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REVISTA DA FACOM-UFBA. ANO IV, N. 5. SALVADOR, OUTONO 2009 07 NADA SERÁ COMO ANTES 12 BANCO IMOBILIÁRIO 23 MÚSICA QUE VEM DA ALMA ISSN 1982-2995

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Revista Lupa número 5

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Diagramação:

www.radiofacom.blogspot.comwww.radiofacom.ufba.br

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Lupa é uma publicação da Faculdade de Comunicação (Facom) da Universidade Federal da Bahia (UFBA). ISSN 1982-2995. Turma da Disciplina Temas Especiais em Comunicação 2008.1. Ano IV, Número 5. Salvador, outono 2009. Distribuição Gratuita.

Faculdade de Comunicação da UFBA Rua Barão de Geremoabo, s/n, Ondina, Salvador, Bahia - Brasil. Tel: (71) 3283-6174, 3283-6177 Fax: (71) 3283-6197e-mail: [email protected]: http://revista-lupa.blogspot.comhttp://www.facom.ufba.br/

_ Reitor da UFBA:Prof. Naomar de Almeida Filho_ Diretor da Facom:Prof. Giovandro Ferreira. _ Coordenação Editorial:Profa. Graciela Natansohn (DRT/BA 2702)._ Chefe de Redação: Cadu Oliveira_ Revisor: Cadu Oliveira, Ana Camila_ Monitores da Lupa:Samuel Barros, Marcel Ayres, Tarcízio Silva_ Edição de Fotografia:Labfoto - Prof. José Mamede (editor) _ Projeto Gráfico:Alice Vargas (www.avargas.com.br)

_ Redação: __ Circo Urbano: Camila Kowalski (editora), Antonio Pita, Edna Matos, Samuel Barros, Thiago Pereira__ Prova dos Nove: Amanda Luz (editora), Ive Deonísio, Mayana Mignac__ Meio e Mensagem: Marcel Ayres (editor), Vanderson Almeida, Filipe Costa__ Impressões: Mariele Góes, Caio Sá Telles__ Passepartout: Tarcízio Silva (editor), Ana Camila, Mariana Reis, Sylvio Quadros, Guil-herme Vasconcelos, Julien Jatobá Karl__ Cubo Mágico: Cadu Oliveira (editor)__ Blog: Marcel Ayres, Tarcízio Silva

_Ilustração: Alice Vargas, Aleco, Wellington Marx, Pablo Lucena_Fotografia:Tarcízio Silva (editor), Camila Kowalski, Juliana Souza/Labfoto, Mariana Reis, Diego Mascarenhas, Mariele Góes, Caio Sá Telles_ Direção de Arte e Diagramação:Alice Vargas

_ Impresso em:Gráfica Editora Comercial _ Tiragem:4000 exemplares

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O que entendem os jovens acerca da política? As utopias que deram força às lutas dos anos 60 e 70 mudaram. Contudo, a

presença majoritária de jovens no recente Fórum Social Mundial, em plena Amazônia, demonstra que a despolitização da juventude é mito. _ Não se espantem! As formas, os temas, as preocupações e os relatos políticos são outros. A política hoje é feita também na internet, na música, na ecologia..._ Enquanto isso, em Salvador, a despeito de qualquer opinião cidadã, a velha fome de poder privatiza céu, ar, terra e mar. Nada a ver com ideologias, dizem. É só o poderoso cavalheiro, Dom Dinheiro. _ Nos livros usados no Colégio Militar, a história é contada pelos que ganharam, e a ditadura vira revolução. Trocadilho? As cantigas in-fantis também são transformadas em nome da boa educação. O poder também está nas palavras. Afinal, como diz Humpty Dumpty a Alice (no País das Maravilhas), mais do que saber por que uma palavra significa o que significa, a questão é saber quem manda. E disso os jovens entendem. Por isso, sabem que um outro mundo é possível, desejável, necessário. E é urgente. _ Nesta edição da Lupa conheça, também, as vantagens de ver TV na web; saiba mais sobre duas figuras ascendentes da black music local e confira a beleza da arte que decora nossa última morada. “Todos te odeiam, vou fotografar-te, Morte”. Boa leitura!

... façamos o impossível!Graciela Natansohn

CAPAIlustração de Alice Vargas,

referente a matéria da página 07.

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CARTA DO LEITOR

FALECOM [email protected]

Comentários enviados por e-mail e postados no blog: http://revista-lupa.blogspot.com 11/12/2007 Kátia Borges (Jornalista) disse... Olá, gostaria de agradecer o envio da Lupa 3. A revista está graficamente show, com pautas criativas e bons textos. Parabéns para toda a equipe de criação e edição. E um beijo especial para a professora Graciela.

2008 Vina Torto disse... Oi, tudo bom? Sou Vina, de Aracaju, atualmente morando em Salvador. (...) Bom, li o blog da revista Lupa e amei! é bom saber que tem blogs com bons propósitos em divulgar eventos culturais da cidade. Parabéns.

01/03/2008 05:32 José Andrade disse... Parabéns pela revista!A arte gráfica está muito bem ela-borada e gostei muito dos temas abordados.

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RIO

EDITORIAL03 ... façamos o impossível! Expediente

IMPRESSÕES

18 Ánggelos

CIRCO URBANO

05 Nada será como antes10 Sapateiros12 Banco Imobiliário14 RPG: Rolando os dados

PROVA DOS NOVE

15 Quem conta um conto, muda o ponto (de vista)17 Não Atire o Pau no Gato-to

PASSEPARTOUT23 Música que vem da Alma26 Arte ainda que na Morte29 O Penico é Pop31 Lord Vlad: Minha paixão é o barulho

CUBO MÁGICO33 Bactérias, vírus e outras pestes

MEIO E MENSAGEM

20 Do Controle Remoto ao Mouse22 O jeito é ser Pirata

ILUSTRADO35 Por Pablo Lucena

Foto: DivulgaçãoFoto: Mariele Góes

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Reprodução: Corbis

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Texto Edna Matos e Samuel Barros _ No embalo das comemorações do quadragésimo aniversário dos movimentos estudantis de 1968, o senso comum é tentado a comparar a atividade política da juventude daquela geração com a atual. Com poucas variações, chega-se à conclusão de que os jovens de hoje são apáticos, passivos e despolitizados. Em oposição aos dias atuais, argumenta-se que aquela juventude lutou por mudan-ças sociais, culturais e políticas, revolucionando a moral e os costumes da época.

O tempo passa, a luta muda de formas. Que o diga Jaques Wagner.

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_ Outros, porém, consideram que os tem-pos são outros, os problemas mudaram e conseqüentemente as soluções também. Para o professor e ex-deputado Emiliano José (PT), a forma como a juventude faz política mudou profundamente, fazendo-se necessário entender que a juventude busca mecanismos para estar presente na vida política de forma mais diversificada, e não apenas na ação política direta ou na militância partidária. De certo modo, ati-vidade política está distribuída por todos os campos onde se requer uma atuação cidadã. “Na falta de espaços suficientes nos partidos políticos para a participação ativa, a juventude encontra abrigo para a realização de seus sonhos nas organi-zações não-governamentais (ONG), nos trabalhos voluntários, nos movimentos de massa não-partidários e nos grupos cultu-rais dos mais variados”, esclarece._ Hoje, as lutas se ampliaram e almejam, entre outras coisas, a democracia social, racial, de gênero e o uso racional dos recursos do planeta. Isso tudo em contra-posição à lógica de uma sociedade que va-loriza cada vez mais o capital em função do social. De certo modo, os problemas ficaram mais complexos e dispersos por várias áreas. Tal combinação levou ao esvaziamento dos espaços tradicionais – como partidos, sindicatos e grêmios estudantis, que não conseguiram atender as novas demandas. Camila Carneiro, 18, estudante e militante do movimento de proteção aos animais, defende a impor-tância de organizações da sociedade civil

para “uma coexistência melhor entre os seres humanos”. Ela argumenta que não se deve esperar pelo outro ou pelo Estado, para fazer alguma coisa. “A gente não pode esperar por instituições ou terceiros para tomar atitude”, afirma. _ Para Emiliano José, a atuação políti-ca precisa considerar a nova realidade. “Não dá pra pensar a participação da juventude, hoje, sem pensar, por exemplo, na internet. É preciso compreender as redes, articuladas de variadas maneiras, das quais a juventude participa”, explica. Uma pesquisa realizada em 2005 pelo Instituto Brasileiro de Análise Social e Econômica (Ibase) ajuda a entender melhor a participação da juventude bra-sileira atualmente. A pesquisa constatou que 28,1% dos jovens de 15 a 24 anos participam de alguma atividade em grupo. Neste percentual tem destaque a religião (42,5%), o esporte (32,5%) e a arte e a cultura (26,9%). Fica claro que o movi-mento estudantil não é mais o propulsor dessa juventude, apesar de manter seus organismos de representação.

“Queremos ser ouvidos”

_ Esse foi o mote da campanha do Go-verno para sensibilizar os jovens de 16 e 17 anos a exercer seu direito de voto em 2008. Segundo dados do Tribunal Supe-rior Eleitoral (TSE), o número de registro de títulos entre os jovens nessa faixa etária vem diminuído desde 1989. Nas eleições daquele ano, havia 4 milhões de

eleitores menores de 18 anos. Em 2006, eram pouco mais de 2 milhões._ O descrédito nos políticos, nos parti-dos e nas instituições são os principais argumentos dos jovens para justificar esse desestímulo. “Se não fosse obrigatório, não haveria problema em não votar. Eu sou muito incrédulo em relação a todos os partidos políticos”, comenta o estudante Lucas Menezes, 21, que votou pela pri-meira vez aos 17 anos. Para o estudante Murilo Souza, 19, a política está num momento de estagnação por causa “dos grandes modelos de corrupção que estão sendo revelados. As pessoas que estão no poder são motivadas pela ambição pes-soal, ao invés de um pensamento critico voltado para todo o país”._ Harlen Oliveira Cunha, coordenador nacional da ala universitária da União daJuventude Socialista (UJS), ligada ao

Camila Carneiro

Max Bandeira

Lis Y

Lucas Menezes

Março: No Brasil, o ano começou no dia 20 de março, quando o estu-dante Edson Luís foi assassinado pela polícia, em uma manifestação no restaurante universitário O Calabouço (RJ).

1968Outubro: Ocupação da Rua Maria Antonia - con-flito entre os estudantes da Faculdade de Filosofia da USP e os estudantes da Universidade Macken-zie ligados ao Comando de Caça aos Comunistas (CCC).

Dezembro: 30º Congresso da UNE, em Ibiúna-SP, resultou em mais de 700 estu-dantes presos.

Março: Morre Alexandre Vannucchi Leme, estudan-te de geologia da USP - A tragédia uniu a sociedade civil contra o regime mi-litar e fortaleceu a frente que se formava contra a tortura.

1973Agosto: No auge da Dita-dura Militar, a oposição desencadeou de manei-ra vigorosa a luta pela Anistia Ampla, Geral e Irrestrita.

1979

Eleitores menores de 18 anos

1989: 4 milhões

2006: 2 milhões

Fonte: Tribunal Superior Eleitoral (TSE)

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PC do B, e tesoureiro geral da União Nacional dos Estudantes (UNE), aponta que o problema está na mídia brasileira, que “tenta incutir na cabeça da juventude que política é apenas escândalos que são transmitidos com freqüência nos noticiá-rios”. Segundo o líder estudantil, “a mídia coloca na vala comum todos os partidos e suas lideranças, buscando manter a ju-ventude longe das organizações que mais influenciam nos rumos do país”._ Por outro lado, Alexandre Aleluia, presi-dente da Juventude Democrata da Bahia (DEM-BA) e filho do deputado federal José Carlos Aleluia (DEM-BA), aponta que a culpa está em algumas entidades que passaram “a defender o governo, como a própria UNE”. Para ele, “o jovem está desamparado politicamente. A UNE é inativa, por estar ocupada demais com interesses palacianos”. Harlen Cunha rebate, afirmando que a UNE continua atuante e tem realizado dezenas de ativi-dades e atos em defesa dos interesses da juventude. Segundo ele o que mudou, “é que hoje se vê uma série de avanços,

Fora Collor: Grandes manifestações tomaram as ruas de Salvador em 1992 pelo impeachment do presidente Fernando Collor

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Agosto: Inconforma-das com o aumento nas tarifas de ônibus, milhares de pessoas iniciam um grande quebra-quebra em Salvador com um saldo de três mortos, dezenas de feridos, 10 ônibus incen-diados e 343 depredados.

