu Abramo, 2011, p. 28-9.

  • Jurandir Malerba: Atualidade de Srgio Buarque

    4 tenho a altura, ainda mais sombra de Srgio, o maior de nossos historiadores.

    De modo que me soou honesta a proposta de destacar a ascendncia da obra

    buarquena na minha formao, sua pertinncia para a reflexo atual e sugerir um

    possvel caminho de pesquisa a partir de nosso clebre historiador.

    A esse respeito, soar curioso que acabei tendo contato com sua obra muito

    tardiamente. A histria irnica. Na ocasio de seu centenrio de nascimento, um

    dos mais sofisticados crticos literrios brasileiros, Alcir Pcora, chamava a ateno

    para o fato de que, se hoje Srgio unanimemente reconhecido como um dos

    maiores nomes das Cincias Humanas no Brasil, h bem pouco tempo no era

    assim.

    Nos anos 70, [dizia Alcir] era comum apresentarem-se graves

    reparos a suas ideias, sintetizadas preferencialmente no tpico da

    cordialidade brasileira. Elas tanto mascariam, internamente, as

    contradies dos interesses de classes, quanto, externamente, a

    ruptura radical entre o Brasil e a antiga metrpole portuguesa, na

    passagem da condio de colnia para a de pas independente. A

    naturalidade com que Srgio empregava o hbrido luso-brasileiro era

    uma das evidncias apresentadas do carter ideolgico conservador

    de suas formulaes. E se ele nunca chegou a ser despachado para

    as mesmas fossas infernais em que ardia Gilberto Freyre,

    desqualificado como idelogo do conservadorismo oligrquico, no

    ser exagero afirmar que andou pelas redondezas.3

    Pois o mesmo Srgio, hoje, parece alado a um panteo de intocveis. Por qu?

    O que teria mudado? Alcir arrisca duas hipteses, uma boa (a qualidade e o rigor

    de sua pesquisa, de suas ideias, de sua produo) e outra nem tanto (a atribuio

    sua figura da funo de auctoritas, como ttulo legitimador de discursos, a que

    passaria a ter direito por simples envelhecimento e institucionalizao de suas

    ideias). Espero que meu discurso no seja jamais lido dessa forma, panegrica,

    3 PCORA, Alcir. A importncia de ser prudente. Caderno Mais! Folha de So Paulo, 23/06/2002.

  • Jurandir Malerba: Atualidade de Srgio Buarque

    5 nem que a vinculao de seu nome a esta ctedra opere no sentido criticado por

    Alcir, ele, Srgio, to avesso organismos oficiais e discursos institucionalizados.

    Mas fato que ainda nos anos 1980, pela poca de minha graduao, partia de

    boa poro de meus professores uma espcie de interdio velada quele

    historiador. Em dois ou trs qualificativos supostamente comprometedores,

    muitos de meus mestres (claro que nem todos!), carregados de militante zelo e

    avanada miopia, desqualificavam a obra daquele velho historiador por

    demasiado liberal, de direita, weberiano, burgus, positivista,

    conservador reacionrio at. Interessa-se por minudncias cotidianas, no

    pelas anlises grandiloquentes das estruturas e superestruturas que tanto

    fascinavam os marxistas da vulgata. No era preciso ou poderia ser mesmo

    perigoso ler aquele suposto idelogo da burguesia brasileira. Compensava-se a

    bibliografia com fartura de Caio Prado Jr., Nelson Werneck Sodr, Guerreiro

    Ramos, Jacob Gorender, Ciro Flamarion Cardoso, Fernando Novais e toda estirpe

    de nossos melhores e piores historiadores marxistas de diferentes pocas.

    No preciso ser nenhum observador muito erudito ou atento para se notar o

    que ocorreu para a retomada de Srgio ao menu do dia. A chegada, sempre

    tardia, de algumas perspectivas e alguns tpicos de pesquisa ao Brasil, de

    procedncia indisfaravelmente francesa (mas tambm inglesa) - como

    mentalidades, privacidade, quotidiano, a perspectiva dos debaixo, da histria das

    pessoas comuns -, abriu campo para o resgate da obra de Srgio, que, de resto,

    nunca fora totalmente ofuscada.

    Cumpre ressaltar a impropriedade e mesmo a injustia daquela pecha de

    conservador que certa ala esquerda da historiografia quis lhe atribuir. O grande

    mestre dos estudos historiogrficos no Brasil, Francisco Iglesias, com indisfarvel

    admirao, dizia com muita propriedade que a obra de Srgio:

    (...) nada tem de aristocratizante. Grande parte do perodo por ele

    estudado tem como protagonista o annimo do serto, como se d

    em Mones e outros estudos. Valoriza o negro, o ndio, o

  • Jurandir Malerba: Atualidade de Srgio Buarque

    6 mameluco, que aparecem mais que os senhores. Empenha-se no

    quotidiano, no constitudo por grandes gestos.4

    J em Caminhos e fronteiras:

    O protagonista (...) o povo, a gente annima, sobretudo os ndios

    (...), no os dirigentes (...), destacando [Iglsias] o carter singular da

    obra de Srgio, o menos oficial, o menos elitista, o mais realmente

    popular, sem nunca ter seu autor proclamado tal caracterstica que o

    singulariza na historiografia do pas.5

    Este um dos grandes diferenciais do estilo de Srgio Buarque. Como faz com

    sua arquitetura terica, que segue sub-repticiamente colada narrativa, sem a

    necessidade de alar em bandeira o seu modo de operar intelectual, tambm

    suas crticas sociais e predilees polticas diluem-se no texto, mas sempre ali,

    sem necessidade de qualquer alarde panfletrio. Srgio foi coerente ao longo de

    sua carreira como homem esquerda do espectro poltico, como marcaram

    Antnio Candido e Richard Graham.6 Mas foi revolucionrio, inclusive, em sua

    produo historiogrfica, antecipando-se a seu tempo e lugar, ao escrever no

    Brasil dos anos de 1930, 40 e 50 pginas marcantes de histria social, do

    quotidiano, de cultura material, das mentalidades, que s entrariam em moda

    dcadas depois mesmo nos polos hegemnicos da historiografia ocidental.

