lucian freud
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Lucian Freud at Tate Britain, London, 2002. Freud and other realists painters seen in NY 2000TRANSCRIPT
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Lucian Freud (8 Dezembro 1922 – 20 Julho 2011)
A Tate Britain dedicou-lhe em 2002 uma retrospectiva (o Room Guide ainda estáacessível aqui: http://www.tate.org.uk ) E o Expresso atribuiu-lhe a capa da Revista e14 páginas em 10 Agosto 2002 (pp. 28-37, 10 pág. + 4 sobre a Família Freud)
A foto é de Jane Bown (Camera Press), 1983?. No título gosto em especial do “provavelmente”: acho que torna a ideia de maior pintor vivo mais essencial
«Em carne viva» No século da abstracção e dos corpos desfigurados ou fragmentados, a pintura de Lucian Freud levou mais longe quenunca a observação da realidade humana
Desde há várias décadas que a pintura de Lucian Freud é classificada como chocante,
perversa, cruel ou mórbida, e o seu autor referido como um terrível e misterioso
personagem. Hoje, perante a sua mais extensa retrospectiva de sempre, no ano em
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que vai fazer 80 anos, discute-se se é ou não o maior dos pintores vivos e é admirado
como o último dos «Old Masters». Mesmo se há agora menos lugar para o escândalo,
a pintura de Freud não deixou de ser perturbante pelas razões de sempre - a presença
real (mais do que realista) da figura humana nos seus quadros, a excessiva veemência
física dos corpos representados como carne, a nudez crua dos seus modelosfemininos e masculinos observados sem complacência e sem pudor, a desmesura e a
deselegância de algum desses modelos, a relação pessoal do pintor com os corpos
devassados e expostos das suas mulheres, amantes, filhos e amigos. Vê-lo como um
pintor consagrado não deverá significar um olhar distanciado e reverente sobre as
obras, que continuam a ser incómodas e nos interpelam como um desafio irresolúvel.
Painter Working, Reflexion, 1993, 101,6x81,7 cm (Pintor trabalhando, reflexo)
A retrospectiva da Tate Britain reúne 158 obras de uma carreira de mais de 60 anos,
desde os primeiros trabalhos de um jovem prodígio, no princípio dos anos 40, até aos
quadros inéditos trazidos do atelier. Mais de um quarto, 42 números de catálogo, vem
desde 1990, e 11 são já do novo século, mostrando um pintor em plena actividade,
que tem o seu lugar no presente e não só na história da arte. Na segunda metade dos2
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anos 60 tinham surgido os primeiros retratos nus, em finais dos 70 os primeiros nus
masculinos; a primeira monografia é de 1982, a primeira retrospectiva internacional
(Washington, Paris, Londres e Berlim) data de 1987-88. No entanto, as histórias da
arte contemporânea não o referem e as que usam a designação arte moderna situam-
no, quase sempre, nos movimentos do pós-guerra…
Se não há mais viragens de orientação numa carreira marcada por uma longa
continuidade de processos e temas, são da última década algumas das obras de maior
ambição e mais forte estranheza: aumentam as dimensões dos quadros, alguns de
formatos irregulares, com bandas de tela acrescentada (mas há também pinturas
minúsculas, de 13 por 18 cm); aparecem novos modelos com insólitas compleições
físicas; as composições tornam-se mais dinâmicas e inesperadas; a matéria pictural émais áspera e mais carregada, revelando a muito lenta construção dos corpos; surgem
explícitos diálogos com Van Gogh, Cézanne e Chardin. O velho pintor está mais
inquieto do que nunca e confronta-se com a morte no auto-retrato com que encerra a
exposição, recortando o rosto emagrecido sobre um fundo de pinceladas informes, a
parede onde limpa o resto de óleo dos pincéis.
Ao longo das nove salas, o percurso cronológico começa por uma pintura feita aos 17
anos, Caixote de Maçãs no País de Gales, 1939, onde a natureza morta se instala
num fundo de paisagem montanhosa. Nesse ano em que a guerra começava, Freud
naturalizou-se inglês, acompanhou a morte do avô Sigmund e trocou uma primeira
escola de arte em Londres, demasiado «sub-académica e depressiva», pela frequência
muito livre de uma escola de Verão em Essex orientada por Cedric Morris, que surge
no primeiro dos retratos expostos. Os quadros que dominam a primeira sala são,
porém, retratos da primeira mulher, Kitty Garman, filha do famoso escultor JacobEpstein, com quem casou em 1948. A eles corresponde o tempo da primeira
consagração como o «Ingres do existencialismo», segundo a fórmula usada por
Herbert Read para o apresentar no pavilhão inglês da Bienal de Veneza de 1954, ao
lado de Francis Bacon e Ben Nicholson. Mas, desde 52, o seu modelo e musa já era a
aristocrática Caroline Blackwood.
Os títulos não identificam os modelos (por exemplo, Rapariga com Rosas, 1947-8;
Rapariga com Cão Branco, 1950-51, o último para que posou Kitty; Quarto de
Hotel, 1954, um auto-retrato com Caroline doente em Paris) e Freud exigiu que as
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tabelas, apenas com referências mínimas, não fossem colocadas junto aos quadros,
para que toda a atenção do observador se concentre na pintura, que deve valer por si
mesma sem tradução ilustrativa. Não é, aliás, exactamente como retratos, retratos
intencionais, que eles devem ser vistos, e Freud não aceita ser classificado como
retratista.