1981Agosto: “Diretas Já”, movimento de maior participação popular da história do Brasil, propunha elei-ções diretas para Presidente da República. Lideranças estudantis e outros grupos organizados da sociedade civil participaram de comícios com mais de um milhão de pessoas.

1984Novembro: Após anos de hege-monia do grupo carlista, a Bahia elegeu um governador de oposi-ção, Waldir Pires. O governador frustrou os setores populares que lhe deram apoio renuncian-do para concorrer como vice na chapa de Ulisses Guimarães a presidência da República.

1986Março: Promul-gação da Consti-tuição do Brasil que permitia o voto facultativo para jovens de 16 e 17 anos.

1988Novembro: De-pois de 29 anos, o Brasil volta a ter eleição direta para Presidente da República.

1989

Manifestação

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inclusive na área educacional, no entanto todas elas têm mantido a UNE numa postura autônoma e independente diante do governo”.

Militância partidária: O que fazer?

_ Enquanto eleições e candidaturas se su-cedem, surgem posições mais céticas que questionam a legitimidade dos partidos.

“Os partidos seguem a mesma estrutura de exploração de uma sociedade racista e machista”, afirma Lis Y, 22, militante do movimento Pérolas Negras. “Não aceito ser chamada pelo nome que os coloniza-dores me legaram”, afirma. Segundo ela, os partidos não trazem propostas de mu-danças significativas, mas simplesmente buscam se promover dentro de determina-do status político. Luiza Albuquerque, 25,

estudante, completa: “eles (os partidos) dizem ter uma ideologia, mas quando você vai ver na prática não é bem isso que acontece”, diz. _ Para se adaptar às mudanças, os parti-dos políticos brasileiros se esforçam para fortalecer a participação da juventude e renovar seus quadros. Mesmo agremia-ções sem muita tradição com a militância jovem têm essa participação garanti-da nos seus estatutos. Afinal, é uma parcela do eleitorado com grande força de decisão. Os jovens entre 16 e 24 anos representam cerca de 20% do eleitorado, o que corresponde a cerca de 25 milhões de eleitores, segundo o TSE. _ No entanto, os partidos políticos parecem pouco atrativos para os jovens. Dados do TSE mostram que, em todo o Brasil, somente 4,5% do total de eleitores jovens (de 16 a 24 anos) estão filiados a algum partido, sendo que abaixo de 18 anos são apenas 0,02%. No entanto, Max Bandeira, 17, estudante, considera que “nem os jovens, nem os adultos” têm participado da política de modo satisfa-tório. Ele argumenta que o poder sempre foi concentrado nas mãos de poucos, o que reflete um despreparo para exercer a democracia. “Infelizmente, a participa-ção do povo tem se resumido ao voto. A simplesmente colocar o voto na urna. E quando se cobra, o faz para fins pessoais, como se a política pudesse servir a fins meramente pessoais”, critica._ O presidente da Juventude do PSDB-BA, Ruy Bisneto, observa que alguns esforços de conscientização estão sendo bem sucedidos. “Quando os jovens desper-tam para a realidade querem contribuir com o desenvolvimento do seu país”. No entanto, ele faz uma ressalva: “sempre respeitando os mais experientes e dispos-tos a ouvir e aproveitar o que há de bom”. _ De todo modo, conservador ou under-ground, partidário ou não, é na juventude que o sujeito se percebe num mundo, com problemas, idéias e propostas de soluções. A juventude parece ter uma propensão natural a participar, de algum modo, da comunidade, o que invariavelmente é uma atitude política, tanto seja de agrega-ção às instituições já estabelecidas ou de negação. Quem sabe, por isso, seja a juventude o abrigo dos melhores sonhos, os objetivos mais ousados, as perspectivas mais utópicas.

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Setembro: A população pede o impeachment do Presidente Collor. Os protestos tiveram como protagonista a juventu-de, que pintava no rosto “Fora Collor”, em verde e amarelo, e “Impeachment Já” - foi o chamado “Movimento dos caras-pintadas”.

1992Maio: Estudantes e sindicalistas entram em confronto com a policia militar do RJ contra a privatização da Cia.

Abril: Estudan-tes em protesto contra a política educacional do presidente Fer-nando Henrique Cardoso, no Rio de Janeiro, em 1o de abril de 1998.

Maio: Os protestos da UNE, UBES e CUT em prol da cassação do mandato do senador ACM foram violen-tamente reprimidos pela Policia Militar a mando do governador César Borges.

2001Setembro: Revolta do Buzú - protesto dos estudantes de Salvador contra o aumento da passagem dos ônibus. Durante 10 dias a cidade ficou com-pletamente paralisada pelas ações espontâneas que faziam bloqueios simultâneos nas prin-cipais avenidas da cidade.

20031997 1998

Revolta do Buzu: estudantes de Salvador protestaram no Iguatemi e na Praça Municipal contra o aumento da passagem de ônibus em Salvador. Conseguiram!

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Lupa procurou saber de alguns políticos: ao longo de sua trajetória política, mudaram as convicções de juventude?

Antônio Imbassahy e Paulo Souto também foram procurados, mas não se manifestaram até o fechamento desta edição.

Jaques Wagner“A linha de conduta é a mesma, por isso permanecem inalterados os objetivos de justiça social e combate a toda forma de discriminação. O fato de ter vindo para o governo não significa que os objetivos foram abandonados. Se os papéis mu-dam com o tempo, na medida em que se atua como sindicalista, como deputado, ministro ou governador, as convicções se mantêm. Afinal, só vale a pena fazer política se o objetivo é melhorar a socie-dade em que se vive”.

“Os objetivos centrais não mudaram. O que muda são os caminhos, a forma de chegar aos objetivos. Com a maturidade a gente fica mais maleável, mais flexível. Mas as convicções continuam as mes-mas. Hoje, a crise política, a corrupção e a ideia de que todo político é igual têm desestimulado vocações. O que antes era fonte de orgulho, hoje é motivo de ver-gonha. Mas a política ainda é o caminho para a solução dos problemas sociais”.

“Quando a gente realmente acredita e ama uma causa, não se troca de posição como se troca de roupa. Vou envelhecer acreditando que o socialismo é absolu-tamente necessário para a humanização dos povos, contra a naturalização do acúmulo de riqueza por parte de uma minoria e a proliferação da miséria entre a maioria, promovidos pelo capi-talismo. Vou continuar lutando sempre contra o racismo e as desigualdades entre homens e mulheres. Gosto da liberdade, da ideia de dividir as coisas e de respeitar a diversidade que mora nas pessoas”.

“A minha postura não mudou, mas é óbvio que os tempos são outros e exigem respostas novas. Temos que lidar com novos problemas e buscar respostas para questões ligadas ao gênero, a etnia, a preservação do planeta, entre outras lutas. Cada época exige uma forma específica de atuação”.

Lídice da Mata

“O foco de atuação continua. En-tretanto, outras frentes de luta vão se abrindo, porque novas demandas surgem a cada dia e o político tem que acompanhar essas transformações, não pode viver apenas do passado. O passa-do serve como referência para continuar lutando”.

Geddel Vieira Lima

Nelson Pellegrino

Javier Alfaya“Eu já tô com 51 anos e com o passar do tempo eu me faço mais de esquerda. Diferente do que diz nosso presidente, que ninguém deveria ser de esquerda depois dos 60 (risos), eu acho que nós precisamos ser cada vez mais de esquerda. Eu sou cada vez mais de esquerda, cada vez mais defensor do socialismo”.

Olívia Santana

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Texto e Foto Camila Kowalski

Bisneto de um português e uma africana, Seu Milton conta como a profissão atravessou gerações e chegou até as mulheres da família

_ Perguntado sobre o que pensa da sua profissão, Seu Milton responde que lida muito de perto com o acaso. Ele não se refere ao fluxo de clientes – variável de-mais – mas aos próprios produtos com que trabalha: é imprevisível o que vai precisar e, ainda que ele tente estocar os materiais básicos, é impossível tentar adivinhar, por exemplo, que cor de tinta será necessária. No entanto, a quantidade certa de cola e couro é muito mais fácil de imaginar que o vínculo de Seu Milton, um senhor de 62 anos, com a sapataria._ Seu Milton afirma ser descendente de europeus e africanos. O seu bisavô era um sapateiro português e casou-se com uma escrava da África. Os preciosos conheci-mentos foram passados de geração em ge-ração, nem sempre como uma obrigação, mas, na maioria das vezes, como uma garantia de sobrevivência. Seu Milton não tem certeza se quer continuar passando o seu conhecimento adiante, gostaria que as próximas gerações tentassem arranjar outras profissões, mas tampouco quer que o ofício deixe de integrar a família._ O seu pai pensava da mesma maneira. Foi resistente ao fato de o filho tornar-se sapateiro, pois achava que aquilo “não tinha futuro”. No entanto, o que acabou acontecendo foi que os três filhos segui-ram o ofício. Seu Milton trabalha há 20 anos no ramo e seu irmão seguiu os mes-mos passos - inclusive já trabalhou para lojas conhecidas. Mas talvez o caso mais

interessante seja o da sua irmã, Dona Ma-ria Lúcia, uma exímia sapateira. Sócia de Seu Milton, ela não se abala com o fato de ser tão incomum haver uma mulher no seu posto. É extremamente elogiada (dizem que herdou o talento do avô) e, apesar de ter tentado profissões diferentes, há 10 anos resolveu “seguir a tradição”._ Foi o avô de Seu Milton, o Sr. Aloísio Gouveia, quem montou a primeira loja da família, no centro da cidade. Hoje, a loja mudou de lugar, mas continua no mesmo bairro. Apesar de ter saído imune de um

incêndio que atingiu todos os estabeleci-mentos vizinhos (deixando os bombeiros boquiabertos ao ver um local com tantos elementos perecíveis resistir ao fogo), foi uma questão jurídica que mudou o endereço do negócio de Seu Milton. Como aquele imóvel não era da família, após o incêndio o proprietário apareceu para tomá-lo. Desavisado, apesar de estar há mais de 15 anos no local, Seu Milton não havia feito o pedido de usocapião, o que o deixava sem direitos. De qualquer forma, levou o assunto à Justiça. Ao final do pro-cesso, recebeu apenas dois mil reais, nem perto do que precisava para abrir outro negócio. Um empréstimo e muita paciên-cia foram o que precisou para montar seu atual estabelecimento._ A história de Seu Milton é feita de altos e baixos, como a de qualquer brasileiro, especialista em lidar com essa incons-tância e, até, fazer dela um motivo de alegria. Aprendeu desde criança. Quando faltava pão na sua casa ia com o pai e os irmãos para a rua tirar fruta-pão das árvores da cidade, para o jantar. Nada é um problema grande demais que não possa ser vencido, pensa ele. E essa calma e simpatia é que lhe trazem clientes. “Muitas empresas gastam milhões com propagandas e publicidade. Eu uso o marketing pessoal”, conta. E o Seu Mil-ton o usa em vários sentidos. _ A sua apertada sala de trabalho, que divide com a irmã, oferece variadas opções de passatempo aos clientes, como uma espécie de sala-de-espera-de-consul-tório-médico. Em baús pendurados pela parede ou sobre alguma prateleira estão revistas, mensagens religiosas, espelhos, um quadro, calendários e até um aquário. Também um laptop faz parte do seu escri-tório. Com seu jeito humilde, porém sábio, e seu surpreendente vocabulário, Seu Mil-ton afirma que pretende informatizar o

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A classe dos sapateiros já gerou greves e já foi uma das mais engajadas em movimentos políticos. Figuras politicamente notáveis já foram influenciadas por membros desta classe e muitos se destacaram, como os famosos Sacco e Vanzet-ti. O episódio virou filme: Sacco e Vanzetti, de Umberto Marino, Itália, 1972.

Na Bahia, a classe dos sapateiros já participou de importantes movimentos po-pulares. A Conjuração Baiana, por exemplo, teve forte apoio dos sapateiros, que foram duramente reprimidos.