    * * *

    4 IGLSIAS, F. Histria e literatura: ensaio para uma histria das ideias no Brasil. So Paulo:

    Perspectiva; Belo Horizonte: Cedeplar, 2009, p. 137

    5 Idem, 147.

    6 MELO E SOUSA, Antonio Candido. A viso poltica de Srgio Buarque de Holanda. In: Srgio

    Buarque de Holanda e o Brasil. SP: Fundao Perseu Abramo, 1998; GRAHAM, R. Dr. Srgio, a

    coerncia do homem e do historiador. In: MONTEIRO, Pedro Meira; EUGNIO, Joo Kennedy,

    Srgio Buarque de Holanda. Perspectivas. Rio de Janeiro/Campinas: Editora Unicamp/EdUerj, 2008,

    p. 103-116.

  • Jurandir Malerba: Atualidade de Srgio Buarque

    7 Como este Srgio historiador de vanguarda se fez? A preocupao de entender o

    Brasil foi compartilhada com seus amigos modernistas desde seus verdes anos,

    na expresso consagrada de Francisco de Assis Barbosa. Sem dvida, sua

    militncia modernista, na contramo do prprio movimento, pode t-lo feito

    interessar-se pela histria e pela histria do Brasil.7 Ali j despontava a

    imaginao do historiador e a verve de intrprete da cultura brasileira. Em 1926,

    j lhe causava espcie como a maioria dos modernistas [dizia Srgio] no

    demonstra um nquel de interesse pelo passado ou pela histria a no ser pela

    face do pitoresco.8 No mesmo ano, no clssico ensaio O lado oposto e outros

    lados, rompeu com os modernistas mais radicais de quem j fora to prximo,

    manifestando-se contra intelectuais, como Mrio e Oswald de Andrade, que se

    dispunham a inventar um novo Brasil a revelia de sua histria.9

    Seu modo de compreender e praticar a histria foram profundamente marcados

    por sua passagem pela Alemanha, em especial por Berlim, nos anos decisivos de

    1929-1930. Essa viagem fez-se divisor de guas em sua formao, a grande

    ruptura quando definitivamente faz a opo pela histria como profisso de f,

    em detrimento da crtica literria, que to genialmente praticara at aquela altura

    e da qual nunca se quitara definitivamente. Maria Odila da Silva Dias lembra

    como

    7 Antonio Arnoni Prado destaca que uma das contribuies mais originais de Srgio crtica

    literria brasileira advem justamente de sua sensibilidade de historiador. Talvez o inverso no seja

    menos verdadeiro: que muito de sua excelncia de historiador veio de seu inigualvel domnio da

    literatura. PRADO. Antonio Arnoni. Crnica, memria e histria na obra de Srgio Buarque de

    Holanda. In: CALDEIRA, S.R.de Castro. Perfis buarqueanos. Ensaios sobre Srgio Buarque de

    Holanda. So Paulo: Fundao Memorial da Amrica Latina/ Imprensa Oficial, 2005, p. 81-92.

    8 HOLANDA, S. B. Path-Baby. Terra roxa e outras terras, 6/7/1926. In: O esprito e a letra. Org.

    Antonio Arnoni Prado. So Paulo: Companhia das Letras, 1996, v. 1, p. 220.

    9 HOLANDA, S. B. O lado oposto e outros lados Revista do Brasil, 15/10/1926, apud O esprito e a

    letra, cit. v. 1, p. 226.

  • Jurandir Malerba: Atualidade de Srgio Buarque

    8 De fundamental importncia foi seu encontro com Friedrich

    Meinecke, que havia muitos anos era professor na Universidade de

    Berlim, num meio cultural conhecido como crculo de Simmel. (...)

    Frequentar suas aulas foi um momento propcio para confirmar

    afinidades h muito presentes em seu horizonte intelectual e

    amadurecer certas tendncias com as quais convivia nas obras de

    Goethe, Schiller, Herder e Dilthey. 10

    Francisco de Assis Barbosa relata a vinda do jovem Srgio, ento correspondente

    dos Dirios Associados de Assis Chateaubriand, aqui tendo vivido a experincia

    efervescente da repblica de Weimar, fundamental em sua formao: com a

    viagem Alemanha [diz Assis Barbosa], encerra-se para Srgio sua etapa de

    mocidade, a de seu aprendizado. Como magistralmente escreveu Francisco

    Iglesias, Srgio voltaria outro de Berlim. 11

    Foi na Alemanha, experimentando ver de longe seu pas e exercitando-se em

    tentar traduzi-lo para estrangeiros, que Srgio comeou a desenhar o projeto de

    Razes do Brasil, seu primeiro livro, editado em 1936, volume inaugural da coleo

    Documentos Brasileiros, dirigida por Gilberto Freyre junto a casa Jos Olympio.12

    Os detalhes so por demais conhecidos. Rascunhou um primeiro calhamao

    10 DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Negao das negaes. In: MONTEIRO, Pedro Meira; EUGNIO,

    Joo Kennedy, Srgio Buarque de Holanda. Perspectivas. Rio de Janeiro/Campinas: Editora

    Unicamp/EdUerj, 2008, p. 318 ss.

    11 BARBOSA, Francisco de Assis. Verdes anos de SBH: ensaio sobre sua formao intelectual at

    Razes do Brasil. In: Srgio Buarque de Holanda: vida e obra. So Paulo: Secretaria de Estado da

    Cultur/USP, 1988, p. 27-54. Tambm Antonio Candido. Introduo. In: Barbosa, Francisco de Assis

    (org.). Razes de Srgio Buarque de Holanda. Rio de Janeiro: Rocco, 1988, p. 119-127. 12 Sobre a importncia da Casa Jose Olympio na vida cultural brasileira dos anos 1920, ver. SOR ,

    Gustavo. Brasilianas: Jos Olympio e a Gnese do Mercado Editorial Brasileiro. So Paulo, Edusp,

    2010; VILLAA, Antnio Carlos. Jos Olympio: o descobridor de escritores. Rio de Janeiro: Thex

    Editora, 2001. ,SILVA, Simone. As rodas literrias nas dcadas de 1920-30: troca e reciprocidade no

    mundo do livro. Rio de Janeiro: Museu Nacional, 2004.