Girl with a White Dog, 1950-51 (76,2 x 101,6 cm) Coll. Tate
De facto, toda a sua pintura é realizada a partir da observação do natural («from
life»), diante dos modelos vivos, dos objectos e plantas ou das paisagens que vê das
janelas do seu atelier, recusando o uso de fotografias e o recurso à memória (bem
como à imaginação: «Nunca pude pôr nada num quadro que não estivesse
efectivamente à minha frente», disse Freud). Se se trata sempre de retratos em sentido
lato, só em certos casos é afirmada a explícita ambição do retrato como géneroespecífico: alguns de pintores amigos, outros de patronos e coleccionadores.
Raramente aceitou encomendas, por vezes para pagar dívidas de jogo (o do barão
Thyssen, por exemplo). As distinções de géneros complicam-se um pouco mais
quanto ao retrato nu, que é um domínio muito mais raro na história da pintura, por
razões óbvias, identificando-se ou não os seus modelos nos títulos das obras.
Entretanto, as folhas de exposição e o audio-guia não deixam de fornecer indicaçõesbastantes sobre os modelos e as circunstâncias de produção de diversas obras,
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sugerindo ao visitante a dimensão autobiográfica do trabalho de Freud. Ele próprio a
afirma, numa inédita declaração transcrita no prefácio do comissário da exposição,
William Feaver, crítico do Observer e amigo pessoal desde há 30 anos: «A minha
obra é puramente autobiográfica. É acerca de mim próprio e dos meus próximos.»
Mas há que não esquecer que os seus próximos são também os mestres do passado:
Giogione, Ticiano, Rembrandt, Watteau, Géricault, Constable, Courbet, etc.
Na sala inicial, onde se concentram as primeiras obras reconhecidas de Freud, as dos
anos do pós-guerra, a exactidão minuciosa de desenho, onde é possível seguir as
linhas dos cabelos e sondar os reflexos inscritos nos olhos muito abertos de Kitty, é
uma marca que acompanha a intensidade emocional das figuras. O que poderia supor-
se uma aproximação sentimental dos rostos, prolonga-se, porém, nos retratos deoutros pintores como o neo-romântico Christian Bérard, John Minton e Francis
Bacon, ou em Interior em Paddington, 1951, uma tela de formato excepcional
fornecida pelo Arts Council e realizada expressamente para o festival da Grã-
Bretanha desse ano. Nessa época, a representação figurativa que concorria com as
correntes abstractas identificava-se como a expressão angustiada de um tempo ainda
muito próximo da guerra e das carnificinas dos campos. A precisão quase maníaca
aproximava a pintura de Freud dos primitivos flamengos e dos alemães da NovaObjectividade dos anos 20, mas as referências mais marcantes da década, a par da
batalha por um realismo social militante, eram as do existencialismo de Sartre e a
figuração da ansiedade presente nas obras de Giacometti e Francis Gruber.
Entretanto, toda uma outra sala paralela é dedicada aos anos da guerra e à precoce
primeira exposição em 1944, numa alargada circulação por desenhos e pequenas
pinturas à procura de um estilo próprio, com marcas expressionistas (HospitalSórdido, 1941; Rapaz Evacuado, 1942) e aproximações ao surrealismo (O Quarto
do Pintor, 1943-4), na inesperada associação de uma cabeça de zebra, uma cartola e
um divã a lembrar interpretações de sonhos.
Retoma-se a cronologia com a mudança de estilo em meados dos anos 50, trocando a
minúcia de desenho por uma pintura menos constrangida, de pincelada mais larga e
solta, substituindo os pincéis e o hábito de pintar sentado pelo trabalho de pé. A
reorientação é lenta, por vezes incerta, até entrados os 60. Numa selecção mais rápida
de obras, confirma-se a viragem para uma pintura que ultrapassa a busca da
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semelhança para inscrever imagens de vida na presença rude dos rostos longamente
observados, em Rapariga Grávida, 1960-61 (Bernardine Coverley), Bebé num Sofá
Verde, 61 (a filha Bella), o fotógrafo John Deakin, 1963-4, e um auto-retrato
reflectido num espelho colocado no chão, Reflexo com Duas Crianças, 1965.