Classe dos Sapateiros

negócio e crê que a tecnologia, em breve, estará incorporada a todas as atividades, até as mais simples ou tradicionais._ A verdade é que uma forte crise abala o ramo de conserto de sapatos. O boom da indústria calçadista barateou bastante o produto, o que leva muitas pessoas a preferirem comprar um novo sapato em vez de consertar o antigo. Além disso, jus-tamente pela perda de clientes (e, diga-se de passagem, de espaço, uma vez que as banquinhas desses trabalhadores tornam-se cada vez menores e cada vez mais espremidas nas calçadas de Salvador), a profissão vem sendo desvalorizada._ Mas nada disso abala a vocação dos irmãos Milton e Maria Lúcia para tratar de seus sapatos. Os dois analisam cuida-dosamente cada peça; pintam, colam e moldam com carinho os calçados. A cada par que põem nas mãos, enxergam muito além da funcionalidade – cada sapato deve ser tratado com tanta delicadeza quanto se trataria um paciente, com um conhecimento herdado de terras e tempos longínquos.

A maioria dos sapatos levados para conserto à loja de Seu Milton jamais são recolhidos pelos donos

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_ Quem joga esse jogo? Cons-trutoras, imobiliárias, Prefeitu-ra... quem fica de fora? _ Não há um só semáforo em Salvador que não esteja ocupa-do por panfleteiros ávidos por entregar a maior quantidade de anúncios imobiliários possível. Da orla à Avenida Paralela, sem esquecer também a Pitu-ba, o Imbuí e as já saturadas Vitória e Barra, Salvador é hoje uma grande feira imobiliária com empreendimentos de todos os perfis, para um só gosto: o dos compradores endinheira-dos. As novidades do mercado, cada uma com mais atrativos e diferenciais que a outra, custam entre R$ 250 mil e R$ 1 milhão, em média._ Todo este boom do merca-do tem várias explicações: a ampliação do financiamento de imóveis, a concessão de diversos incentivos fiscais aos materiais de construção. Mas esta receita tem mais um ingrediente: o Plano Diretor de Desenvolvimento Urba-no, o PDDU, instrumento de regulamentações técnicas da Prefeitura de Salvador para or-denar a ocupação e o desenvol-vimento da cidade num prazo de oito anos. Por definição, o plano deveria priorizar a justiça social, garantindo o direito de todos os cidadãos a uma cidade sustentável – com saneamento, segurança, moradia e infra-estrutura de serviços. Mas, ao que parece, a cidade susten-tável descrita pelo PDDU tem outra conotação...

Instruções

Sérgio Bulcão (Diretor da União Por Moradia

Popular - UMP)“O PDDU contempla as expectativas

do mercado e não prevê o desenvolvi-mento de uma política de habitação. Isto é

segregação. O plano é responsável pela conti-nuação da política do salve-se quem puder”

Luiz Antonio (Prof. do Curso de Urbanismo da Uneb) “O PDDU é um plano de obras para o mercado imobiliário. Seus interesses prevaleceram sobre o interesse público, e o Plano indica uma segregação pla-nejada da população”

Íris Moreira (Juíza estadual) “Apesar das muitas opções, preferimos não comprar imóveis agora para esperar os lança-mentos na Orla. Além de uma boa opção de moradia será também um investimento”

Em 2001, a quantidade total de unidades habi-tacionais voltadas para a população com renda superior a 20 salários mínimos já seria sufi-ciente para atender ao crescimento desta faixa da população por um período de 15 anos.

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Joilda Pinto (Empregada Doméstica) “Pra quem vive com um salário, não dá pra querer muito não. Nosso luxo é ter um teto seguro pra dormir, sem risco de a chuva fazer desabar tudo”

José Azevedo Filho (Diretor de Habitação da Ademi) ”A expectativa de implantação do PDDU impulsionou o processo de lote-amento da Av. Paralela, e apresentou às imobiliárias uma nova perspectiva sobre a Orla”

O mercado imobiliário

em Salvador cresceu

63% em 2007. No total,

foram comercializadas

cerca de 6 mil unida-

des habitacionais, das

quais 50% custavam,

em média, R$ 125 mil,

e 30% delas, acima de

R$250 mil.

Para as famílias com

renda de até 3 salários

mínimos, a Caixa Eco-

nômica Federal estima

que, em 2007, foram en-

tregues 2,4 mil unidades

habitacionais em bairros

como Sussuarana, Estra-

da Velha do Aeroporto,

Mata Escura e Jardim

das Margaridas.

462 mil residências da capital baiana, de um total de 770 mil, estão situadas em áreas de risco ou sem infra-es-trutura básica.

O déficit habitacional de

Salvador é de 100 mil

unidades, o quinto maior

do país. Por outro lado,

a cidade possui cerca de

110 mil domicílios não

ocupados, o equivalen-

te a 15% do total de

moradias.

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_ O RPG (do termo inglês Role-Playing Game, ou jogo de interpretação de personagens), é um jogo de estratégia e imaginação em que os jogadores criam e interpretam personagens em diferentes mundos, vivendo aventuras e superando desafios de acordo com as regras dispos-tas em cada sistema. O jogo é geralmente composto por um livro de regras, um conjunto de dados e a criatividade de cada um dos jogadores para construir e inter-pretar as ações de seus personagens. _ A criação dos personagens de RPG ba-seia-se, em grande parte, na criatividade do jogador. Segundo Rafael Boaventura, jogador de RPG há 14 anos, um persona-gem de uma campanha de RPG “precisa de traços característicos, isto é, ele deve ter uma história e uma personalidade, com ‘brilho’”. Boa Morte, como também é conhecido por “rpgistas” de Salvador, conta que a criação dos cenários e das campanhas é um pouco mais complexa e detalhista. A criação de um novo universo requer uma pesquisa, pois tudo o que estiver presente no novo cenário será passível de um processo de interação com os jogadores. “Deve-se questionar primei-ramente qual o estilo que será narrado para os jogadores. Ficção, espionagem, drama, aventura... Onde? Como? Enfim, a criação de um cenário requer uma análise do local em que a aventura será realizada e um questionamento de como se pode encaixar o estilo escolhido no cenário e época selecionada”, diz._ Boa Morte é escritor e cursa letras na Universidade Federal da Bahia. Para ele, construir personagens, tramas, cenários e enredos é como organizar os capítulos de um livro, com a diferença de que, no RPG,

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Texto Thiago Pereira

os personagens estão “vivos” e você não os controla.

RPG em Salvador

_ Zelândio Almeida Santos Jr., de 28 anos, começou a jogar faz quinze anos, quando era adolescente. Pouco tempo depois, Zelândio ou Ceoris, como também é conhecido, viria a se tornar o proprie-tário da Saga, até hoje uma das poucas lojas especializadas na venda de produtos de RPG de toda a Salvador. _ Fazer de um objeto de diversão uma forma de trabalho é ótimo negócio, apesar da parte divertida não estar mais presente como antes, opina o empresário. Administrar uma loja especializada em RPG em Salvador é complicado por conta dos atrasos no recebimento dos produtos que, em alguns casos, sequer são produzi-dos no Brasil, motivo, aliás, que deter-minou o fechamento do espaço físico da loja, que hoje opera exclusivamente pela internet. Contudo o empresário revela que, apesar dos problemas administrati-vos, Salvador é um mercado em franca expansão e que trabalhar com um hobby é gratificante e, em certas ocasiões, bastante estimulante. _ Há também quem se dedique a criar cenários baseados na geografia e mani-festações culturais da cidade, como Orly Antonio Carvalho Jr., também conhecido como Junior Von Drake, que atualmen-te desenvolve uma campanha de RPG baseada no lado místico e lendário da cidade de Salvador. Von Drake é respon-sável pela organização dos orkontros (encontros de membros de comunidades do Orkut) realizados periodicamente

pela comunidade de jogadores de RPG da cidade.

Preconceito contra o RPG

_ O RPG é comumente descrito, de forma errônea, como um jogo que estimula a violência, influencia atos de vandalismo e, até mesmo, como uma representação de práticas diabólicas e de magia negra. Isto deriva de dados imprecisos passados pelos meios de comunicação, como no caso em que uma adolescente foi assassinada na região de Ouro Preto, Minas Gerais. Na ocasião, os policiais investigaram os hotéis em que a jovem havia se hospedado e encontraram livros de RPG em um dos prédios. O delegado classificou os livros como satanistas e prendeu 4 jogadores, fato que gerou uma grande repercussão midiática na época. Além da prisão dos jogadores, a ação policial resultou em um processo contra as empresas Devir Livra-ria e Daemon Editora, que teve ameaçada a circulação dos livros “Gurps Illuminati”, “Vampiro: a Máscara” e “Demônios: a divina comédia”. Por fim, descobriu-se que o crime não havia sido motivado pelo RPG, mas sim pela ação de um traficante. Entretanto o jogo ficou marcado pela transgressão, tornando-se uma espécie de bode expiatório, aparecendo eventualmen-te em boletins policiais._ O jogo é, na verdade, um instrumento lúdico que estimula a escrita e a ima-ginação dos envolvidos. O RPG é como escrever um livro em que as palavras não dependem exclusivamente de sua vontade. Elas são geradas conforme as situações vivenciadas pelo grupo de jogadores nos mais variados desafios que lhe são propostos.

RPG

_ De acordo com registros oficiais, o RPG nasceu no ano de 1974 com o título Dungeons & Dragons, que posteriormente viria a influenciar a criação do desenho animado Caverna do Dragão. _ No Brasil, o RPG teve público cativo desde o início da década de 80. O primeiro RPG genuinamente brasileiro, chamado Tagmar, é de 1991, inspirado no Senhor dos Anéis, de J.R.R. Tolkien. Um marco para o RPG nativo foi o Defensores de Tó-quio, de 1998. Além de ser inspirado nas animações japonesas que faziam - e ainda fazem - grande sucesso en-tre o público infanto-juvenil, o 3D&T, como ficou popularmente conhecido após sua 3° edição, era barato e muito simples de ser jogado.

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Rolando os dados

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_ “Na noite de 30 de março, seria decidido pelas lideranças democráticas (civis e militares) o início do movimento para o dia seguinte, 31 de março de 1964. (...) Sem precedentes nos anais dos levantes sulamericanos, a Revolução foi levada a efeito, não por extremistas, mas por grupos moderados e respeitadores da lei e da ordem”. É assim que o livro didático História do Brasil – Império e República, conta, hoje, a história do Golpe de 64 aos estudantes do Colégio Militar de Salvador._ Assim como no livro, o calendário do site da escola (ver ao lado) marca o 31 de março como o “Dia da Revolução Democrática de 1964”. Nas salas de aula, expressões como golpe, ditadura, censura ou repressão são evitados pelos professores. “A gente evita porque acaba sendo tendencioso, até mesmo em respeito à farda que vestimos e às víti-mas que houve dentro do sistema militar, que foram mortos também. A gente sabe que foi um movimento em que houve uma radicalização dos dois lados”, explica o Tenente Sérgio Inácio, professor-chefe da Seção de Ensino da escola responsável pela disciplina de História. _ O tenente defende que os professores evitam se posicionar, levantar bandeiras ou “serem panfletários” para que os alunos possam desenvolver uma “consciência crítica, eqüidistante e equilibrada”. “A gente quer que o aluno se posicione e crie, por si só, a sua ideologia, por isso mostramos também o outro lado da moeda”, diz. Ele reconhece que há alunos que esperam estudar o regime militar como em outros colégios, mas que a intenção da escola é mostrar que os fatos históricos não são formados por mocinhos e vilões. “Nós sabemos que a História é formada por seres humanos interagindo, são questões internas e externas que acabam provocando o ‘acontecer histórico’”.

Texto Amanda Luz | Foto Diego Mascarenhas

Estudantes aprendem versão diferente sobre a ditadura militar no Brasil

No calendário do site do Colégio Militar de Salvador de 2009 (www.cms.ensino.eb.br), a data de 31 de março foi atribuída ao Dia da Revolução Democrática de 1964.