  • Jurandir Malerba: Atualidade de Srgio Buarque

    9 dumas 400 pginas, a que deu o pomposo nome de Teoria da Amrica, nunca

    publicado e de onde se extraiu, com certa maturao, o ensaio seminal Corpo

    e alma do Brasil: ensaio de Psicologia social, publicado na revista Espelho, de

    1935. Era o embrio de Razes, onde j se lanava a clebre tese da cordialidade,

    emprestada a Ribeiro Couto. Em sua maturidade, o consagrado historiador dizia

    no compreender como aquele livro de juventude, que logo ele questionar em

    muitos aspectos (mas que nunca renegou!), pde alcanar maior visibilidade do

    que Viso do paraso, este sim seu livro preferido e superior.13 Mas permito-me

    aqui relativizar a modstia do mestre. Ningum jamais alcanou creio que nem

    alcanar o poder de sntese dessa obra como fez Antnio Cndido, no

    brilhante ensaio de 1967, que se tornou uma sorte de prefcio oficial e clave para

    a leitura de Razes. Quem eu cito:

    No tom geral, [diz Antonio Candido] uma parcimoniosa elegncia,

    um vigor de composio escondido pelo ritmo desocupado e s

    vezes sutilmente digressivo, que faz lembrar um Simmel e nos

    pareceria um corretivo abundncia nacional (...) o seu respaldo

    terico prendia-se nova histria social dos franceses, sociologia

    da cultura dos alemes, a certos elementos de teoria sociolgica e

    etnolgica tambm inditos entre ns. (...) Sobretudo porque seu

    mtodo repousa sobre um jogo de oposies e contrastes, que

    impede o dogmatismo e abre campo para a meditao de tipo

    dialtico. (...). Do ponto de vista poltico, sendo o nosso passado um

    obstculo, a liquidao das razes era um imperativo do

    desenvolvimento histrico.14

    13 Srgio reitera essa posio em vrias entrevistas concedidas, muitas delas reunidas em Srgio

    Buarque de Holanda: encontros. (organizao de Renato Martins). Rio de Janeir, Azougue Editorial,

    2009.

    14 Antonio Candido. O significado de razes do Brasil. In: SBH. Razes do Brasil. 17 ed. RJ: Livraria

    Jos Olympio Editora, 1984, p. XI-XXII.

  • Jurandir Malerba: Atualidade de Srgio Buarque

    10 Iglesias no faz menores vnias obra e seu autor:

    Poucas vezes se escreveu com tanta agudeza e criatividade. A

    histria outra em suas mos. Tanto que difcil classific-lo, pois

    a obra pode ser de histria, sociologia, etnologia, psicologia social.

    Autor sutil, requintado e metafrico, requer muito do leitor e no

    entendido por aqueles que sem hbito de leitura e conhecimento s

    de mnima bibliografia, de textos lineares.15

    * * *

    Pois que tardei para chegar a essa matriz do pensamento social e da

    historiografia brasileira. Isso s me aconteceu l pelas pocas do mestrado, no

    Rio de Janeiro, j pelos fins dos anos 1980, quando, meio que por acaso e por

    contra prpria, tive contato com a obra de Srgio Buarque, comeando pelo

    comeo, com Razes do Brasil. quela altura eu procurava parmetros para

    entender o pensamento jurdico no Brasil do sculo XIX. Por tantos lugares por

    onde passei, tantas obras e autores, entre os quais uns quarenta glosadores do

    Cdigo Criminal do Imprio, de 1830, todos os caminhos me conduziam

    questo da preeminncia da famlia de tipo patriarcal na sociedade brasileira. Dei-

    me conta de que essa tinha sido a grande questo entre os pensadores

    brasileiros entre os anos 1930 e 1950. O patriarcado como chave para o

    entendimento da sociedade brasileira encontra-se em matrizes to diversas

    quanto Oliveira Vianna, Caio Prado Jr, Gilberto Freyre e Srgio Buarque.

    O primeiro, investigando as origens do prestgio e da ascendncia incontestveis

    da "nobreza paulista", asseverava seu fundamento local: "... o domnio rural o

    centro de gravitao do mundo colonial (...). Sobre ele a figura do senhor de

    engenho se ateia, prestigiosa, dominante, fascinadora."16 Tambm para Srgio

    15 IGLSIAS, F. Histria e literatura, p. 138. 16 VIANA, Francisco Jos de Oliveira. Populaes meridionais do Brasil e instituies polticas

    brasileiras. Braslia: Cmara dos Deputados, 1982. p. 84 e ss. Sobre a obra de Oliveira Viana,

  • Jurandir Malerba: Atualidade de Srgio Buarque

    11 Buarque o domnio rural definia-se como elemento celular da vida colonial. Sob a

    mo do proprietrio rural a clula domstica seria praticamente autossuficiente,

    autrquica, carecendo suprir-se de um nmero reduzido de produtos do exterior.

    Esse foi o fundamento do predomnio total do privado sobre o pblico, desde o

    perodo colonial.

    Semelhante forma de organizao econmica, anloga ao ikos grego teorizado

    por Max Weber17, pulverizada em clulas praticamente autnomas, teria atribudo

    amplitude praticamente incontestvel ao poder do patriarca. Srgio Buarque

    conta no nmero daqueles para quem a explicao do poder patriarcal est na

    organizao do grande domnio rural, como se l em passagem clssica de

    Razes:

    Nos domnios rurais o tipo de famlia organizada segundo as

    normas clssicas do velho direito romano-cannico, mantidas na

    Pennsula Ibrica atravs de inmeras geraes, que prevalece como

    base e centro de toda a organizao. Os escravos das plantaes e

    das casas, e no somente os escravos, como os agregados, dilatam o

    crculo familiar e, com ele, a autoridade imensa do pater-famlias.