Reflection with Two Children (Self-Portrait), 1965, Col. Museo Thyssen Bornemisza,Madrid
Com os nus começados em meados de 60, Freud entra decididamente numa nova fase
afirmativa. A concentração da atenção sobre os corpos nus como um lento escrutínio
visual, em sessões de pose muito demoradas que podem repetir-se 50, 70 ou maisvezes, sob a luz cirúrgica de uma lâmpada fortíssima, procura na sua densidade física
e carnal, tratada sem qualquer sentimentalidade, uma radicalização da procura da
verdade pictural que é irremediavelmente irreprodutível pela fotografia. A crueza da
representação dos sexos, de que já se tinham aproximado episodicamente os ingleses
Walter Richard Sickert e Stanley Spencer, a intensidade inquietante da exposição dos
corpos despidos, vistos em perspectivas dominadoras, prostrados e muitas vezes
adormecidos, homens e mulheres «despojados das suas vaidades e encantos,reduzidos ao nível de animais» (como disse Freud a Robert Hughes, que apresentou a
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retrospectiva de 1987) é uma experiência limite, que alguns viram como
desumanizada violência e outros como a mais profunda das aproximações da
existência humana. Lying by the Rags 1989-1990 © The Artist - Oil on canvas, 138.7 x 184.1 cm (AstrupFearnley Collection, Oslo, Norway)
Não são profissionais os modelos de Freud e a exigência do seu envolvimento e
cooperação desliga-os do papel tradicional de servirem como instrumento das
fantasias do pintor ou representarem um qualquer papel narrativo ou idealizado.
Como acentuava Robert Hughes, a anterior pintura do nu («from the nude»),
distanciada e dirigida, dava lugar a um inédito pintar «com». A intimidade do pintor
com os seus modelos, a nudez das suas filhas (Rose, 1978-9; Esther, 1980,
identificadas nos títulos), a sua própria nudez espelhada sobre a tela aos 71 anos
(Pintor Trabalhando, Reflexo, 1993) não podia deixar de causar a incomodidade do
espectador.
Dois corpos desmesurados marcam o itinerário dos anos 90, com os quais se amplia a
escala das telas, numa inédita monumentalidade. O primeiro é o de Leigh Bowery,
personagem famoso pelos espectáculos de travesti ao longo dos anos 80, desenhadorde moda e artista «performer», criador de imaginativos figurinos com que actuou
também em galerias de arte (veio a morrer de sida em 1994). Se a sua imagem
pública se construía pela máscara e a metamorfose, a que transmite a pintura de
Freud é a do total despojamento de um corpo desarmado e vulnerável, em que o
pintor dizia encontrar uma pele translúcida («como se se fosse capaz de ver por baixo
do tapete»).
Apresentada por Bowery, Sue Tilley, funcionária da segurança social («Benefits
Superviser», como refere um dos títulos), expõe uma massa de carne que excede a
dos corpos do Barroco, observada em pintura com uma consideração, uma atenção
respeitosa da pessoa inteira, que impede a alegação de que se trataria de um modelo
grotesco. Freud reconhece ter «predilecção por pessoas de invulgares ou estranhas
proporções» e investiga-as sem indulgência nem caricatura, explorando no corpo de
«Big Sue» as pregas de uma carne sem músculos, «assombrosas crateras e coisasque nunca tinha visto antes».
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Retrato nu, 2001, 167,6 x 132,1 cm. ( Emily Bearn)
Ver mais, mais longe ou mais fundo, é uma ambição sem fim para o pintor, cujo
trabalho é sempre, como ele disse, «factual mas não literal». Na dimensão
autobiográfica, presente no trabalho de Freud através dos modelos mais disponíveis,
os do seu círculo íntimo, não se encerra o sentido dos quadros, onde não têm uma
presença menos poderosa os rostos e corpos cuja identidade não foi revelada ou éapenas um nome sem referências. Nos corpos mais duramente observados, a pele
representada não é a de figuras esvaziadas de existência humana; cada um traz
consigo uma vida pessoal, uma personalidade própria, uma secreta história íntima
inscrita na densidade pictural da sua aparência. Como a de outros corpos vivos,
anónimos ou não, a que a criação artística fez atravessar o tempo.
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«O retrato ausente»Três quadros brilham pela ausência na Tate Britain
Um deles é o retrato da Rainha, pintado para
as celebrações do jubileu e agora exposto
em Buckingham Palace. Só a coroa
distingue o rosto de uma idosa mulher
comum, penetrantemente sondada para além
da máscara oficial, para escândalo de muitos
súbditos. Avesso a retratos de encomenda,
Freud recusou-se a pintar o Papa, o príncipe
Carlos e Diana. Desta disse que nunca lhe
adivinhara a personalidade sob a imagem
pública. Kate Moss candidatou-se com mais
sorte. Ainda não chegaram ao fim as sessões
de pose, acompanhando a gravidez da
supermodelo, mas anunciou-se que o quadrose juntará à retrospectiva se for terminado a
tempo. A expectativa dos tablóides, e não só,
é imensa.
Isabel II, The Royal Collection
O terceiro é um pequeníssimo retrato de Bacon, de 18 por 13 centímetros, sobre
cobre, datado de 1952. Foi roubado em Berlim, durante a primeira retrospectiva
internacional de Freud, em 1988, num dia em que a Nova Galeria Nacionaldesenhada por Mies van der Rohe ficou cinco horas sem vigilantes. O escândalo foi
pouco falado na altura, por diplomáticas razões, mas em Junho do ano passado as
ruas da capital alemã foram cobertas com mais de 2000 cartazes que ofereciam um
prémio de 300.000 marcos a quem indicasse o paradeiro.
Freud desenhou-os com a palavra WANTED a vermelho e uma reprodução a preto e
branco (deseja que se evite a cor como sinal de luto), quebrando a habitual reserva
face à imprensa para pedir ao actual proprietário que «gentilmente» lhe emprestasse oquadro. O considerável custo da campanha e da recompensa foi assegurado pelo
British Council junto de mecenas.
