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  • 1A TEORIA DOS GNEROS LITERRIOS E O ESTATUTO DANARRATIVA SIMPLES EM PLATO

    Jacyntho Lins BrandoFaculdade de Letras

    Universidade Federal de Minas Gerais

    No captulo XLV de Esa e Jac, intitulado Canta Musa, aparecem duas citaes de

    Homero, mais especificamente as aberturas da Ilada e da Odissia, vertidas "em prosa

    nossa" pelo Conselheiro Aires, que as repete em seguida "no prprio texto grego", o que

    faz com que as personagens, os gmeos Paulo e Pedro, se sintam "picos, to certo que

    tradues no valem originais"1. Todo o entrecho representa, para o leitor, na fala das

    personagens, uma sorte de traduo, recebida e interpretada pelas mesmas em vista das

    circunstncias da prpria narrativa machadiana, por trs dal qual permanece o original

    homrico. Esse processo, atravs do qual se pode passar da transposio ou da traduo

    para o original que me parece regular a elaborao das primeiras teorias sobre a literatura

    na Grcia, dentre as quais se situa a de Plato. Isso significa problematizar os processos de

    recepo do que seria original, tornando complexo o caminho entre texto e leitor.

    Explico-me melhor: teoricamente, os processos de comunicao repousariam sobre

    uma relao entre discurso e recebedor (ou texto e leitor), que apenas teoricamente poderia

    ser pensada numa forma pura, simples, imediata, j que interfere nesse percurso no s o

    que o texto diz, mas todos os dados que informam o que o recebedor entende (inclusive, o

    que ele espera e quer que o texto diga)2; de uma forma difusa, esses dados garantem um

    estatuto prprio para a leitura, gerando diversas modalidades de crtica; de uma forma

    elaborada, a problematizao dos processos de leitura d lugar ao surgimento de teorias,

    que se instituem como mediadoras entre o texto e o recebedor. O sentido da teoria diz

    respeito, portanto, antes aos processos de recepo que aos de produo, ou seja, o

    teorizador um leitor especial que, da experincia de leitura, constri determinados

    1 Assis,

  • 2modelos de validade geral, socializados atravs da prpria teoria que, assim, faz passar o

    leitor do plano de recebedor para o plano de produtor de sentidos.

    Dessa perspectiva da constituio de teorias sobre a literatura na Grcia, parece-me

    que Plato se encontra numa posio inaugural. No estou negando que haja em Homero,

    em Hesodo, em Pndaro, nos primeiros lricos, nos filsofos pr-socrticos, sofistas e

    historiadores elementos de crtica ou mesmo elementos de poticas3. evidente que

    qualquer texto, implcita ou explicitamente, detm uma determinada potica, a qual regula

    sua composio. As invocaes Musa, em Homero, fazem supor uma compreenso sobre

    os processos de composio dos poemas, assentada no que poderamos chamar uma potica

    implcita da inspirao. O mesmo se poderia dizer de Hesodo, quando esclarece no prlogo

    da Teogonia e dos Trabalhos e dias suas motivaes. No entanto, nenhum escritor, at

    Plato, chegou a elaborar uma teoria explcita da literatura, a qual no se reduz a pensar o

    processo de produo do prprio texto, mas pretende a generalidade que a construo de

    um modelo terico permite.

    Quero insistir nesse aspecto, para tornar clara minha abordagem. Estou

    distinguindo, de um lado, a crtica da teoria, entendendo que a primeira trata da experincia

    de leitura individualizada, ainda que, no fundo, no haja leitura estritamente individual mas,

    de uma certa forma, o individual repouse sempre numa experincia coletiva, que conforma

    certas tradies de leitura. Seja como for, a emisso de pontos de vista crticos parte da

    percepo de leitores que interagem com o texto, criando certos sentidos, nesses casos

    sentidos particulares, como quando Slon afirma que "muito mentem os aedos". Por outro

    lado, estou distinguindo tambm a teoria da potica implcita que todo texto

    necessariamente tem, como condio necessria para sua prpria composio, como

    quando Pndaro afirma que "para um, outro grande", definindo um lugar para o poeta

    equiparado ao dos reis que ele canta em seus hinos e para os quais canta seus hinos4.

    Entendo que, embora a teoria possa ter elementos de crtica e de poticas, ela as

    ultrapassa, ao instituir modelos. Como qualquer modelo, as teorias do parcialmente conta

    2 Sobre a recepo em geral, uso com liberdade os conceitos de Jauss, 1977.3 Sobre essas diversas poticas, ver Verdenius, 1983; para uma abordagem geral, Alsina,1991; uma viso crtica sobre as leituras modernas das poticas gregas encontra-se emSchenkeveld, 1992. Relativamente a Homero, existem os livros de Delebecque, 1980, eFrontisi-Ducroux, 1986.