Quem conta um contomuda o ponto (de vista)

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faculdade de engenharia”, conta. _ Assim como Michele, outros estudantes passaram pela mesma situação. “Acho que os alunos do Colégio Militar não são formados com um perfil crítico, mas com um perfil para respeitar as hierarquias”, diz Bruno Castro, 22 anos, ex-aluno do Militar. Patrícia dos Santos, 23, que

cursou o Pré-Vestibular no Colégio Mili-tar, aprendeu sobre o regime militar, em grande parte, pela televisão. “Eu aprendi por conta própria, não lembro nada mais detalhado sobre a ditadura na escola, os professores a tratavam bem superficial-mente”, diz. _ Para os movimentos de direitos huma-nos, é papel da escola transmitir a história das lutas e movimentos sociais ocorridos durante a ditadura militar, quando houve a violação desses direitos. “É importante para a consolidação da democracia que tenhamos uma memória viva do que foi a ditadura”, diz Márcia Misi, coordena-dora-executiva da Superintendência de Apoio e Defesa aos Direitos Humanos do Estado da Bahia. “Os valores de direitos humanos precisam ser transmitidos desde a educação básica da pessoa, para que ela seja formada nesse sentido e seja cidadã”, completa. _ Passados 23 anos da redemocratização, o Exército Brasileiro já não possui o poder político de outrora, voltando a cumprir exclusivamente seu papel na defesa das fronteiras nacionais. “O Exército não é uma instituição privada, ele é do Estado brasileiro, que é democrático”, explica o professor Muniz. “Ainda que se aceite que ele faça uma versão da história, isso se torna um desserviço à nação brasileira e ao Estado, do qual ele é parte, quando essa versão interfere na educação de um estudante que depois irá exercer a sua cidadania”.

... isso quer dizer que há outra histó-ria?

_ O antropólogo e professor da UFBA Renato da Silveira, que foi preso três vezes na época da ditadura por questões políticas, acredita que o período não pode ser simplificado ou justificado como na abordagem do Colégio Militar. Segundo ele, a escola apresenta uma versão adoci-cada da realidade. “É uma piada chamar isso de Revolução Democrática”, diz. “Não sou revanchista e acho que se deve virar essa página, mas é preciso que os fatos sejam esclarecidos e desmascarados, porque senão bota no espírito da juven-tude a idéia de que o golpe de Estado é válido em determinadas circunstâncias. E não é, de forma alguma.”_ Para Muniz Ferreira, professor de História Moderna e Contemporânea da UFBA, o livro didático da BIBLIEX Editora “não reflete os anos de pesquisa e reflexão dos historiadores brasileiros, é uma narrativa histórica marginal, é uma história seletiva que mostra só a voz de um dos atores, a voz oficial”, diz.

O que é ditadura, companheiro?

_ A estudante universitária Michele Louvores, 22 anos, só aprendeu que no governo militar houve a supressão de liberdades políticas e individuais quando saiu do Colégio Militar para se matricular em um curso pré-vestibular particular, em 2003. Foi quando percebeu que não havia aprendido na escola o que os colegas vindos de outras instituições de ensino sabiam em muitos detalhes. “Eu passei a correr atrás do prejuízo de tanta coisa, parecia que tinham escondido a verdade de mim enquanto eu estudava limites e derivadas, assunto de primeiro ano da

Por dentro do livro

Confira alguns trechos do livro História do Brasil – Império e República, dos autores Aldo Demerval Rio Branco Fernandes, Maurício de Siqueira Mallet Soares e Neide Annarumma (Biblioteca do Exército Editora – BIBLIEX, Rio de Janeiro. 4ª edição, 2005).“As Forças Armadas, pela solidez de sua organização e por seu espírito democráti-co, haveriam de constituir o maior obstáculo às investidas subversivas”. (página 200, parágrafo 1)“O meio estudantil sempre foi um dos alvos prioritários do Partido Comunista, pois representa um potencial celeiro de líderes”. (página 200, parágrafo 3)“O Brasil permaneceu no rol das democracias, embora as mudanças introduzidas pela Revolução [de 64] na Constituição em vigor aumentassem consideravelmente o Poder Executivo, com prejuízo dos poderes Legislativo e Judiciário”. (página 203, parágrafo 6)“Nos governos militares, em particular na gestão do Presidente Médici, houve a censura dos meios de comunicação e o combate e a eliminação das guerrilhas, urbana e rural, porque a preservação da ordem pública era condição necessária ao progresso do país”. (página 204, parágrafo 2)

Um dos 12 colégios do Sistema Militar do Brasil, o Colégio Militar de Salvador possui 871 alunos, dentre filhos de milita-res e estudantes admitidos após processo seletivo. A Revolução de 64 é parte do conteúdo ensinado para estes alunos, na disciplina de História, na 7ª série do Ensino Fundamental e 3º ano do Ensino Médio, quando há uma preparação para o vestibular.

“Aqui dentro [do Colégio] nós iremos direcionar o assunto de acordo com o po-sicionamento que o Exército tem sobre o Movimento de 64”Coronel Rodrigues, sub-diretor de Ensino do Colégio Militar de Salvador

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_ Uma criança dá uma paulada no gato e, ainda assim, o bichano não morre. Debaixo de uma sacada, o cravo despeda-ça a rosa. Caso não adormeça logo, o boi da cara preta pegará a menina. Você já parou para pensar no conteúdo ameaça-dor das cantigas infantis? _ As crianças aprendem essas canções ainda cedo, ensinadas pela família, antes mesmo de entrarem na escola. As can-tigas de roda, elemento da cultura e do folclore brasileiro, são parte importante do processo de aprendizagem infantil. Elas estimulam as habilidades de racio-cínio, imaginação e coordenação motora, além de desenvolverem noções de ritmo e espaço. _ Aparentemente inocentes, muitas vezes as letras abrigam um conteúdo que incen-tiva o medo e a violência. Mas é claro que, na era do “politicamente correto”, as tra-dicionais cirandas não poderiam ficar de fora. Em 2006, pedagogos criaram ver-sões boazinhas para as cantigas do tempo da vovó. A partir de então, os animais e a natureza são venerados, as personagens são legais e o final é feliz para sempre._ Algumas escolas de Salvador já aderi-ram à moda. A coordenadora de educação infantil Luciane Souza, da Escola Tempo de Criança, defende a metodologia. “’Ati-rei o pau no gato’ é uma violência. Para mim, não maltratar os animais é uma questão de ética que deve ser transmi-tida às crianças”. Segundo Luciane, os alunos notam a diferença entre as versões trazidas de casa e as politicamente

corretas, mas não apresentam resistência em aprender as novas letras. “Talvez isso aconteça porque muitas vezes as crianças menores dão mais atenção à melodia e ao ritmo do que ao conteúdo”._ Para a correção do que soava politica-mente incorreto, em todo o Brasil foram distribuídos CDs e cartilhas educativas com a nova didática. Fernanda Esder, mãe de Lucas, aluno do maternal da Escola Girassol, concorda com a nova política. “Eu recriminava minha mãe quando ela cantava `Boi da cara preta’ para o Lucas. Essa música é assustado-ra”. No entanto, na versão atual o boi continua com a tentativa de aterrorizar as crianças. A cantiga escrita pelos pe-dagogos abandonou o viés racista apenas para incorporar outro preconceito, dessa vez aos nordestinos, representado pelos piauienses. _ Fernanda acredita que ofender e incen-tivar o medo não é uma forma de educar. Para ela, as crianças podem acabar adquirindo um trauma que tem grandes possibilidades de repercutir de forma negativa na vida adulta. Já a Dona Chica, aquela que se admirou pelo berro que o gato deu, ficou satisfeita com a segunda versão da sua música. Tanto é que resol-veu nem dar as caras dessa vez.

Um tapinha não dói

_ Há pessoas que acreditam que a paula-da no gatinho não é tão prejudicial assim. Angélica Sampaio, mãe de Gabriel, 7 anos, que estuda na Escola Santa Maria Eufrásia, acha que mudar a letra das can-tigas não faz tanta diferença. De acordo com ela, o mercado de entretenimento direcionado para o público infantil apre-senta produtos muito mais agressivos: “Jogos de videogame como Counter-Stri-ke e até desenhos supostamente inofensi-vos do tipo Tom & Jerry e Pica-pau, sem dúvida alguma, são grandes estímulos à violência”._ Ivan Gordilho é professor de música, dá aulas particulares para jovens e nunca atirou o pau em um gato, apesar de ter cantado zilhões de vezes a canção. Ele de-fende que as letras originais deveriam ser preservadas, pois a alteração nas cantigas causa um empobrecimento cultural. “A idéia de colocar as versões politicamente corretas no currículo oficial das escolas é uma verdadeira tragédia com as cantigas de roda. As canções populares são de domínio público e expressam tradições seculares que funcionam como fonte an-tropológica da época em que surgiram”, pondera o estudioso.

Era uma vez...

_ Como toda a cultura brasileira, as

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Atirei o pau no gatoNão atire o pau no gato-to Porque isso-so não se faz, faz, faz O gatinho-nhô é nosso amigo-go Não devemos, não devemos maltratar os animais Miau!

O cravo brigou com a rosa O cravo ficou doente A rosa foi visitar O cravo teve um desmaio A rosa pôs-se a chorar A rosa deu um remédio O cravo logo sarou O cravo foi levantado A rosa o abraçou

Boi da cara preta Boi, boi, boi Boi do Piauí Pega essa menina Que tem medo de dormir

Texto Mayana Mignac e Ive Deonísio Ilustração Alice Vargas

cantigas infantis receberam um caldeirão de influências. Cânticos portugueses, espanhóis, africanos e indígenas integram a lista. Porém, de geração em geração, as cirandas foram se abrasileirando e hoje são tão nossas como se tivessem sido criadas aqui. _ Independente das divergências ideológi-cas geradas pela mudança das cantigas, as personagens centrais da discussão continuam tocando suas vidas. Depois de uma busca incessante, estouro na conta de telefone e caixa de e-mail abarrota-da, as repórteres obtiveram notícias: o gato se formou em medicina e agora é especialista em ortopedia; a rosa foi tirar merecidas férias em Cancun e nunca mais soube do cravo. E o boi está freqüentando uma escola de boas maneiras em Teresina para redimir-se numa possível terceira versão.

Versões modificadas:

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Ensaio vencedor do 4º. Concurso Fotográfico Lupa/Labfoto.

E se caíssem suas asas? Resta-riam só esses corpos nus, tão

corpos como todos os outros.Mas pregaram-lhes asas nas costas, para que lembrassem que são divinos. Anjos vivem sozinhos no etéreo, onde os olhos dos homens não podem chegar. Mas e se caís-sem suas asas? Restariam só esses corpos nus, tão corpos como todos os outros. Cobrir-se-iam então de pudor?

Anjo, do grego ánggelos, que significa mensageiro. Esta-

belecem a ponte entre as esferas celestiais e o plano mundano. E vagam entre os dois, errantes, sem pertencer realmente a lugar nenhum. Mas e se caíssem suas asas? Restariam apenas esses corpos nus, tão corpos como todos os outros. E nossos olhos humanos lamberiam a carne celeste, tão carne como todas as outras.

Ánggelos

Foto e Texto Caio Sá Telles e Mariele Góes

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_ Imagine a seguinte situação: em viagem ao Egito, entre uma pirâmide e outra, você lembra que hoje irá ao ar o último capítulo da sua novela favorita. E agora, o que fazer? Chorar e lançar a maldição de Tutancâmon sobre o Projac? _ Não é necessário. Durante a sua viagem, você pode ir a uma lan house e escolher uma dessas opções: baixar o capítulo na íntegra, vasculhando na internet e loca-lizando um link para download, assistir a transmissão da emissora ao vivo, em baixa resolução, em uma telinha no seu computador, ou ainda, se estiver sem tem-po, pode optar por assistir um vídeo com o resumo do capítulo no YouTube._ Essa situação hipotética serve para ilustrar apenas algumas das possibilida-des permitidas por um fenômeno que vem se tornando cada vez mais importante e abrangente: a convergência midiática (neste exemplo, entre a TV e a web).