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Francis Bacon , 1952, óleo sobre metal, 178 x 127 mm © Tate
Trata-se de um dos mais notáveis retratos do primeiro período da obra de Lucian
Freud e também é um testemunho ímpar da longa relação de amizade (e de
competição) entre os dois pintores, que durou de 1945 até finais dos anos 70. FrancisBacon, 13 anos mais velho mas de carreira menos precoce, morreu em 1992.
Ambos eram já artistas reconhecidos e participavam na «batalha pelo realismo» em
oposição às correntes abstractas, num contexto marcado pela II Guerra e o início da
Guerra Fria, onde o campo da figuração se dividia entre o modernismo realista
influenciado por Giacometti e pelo existencialismo de Sartre, auscultando as
angústias da existência humana, e o realismo social de intenção política. Escola de
Londres era uma designação então corrente, em concorrência com as de Paris e de
Nova Iorque, antes que a década de 60 afirmasse o absoluto predomínio norte-
americano.
Pintado durante quase três meses, em sessões de pose onde os joelhos de ambos se
tocavam, na proximidade exigida pelo enquadramento cerrado do rosto, destinava-se
a um restaurante do Soho, mas foi adquirido pela Tate Gallery numa exposição
individual do mesmo ano. Um retrato desenhado em 1951, onde se vê Bacon de
calças desabotoadas e descaídas, substitui na retrospectiva o quadro ausente (pertence
a outro grande pintor, R. B. Kitaj).
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Bacon pintara nesse ano o seu retrato de Lucian Freud, mostrado de pé numa tela de
quase dois metros de altura. Quando este chegou ao «atelier» para posar, encontrou-a
quase concluída, tendo por base uma fotografia de Kafka. O episódio é revelador da
diferença de métodos com que ambos abordavam a então muito discutida
possibilidade de continuar a representar a figura humana. Depois, Bacon voltou a
pintar o seu amigo mais umas quarenta vezes, mas diz-se que o seu próprio retrato era
o único quadro de Freud que alguma vez elogiou.
Durante décadas, Francis Bacon impôs o seu lugar único, criando o deserto à volta.
Atacava a abstracção como decorativa e o realismo como ilustração, fazendo uma
pintura onde a tortura dos corpos demonstrava a impossibilidade de representar.
Lucian Freud herdou-lhe o posto de maior artista inglês vivo, mas essa já era uma
hierarquia certamente injusta, porque a sua pintura das últimas décadas, ao contrário
do que sucedeu com Bacon, foi sendo sempre cada vez mais inesperada e extrema.
Depois de Van Gogh e Gauguin, de Matisse e Picasso, a dupla Bacon e Freud tem
uma estatura equiparável, retratando na segunda metade do século XX um mundo
com menos ilusões.
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3Biografia
Nunca vai às suas próprias inaugurações e não compareceu no jantar de gala da Tate.
Ninguém lhe conhece o número do telefone e as casas não têm campainha. Não dá
entrevistas, embora esporadicamente transmita algumas lapidares declarações através
de críticos e comissários de confiança. As poucas fotografias publicadas foram quase
todas realizadas por amigos e só a estes facultou o acesso ao atelier. Lucien Freud
impôs o segredo sobre a sua vida privada, envolvendo-se numa sombra que
alimentou a fama de um ogre encerrado em decrépitos estúdios a observar
infindavelmente a decomposição da carne humana. A sua imagem pública é a pintura.
Esta retrospectiva propõe uma visão mais serena da personagem e da obra,
apresentando-as numa perspectiva largamente (amavelmente) autobiográfica, através
da escolha dos trabalhos expostos e da informação que a acompanha. William Feever,
comissário da exposição e amigo de há 30 anos, é também o seu primeiro biógrafo
autorizado, mas o aguardado livro faz-se esperar.
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Vários dos anónimos modelos pintados por Freud surgem agora identificados, ao
mesmo tempo que a anterior crueldade glacial, misógina ou abjecta que se apontava à
carne exposta cede lugar a sugestões de respeito, beleza e ternura. Algumas obras que
mais cruamente devassaram a verdade dos corpos não foram incluídas numa selecção
onde estão largamente representados - vestidos - os pintores que lhe foram próximos
(Cedric Morris, Christian Bérard, John Minton, Bacon, Michael Andrews e Frank
Auerbach, o único ainda vivo), o editor fotográfico Bruce Bernard, o advogado (Lord
Goodman), patronos e coleccionadores (o barão Thyssen).
Lucien Freud nasceu em 8 de Dezembro de 1922, em Berlim, filho de um arquitecto
e neto do inventor da psicanálise. Quando Hitler se torna chanceler, em 1933, a
família - judia não praticante - transferiu-se com os seus haveres para Londres, como
emigrante, antecipando-se às vagas de refugiados. O avô Sigmund só chegou de
Viena em 1938, mas morreu no ano seguinte com um cancro no queixo; três tias-avós
foram executadas em Auschwitz. O terror desses anos terá permanecido uma
memória indelével.