    Esse ncleo bem caracterstico, em tudo se comporta como seu

    modelo da Antigidade, em que a prpria palavra "famlia", de

    famulus, se acha estreitamente vinculada ideia de escravido, e em

    que mesmo os filhos so apenas os membros livres do vasto corpo,

    inteiramente subordinado ao patriarca, os liberi.18

    BASTOS, Elide Rugai, MORAES, Joo Quartim (orgs.). O pensamento de Oliveira Vianna. Campinas:

    Editora da Unicamp, 1993.

    17 Note-se que a ascendncia do socilogo alemo sobre o pensamento buarqueano no se limita

    aos tipos ideais! Para alm da metodoliga, ela estrutura todo o arcabouo terico do historiador.

    Cf. WEBER, Max. Economia y sociedad : esbozo de sociologa comprensiva. 2 ed. Mxico : Fondo

    de Cultura, 1987, p. 311 ss.

    18. HOLANDA, S. B. de. Razes do Brasil, cit., p. 49. Raimundo Faoro aprofunda a reflexo sobre a

    centralidade da concepo familista-patriarcal na histria do Brasil e, conceitualmente, na obra de

    Srgio Buarque no obstante fazendo ressalva (a afirmao constante no prefcio de Antonio

  • Jurandir Malerba: Atualidade de Srgio Buarque

    12 No foram poucos os autores, de grande nomeada, que, ao analisarem a

    construo do Estado nacional no sculo XIX, enxergaram haver um conflito ou

    um hiato entre sociedade e Estado naquele contexto. Maria Odila da Silva Dias,

    tomando em conta, de um lado, a hipertrofia do Estado imperial e do poder das

    elites dirigentes e, de outro, uma sociedade dividida em pluralismos raciais e

    sociais, afirma a existncia de um profundo abismo entre sociedade e Estado.19

    Essa perspectiva, a rigor, aproxima-se mais da viso de Gilberto Freyre, para quem

    a sociedade dos Sobrados & mocambos assistira emergncia de uma nova

    ordem j burguesa, mas ainda patriarcal, que constitua a segurana da

    sociedade brasileira. Para Freyre, quase num lamento, o processo de civilizao

    operado pelo Estado imperial promove a paulatina desapario da variedade de

    tipos e formas da sociedade colonial, com a imposio de uma nova ordem

    impessoal. Com isso, romper-se-ia a aliana Estado-patriarcado.20

    Candido) de que Srgio jamais afirmou que a ordem poltico-social imperial fosse

    patrimonialista, mas o contrrio: que o patrimonialismo seria ali impossvel como ordem poltica,

    obstado pela ambincia patriarcal, incapaz de escapar ordem privada. Cf. FAORO, Raimundo.

    Srgio Buarque de Holanda: analista das instituies brasileiras. In: A repblica inacabada.

    (organizao Fbio Konder Comparato). So Paulo: Globo, 2007, p. 267-282.

    19 DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Negao das negaes. In: MONTEIRO, Pedro Meira; EUGNIO,

    Joo Kennedy, Srgio Buarque de Holanda. Perspectivas. Rio de Janeiro/Campinas: Editora

    Unicamp/EdUerj, 2008, p. 323 ss

    20 De resto, pressupostos claramente expostos por Srgio no ensaio Sociedade patriarcal,

    includo no livro Tentativas de mitologia: questionando a metodologia freyrena, bebida em

    Simmel, entre forma e contedo, Holanda questiona o postulado freyreano de que a forma

    patriarcal da sociedade brasileira teria sido gerada na rea da cana-de-aucar, sendo

    genuinamente brasileira; ao contrrio, teria vindo acabada do velho mundo, adaptando-se aqui,

    mal ou bem, s circunstncias geogrficas, tnicas, econmicas, prprias das diferentes reas, e

    assumindo uma feio diversa. Cf. HOLANDA, S.B. Tentativas de mitologia. So Paulo: Perspectiva,

    p. 105. Duas instigantes anlises comparativas do peso da matriz patriarcal em Srgio Buarque e

    Gilberto Freyre, com diferentes focos, encontram-se em Jess SOUZA. A modernizao seletiva:

    uma reinterpretao do dilema brasileiro. Braslia, Editora da Universidade de Braslia, 2000 e

    VARGAS, Everton Vieira. O legado do discurso: brasilidade e hispanidade no pensamento social

    brasileiro e latino-americano. Braslia: Fundao Alexandre de Gusmo, 2007.

  • Jurandir Malerba: Atualidade de Srgio Buarque

    13 A chave de Srgio, parece-me, completamente outra. Como apontaram

    inmeros crticos, se manteriam intactas as tenses entre, de um lado, as formas

    de sociabilidade, originadas no seio da famlia patriarcal e marcadas pela

    cordialidade e, de outro, as novas formas prprias da vida citadina, do mundo

    moderno, caracterizadas pela impessoalidade nas relaes e pela definitiva

    separao das esferas pblica e privada. O diagnstico o de que, embora uma

    mudana germinal tenha sido anunciada pela vinda da corte portuguesa para o

    Brasil e, principalmente, pela abolio da escravido (e, sugestivamente, pela

    imigrao em massa), aquelas formas arcaicas, personalistas, ainda permeariam as

    relaes sociais no Brasil, de modo a travar otimistas projetos de reforma. O

    caminho da nossa revoluo seria o da superao do passado ibrico, colonial e

    rural, por meio de uma revoluo nos costumes.

    Pois onde muitos viram um conflito ou um abismo entre sociedade e Estado,

    Sergio Buarque me permitiu ver continuidade, contiguidade, mesmo uma

    homologia estrutural entre as duas formas, a Casa e o Estado, a sociedade civil

    e a poltica, o privado e o pblico. No valer a pena retomar meu estudo juvenil

    aqui.21 Apenas destacaria dois fenmenos que me chamam a ateno. Primeiro, o

    fato de o tema do patriarcalismo, onipresente na primeira metade do sculo XX,

    chave maior para entendimento da sociedade e da histria brasileiras, ter

    praticamente desaparecido da pauta dos historiadores com dignssimas

    excees como a de um Richard Graham, um exemplo por todos. Pergunto-me:

    por qu? Teriam aqueles velhos pensadores errado to grosseiramente em suas

    anlises? No ser o patriarcalismo, para usar a expresso de Freyre (cujo sub-

    ttulo de sua clssica trilogia justamente Introduo histria da sociedade

    patriarcal no Brasil!), no ser o patriarcalismo essa chave importante na anlise

    da histria da formao do Brasil?