Mundo digital

_ A questão central desse processo de convergência entre os meios está na digi-talização, pois ela permite a transposição de suportes e conteúdos e uma fluidez maior da informação entre os diferentes meios: TV, rádio, Internet, telefonia, etc. “A informação digital pode ser muito compactada, facilmente transformada e recriada”, afirma o professor da Universi-dade Federal da Bahia, Marcos Palacios, pesquisador da área de cibercultura._ Um público cada vez maior vem desco-brindo e tomando gosto por algumas das novidades surgidas a partir desse fenôme-no, dentre elas uma nova maneira de se assistir televisão: pela Internet._ “Eu acho fantástico isso tudo. Se você perde um programa num dia, no dia se-guinte você assiste ele no YouTube. Assim eu não perco nada da programação e o melhor de tudo é que é de graça”, afirma Danilo Bonfim Faria, 28, auxiliar adminis-trativo._ Toda semana Daniel costuma baixar da Internet filmes e seriados. Assim como muitos internautas, deixou de usar parte de seu tempo livre - antes gasto na frente da TV tradicional - para migrar para as TVs on-line, aquelas que transmitem a sua programação via Internet. Para isso ele recomenda o Mega Cubo (uma das opções

de aplicativos para ver TV no computador, disponível em www.megacubo.net/paco-tes). “O bom é porque é personalizável. Além disso, você pode estar no MSN ou fazendo outra coisa e ninguém te enche o saco pra mudar de canal”, completa._ O estudante Marcelo Vicente Dacól, 21, descobriu a TV na web há aproxima-damente um ano e meio. Fã do basquete norte-americano, ele usa o SopCast (programa de computador que permite localizar canais do mundo todo que trans-mitem a sua programação on-line, veja em www.sopcast.com ) para assistir, ao vivo, os jogos do seu time preferido, o Los Angeles Lakers._ “Eu acho interessantíssimo, já que não posso estar lá no estádio torcendo, pelo menos posso acompanhar em casa e torcer daqui”, afirma. Ele também destaca o seguinte: “É fantástico pessoas com conexão à Internet poderem chegar a vários lugares do mundo através de um ‘clique e um play’, podendo assistir os seus gostos no computador. É ótimo e tem a vantagem de ser gratuito”._ A oferta consideravelmente maior de conteúdo, a interatividade e a personaliza-ção levada ao extremo (pode-se escolher o que e quando ver) são apenas alguns dos

atrativos que a TV na web oferece. Talvez isso explique a sua crescente populari-zação. É claro que há também algumas limitações e desvantagens no consumo de TV pela web (ver box), mas o crescimento da utilização da banda larga com cone-xões mais rápidas e aplicativos específicos para TV no computador, como Mega Cubo, SopCast e Joost (www.joost.com) , prometem minimizar esses problemas.

YouTube, o precursor

_ Criado em fevereiro de 2005 nos Esta-dos Unidos, o YouTube, inaugurou uma nova era no entretenimento pela Internet e foi fundamental para a formação e o crescimento de um público consumidor de produtos televisivos pela Internet. A fórmula da produção em massa e o com-partilhamento fácil de vídeos de todos os tipos produzidos por amadores e profissio-nais fez tanto sucesso que ganhou “filho-tes” em 18 países (incluindo o Brasil) e foi copiado por diversos outros sites, como o Google Videos e o FizTv, do grupo Abril._ Aliás, em se tratando da TV na web, todos os números são gigantescos. São centenas de canais do mundo todo trans-mitindo as suas programações on-line, há

Texto Vanderson Almeida | Ilustração Aleco

Do controle remoto ao mouse

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Vantagens e desvantagens milhões de vídeos produzidos e disponibili-zados pelos usuários em sites que concen-tram, organizam, armazenam e veiculam esses vídeos. Além disso, há toda uma rede de usuários, que foge ao controles de qualquer organismo regulador sobre direi-tos autorais, que disponibilizam links para downloads de filmes, desenhos e seriados pela web. É conteúdo que não acaba mais, difícil de se mensurar. Tanta fartura faz com que o usuário possa montar o seu próprio cardápio televisivo._ Não se sabe ainda onde isso vai parar. A morte da TV diante da emergência da web? Não, dizem os especialistas. A apro-ximação e a apropriação das ferramentas de uma mídia por outra não representam, necessariamente, uma substituição, mas a potencialização de características que já existiam em meios anteriores, uma com-plementação, diz Palacios. Nesse processo de convergência, a Internet leva certa vantagem. “Ela sempre esteve um pouco à frente porque já surge digital. É uma tecnologia nativa, enquanto as outras são migrantes”, afirma. _ Mas uma coisa é fato, esse fenômeno da convergência entre os meios vem provocando verdadeiras reviravoltas nas empresas de comunicação, que a fim de acompanhá-lo, têm que repensar e readequar os modelos de negócios, as rotinas de produção, o desenvolvimento e relação entre as linguagens dos diferentes meios e também as alterações na lógica de consumo dos conteúdos devido ao sur-gimento de diferentes públicos com novas demandas._ Um novo jeito de ver TV para um novo público, integrado às recentes tecnolo-gias, pode ser só o começo de muita coisa que está por vir.

Sites

Para aproveitar o melhor da TV na web: www.youtube.com.brwww.tvtuga.com www.fiztv.abril.com.brwww.supercanais.comwww.terratv.terra.com.br www.worldtv.comwww.video.google.comwww.tvuol.uol.com.br

Aplicativos

Mega CuboJoostTVSuperSopCast

TV WebBaixa resolução (imagem vísivel numa peque-na janela)

Oferta de conteúdo muito maior e a possibili-dade de escolher a hora de assistir

Grande possibilidade de interação com a pro-gramação e com os outros usuários, ao vivo e/ou por meio de comunidades digitais

Transmissão dos conteúdos via Internet, po-dendo ser do tipo streaming ou ponto-a-ponto (P2P) no caso de vídeos

Requisitos mínimos: microcomputador com acesso à Internet banda larga (preferencial-mente superior a 1Mbps)

Custos do computador e do acesso a Internet

Qualidade de imagem superior

Oferta de conteúdo limitada à programação e condiciona-da à grade da emissora

Interatividade limitada ao uso do controle remoto e à comunicação via e-mail, telefone, cartas, etc.

Transmissão via ondas eletromagnéticas (rádio frequência)

Necessidade apenas do aparelho de televisão

Custos só do aparelho

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O jeito é ser pirata?Burocracia e sistema de privilégios dificultam legalização de pequenas rádios de bairro.

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_ Plataforma é um bairro distante do centro de Salvador e parece estar esqueci-do pelos poderes públicos. Os problemas enfrentados pela população de lá não são poucos: as ruas são mal pavimentadas, a oferta de ônibus é precária e a violên-cia cresce assustadoramente. A beleza natural da Baía de Todos os Santos, que rodeia o bairro, contrasta com o cenário desarmonioso formado por construções inacabadas e amontoadas em barrancos. _ Para denunciar as dificuldades enfren-tadas pela comunidade, a Associação de Moradores de Plataforma (AMPLA) decidiu criar uma rádio há quatro anos, que funcionaria como uma ouvidoria democrática para a difusão de informa-ções diretamente relacionadas ao difícil cotidiano da população. Os idealizadores do projeto só não imaginavam que, para terem um meio de comunicação, percorre-riam um caminho tão árduo e demorado. _ Após firmar contratos de parceria com algumas ONGs estrangeiras, o material necessário para a instalação da rádio foi adquirido. Moradores ofereceram serviços voluntários e um espaço dentro da sede da associação foi especialmente prepa-rado e passou por adequações acústicas. A expectativa entre os moradores era grande. Faltava, no entanto, um item: a liberação da concessão para funciona-mento, que deve ser dada pelo Ministério das Comunicações. _ E aí, neste ponto, instalou-se o proble-ma. Apesar do cumprimento de todos os requisitos exigidos, a autorização para funcionar não chegou e o que parecia simples esbarrou na burocracia. “Funcio-namos durante quase um ano e meio em caráter de experiência, depois paramos e decidimos aguardar a liberação para não nos comprometermos com a fiscalização”, lembra Jenir Souza, uma das fundadoras da associação, referindo-se às penalida-des impostas a quem infringe a lei, que incluem a prisão de todos os envolvidos direta ou indiretamente no projeto e a apreensão dos equipamentos. A espera pela concessão vem custando caro para a comunidade. Os aparelhos, que custaram quase R$ 5 mil, estão guardados, à espera da liberação para funcionamento. _ A despeito da morosidade, a associação alimenta as esperanças de que a rádio, cuja programação era definida em assem-bléias com representantes da comunida-

missões da Farol FM, foram gravadas vinhetas do político. Além de sua esposa, outros familiares participam da direto-ria da emissora. Um dos filhos do casal, Gustavo Sales, possui programa semanal. Zenaide é categórica ao afirmar que a rádio não é de propriedade da família e não é comandada pelo vereador Silvoney Sales. No entanto, quando questionada sobre a participação da população do bairro na elaboração da programação da rádio, ela admite, sem receios: “É uma utopia dizer que os moradores definem isso. Tem um grupo de pessoas da rádio que define e a população escuta e se manifesta aprovando ou não, por telefone e caixa de sugestões”. _ Segundo a lei 9.612, o serviço de ra-diodifusão comunitária deve ser operado em baixa potência e cobertura restrita “destinada ao atendimento de determi-nada comunidade de um bairro e/ou vila”. No entanto, devido ao raio de alcance da Farol FM ser de 25 km, a rádio pode ser ouvida na região do Aeroporto, Imbuí e Bairro da Paz, áreas que não estão mais sob os limites de Mussurunga. A recep-cionista da rádio, Paula Carvalho, admite ter ouvido as transmissões da Farol FM no bairro de Engomadeira, bairro ainda mais distante da região onde a rádio pode operar.

Farinha pouca...

_ Vítimas da lentidão do processo de liberação de concessão, as rádios comu-nitárias que insistem em funcionar sem a autorização do Ministério das Comu-nicações são classificadas como piratas e acabam sendo alvos de campanhas de criminalização realizadas por grandes veículos de comunicação. A Band News FM, pertencente ao Grupo Bandeirantes de Rádio (GBR), passou a capitanear, a partir de 2007, uma intensa campanha publicitária contra as rádios ilegais, du-rante sua programação, voltada para os públicos das classes A e B._ O jornalista Eduardo Barão, chefe de redação da emissora, argumenta que as rádios piratas provocam interferências no sinal daquelas que funcionam legal-mente e até no sistema de comunicação entre pilotos de aeronaves e torres de controle. “O nosso objetivo é alertar as autoridades para que dificultem, fechem o maior número de rádios ilegais possível. Os donos destas rádios aumentam o sinal além do permitido, o que pode ocasionar acidentes”, defende. Quanto à falta de espaço para rádios comunitárias, Barão é enfático, sem aparentar preocupação: “Não há lugar para todos, isto é um fato em qualquer canto do mundo”.

Texto Filipe Costa

de, será aprovada e voltará a funcionar em favor da população do bairro. “Tenho fé de que vai acontecer, é só esperar“, garante Jenir.

A famosa “burrocracia”

_ Desde que a criação de rádios comuni-tárias foi autorizada em 1998, pela lei 9.612, comunidades carentes distribuí-das pelas periferias das grandes cidades brasileiras desenvolvem projetos desta natureza, com o intuito de promover inclusão e mobilização social. A mesma lei que regulamenta impõe regras que dificultam o processo de legalização das pequenas rádios de bairros, que acabam confundidas com aquelas comandadas por traficantes, organizações políticas e reli-giosas, cujos objetivos não coincidem com os defendidos pelas rádios comunitárias. _ De acordo com a legislação, o serviço de radiodifusão sonora comunitário deve ser de baixa potência e com cobertura restri-ta, os veículos devem pertencer somente a associações comunitárias, não podem ter fins lucrativos e é preciso apontar justifi-cativas para a existência da emissora. Os patrocínios só podem ser oferecidos sob a forma de apoio cultural, ou seja, não é permitida a propaganda de produtos, serviços e empresas e a programação deve ser aberta à comunidade. _ Segundo Jonicael Cedraz, coordenador executivo da Associação Baiana de Radio-difusão Comunitária (ABRACO-BA), em Salvador existem somente quatro rádios comunitárias devidamente regularizadas, todas ligadas, de alguma forma, a grupos políticos. Outras 150 estão fechadas ou operam na ilegalidade, enquanto aguar-dam uma resposta do Governo Federal. “A burocracia funciona na base do siste-ma de privilégios: se for de comunidade, surgem mil coisas, mas se for de alguém importante é fácil”, afirma Cedraz. _ Uma das emissoras apontadas pela ABRACO é a Farol FM, que funciona no Centro Comunitário 22 de Dezembro, no bairro de Mussurunga, cujo responsável é o vereador Silvoney Sales (PMDB-BA). Para Zenaide Fernandes, esposa do vere-ador e integrante do conselho diretor da emissora, não houve qualquer interferên-cia política no processo de legalização. “Foram dez anos que a gente lutou junto ao Ministério, a documentação exigida foi extensa. Eu acho que o fato de termos uma associação organizada contribuiu para conseguir a liberação, independente de mandato político”, defende. _ No entanto, é possível perceber no ambiente a presença de fotos e panfletos de divulgação do trabalho do vereador Silvoney Salles. Em um estúdio localizado ao lado daquele de onde partem as trans-

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Música que vem da alma

_ Para um, é música que vem da alma. Para a outra, é um ritmo que leva à transcendência. Tanto Dão como Mariella Santiago são representan-tes baianos da música negra, cada um com seu estilo particular, num misto de irreverência e criatividade que pouco se vê no cenário musical de Salvador. Nesta entrevista, ambos falam sobre como é fazer música negra na Bahia, além dos percalços da vida de um artista que se aventura por estilos musicais que não são muito assediados pela mídia.