Os dotes para o desenho tinham sido reconhecidos desde cedo, mas os anos escolares
não foram nada pacíficos: «bad boy » precoce, foi convidado a sair de uma muito
liberal escola em Devon, expulso do segundo colégio, em Bryanston, por baixar as
calças em público para ganhar uma aposta, e frequentou entre 1939 e 41 os ateliers de
Verão dirigidos por Cedric Morris, em Dedham, Essex, recomendados por uma
rapariga que encontrara num bar (em 39, ele e um colega terão inadvertidamente
posto fogo à escola). Uma revista influente publicou-lhe em 1940 um auto-retrato
desenhado; aos 18 anos já tinha entrado no meio cultural londrino, através de círculos
gay de vanguarda, com grande talento para encontrar protectores endinheirados. Aos
22 fez a primeira exposição individual.
No início da guerra, já naturalizado mas ansioso por sair de Inglaterra, inscrevera-se
como marinheiro. Atravessado o Atlântico, um erro do passaporte trouxe-o deregresso, sob fogo de submarinos alemães. Só em 46 pôde começar a viajar até Paris,
onde conheceu Picasso, Balthus e Giacometti. O encontro mais decisivo, porém, fora
o de Francis Bacon com quem partilhou por muitos anos a boémia dura - o jogo, as
noites nos bares - e a inquietação artística.
Ancorado em Londres, quase só voltou a viajar para observar algumas pinturas de
referência: o retábulo de Grünewald em Colmar, uma exposição de Frans Hals em
Haarlem, o Museu Ingres de Montaubont, os Goyas de Clastres, os Courbet deMontpellier. Chamaram-lhe o «eremita de Holand Park», embora não deixasse de ser
reconhecido nas saídas nocturnas.12
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A vida sentimental, há muito agitada, regista o primeiro casamento em 1948, com
Kitty Garman (Rapariga com um Cão Branco, 1950-1), filha do escultor Jacob
Epstein, de quem teve duas filhas, Annie e Annabel. O segundo, também breve, é em
1953, com Caroline Blackwood, aristocrata e manequim, depois escritora. Seguem-se
cinco filhos nascidos de Suzy Boyt: Rose, Ali, Ib (Isobel), Kai e Susie Boyt. Mais
dois de Bernardine Coverley: Esther e Bella Freud. Um décimo filho foi agora
identificado: Freddy Elliot, bailarino e ceramista em Espanha. A imprensa não se
cansa de referir a companhia recente de Emily Bearn, 27 anos, jornalista, que posou
para o Retrato Nu de 2001, um dos inéditos da retrospectiva.
Referir os casamentos, as ligações e os filhos poderia ser apenas coscuvilhice, mas a
vida do pintor está estreitamente ligada à sua obra através da intimidade da relação
com os modelos, recusando os profissionais e as suas poses aprendidas.
A filha Bella, «designer» de moda, surge como bebé de um ano, em 1961, e a sua
mãe é retratada no termo da gravidez. Depois, aparece tocando bandolim em Grande
Interior W11 (Segundo Watteau), a obra-prima de 1981-83, ao lado de Suzy Boyt,
de Kai e da pintora Celia Paul (a qual também está presente noutra obra maior,
Pintor e Modelo, de 1986-87, uma libérrima Anunciação). O seu rosto aparece num
retrato de 81, posa com Esther numa tela de 88 e volta a surgir, sempre vestida, num
grande retrato de 96. Por sua vez, a irmã é retratada aos 16 anos num impúdico nu de
1980, a seguir num rosto de 82-83.
Ainda criança, Ib aparece em Grande Interior, Paddington, 1968-69, deitada no
chão do atelier ao lado de um vaso com uma planta que sobe até ao topo da tela.
Depois é retratada em 83-84 e de novo em 90, surgindo com o marido em 92, ambos
adormecidos diante duma parede coberta pelos restos do óleo que Freud raspa da tela.
A sua filha, Frances Costelloe, de 14 anos, é identificada num belíssimo retrato de
2002, escolhido para a capa do catálogo. Rose, ao lado de Ali, é vista em primeiro
plano em Reflexo com Duas Crianças, um auto-retrato de 65, onde a desproporçãodas escalas foi justificada por referência às pinturas funerárias egípcias (uma
referência maior na cultura visual do pintor). Volta a aparecer num nu de 1978-9 e
ainda, com o marido e filhos, em Família Pierce, de 98.
Entretanto, a mãe do pintor está presente em nove obras, desde 1972 a 84, e, no leito
de morte, num desenho de 89. Usando-a como modelo, Freud acompanhava a grave
depressão que sofreu depois de o marido morrer em 70. Por fim, Freddy Elliot é
retratado nu numa grande tela inédita de 2000-01, onde o pintor se representoureflectido na janela, e foi também um dos modelos que posou para Segundo
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Cézanne, 2000, recriação livre e de vasto formato de uma pequena cena de bordel da
juventude do pintor de Aix.