    Uma segunda questo que deriva o postulado de que, como prope Jess

    Souza, os conceitos que estruturam o pensamento analtico de Srgio Buarque

    21 A quem suscitar a curiosidade, cf. MALERBA, Jurandir: Os brancos da lei. Liberalismo, escravido

    e mentalidade patriarcal no imprio do Brasil. Maring: Eduem, 1994.

  • Jurandir Malerba: Atualidade de Srgio Buarque

    14 tornaram-se obsoletos para se entender um Brasil que hoje, modernizado, j no

    o mesmo da poca do aparecimento de Razes.22 Trata-se de questo

    justamente pertinente, inclusive para se evitar o pecado da converso de nosso

    autor em auctoritas, como temia Alcir Pcora. Mas, sem pretender resolver a

    questo aqui, creio que a crtica pode ser ao menos atenuada. Se de fato o Brasil

    se modernizou, em muitas frentes, na esfera civil das relaes econmicas e

    mesmo em alguns setores da administrao pblica, acredito, mos dadas com

    Fernand Braudel, que valores e mentalidades demoram mais para se transportar e

    transformar. Como provocao, afirmo que um grosso lastro de cordialidade

    permeia ainda as relaes sociais no Brasil, tanto na esfera privada como na

    pblica. Infelizmente, a prpria universidade d exemplos de sobra disso.

    * * *

    Posso retomar agora a narrao de meu conhecimento tardio de Srgio Buarque.

    Sua obra, tanto pelo que traz de agudez analtica como de teoria, mtodo, estilo

    e erudio, arrebatou-me. Srgio foge de todos os arqutipos em que cabem os

    outros historiadores, eu includo. Ainda recentemente ouvi numa banca de

    qualificao de doutorado, de um colega que parecia ofendido com a boa escrita

    do candidato, que aquilo que se apresentava devia ser um texto tcnico, para ser

    lido por cinco pessoas e no uma narrativa bem tratada, que aspire a sorte de

    ganhar o pblico. Esse colega no deve ter lido Srgio Buarque. Se leu, no

    entendeu. Srgio adquiriu imenso lastro terico, o qual no se alardeava no texto.

    Aquela compartimentao estanque com teoria, mtodo, tcnicas de pesquisa,

    apartados na narrao, no existe em Srgio Buarque. No caso de Razes, por

    exemplo, um crtico notvel observou que Srgio usava uma erudio nunca

    igualada, como tambm uma teoria para compreender o processo. Nesta, pela

    primeira vez, aparecia com fora a moderna cincia social alem, com os tipos

    ideais de Max Weber, as lies de Sombart e de inmeros outros.

    22 Tese lanada em SOUZA, Jess. A modernizao Seletiva: Uma Reinterpretao do Dilema

    Brasileiro. Braslia: EdUnB, 2000 e retomada em outros de seus estudos.

  • Jurandir Malerba: Atualidade de Srgio Buarque

    15 Curiosamente, [escreveu Iglesias] esse homem informadssimo e

    culto no era dado a teorizaes. Em seus livros ou artigos trata de

    assuntos objetivos sem a indefectvel introduo metodolgica to

    comum em cientistas sociais, sobretudo em teses universitrias. (...)

    Srgio usa a teoria de modo funcional, no como anncio, mas

    como instrumento: concludo o texto (...) percebe a sua base

    conceitual que tem formao; percebe-a no resultado, no em

    propostas apenas formuladas e no seguidas, como se d em

    muitos.23

    Maria Odila Dias, talvez forando nas tintas para pintar um Srgio Buarque

    excessivamente hermeneuta, historista, emptico, seguidor de Vico e Dilthey (em

    detrimento da faceta racionalista de seu pensamento, amparada fartamente em

    Simmel e Weber), acerta, contudo, ao localizar sua arquitetura terica bem diluda

    em sua narrativa inigualvel.24 De fato, a fora analtica de Srgio se d em sua

    linguagem. Poucos autores e no s historiadores dominaram to bem a

    prosa quanto ele. Ensinava que o bom historiador tem que ser um bom escritor25

    e no destila da qualquer laivo de pedantismo. questo de mtodo. Ele bem

    sabia que a fora persuasiva do historiador depende em grande parte da

    erudio e do cuidado com o uso da lngua. Seu estilo , por assim dizer, nico

    na historiografia ibrica.

    No que se refere a Razes do Brasil, na trilha de Antonio Candido, bem sugere

    Pedro Meira Monteiro haver ali um jogo de luz e sombra. Diz que a luz se

    infiltra, devagar, num jogo de contrastes, minucioso, numa prosa mais travada

    23 IGLSIAS, F. Histria e literatura, p. 140; 155.

    24 DIAS, Maria Odila da Silva. Negao das negaes, p. 329.

    25 Entrevista a Richard Graham publicada originalmente na HAHR, 1982. In: MARTINS, Renato

    (org). Srgio Buarque de Holanda. Encontros. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009, p. 192.

  • Jurandir Malerba: Atualidade de Srgio Buarque

    16 que a de Freyre, a qual, por sua vez, mais derramada, mais envolvente,

    grandiosa, olorosa at.