  • 3das experincias particulares, do ponto de vista da recepo e da composio dos textos,

    mas so reguladas no s pelo particular como tambm - e principalmente - pelas

    necessidades impostas pelo prprio modelo. Ou seja: uma teoria literria no diferente de

    outras teorias - como uma teoria fsica, por exemplo - em que a realidade se inclui, em certa

    parte, mas no se inclui totalmente ou apenas em situaes teoricamente construdas. Passar

    do descritivo ou do crtico para o terico implica, de uma certa maneira, abandonar a tirania

    da experincia ou resvalar nos limites dos dados para pens-los segundo as exigncias no

    dos prprios dados, mas do pensamento e do discurso. Em suma, para dizer de um modo

    bem grego: segundo as exigncias do lgos.

    Do ponto de vista da teoria platnica dos gneros literrios, isso deve levar-nos a

    admitir que, no sendo ela mero catlogo descritivo dos gneros existentes, resvala do

    histrico para o terico, isto , d conta de pensar certos gneros histricos apenas da

    perspectiva de gneros tericos, independentemente de se historicamente existentes ou

    no5. Alguma coisa de similar com a prpria instituio de uma "povli" lovgw/", uma

    "cidade no/com o discurso", que regula a composio da Repblica, em que a teoria dos

    gneros se inclui.

    1. Narrativa e mimese

    importante observar que, no ponto de partida desse processo, se situam os dois

    longos poemas narrativos de Homero, alm, claro, de outras composies do mesmo tipo,

    cujos textos no chegaram at ns, agrupadas em ciclos hericos diversos mas, ao que

    parece, dividindo com os primeiros as caractersticas da gesta herica6. No resta dvida,

    contudo, a partir do que afirmam os prprios tratadistas, de que Homero goza de um

    estatuto paradigmtico, seja com relao epopia herica, seja em face dos demais

    gneros narrativos posteriores. No deve haver tambm dvida quanto ao fato de que,

    atravs de Homero, a narrativa que desempenha o papel de impulsionar a reflexo sobre a

    4 Ensaiei uma leitura da potica implcita de Pndaro em Brando, 1988.5 Sobre a questo dos gneros histricos e tericos, ver Brooke-Rose, 1988 e Raible, 1988.6 Sobre a poesia herica da Grcia em geral, incluindo discusso sobre suas origens, verKirk, 1985.

  • 4questo do gnero na Grcia7 . De fato, ao lado da epopia arcaica, existe uma poesia lrica

    cujas origens tambm se perdem no tempo. No foi esta poesia, entretanto, que chamou a

    ateno dos primeiros tratadistas, muito embora se entenda comumente que Arquloco to

    antigo e sua obra to inaugural quanto a de Homero8. Assim, houve uma escolha,

    motivada, a meu ver, por fatores tanto intrnsecos quanto extrnsecos s teorias, a qual

    levou a que as teorizaes adquirissem um rumo determinado.

    Seria excessivamente longo (e, em certa medida, deslocado) tratar aqui dessas

    motivaes. Restringindo-me ao assunto que nos interessa, observaria contudo que a

    eleio da epopia e do teatro como objetos preferenciais de reflexo tem motivaes

    sociais, vinculadas a suas formas de transmisso - e assim se justifica que a primeira teoria

    literria aparea no contexto da primeira teoria poltica que recebemos dos antigos. A vida

    ateniense, com efeito, dominada, pelo menos desde o sculo VI a.C., por necessidades

    crescentes de publicizao. Assim, a tragdia e a comdia representam como que o pice de

    um processo de transmisso em grande escala, aps a instituio dos grandes festivais como

    parte integrante da vida oficial da plis. Acredito que esse carter poltico do teatro que

    impe a Plato (e tambm, posteriormente, a Aristteles) a necessidade de refletir sobre a

    arte, no s do ponto de vista dos contedos e dos meios, mas sobretudo com relao aos

    modos de enunciao. No difcil perceber que o teatro um dos pilares da vida pblica

    7 Discordo do ponto de vista de Miner, 1996, ao admitir que o gnero fundador da poticaocidental o drama e no a narrativa (em contraposio com outras poticas, que tm nalrica seu gnero de referncia). Seu equvoco devm provavelmente do fato de que noconsidera Plato como o fundador da potica grega, mas como mero antecedente deAristteles, cuja Potica teria o carter inaugural. No nego a importncia que tm, tambmpara Plato, os problemas levantados pela recepo do teatro em sua poca. Entretanto, ofilsofo no se contenta em abordar o fenmeno dramtico, antes visa a inclu-lo nummodelo em que a referncia principal a poesia narrativa homrica.8 Miner, 1996, chama suficientemente a ateno para quanto a teoria grega da mimese (que,de resto, continua sendo a base de toda a teoria ocidental da literatura) deve preocupaode Aristteles para com o drama. Trata-se de um exemplo nico, j que as demais teorias deque trata (sobretudo orientais) tm como ponto de partida a lrica, o que lhes fornece umcritrio de aproximao terica "afetivo-expressivo" e no, como na Grcia antiga,mimtico. Reconheo a especificidade do ponto de vista grego, mas no o reduzoestritamente dependncia do drama. Como procurei expor em Brando, 1994, explorandoe ampliando as idias de Auerbach, 1971, a epopia grega (como a snscrita) j temelementos dramticos, ao ponto de, na esteira do prprio Plato, podermos afirmar, comMazon, que a epopia uma espcie de teatro com um s ator (o aedo), enquanto o teatro uma espcie de epopia sem narrador, apenas com os diversos atores.