Além de Watteau e Cézanne, também Chardin é directamente apropriado numa obra
recente. Van Gogh é referido através da pintura de um velho sofá e das botas que
calça no auto-retrato nu de 93, protegendo os pés das raspas de óleo); Ticiano,
Rubens, Velásquez, Rembrandt são outros pintores com quem Freud se «mede» para
levar sempre mais longe a observação dos corpos. Este diálogo com a arte do passado
tem a sua data mais recuada na arte egípcia do tempo de Akhenaten, referenciada
numa pequena tela de 93 onde pinta duas máscaras esculpidas reproduzidas nas
páginas abertas de um livro que lhe foi oferecido em 1939. São retratos anónimos
onde Freud encontra a «a intensificação da realidade» que também procura.
❃
Mais Freud visto em Nova Iorque, e outros realistas contemporâneos
(Expresso / Revista de 18 Junho 2000, pp. 88-92)
Freud, Kossoff, Porter, Downes, NY 2000
«Contra a corrente» Quatro artistas ingleses e norte-americanos em Nova Iorque, com
exposições em galerias e obras em museus. Com Lucian Freud,
Leon Kossoff, Farfield Porter e Rackstraw Downes comprova-se
que alguns pintores menos mediáticos, que foram trabalhando
contra as tendências dominantes e observando o mundo, têm um
lugar de primeira importância na arte do final do século
Há vários mundos no mundo da arte de Nova Iorque, como em qualquer outra grande
cidade. Nenhum ponto de vista único pode aspirar a uma síntese do que ao mesmo
tempo acontece ou se mostra, e diferentes observadores encontrarão diferentes
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pretextos para propor visões divergentes e sempre parcelares de um mesmo panorama
plural. Lucian Freud, Leon Kossoff, Rackstraw Downes e Fairfield Porter não são
artistas jovens ou descobertas recentes que alimentem a actualidade jornalística. São
todos figuras isoladas com itinerários diversos e geralmente discretos, e não podem
ser associados a um mesmo grupo ou tendência. O primeiro tem 78 anos e é, depois
da morte de Bacon, o mais proeminente pintor inglês; o último morreu em 1975.
São artistas pouco conhecidos, raramente mostrados fora dos circuitos anglo-
americanos, e as suas obras nunca se prestaram a tornar-se populares. São pintores de
obras extremas e contra a corrente, alheios aos programas colectivos das vanguardas
e de uma radicalidade incompatível com a circulação mediática. Mas é provável que
a mediatização e a massificação da arte, ou mesmo a chamada democratização,exijam sempre a simplificação das obras e a mediocridade.
As suas exposições individuais são raras, e por isso a coincidência em Nova Iorque
tinha um impacto acrescido. Aliás, as mostras de Freud e Kossoff prolongam-se, em
Junho, em galerias de Londres, e ambos têm presenças destacadas nas novas
montagens das Tate's Britain e Modern, inspiradas pela oposição dita pós-moderna ao
modernismo formalista. A de Kossoff estende-se também ao Metropolitan Museum,
com uma série de gravuras realizadas sobre quadros de Poussin, que já se mostrou no
Museu Getty e no Los Angeles County Museum (esse é um dos máximos circuitos
possíveis para um artista vivo); os outros três estão incluídos na exposição «Making
Choices», no largo sector intitulado «Arte Moderna apesar do ('despite')
Modernismo».
Esta segunda parte da revisão do século feita pelo MoMA, focada nos anos 1920-60
mas vindo até ao presente, propõe um novo olhar sobre muitos artistas que, como
refere o catálogo, foram remetidos para «o caixote do lixo da história» - as mudanças
de século têm imprevisíveis consequências. O objectivo é mostrar que arte moderna e
modernismos não são a mesma coisa e que o século XX viveu uma oposição
constante entre programas de vanguarda ou de ruptura e práticas que retomavam
aspectos da tradição, ditas antimodernistas e retrógradas, mas que foram muitas
vezes, aliás, protagonizadas pelos mesmos artistas. No entanto, a mostra evitar
aprofundar drasticamente essa tensão para, mediante uma acelerada fuga em frente,
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favorecer a ideia de que à modernidade teria já sucedido a era pós-moderna,
construída, essa sim, sobre a recusa dos imperativos e interditos modernistas.
Lucian Freud e a chamada Escola de Londres (Bacon, Kossoff, Auerbach, Hockney,
Kitaj - e também Paula Rego, que não é citada mas vem sendo apontada como o seumais destacado prolongamento recente) seriam para o comissário Robert Storr o mais
coerente e consistente pólo do que chama a «contra-revolução estética», associando
uma classificação política a vários dos maiores artistas do presente. No ensaio do
catálogo, situa o cerne dessa «antivanguarda» no primado do desenho (na companhia
do Picasso neoclássico, Giacometti, Balthus, etc.) e, em especial, na prática do
desenho do natural (de observação ou «from life», segundo a expressão inglesa),
recuperando por essa via o fantasma do academismo.
As mostras individuais apresentavam quatro pintores figurativos que se poderão
chamar realistas pelo seu interesse na representação do mundo, todos eles ligados
pela necessidade de trabalhar a partir da observação directa do modelo humano, da
paisagem urbana e natural. A conjunção será ocasional, mas seria fácil encontrar
coincidências e prolongamentos em outras mostras de jovens artistas, em NovaIorque ou em Lisboa, onde o interesse pela paisagem e a disciplina do desenho estão
decididamente presentes.