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Entrevista a Ana Camila

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A gente já vive tão mal, que eu penso “por que não falar das coisas boas da nossa cultura?”. Os negros também são heróis, também são lindos, não dá pra ficar só se lastimando. O que lhe atrai na idéia de misturar tantos estilos?D - O motivo principal é fugir dos rótulos. Toda vez que você vai tocar em algum lugar, a primeira coisa que

lhe perguntam é “o que você toca?”. Aí eu fico pensando que toco funk, mas nos shows eu toco soul, também toco reggae, blues, jazz... Então eu digo logo: “Ó, eu toco black music!”. Gosto da idéia de passar por vários lugares e diversos estilos para poder fazer uma música negra.

Como começou a sua relação com a música? D - Meus pais ouviam muita música brasileira. Eu fui aprendendo a escutar com eles. Quando era pequeno, curtia muito um som que chama “samba duro”, muito comum na época de São João. Com 13 anos eu comecei a cantar no barzinho do meu amigo, depois fui cantar na escola. Mas quando eu entrei para trabalhar na extinta loja de discos Na Mosca, no Rio Vermelho, aí sim eu pude conhecer música de todos os estilos.

Você tem a pretensão de atingir todos os públicos ou toca pra um público específico? D - O público que eu quero é todo mun-do! Eu gosto de tocar em lugares onde tem gente que nunca ouviu minha mú-sica. Quando o show começa ninguém entende nada, mas depois já está todo mundo dançando. Se apresentar em lugares diferentes é lindo porque você começa recebendo um tratamento frio, mas depois a temperatura aumenta e as pessoas saem de lá super emocionadas (risos).

Ano passado você deu uma entrevista para o blog El Cabong que gerou uma pequena polêmica. Disse que os artis-tas da música que estão nas rádios e nas outras mídias conseguiram chegar lá porque têm dinheiro para pagar jabá. Alguns leitores entenderam que, se você tivesse dinheiro, faria o mesmo.

D - Sim, eu falei sobre ter dinheiro porque, claro, tudo é dinheiro. Mas não falei sobre jabá, falei sobre um cara que tem grana para bancar o seu trabalho. Claro que ele vai entupir a cidade de outdoor, vai fazer show nas melhores casas, vai ter o melhor equipamento de som, porque ele tem grana! E eu não tenho dinheiro pra escolher o local onde vou tocar, imagina para garantir que a minha música toque na rádio... Os caras da rádio nunca lhe dizem qual é o crité-rio de escolha deles. Todo mundo sabe, mas diz que não sabe, então não sou eu que vou entrar nessa polêmica.

Quais os próximos passos da sua carreira?D - Acabo de voltar de um temporada de dois meses nos Estados Unidos, onde fui convidado para dar palestras sobre a música negra brasileira, no estado de Delaware. Toquei com outros músicos, fiz um programa de rádio e conheci muita gente bacana. Quero voltar para lá para mostrar meu disco novo, “Para Embelezar a Noite” que está pra sair. São doze faixas, dez composições mi-nhas, uma do meu irmão, Paulo Costa, e uma releitura de uma música do bloco afro Muzenza, “Brilho e Beleza”. A ideia é conhecer e se fazer conhecer em outros lugares, pra não ficar só aqui em Salvador, senão a gente fica pra titia.

Você se vê como um profissional da música ou tem um plano B pra sua vida?D - Acho que eu tenho que encarar, ganhar dinheiro com música mesmo. Foi o que eu abracei pra mim. Mas acho que pra dar certo só circulando o país, não dá para ficar só aqui. Se eu tiver que sair de Salvador e não voltar, eu não volto, não tem nada que me prenda. Acredito muito na minha forma de tra-balhar, de compor, e é algo que impres-siona a minha alma. Se impressionar a alma dos outros também, melhor ainda.

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Dão

Como é fazer música negra em plena Bahia?Dão - É se sentir em casa, explorar o que já tem dentro de você. Sempre gostei muito de soul, que é a música que vem da alma, mas também de blues, essa música de lamentação que as pessoas adoram até hoje. Tem também o jazz e o funk, que são outros estilos de música negra, e na África tem o afro-beat de Felá Cuti, que também é um estilo com o qual eu trabalho. Aqui em Salvador você tem o samba-reggae, essa coisa com o Olodum, Neguinho do Samba. Eu junto tudo isso no meu tra-balho. Isso é o bacana da música negra, é você ter vários estilos e poder juntar tudo dentro da mesma coisa.

Mas você levanta a bandeira da músi-ca negra?D - Levanto, sim. Eu percebi que estava tocando muito rock nos meus shows. E é muito raro você ver aqui no Brasil uma banda de negros tocando rock também. Numa música só eu misturo samba-re-ggae, rock’n roll e candomblé, e todo mundo sempre se surpreende e gosta muito. Eu gosto das letras de lamento, de resistência, são parte da música ne-gra. Mas também adoro falar das coisas boas de ser negro, acho importante.

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É notável a mistura de influências na sua música, que vão desde uma raiz fortemente negra, afro, passando pelo blues e jazz. Como você traduz essa mistura de estilos?Mariella Santiago - O meu trabalho se resume a tudo o que eu vivi, e aí entra todo o lado africano, do qual eu jamais poderia fugir, porque é aquilo que eu sou. Como em casa a gente ouvia de tudo, eu comecei a me identificar com o jazz, que representava para mim uma escola que sabia lidar muito bem com a improvisação, e era uma forma negra de arte contemporânea. Então eu fui me ligando nos meus afetos, que eram todos de raiz negra. Hoje em dia, depois de tanto tempo misturando essas influên-cias, eu acredito que a minha música é uma síntese de tudo isso.

Como definiria a música de raiz negra?MS - Um traço característico é a presença do ritmo que provoca o corpo, o ritmo como instrumento de transcen-dência. Eu costumo dizer que a minha música não separa ritmo e dança de pensamento, porque existe uma crença no mundo inteiro de que a música que faz dançar não deixa pensar, e a música que faz pensar não é pra dançar. A música pode fazer muito com o nosso corpo, mas se a gente agregasse a isso a idéia poética, filosófica, ela faria muito mais.

Dá pra viver de música em Salvador?MS - Pra mim, hoje, sim. Mas isso é hoje! Se eu tivesse começando hoje, sei que teria bem mais dificuldade, porque eu comecei nos anos 90 e não tinha muita gente fazendo o tipo de música que eu queria fazer. Eu era novidade. Ainda que hoje seja mais fácil de expor o seu trabalho, principalmente com a Internet, as coisas estão cada vez mais padronizadas, e isso é complicado para os novos artistas. Mas apesar da dificul-dade do mercado, eu acho que ele está

melhorando aqui na Bahia. As pessoas estão começando a entender que música alternativa tem público e que é preciso parar de chamá-la assim só porque ela é diferente do que está na mídia.

Seu público é bastante específico?MS - Ao contrário do que possa parecer, meu público não é muito específico. Isso é bom porque assim a gente vai abrindo mais espaço. E eu tô louca pra que che-gue esse dia em que os públicos fiquem cada vez mais misturados. Meu negócio é comunicar, eu estou sempre na esprei-ta de novos modos de combinações de palavras, figurino e som que consigam comunicar melhor a minha música

Você já tocou na Alemanha, Espa-nha e Estados Unidos. Como foi a experiência de tocar pra um público estrangeiro? MS - O público foi incrível. Os alemães são muito comedidos, mas ficam até o final do show e aplaudem muito. Nos Estados Unidos me apresentei com uma orquestra de jazz universitária, e foi espantoso ver o nível de profissionali-zação deles. Lá eu também fiz Live PA com vários DJs, e em 2004 eu fui pra Espanha pra tocar com dois músicos es-panhóis que conheci aqui em Salvador, e acabei voltando pra lá duas vezes com a minha banda em 2008.

O fato de você ser uma mulher negra e baiana lhe ajuda ou atrapalha em alguma coisa em relação ao seu fazer musical?MS - Tudo isso me deu muito substrato para minha arte e eu serei sempre muito agradecida à minha cultura afro-brasi-leira. Mas eu tenho sempre que provar que eu sou mulher, negra, e ainda assim posso fazer música pra dançar e pra pensar. E não é por orgulho ou por me sentir menor que eu preciso me livrar desses preconceitos, mas por ser bem desagradável que as pessoas achem que você é uma coisa quando você é outra.

Nós, mulheres, não somos respeitadas como compositoras e muita gente aqui acha que alguém compõe pra mim, faz os arranjos pra mim, quando sou sempre eu que crio a minha música. Tem muita gente do meu lado, mas por trás de mim, não! (risos)

Quando você está no palco, o impacto visual que você causa é muito forte.Qual é a importância que você dá para o seu figurino e a sua imagem?MS - Meus próprios irmãos me criticam, dizem que eu dou muita importância ao visual, mas eu acho mesmo muito importante, ainda que isso signifique atraso e estresse antes dos shows. Sou eu mesma que faço as roupas, tenho as idéias, corto os fios de plástico, experimento os materiais, faço a roupa

Mariella Santiago

dos meninos da banda. Quando trabalhei com Marcondes Dourado, tive a idéia de vestir uma roupa que deixasse refletir imagens projetadas durante os shows, e dava um efeito massa. Então acabou virando uma marca minha e eu estou sempre mudando os materiais, experi-mentando outros tipos de roupa.

Quais são os próximos passos para a sua carreira? MS - Agora estou morando no Rio, com o meu marido, e terminando o meu curso de Jornalismo lá. Em 2009 eu vou trabalhar com uma produtora carioca, já tenho shows agendados no Rio, mas estou dedicando meu tempo à composi-ção, enquanto finalizo o meu novo disco. Estou tendo problemas com captação de recursos, mas no mundo da arte tudo pode acontecer, né? Finalizei um disco em parceria com o músico indiano Ananda Jyoti, e agora vou me dedicar totalmente ao meu disco, porque todas as escolhas que eu fizer vão refletir no produto final. E, mesmo morando no Rio, voltarei a Salvador cada mês e pretendo realizar temporadas de três dias em casas de shows e teatros da cidade, sempre que possível. A verdade é que não consigo ficar muito tempo longe de casa, e Salvador será sempre minha casa.

Mariella e seu suas roupas de plástico.

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Texto e Foto Mariana Reis

_ Em um cemitério baiano, um grupo de estudantes caminha por entre túmu-los. Todos atentos ao que Arisane diz. Muitos anotam em blocos de papel e outros tiram fotos das sepulturas. Ten-tam absorver ao máximo a experiência de freqüentar um museu a céu aberto. Dinorá Arão, graduando em museolo-gia, é uma das que se encantam com a beleza do anjos e das figuras femininas que representam a morte. Descobriu que o barco pode ser representação da transitoriedade do mundo material, a coluna quebrada é sinal da morte do chefe de uma família, e o girassol, evidência do amor supremo. Viu nos anéis esculpidos nos túmulos um signo de eternidade, uma vez que eles não têm início nem fim. Ela foi uma das pessoas que percebeu na ampulheta a morte do tempo, e nos candelabros a luz divina.