    As questes de linguagem, [prope Pedro Meira] desde que se lida

    com ensaios de primeira grandeza, no so secundrias. A prosa de

    SBH, a propsito, bastante mais discreta que a de Freyre. Discreta

    a prosa, mas densa e travada. Sob a aparncia de uma relativa

    soltura, ou at de alguma facilidade na escrita desmentida se

    pensarmos nas inmeras reformulaes do texto h um universo

    tenso, uma malha que expresso mesma de um conflito: o conflito

    entre a ordem da famlia e a ordem da cidade.26

    Srgio traz o conflito para a gramatura do prprio texto, por meio de um jogo de

    oposies ou, lembrando Antonio Candido, por meio de uma admirvel

    metodologia dos contrrios. A observao, por Pedro Meira Monteiro, de que o

    mtodo se flexionou para dentro do texto das mais argutas. No entanto, a mim

    no se afigura que a prosa de SBH seja truncada, travada ou densa. A meus

    ouvidos, soa harmnica, equilibrada, nada faltando ou sobrando no texto.

    Matemtica, se aceitarmos a metfora da beleza transcendente dos nmeros

    perfeitos, embora carregada de paixo e alcanar esse equilbrio entre

    racionalidade e empatia talvez tenha sido a chave do sucesso de sua obra

    historiogrfica. notvel essa qualidade de Srgio Buarque, de acordo com a qual

    o jogo metafrico do estilo, baseado na disposio dos contrastes, faz a vez de

    sua racionalizao metodolgica. No apenas a teoria, slida, est velada, mas o

    prprio mtodo se resolve argumentativamente no plano da operao

    escriturria. A linguagem no uma operao ou fase externa produo

    intelectiva da formulao das questes, da racionalizao da pesquisa e

    tratamento das fontes; ela o momento forte em que toda atividade laboriosa de

    26 MONTEIRO, Pedro Meira. Uma tragdia familiar. In: MONTEIRO, Pedro Meira; EUGNIO, Joo

    Kennedy, Srgio Buarque de Holanda. Perspectivas. Rio de Janeiro/Campinas: Editora

    Unicamp/EdUerj, 2008, p. 352 ss

  • Jurandir Malerba: Atualidade de Srgio Buarque

    17 seu trabalho intelectual ganha corpo e vida. No encontrar teoria, mtodo e

    tcnica em Srgio Buarque de Holanda quem no atentar formalmente sua

    prosa, a seu estilo, a sua prtica narrativa. Francisco Iglsias j havia notado essa

    habilidade em outro texto, um dos picos da histria poltica do Brasil, Do

    imprio a repblica.

    Era um historiador profissional. Entregando-se narrativa, como

    no fizera em outras obras, obtm xito, pois sabe distinguir o mais

    significativo e descrever as situaes essenciais. Senhor de lngua

    admirvel, chega a resultados que outros narradores jamais

    alcanam, pela falta de estilo ou de graa de expresso, como

    comum entre nossos historiadores, raramente dotados de recursos

    literrios.27

    Destaco neste ponto uma das marcas de seu estilo, j notado por muitos, desse

    tipo de natureza mimtica de sua prosa em relao s fontes que manuseia.

    Escreve como que querendo fazer ouvir ao ndio catequizado, ao bandeirante

    mameluco, ao portugus da administrao colonial, ao melodrama do poeta

    rcade ou ao poltico do Imprio. Em Da monarquia repblica patente essa

    qualidade de sua narrativa. Essa marca indelvel de seu estilo de historiador,

    forjada no trabalho intenso de leitura das fontes, em que muitas vezes assimila o

    modo de falar ou escrever de seus personagens, foi tambm captado por Maria

    Odila L. da Silva Dias, no estudo introdutrio ao livro que organizou para a

    coleo Grandes cientistas sociais:

    [Afirma Maria Odila que] A vontade de ser preciso leva-o a

    virtuosismos de erudito prprios de um convvio estreito com fontes

    inditas, que alongam por vezes o texto. [...] a preocupao de

    harmonizar o estilo da narrativa com o linguajar dos testemunhos

    27 IGLSIAS, F. Histria e literatura, p. 155 ss.

  • Jurandir Malerba: Atualidade de Srgio Buarque

    18 consultados, comprazendo-se em absorver termos, musicalidade,

    ritmos de linguagem dos textos da poca.28

    Tal observao j havia sido feita por Manuel Bandeira na crnica Srgio,

    Anticafageste, de 1962, quando dizia o poeta:

    O estilo de Sergio, na sua clareza lgica, foi uma conquista. H hoje

    um certo casticismo na sua prosa, mas no o dos clssicos

    portugueses. Tirou-o, suspeito, das Atas da Cmara da Vila de So

    Paulo, das ordens rgias e dos testamentos quinhentistas.29

    Como muito bem escreveu Francisco Iglsias:

    De fato, percebem-se, na sua prosa de Viso [do paraso], ecos de

    Ferno Lopes e mais cronistas portugueses, como na de mones e

    Caminhos e fronteiras das narrativas sertanejas, feitas pelos

    dedicados ao bandeirismo, mais por seus cronistas que pelos

    prprios, claro, ou nas Atas da Cmara. Mesmo em Razes j se

    podem notar reminiscncias de S de Miranda, de Gil Vicente ou dos

    cancioneiros. S um leitor de alta formao literria pode perceber

    esses momentos. Falta-nos a erudio para captar muitos, claro,

    mas algo pode se notar mesmo por um leitor mediano, como o

    nosso caso (...).30

    28 DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Introduo. In: Srgio Buarque de Holanda. So Paulo: tica,

    1980 (coleo Grandes Cientistas Sociais), p. 43; tambm DIAS, Maria Odila. Estilo e mtodo na

    obra de SBH. In: In: Srgio Buarque de Holanda: vida e obra. So Paulo: Secretaria de Estado da

    Cultur/USP, 1988, p. 73-79.

    29 BANDEIRA Manuel. Crnicas da provncia do Brasil. (organizao Julio Castagnon Guimares).

    So Paulo: Cosac & Naify, 2006. (primeira edio de 1936)

    30 IGLSIAS, F. Histria e literatura, p. 157.

  • Jurandir Malerba: Atualidade de Srgio Buarque

    19 Sentena qual eu s posso fazer coro, por ser este muito mais o meu caso de

    leitor mediano do que o brilhante mestre mineiro.