A exposição de Lucian Freud na galeria Acquavella, com obras realizadas desde
1997, foi a última antes da retrospectiva que a Tate prepara para 2002, por ocasião
dos seus 80 anos. Não é um artista ignorado: o Centro Pompidou apresentou-o em
1988, o Rainha Sofia em 94 e a Tate Gallery mostrou algumas obras recentes em 98.Uma tela destacada da individual de Nova Iorque está até 1 de Julho na galeria White
Cube, em Londres - a exposição de um só quadro sublinha a raridade da obra.
Nascido em Berlim, neto de Sigmund Freud, chegou a Londres quando o terror nazi,
em 1933, deixava de ser apenas uma ameaça. As primeiras obras foram associadas ao
rigor gráfico da Nova Objectividade alemã dos anos 20 e ao clima de angústia
psicológica da II Guerra, interpretado pelo existencialismo. Essa inquietação,
construída com a subtil deformação de pormenores físicos desenhados com a
precisão de Ingres, foi depois deixando de ser lida como um comentário histórico16
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datado, ao mesmo tempo que a mestria do desenho linear (e de uma pintura lisa e de
cores inexpressivas) dava lugar a uma tensão pictural inscrita como que na
dificuldade de representar.
Lucian Freud, The Pearce Family, 1998 (Acquavella Contemporary Art, N.Y)
Depois, não variou substancialmente a sua obra, nem alargou os respectivos temas
para além do universo privado do atelier, entre retratos de parentes e amigos, modelos
nus repetidamente pintados, e uma ou outra vista sobre o jardim ou as casas
próximas. O enfrentamento com o real observado, cada vez mais o corpo de ummodelo tão despido como o cenário fechado do estúdio, tornava-se uma interrogação
renovada em cada tela. A pintura ganhava espessura material, deixava visíveis as
pinceladas e as acumulações empastadas, adensando-se por vezes em camadas quase
esculpidas, construindo um corpo em carne viva que não é cópia ou ilustração. Em
anos mais recentes, surgiram figuras fisicamente disformes e desmesuradas,
montanhas de carne excessiva, em ângulos de observação abruptos, perversos, que
devassam o corpo nas suas pregas, rugas e veias, com uma presença perturbante dos
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sexos expostos, fazendo da máxima crueza com que é vista a nudez dos corpos e dos
rostos um desafio à banalização corrente das imagens.
A par desse excesso, que se prolonga, surgem agora pinturas mais apaziguadas, por
vezes de execução rápida (lembrando Avigdor Arikha, outro nome maior), emgrandes e pequeníssimos formatos, com nus menos cruéis, retratos menos severos,
vistas de jardim em perspectivas de pássaro, cenas insólitas com vários personagens
(um corpo oculto sob a cama, um homem que parece amamentar um bebé -
lembrando Paula Rego, que o tem por mestre maior), um velho cadeirão solitário e
inesperadas variações a partir de Chardin, que estão agora expostas na National
Gallery de Londres. Fotografado no catálogo por Cartier-Bresson, Freud é uma
medida de exigência no final do século.
Kossoff (n. 1926) é uma figura mais discreta da Escola de Londres, sem a fama
boémia e escandalosa de Bacon e Freud. A sua circulação foi por muito tempo quase
confidencial, mas em 1995 representou a Grã-Bretanha na Bienal de Veneza e no ano
seguinte a Tate dedicou-lhe uma retrospectiva. Os trabalhos recentes - magníficos
retratos desenhados, grandes nus duplos e vistas da Kings Cross Station, mais
luminosas do que nunca - mostraram-se na galeria Michell Innes & Nash (foi a suasegunda exposição em N.I.) e seguiram para a Annely Juda, de Londres.
Se o retrato e o nu são também centrais na obra de Leon Kossoff, ele é igualmente
um pintor de paisagens urbanas, sempre de Londres e só um pequeno núcleo de
lugares que lhe são familiares - praças, piscinas públicas, estações de metro ou
comboio, com os seus formigueiros humanos. Os quadros são inconfundíveis: o óleo
acumula-se em pastas densas sobre cartões que ganham a espessura de quase relevose bordos irregulares de tinta seca, mas as formas desenham-se nesse magma
mineralizado com um traçado súbito, quase grosseiro e ingénuo. Kossoff pinta
sucessivamente o mesmo quadro, camada a camada.
A uma sessão de trabalho, em que o mesmo assunto pode dar origem ao começo de
vários quadros, sucede-se, com o posterior exame crítico, a raspagem do cartão ou a
limpeza da tinta com papel de jornal, e a operação repete-se vezes sem conta até que
a pintura resista à exigência do pintor. Não é uma espontaneidade aplicada, uma
retórica da sensação fugidia e do irrepresentável, e a pincelada rápida não é
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Leon Kossoff, Christchurch Spitalfields, Summer, 1990
expressionista ou heróica. Trata-se sempre, nas pinturas a partir de desenhos feitos
diante dos motivos, de recrear a percepção de uma determinada realidade, num certo
lugar, numa estação do ano e numa hora precisas; de alcançar pela pintura, com a
realidade material da pintura, a tensão imediata, a energia, a verdade, a emoção viva
do que ele chama a «excitação de um encontro visual». O mesmo sucede com osretratos e nus feitos na presença dos modelos, sempre um pequeno círculo íntimo ou
os mesmos profissionais pagos, nomeados nos títulos. Nunca há sugestões narrativas
ou declarações genéricas sobre a condição humana; apenas a observação emocionada
e a vontade de registar o que lhe é próximo.