Um tour pelo Campo Santo

_ Arisane de Almeida, 32 anos, ensi-nava história para alunos do ensino fundamental. Conseguiu conciliar ao trabalho uma faculdade de jornalismo. Quando seu filho Fidel nasceu ficou di-fícil administrar o tempo. A graduação em jornalismo virou passado. Hoje faz estágio como guia no cemitério Campo Santo e sonha com seu mestrado em

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história social._ “Quando comecei a trabalhar como guia, um ano atrás, a idéia de trabalhar em um cemitério não era muito convi-dativa. Chegava em casa me sentindo suja e colocava minha roupa pra lavar na mesma hora. Hoje acho o trabalho bem parecido com o de professora, só que muito menos desgastante”, garante Arisane._ O circuito cultural do Campo Santo foi idealizado pelo Provedor da Santa Casa de Misericórdia. A idéia surgiu do fato de que o espaço é rico numa arte singu-lar: a tumulária. Aliado a isso, nasceu também a idéia de inserir nesse con-texto incomum a arte tradicional, vista nos museus convencionais. Um exemplo disso foi o evento Agosto da Fotografia, no ano passado. A exposição das fotos foi organizada no espaço físico que vai da entrada à igreja onde os corpos são encomendados._ Cemitérios como o Père-Lachaise e o Montparnasse, em Paris e o da Recoleta, na Argentina, já são consi-

derados pontos turísticos e os terrenos nas cercanias são muito valorizados. Jane Palma, coordenadora do circui-to e museóloga, garante que a visão construída desse espaço difere muito dos estrangeiros e pontua: “Os cemité-rios mais famosos o são por evidenciar as personalidades lá enterradas. Nós fizemos três abordagens: histórica, artística e social”. _ Após dois anos de pesquisa, foram feitos estudos dos elementos decorativos presentes nos mausoléus, foram reco-nhecidas as influências dos artistas de túmulos e totens. A história das famílias lá sepultadas também foi levantada. O visitante ainda pode conferir alguns dados sobre a construção do Campo Santo em áudio, na área lateral da igre-ja. Toda essa estrutura foi inaugurada em nove de março de 2007, mas poucos ainda conhecem o espaço. _ Existem projetos de palestras sobre “vida após a morte” e sobre a impor-tância da arte tumulária para com-preender a sociedade. Há também um

projeto para incluir uma peça teatral no circuito. Alguns estudantes de muse-ologia, arquitetura, história e belas artes são esperados no Campo Santo, apontado como público alvo por Jane. No entanto, ela completa: “Já estamos trabalhando na divulgação em escolas de 1º e 2º graus, criando com algu-mas agências um roteiro alternativo, mas existem algumas resistências ao espaço”.

Arte dos Mortos

_ A arte tumular surge, em grande par-te, pelo investimento feito pelas famílias influentes. A confecção dos túmulos configurava uma extensão do prestígio dessas famílias, que prestavam sua última homenagem aos parentes faleci-dos usando o máximo do que o dinheiro podia comprar. _ Uma gama de arcanjos, animais, flo-res, caveiras e mausoléus inteiros foram esculpidos nos mais diversos materiais - do mármore ao ouro. Muitos artis-tas europeus também mandavam seus trabalhos em navios para que os ricos honrassem seus mortos._ Quase todo o acervo dessa arte que ornamenta os túmulos se concentra em peças do século passado. Devido às inúmeras mudanças na própria rela-ção do homem com a religião e com a morte, é cada vez mais raro um inves-timento exacerbado em decoração da

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Início do Campo Santo

Em 1549 é fundado pela Irmandade da Santa Casa de Misericórdia da Bahia o Hospital São Cristóvão. Quase 350 anos depois ele recebe o nome de Hospital Santa Izabel. Em 1° de maio de 1844, os que faleciam nessa unidade de saúde deixaram de ser enterrados no Campo da Pólvora para ocupar as sepulturas de outro espaço sob administração da Irmandade: nascia ali o Cemitério do Campo Santo.A construção dos cemitérios foi impulsionada por apelos dos médicos e sani-taristas que reprovavam a falta de higiene existente nos sepultamentos nas igrejas, afinal não havia um sistema de drenagem nos templos religiosos para conter os mosquitos e a propagação de doenças. Na Europa essa transição ocorreu mais rapidamente. No Brasil, a idéia encontrou resistência principal-mente pelas classes dominantes, afinal, na época, quanto mais próximo ao altar o indivíduo era enterrado, maior era seu prestígio. Aceitar que os corpos dos parentes ficassem fora do considerado “solo sagrado” foi um processo que levou certo tempo.

última morada do corpo. Cresce muito a quantidade de pessoas que optam por sepulcros mais simples ou que preferem ser cremadas e ter suas cinzas espalha-das no jardim de casa._ Devido à exposição aos fatores cli-máticos, muitas peças de grande valor artístico encontram-se em extremo desgaste. Infelizmente, pelos sepulcros serem configurados como propriedades privadas, a restauração das peças cabe às famílias dos entes aí enterrados. O cemitério entra em contato com esses familiares, mas nem sempre há retorno._ Um triste exemplo é o da capela góti-ca que participa do roteiro do tour reali-zado no Campo Santo. A obra suntuosa, concebida em mármore de Carrara pelo genovês Ângelo Ortelli em 1844, tem seu interior completamente abando-nado. Cadeiras quebradas, castiçais empoeirados, fotos rasgadas e anjos quebrados são percebidos pelo visitante através da porta entreaberta. Os funcio-nários afirmam não poder entrar para fazer uma limpeza e nunca um familiar esteve lá. A homenagem ficou apenas para os visitantes admirarem.

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_ O banheiro é um santuário. Sentadas em seu trono – revista em punho –, mui-tas pessoas esquecem por um momento as ansiedades e angústias de um mundo que ficou lá fora, externo às paredes ladrilhadas desse espaço individualíssi-mo por exigência. Em tempos de reality show, escutas telefônicas e câmeras de vigilância, a tão sonhada privacidade foi, com o perdão do trocadilho, parar na privada. Hoje restou ao homem resgatá-la no próprio banheiro. _ Mas não se engane. Atribuir tamanha importância ao sanitário é, na escala da história humana, uma novidade absoluta. A evolução pela qual passou o penico é surpreendente. Embora a primeira pri-vada tenha sido inventada na Inglaterra, para uso da rainha Elizabeth I, no século XVI, foi só em 1884, graças ao engenhei-ro inglês George Jennings, que o modelo moderno, com descarga, tomou forma. E daí vem a dúvida: afinal, como a huma-nidade lidou durante séculos com seus dejetos? Simples: com a mesma naturali-dade com que sobreviveu a mais de 1000 anos sem banho.

Cetro, coroa e mau cheiro

_ A transição para a era moderna trouxe consigo o inchaço das cidades sem qualquer melhoria higiênica, gerando catástrofes sanitárias sem precedentes. Mesmo nas principais capitais européias, como Londres e Lisboa, a rua ainda era o principal destino de lixo e dejetos des-pejados pela população. Em Paris, nem a pompa da realeza escapava à podridão. “Em Versalhes não havia banheiros. Era tudo imundo”, destaca o professor de História da Arquitetura Francisco Sena, da Universidade Federal da Bahia. “Os serviçais do rei constantemente tinham que limpar as paredes do palácio, repletas de urina”. De fato, não raro os historia-dores se referem à fama do mau cheiro típico da casa real francesa. As fezes, ali, permaneciam nos corredores por mais de uma semana até serem recolhidas. _ No Brasil, o ancestral asseio dos nativos virou coisa do passado. Em seu lugar, os mais modernos (e que modernos!) hábitos lusitanos trazidos do além-mar: evacuação em cadeiras-retrete móveis e em penicos portáteis. O escravo, como sempre, pagava o pato. “Os dejetos eram recolhidos em tigres (os baldes da época) pelos criados, que, por não existir água encanada ou sistema de esgoto até o sécu-lo XIX, naturalmente acabavam na rua, bem à moda européia”, explica Sena. Em verdade, as casas dispunham de tantos empregados que os ricos não viam por que modernizar a tecnologia de suas instala-ções - embora precárias a ponto de raras residências possuírem água corrente.

Dos modestos quartos de despejo à suntuosidade das suítes atuais, uma

história repleta de altos e baixos revela o que há por

trás da curiosa – e não menos nojenta –

relação do homem com suas “obras”.

Texto Sylvio Quadros

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Tabouret d’aisance – ou “banqueta de alívio” – do século XVIII: instalação sanitária para famílias abastadas

Uma, duas, três suítes

_ Hoje, os anúncios imobiliários espalha-dos por Salvador, por exemplo, chamam atenção para um fenômeno inusitado: o estrondoso boom das suítes. Mais do que um local de satisfação das necessidades básicas, a suíte une a higiene e o embele-zamento. Com foco na classe média, es-sas peças publicitárias passaram a desta-car o diferencial do cômodo com banheiro na escolha pela casa nova. A essa neurose da suíte como ponto de venda, o profes-sor Francisco Sena atribui dois fatores principais: privacidade e modismo. “As pessoas das classes mais elevadas, e em especial os novos-ricos, buscam, mais do que nunca, o seu espaço individual. Essa tendência, aliás, é muito norte-america-na”, diz. “O hábito de higiene nos Estados Unidos, com seus sofisticados produtos de limpeza, ainda é superior ao nosso que, por sua vez, é superior ao europeu. Nós, brasileiros, seguimos o mesmo rumo”. _ De fato, só a partir da segunda metade do século XIX, com o desenvolvimento de uma nova indústria da higiene, em

Na maioria dos con-ventos e monastérios da Europa medieval, banho mesmo só duas vezes ao ano.

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Urinol (1917) – Marcel Duchamp

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Charge de um folhetim do século XIX satiriza o modo como as pessoas se livravam dos dejetos: despejando-os na rua

especial nos Estados Unidos, que a lógica do banho ganhou novo conceito. Além do esgoto e da água encanada, a industrialização e popularização do sabonete, por muito tempo considerado um produto de luxo, ajudaram a varrer as práticas antes enraizadas na Europa. _ É mesmo de surpreender que o antes renegado sanitário, localizado no último cômodo ou exterior às residências – como ainda se vê em alguns lugares do interior do país - te-nha sofrido tamanha reviravolta em seu prestígio. Na definição de Ernesto de Carvalho, arquiteto urbanista e mestre em Concentração de Conservação e Restauro pela UFBA, “as casas mais modernas passaram a adotar os banheiros até como uma questão de status. De forma gradativa, eles se tornaram não somente indispensáveis ao corpo da casa, como um ambiente a ser freqüentado e visto”. E conclui: “A julgar pela exposição dada a esses ambientes, essa moda veio mesmo para ficar”.

Frases de banheiro

“Lá fora você é o valente, aqui você é o cagão”“Olha só a cagada que você está fazendo!”“Aqui termina a obra de um grande cozinheiro”“Nunca mais como cachorro-quente no Barradão”“Não adianta chacoalhar. O último pingo é sempre da cueca”

Os anúncios imobili-ários espalhados por Salvador chamam atenção para um fenômeno inusitado: o estrondoso boom das suítes.

Projeção gráfica de um banheiro contemporâneo: luxo além da conta

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Anúncio de um catálogo britânico de 1894: privada com descarga e decoração condizente com sua qualidade de trono

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_ Gentileza, cordialidade e bom humor.