    * * *

    Vindo a tratar do estilo, falta dizer de sua forma to prpria de expresso, que

    o ensaio. Aqui chego ao ponto onde talvez possa ousar sugerir um caminho de

    pesquisa a desbravar. Se h o consenso de que Srgio praticou o ensaio, at

    onde tenho conhecimento, no h estudo vertical sobre essa modalidade de

    expresso formal, nem para Srgio, nem para toda historiografia brasileira. Maria

    Odila Dias diz com propriedade que, em Razes, Srgio Buarque inaugurou um

    estilo ensastico de expressividade literria essencialmente interpretativo do

    processo de nossas formaes sociais31, a que faz eco Pedro Meira Monteiro ao

    afirmar que O corao dotado de uma fora extraordinria no corpo desse

    ensaio, ou mais propriamente conjunto de ensaios, que Razes do Brasil32; e

    o mestre Iglsias, que diz de Razes: De estrutura magnfica, seus captulos so

    ensaios de anlise do passado e de reflexes sobre o presente.33 Robert Wegner

    diz que Razes do Brasil no deve ser considerado obra historiogrfica no pelo

    que lhe falte, mas pelo que tem a mais. E este a mais faz do livro um ensaio.34

    Sua veia de ensasta pulsa no prprio modo de escrita e permanente reescrita de

    seus textos, a grande maioria submetida ao crivo da crtica e do grande pblico

    nas revistas e jornais de grande circulao, nos quais militou a vida inteira.

    Maturava seu pensamento por meio dessa atividade aberta de produo e

    31 DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Negao das negaes, p. 322.

    32 MONTEIRO, Pedro Meira. Uma tragdia familiar. In: MONTEIRO, Pedro Meira; EUGNIO, Joo

    Kennedy, Srgio Buarque de Holanda. Perspectivas. Rio de Janeiro/Campinas: Editora

    Unicamp/EdUerj, 2008, p. 350.

    33 IGLSIAS, Histria e literatura, p. 136.

    34 WEGNER, Robert. Analises recentes da obra de Srgio Buarque de Holanda. In: Perfis

    buarqueanos. Ensaios sobre Srgio Buarque de Holanda. So Paulo: Fundao Memorial da

    Amrica Latina/ Imprensa Oficial, 2005, p. 97.

  • Jurandir Malerba: Atualidade de Srgio Buarque

    20 debate. Srgio era incansvel, perfeccionista. J comentei como assim se deu na

    produo de Razes, que se rascunhou como Teoria da Amrica em Berlim

    (portanto, 1929-30), depurou-se em Corpo e alma do Brasil (1935), antes ganhar

    forma no livro da coleo Documentos Brasileiros em 1936 - o qual fora

    estruturalmente alterado para a segunda edio de 1947, para responder s

    crticas de Gilberto Freyre e outros interlocutores de peso. Processo semelhante

    marca a produo de Caminhos e fronteiras, de 1957. Para a escrita do primeiro

    captulo desse livro (Veredas do p posto), Srgio aproveitou-se de artigo

    publicado em 1939 na Revista do Brasil, justamente com o ttulo sob o qual

    apareceria o livro dezoito anos mais tarde. Ele mesmo conta no prefcio que

    muitos captulos foram no apenas pensados, mas redigidos ao tempo de

    Mones, de 1945, quando esteve frente de rgos como a Biblioteca Nacional

    do Rio de Janeiro e o Museu Paulista, onde pde conciliar as atividades

    administrativas com a de historiador. Outros captulos tambm tiveram publicao

    em revistas conhecidas ou anais de congressos, antes de aparecerem no livro

    (caso da primeira parte ndios e mamelucos , j publicada nos Anais do

    Museu Paulista, em 1949).35

    Mas no apenas nesse aspecto mais laboral, de entrega a atividade permanente

    de reescrita, como rascunhagem, reescrivinhao, tentativa, ser interessante

    investigar Srgio ensasta. No ser o caso de problematizar aqui do que se trata

    ao se falar de ensaio como diriam os especialistas, qual o referente para essa

    palavra? Com exceo de Northrop Frye 36, quem apresentou "uma das mais

    ambiciosas e originais snteses da problemtica teortica dos gneros literrios",

    j se notou que, afora uns instigantes insights deixados por Adorno em seu

    35 Iglsias salienta que esse fato deve ser realado para mostrar a forma de trabalho e a

    honestidade do autor. IGLSIAS, Histria e literatura, p. 146.

    36 FRYE, Northrop. Anatomia da crtica. Traduo de Pricles Eugnio daSilva Ramos. So Paulo:

    Cultrix, 19...

  • Jurandir Malerba: Atualidade de Srgio Buarque

    21 conhecido O ensaio como forma37, pelo menos a Teoria Literria, at onde me

    leva minha ignorncia, no chegou a dar uma definio precisa do ensaio, pois

    so praticamente inexistentes definies rigorosas sobre esse gnero, que foi

    inventado por um francs, ganhou notoriedade na Inglaterra e foi teorizado pelos

    alemes.38

    Embora carea de definio conceitual rigorosa, talvez porque praticado em

    campos to diversos como a filosofia, a critica literria, a sociologia da cultura e

    mesmo a histria, amplamente sabido que o gnero se alastrou como praga na

    Amrica Latina, particularmente entre finais do sculo XIX e meados do XX,

    embora havendo antecedentes dignos j na prosa colonial e da emancipao39. A

    nuestra Amrica de Mart40, o Ariel de Rod41, Pedro Henrquez Urea e o

    grupo do Ateneo mexicano42, o enciclopedismo ensastico de Alfonso Reyes43, a

    37 ADORNO, T. W. "O ensaio como forma", in Theodor W Adorno. GabrielCohn (ed.). Traduo de

    Flvio R. Kothe So Paulo: tica, 1994.