Fairfield Porter (1907-1975), contemporâneo da segunda geração da Escola de Nova
Iorque, que em meados dos anos 50 enfrentou o esgotamento do expressionismo19
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abstracto, foi objecto de uma mostra antológica na AXA Gallery por ocasião da
publicação da sua biografia. Retratos, cenas de interior doméstico, naturezas mortas e
paisagens preenchem a sua obra, que associou heranças dos realismos americanos a
um intimismo iluminado por Vuillard e Bonnard, usando em superfícies lisas uma cor
de grande frescura, mesmo quando o desenho das figuras é algo rígido. Fairfield
Porter, A Life in Art, de Justin Spring, ed. Yale University Press, é um testemunho
muito rico de uma carreira que passou pelo compromisso político (viagem a Moscovo
em 1927), teve uma influente actividade como crítico, próximo de Kooning e amigo
dos poetas John Ashbery e Frank O'Hara (a recolha dos seus textos, Art in Its Own
Terms, foi editada por R. Downes), e interveio num período de grande dinamismo da
arte americana.
Fairfield Porter, The Mirror, 1966 (Nelson-Atkins Museum of Art, Kansas City)
Rackstraw Downes expôs na Robert Miller Gallery, em Chelsea, para onde se
transferiram nos últimos anos as galerias ditas de ponta. Nascido em Inglaterra em
1937, com inicial formação literária, também crítico de arte, começou a expor noinício dos anos 70, sendo particularmente conhecido pelas suas paisagens
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panorâmicas de formato muito alongado, minuciosamente descritivas. É uma dessas
obras, de 1993, que o MoMA expõe em «Despite Modernism» e também inclui no
catálogo «Walker Evans & Company», associando-o a uma linha de interesse pelo
real e pela acuidade perceptiva que o grande fotógrafo teria inspirado.
O olhar fotográfico é só uma primeira aparência; a pintura de Downes é
demoradamente realizada diante do motivo, aplicada na minuciosa representação de
paisagens onde, em muitos casos, se juntam campos cultivados, habitações, viadutos
e estruturas industriais, em quadros que impõem uma observação igualmente atenta.
O espectador é forçado a percorrer a tela, explorando-a sucessivamente em todas as
direcções, reconhecendo pormenores, associando-os e integrando-os numa visão de
conjunto, com a mobilidade ocular que exige a observação de um espaçotridimensional. Downes aborda uma paisagem concreta sem um plano prévio ou um
esquema sintético, e fazer a pintura é manter um estado de escrupulosa observação
desprevenida e gradual de todas as coisas que ocupam o campo de visão, numa
resposta perante o visível que é um exercício de decifração e associação das coisas
vistas num espaço integrado e único.
Rackstrow Downes, Chinati, West Concrete Building, Interior, 1998 (Robert Miller Gallery, N.Y.)
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Começou por ser um pintor abstracto e considera que a abstracção permitiu
abandonar velhos métodos de pintar, sistemas de treino e tradições, tornando possível
começar a representar outra vez, como que a partir do zero. Sabe que há outros meios
mais eficazes para dar a conhecer um espaço ou edifício, «por isso não se trata de
usar a arte para registar um edifício, mas de usar o registo de um edifício para fazer
arte». Segundo Downes, o realismo não é uma técnica, uma perícia aprendida: trata-
se de inquirir o que se vê, de procurar «saber como resultam as formas e as cores
quando se pede à pintura para descrever um espaço».
Na exposição apresentou novas pinturas constituídas por quatro ou mais telas
separadas, nas quais se prolonga o ângulo de visão sobre um mesmo lugar ou em que
um mesmo local (a passagem sob um viaduto de Brooklyn) é pintado quatro vezesem meses consecutivos. Outra série ocupa-se de imensos espaços interiores
desocupados do World Trade Center, mas o conjunto mais extenso resulta do trabalho
realizado no museu fundado por Donald Judd em Marfa (Chinati Foundation, Texas),
observando os antigos pavilhões industriais restaurados e os edifícios projectados
pelo próprio escultor minimalista, um deles ainda por concluir. Ao descrever a
paisagem natural e construída de Marfa, e em especial os pavilhões do museu sujeitos
aos acasos e efeitos contingentes do tempo, a aposta de Downes na disciplina dadescrição literal e fria, numa pintura destituída de emoção, cruza-se por inesperados
caminhos com a austeridade e a obsessão pela ordem de Donald Judd.
«Cada vez que me aproximo de um pintor que trabalha do natural ('d'après nature'),
ao olhar para a sua tela vejo sempre má pintura», terá dito Picasso, citado por
Françoise Gilot. Não há receitas seguras e o êxito é sempre raro. No final do século,sabe-se que Picasso não deixou continuadores directos e também que os interditos
modernistas se congelaram em novos academismos. O desenho e a pintura de
observação são pistas que continuam abertas.
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