Essas seriam talvez algumas das últimas

características que o senso comum pode-

ria atribuir a uma figura de longos cabelos

negros, toda vestida de preto e vocalista

de uma banda de metal extremo, bastante

reverenciada no Norte/Nordeste. Mas foi

exatamente esse personagem que encon-

tramos em uma quarta-feira cinzenta e

chuvosa._ A conversa com essa figura do metal

baiano começou quando ainda estávamos

em seu carro, pois ele nos ofereceu carona

até o local da entrevista. Espontâneo

e bem humorado, nosso entrevistado,

enquanto dirigia, falava bem à vontade

de mulheres, como se ainda fosse um

adolescente e como se nem estivéssemos

ali: “O Costa Azul é o bairro que tem

mais mulher gostosa em Salvador!”, disse

com um ar triunfal. Depois de um breve

trajeto, chegamos a seu prédio e fomos ao

playground, onde começamos a ouvir sua

história..._ Vladimir Mendes Senna, mais conhe-

cido como Lord Vlad (pseudônimo em

homenagem ao ocultista britânico Aleister

Crowley, também chamado de Lord Vlad

Luciferian), nasceu em 1976 em Salva-

dor e conheceu o rock’n roll já em 1985,

quando assistiu pela televisão o primeiro

Rock In Rio, o maior festival do gênero

na época. Em 1986, seu cunhado, para

agradá-lo, lhe presenteou com uma cole-

tânea do Black Sabbath. Foi aos 11 anos,

quando ouviu a guitarra distorcida de

Texto Guilherme Vasconcelos e Julien Jatobá Karl

Tony Iommy e os vocais insanos de Ozzy

Osbourne, que começou a sua fascinação

pelo Heavy Metal. “Ouvi Iron Man [um

dos maiores sucessos do Black Sabbath] e

pirei”, conta._ Quando a sua paixão pelo metal se

intensificou, Vlad, como gosta de ser

chamado, teve problemas com a família

e na escola. “Não queria mais estudar,

economizava dinheiro da merenda para

comprar discos”. Apesar do seu fanatismo

pelo gênero, ele não chegou a sofrer muito

preconceito por seu estilo de vida e de se

vestir. Na época, o metal e o hard rock

(vertentes próximas do rock) eram estilos

bem aceitos pela juventude e bastantes

difundidos por bandas como Van Halen,

Scorpions e Iron Maiden. “Qualquer cara

“Metal é pé na porta,

é o tipo de música de

quem é do contra”

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T “Não queria mais estudar, economizava dinheiro da merenda para comprar discos”

da minha faixa etária que ouvia rock’n roll até hoje tem um disco do Iron”, afirma._ Vlad chegou a estudar em um colégio de música por influência da mãe, mas se desencantou com a maneira formal e burocrática através da qual a música era ensinada. Hoje, não sabe arrumar um acorde de piano sequer. “Minha paixão sempre foi o barulho”.

_ Em 1991, com apenas 15 anos e com total apoio do pai (seu “brother”), ele fundou uma banda de rock pesado que hoje é uma das mais reconhecidas no Bra-sil, a Malefactor. Naquele período, quando o cenário do metal era bastante incipiente em todo o país, praticamente não havia shows de metal em Salvador. Sua banda começou tocando em uma garagem e em pouco tempo “a galera começou a vim da periferia para ver a gente tocar”. Com o passar dos anos, a Malefactor foi crescendo, mas só conseguiu gravar seu primeiro CD oito anos após a fundação. Desde então, a banda faz turnês tanto dentro como fora do país, com destaque para a participação no Wacken Open Air, festival alemão de metal considerado o maior evento do estilo no mundo. “A meta de qualquer banda de metal do mundo, até do Iron Maiden, é se apresentar no Wacken”. Atualmente, o grupo já lançou quatro álbuns (Celebrate By The War, The Darkest Throne, Barbarian e Centurian) e acaba de completar 17 anos.

_ Apesar de ser dono de um dos mais vociferantes vocais guturais do país, ele também domina outras técnicas. Para encorpar as composições canta em estilos que lembram o operístico e um lírico mais agudo, além de fazer vocais “limpos” com o timbre normal a que estamos acostu-mados. Vlad é o líder da Malefactor e garimpa grande parte de suas letras de eventos históricos e mitológicos. _ A banda é uma vitória na sua vida, mas

ele nunca conseguiu viver da música. Por isso, não parou de estudar. Formou-se em História (“eu e Bruce Dickinson”) e é afi-cionado pela época medieval. Nas letras de suas músicas fica clara a sua visão de mundo. Para Vladimir, a sociedade é feita principalmente de gente escrota e o metal seria uma forma de externar todo o ódio e a raiva contidos em todo ser humano. “Falar de amor o tempo todo não é Metal. Metal é pé na porta, é o tipo de música de quem é do contra”._ Também pós-graduado em Antropologia e Turismo, ele tira o seu sustento dos ser-viços que presta ao setor estratégico da Secretaria do Turismo. Apesar de ser do contra, Lord Vlad também trabalha e a música para ele não é uma profissão, é um momento de êxtase, de descarregar todas as angústias, frustrações e dificuldades do cotidiano. “Banda, hoje, só nos finais de semana. Você chega em um patamar em que pode impor certas condições de trabalho. Não toco mais em qualquer bi-rosca. Eu posso entender pouco de outras coisas, mas me considero muito bom no que faço”.

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Banda Malefactor

O vocal guturalGutural vem do latim e significa gar-ganta, goela. O vocal gutural utiliza o ar que vem diretamente do estômago e produz um som grave e rouco. É muito utilizado em bandas de metal extremo para expressar sentimentos como ódio, raiva e repulsa.

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DeadlineFilipe Lúcio

_ O tempo não pára, já dizia o Cazuza. Ele não volta para que eu possa matar saudades, impedir desastres, evitar discussões bobas com quem eu gosto, substituir as palavras mal ditas por outras menos agressivas. Ele segue seu curso sem se importar com seus reféns. O tempo gira em torno do seu próprio eixo, encrava indiscretas rugas no rosto e inconvenien-tes fios brancos no cabelo, envelhece sem envelhecer, com uma paciência mórbida (experiência?). Passa veloz, por vezes, e esquece de passar, por outras tantas, impõe prazos, atropela sonhos, corrompe vínculos, viola desejos, despreza vontades, faz do outro irresponsável, complexado, um ser perdido no tempo, anacrônico. Tempo, na moral, dá um tempo, o meu deadline fica para amanhã!

A linguagem é um vírus. W. Burroughs

E se Eva não tivesse comido a maçã?Edna Matos

_ Com certeza estaria num divã conde-nada a uma eternidade de análise. Mas, para sorte do inferno e azar do paraíso, Eva comeu a maçã, descobriu a cobra - ou vice-versa - e, junto com Adão, inventou o pecado. A gula que alimenta a luxúria e descansa na preguiça. Tudo fruto da vaidade. Todos em nome do prazer! O Criador, com inveja, encheu-se de ira e fechou o paraíso. Agora, para visitá-lo, só comprando ingresso na mão dos cambis-tas.

Olá, vovô!Samuel Barros

_ Uma grande catástrofe acabou com os jovens, professores e políticos. O conser-vante de uma pizza congelada provocou uma amnésia geral. Fomos condenados a não saber quem somos. Mas nem tudo é ruim. Pela Internet, uma multinacional vende progresso e desenvolvimento. O Jornal da Record anunciou que a felicida-de também está sendo vendida na entrada de um shopping. Outros dizem que o amor está num 4/4 na Avenida Paralela.

Noite Fria Sumaia Árabe

_ Fazia frio lá fora. Ela podia sentir o vento que contornava os prédios ao redor. O vento entrava pela janela em direção ao seu corpo. Algo a chamava. Desceu as escadas apressada, saiu à rua nos seus trajes de cetim. Nada lhe importava. A rua estava deserta. Lá estava ele, em um beco escuro, imundo, esperando por ela. A respiração dela era ofegante. Sem he-sitar, ele pulou em cima dela e a fez dizer: “Que bom que te achei, meu cachorrinho danado!”.

Ilustração Alice Vargas

Esquecimento Camila Kowalski

_ Havia lido de Mário Quintana que a saudade que dói mais fundo e irremedia-velmente é a que temos de nós mesmos. Assim se sentia. Já não sabia mais quem era. Havia se distanciado tanto do mundo e submergido tanto em abstrações que nada mais fazia sentido. E o que mais doía nisso tudo não era a solidão, não era o desespero da falta de rumo, não era a desilusão da perda de um sonho. Era sentir os amigos repelirem-na como a uma estranha. Aquilo a machucava mais que uma dor física, porque atestava o lento e degradante fim das memórias que a incluíam. Havia deixado de ser. Labirintos

Ana Camila

_ A gente de novo com os pés atados na cama. A gente de novo compartilhando coisas pequenas aqui e ali. A gente de novo querendo ser mais e melhor. A gente de novo olhando pros outros de cima do muro. A gente de novo livre e de pé. A gente de novo se curvando ao passado. A gente de novo celebrando o que vem. A gente de novo abrindo os braços. A gente de novo dizendo adeus.

ReconsideraçõesSylvio Quadros

_ Cama: veículo utilizado pra entrar e sair deste mundo. Filho: efeito secundário de uma relação sexual. Guardador de carros: proprietário informal da rua. Vidente: vendedor de ilusões que joga búzios. Deputado estadual: vendedor de ilusões com salário mais alto que de um vidente. Deputado federal: vendedor de ilusões com salário mais alto que de um deputado estadual. Presidente da República: tarólo-go de dezenove dedos. Prova de semiótica: nem os búzios explicam!

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O AutocríticaRafael Mello

_ Qualquer aspirante a jornalista, quando sonha em escrever, sonha alto. Sonha com a fama e a repercussão. Com o respeito e o reconhecimento. Quando se depara na faculdade, no entanto, com a oportu-nidade de preencher 600 caracteres de uma revista de 5 mil exemplares com o que achar melhor (!!!) – opinião singular e conclusiva, crítica instigante e desa-fiadora ou qualquer junção de palavras que pretenda causar – ele mostra porque ainda é apenas mais um aspirante a jor-nalista. Escreve abstrações sem propósito nem tamanho, mais parece o periódico de poesia do meu antigo colégio.

Cof, cof, cofVanderson Almeida

_ Tosse, nariz entupido, corisa e febre.Dor de garganta, sono, cansaço.Maldita bactéria! Como pode um ser tão minúsculo causar tanto estrago?Médico, consulta e atestado.Amoxilina, Benzetacil, Penicilina.Rá-tá-tá! Morra, desgraçada! Hahahaha.Ela, estrategicamente, vai embora.Mas, antes de se retirar, avisa: “Você vai ver, vou chamar minha prima!”.Anos mais tarde, morro de infecção hospi-talar no HGE.Não entendo, era um procedimento simples...Escuto, então, uma risadinha lá longe:“Quem ri por último, ri melhor... hihihi”

CasmurraAmanda Luz

_ Saiu do sebo verde-e-roxo com duas aquisições e entrou no ônibus. Folheava os novos livros quando pigarrearam ao seu lado. O passageiro vizinho não conteve a observação: “Esse livro é maravilhoso, você vai adorar”. “Ah, legal”, respondeu e se virou para a janela. “Você faz ciências políticas?”, o desconhecido continuou. Ela balançou a cabeça negativamente, pediu licença e colocou os fones de ouvido. Bater papo no ônibus não dá, nem mesmo sobre livros. Ela nunca apelidaria Dom Casmurro assim por ele não querer con-versar no trem, definitivamente.

MartinhaMariana Reis

- Martinha, querida.- Chamou, patroa?- Eu tava pensando. Não tem nada que eu possa fazer por você?- Patroa, com todo respeito, que conversa é essa?- Não precisa me olhar com essa cara de espanto. Eu já te tratei mal alguma vez? Pode me dizer, Martinha, qualquer coisa em que eu puder te ajudar, por favor, me deixe ciente.- Bem, patroa, não sei se é abuso meu, mas...- Fala, Martinha, meu doce. Levanta essa cabeça, pode confiar em mim. Há quantos anos você trabalha aqui?- Tem pra mais de quatro anos, senhora.- Então, já passou da hora de termos uma conversa franca.- Bom, já que a senhora insiste... Eu gosto muito quando a senhora me chama de Martinha, mas meu nome é Rosa.

Outra VezIve Deonísio

_ É que você se enganou. Não adiantou Lexotan, homicídio programado, consulta à cartomante asiática. Nem beber baldes de cerveja, compulsão por Lucky Strike, confundir Dramin com ecstasy e ficar loucão na balada. No outro dia é a mesma dorzinha, e, se fosse só a dor de cabeça, tava bom. Pior é o nocaute no peito pro-vocado pela incerteza do próximo passo. E o que se há de fazer? De qualquer sorte quero ouvir novos conselhos, sem a segun-da parte do ditado, por favor.

10 ManeirasMarcel Ayres

_ 1. Somos poucos entre tantos que são poucos. 2. Somos tolos cheios de maldade. 3. Somos minutos, horas e anos. 4. Somos instantes da eternidade. 5. Somos maté-ria em degradação. 6. Somos aquilo que deixamos de dizer. 7. Somos paradoxos perdidos ao vento. 8. Somos inconstância, fluidos reinventos. 9. Somos doses de alegria inacabada. 10. Somos carne, suor e sexo... Somos?

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Infogravura: “Um panorama parcial de nossa querida e esquecida América do Sul”

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