    38 GUERINI. Andria. A teoria do ensaio: reflexes sobre uma ausncia. Anurio de literatura, v. 8,

    2000, p. 11-27. Tambm SANSEVERINO, Antnio Marcos Vieira. Pequenas notas sobre a escrita do

    ensaio. Histria Unisinos, v. 8, n. 10 , jul.dez 2004, 97-106. ARREDONDO. Maria Soledad. Sobre el

    ensayo e sus antecedentes: El hombre practico, de Francisco Gutirrez de ls Ros. Anuario de la

    Sociedad Espaola de Literatura General y Comparada, N 6-7, 1988 pgs. 167-174; GMEZ

    MARTNEZ, J. L. Teora del Ensayo. Salamanca: Universidad, 1981.

    39 . BOLVAR, Simn: Escritos polticos. Madrid: Alianza Editorial, 1990; BELLO, Andrs: Silvas

    americanas. Barcelona: Sopena, 1978; BELLO, Andrs: Obra literaria. Caracas: Ayacucho, 1985;

    SARMIENTO, Domingo Faustino: Facundo: civilizacin y barbarie. Edicin de Roberto Yahni.

    Madrid: Ctedra, 1990.

    40 MART, Jos: Ensayos y crnicas. Edicin de Jos Olivo Jimnez. Madrid: Ctedra, 2004; MART,

    Jos: Nuestra Amrica. Edicin de Hugo Achgar-Juan Marinello-Cintio Vitier. Caracas: Ayacucho,

    1977.

    41 ROD, Jos Enrique: Ariel. Edicin de Beln Castro. Madrid: Ctedra, 2000.

    42 HENRQUEZ UREA, Pedro: Historia cultural y literaria de la Amrica hispnica. Edicin de

    Vicente Cer-vera Salinas. Madrid: Verbum, 2007; VASCONCELOS, Jos: La raza csmica. Misin de

    la raza iberoamericana. Madrid: Aguilar, 1977.

  • Jurandir Malerba: Atualidade de Srgio Buarque

    22 dialtica da Historia na interpretao da realidade americana nos ensaios de Jos

    Carlos Maritegui44, o ensasmo de Borges45, Arciniegas46, Uslar Pietri47, as eras

    imaginrias de Lezama Lima48, e, adentrando a segunda metade do XX,

    Carpentier, Paz, Zea, Cortzar, Fuentes, Vargas Llosa, Sbato49, entre tantos nomes

    conspcuos que minha falta de conhecimento deixa de fora. A linhagem forte na

    Amrica Latina e quando Machado, Silvio Romero, Manuel Bonfim, Euclides, Paulo

    Prado, Srgio, Freyre, Graciliano escreviam, sabiam-se inseridos num contexto

    cultural muito maior do que os limites do Brasil. Por certo no tenho a pretenso

    de abarcar todo esse universo pelas pernas.50 Interessam-me particularmente, por

    43 REYES, Alfonso: Ensayos sobre la inteligencia americana: antologa de textos filosficos.

    Introduccin de Agapito Maestre. Madrid: Tecnos, 2002; REYES, Alfonso: La experiencia literaria.

    Barcelona: Bruguera, 1986.

    44 MARITEGUI, Jos Carlos: 7 ensayos de interpretacin de la realidad peruana. Prlogo de Anibal

    Quijano. Notas y cronologa de Elizabeth Garrels. Caracas (Venezuela): Biblioteca Ayacucho, 1979.

    45 BORGES, Jorge Luis: Otras inquisiciones. Biblioteca Borges. Madrid: Alianza, 2002; BORGES, Jorge

    Luis: Nueve ensayos dantescos. Biblioteca Borges. Madrid: Alianza, 2006.

    46 ARCINIEGAS, Germn: Amerigo y Nuevo Mundo. Madrid: Alianza Editorial, 1990; ARCINIEGAS,

    Germn: Amrica, tierra firme. Edicin de Pedro Gmez Valderrama y Juan Gustavo Cobo Borda.

    Caracas: Ayacucho, 1990.

    47 USLAR PIETRI, Uslar: Ensayos sobre el nuevo mundo: antologa de textos polticos. Introduccin

    de Agapito Maestre. Madrid: Tecnos, 2002; USLAR PIETRI, Uslar: La otra Amrica. Madrid: Alianza,

    1974.

    48 LEZAMA LIMA, Jos: La expresin americana. Edicin de Irlemar Chiampi. Mxico: F.C.E., 2001.

    49 PAZ, Octavio: El laberinto de la soledad. Edicin de Enrico Mario Sant. Madrid: Ctedra, 2007;

    ZEA, Leopoldo: Discurso desde la marginacin y la barbarie. Barcelona: Anthropos, 1988;

    CORTZAR, Julio: "Teora del tnel", en Obra crtica. Tomo I. Edicin de Sal Yurkievich. Madrid:

    Alfa-guara, 1994; FUENTES, Carlos: En esto creo. Barcelona: Seix Barral, 2002. VARGAS LLOSA,

    Mario: Cartas a un joven novelista. Barcelona: Galaxia Gutenberg-Crculo de Lectores, 2005.

    50 O Prof. Luiz Srgio Duarte da Silva vem desenvolvendo projeto sobre o assunto. Cf. DUARTE DA

    SILVA, Luiz Srgio. Filosofia da Histria e Teoria da Fronteira no Ensaio Americano:

    intercultulturalidade e integrao. Primeiras notas de uma pesquisa em andamento. Mss.

  • Jurandir Malerba: Atualidade de Srgio Buarque

    23 fora do ofcio, aqueles historiadores que expressaram suas ideias pela forma do

    ensaio. Talvez at para buscar uma definio do espectro recoberto por esse vago

    conceito. O que e o que pode a historiografia vertida nessa modalidade de

    escrita. A Srgio desponta como luminar no caso brasileiro. o caminho por

    onde eu pretendo lanar minha bandeira e expandir minhas fronteiras.

    Por sua penetrante anlise da sociedade brasileira no tempo, pela excelncia

    como praticou o ofcio de historiador, por sua integridade tica em pensamento e

    ao, Srgio Buarque h de permanecer vivo e atual.

    Sucesso Ctedra Srgio Buarque de Holanda!

    Muito obrigado.

    Jurandir Malerba

    Berlim, 13 de Abril de 2012.