  • 5na plis, ao lado das assemblias e dos tribunais9, pois dessas manifestaes que nascem

    as idias de comunidade e de identidade cultural. A maior parte da lrica, para citar um

    exemplo em contraponto, destina-se ento a recepo na esfera privada do oikos.

    J a epopia homrica, com o correr do tempo, deixara de ser divertimento da

    nobreza e ganhara tambm a praa pblica, atravs da atuao dos rapsodos, como se

    mostra no on, em que a personagem se gaba de ter tido, em Epidauro, um pblico de

    20.000 pessoas! Exageros parte, trata-se, de qualquer modo, de testemunho interessante

    sobre como a ao dos rapsodos transformara a narrativa pica em espetculo para grandes

    pblicos. por isso que, para os pensadores de ento, refletir sobre a plis implica

    necessariamente abordar os gneros de discursos pblicos, incluindo, ao lado da retrica, o

    teatro e a poesia herica10. Ou seja: a poesia narrativa (dramtica ou no), na plis clssica,

    um instrumento de ao poltica11. Prova disso o reconhecimento, por Aristteles, de

    que o objetivo da tragdia a catarse, o que, no meu modo de entender, nada tem de

    psicologismo, mas remete a uma funo de recepo coletiva e poltica.

    tambm de um ponto de vista poltico que Plato prope sua teoria dos trs

    gneros, buscando responder questo sobre que tipos de poetas seriam acolhidos na

    "povli" lovgw/"12. Esse dado importante para situar suas concluses que, curiosamente,

    9 Em certa medida, tambm as festividades religiosas teriam essa funo. Neste caso,entretanto, o carter hiertico e as prprias circunstncias, muitas vezes ambivalentes, quecercam a experincia religiosa, em seu contato com as novas formas de pensamento,geradas na plis, determinam diferenas importantes. Sobre o assunto, ver Humphreys,1990.10 Cf. Lled Iigo, para Plato a poesia um lovgo" que tiene que ejercer una funcincomunicativa ante un nmero grande de espectadores: la potica nos es otra cosa, pues,que una especie de retrica popular (Lled Iigo, 1961, p. 93).11 Tenho em vista a diviso do trabalho humano em trs categorias: labor (povnos),trabalho (ejvrgon) e ao (cf. Arendt, 1981). Ainda que Arendt entenda que a poesia situa-se em esfera parte, acredito que, no contexto da plis, a poesia narrativa deixa de sere!rgon e institui-se, de fato, como ao poltica. Alis, essa diferenciao da poivhsi"com relao ao e!rgon um dos passos decisivos para a constituio do estatuto dopotico em Plato (ver Lled Iigo, 1961, p. 81-92).12 Cf. Rep. III, 394 d: "Ora, o que eu dizia era ser necessrio decidir se consentiramosque os poetas compusessem narrativas mimticas, ou que mimetizassem umas coisas eoutras no, e quais de cada espcie, ou se no haviam de mimetizar nada". Uma boa razopara entender porque Plato no inclui em sua teoria gneros no narrativos (como a maiorparte dos lricos) poderia ser seu carter privado. A ele interessam os fenmenos quepodem interferir na vida da plis do ponto de vista da formao do indivduo como cidado.

  • 6reconhecem duas categorias no bem de poesia, mas de poetas: os que narram e os que

    mimetizam. Assim, equivocado entender, tout court, que Plato expulsa os poetas da

    cidade pois, na verdade, condena ele apenas a literatura narrativa mimtica, de uma

    perspectiva pedaggica. Os trs termos so aqui importantes: no qualquer literatura

    (poesia e prosa); nem qualquer literatura narrativa; mas apenas a literatura narrativa

    mimtica, cujo exemplo puro seria o teatro.

    Identificada a mimese como elemento constitutivo de certos modos de enunciao

    (e o elemento que, do ponto de vista tanto pedaggico quanto poltico, parece pernicioso

    para povli"), a teoria dos trs gneros se construir pela anlise do carter mimtico ou

    no dos modos de narrativa enfocados13. Assim, h uma narrativa no mimtica (ou

    a&plhV dihvghsi", 'narrativa simples'), de que o melhor exemplo seria, em parte

    ("mavlistav pou"), o ditirambo; uma narrativa puramente mimtica, encontrada na

    tragdia e na comdia; e um terceiro modo, que passo a chamar de misto, "que se usa na

    composio da epopia e de muitos outros gneros" 14. Acredito que Plato admite e quer

    demonstrar a superioridade do primeiro modelo - a narrativa simples - tendo em vista a

    coerncia de carter do poeta (ou prosador) que fala sempre por si mesmo e como ele

    mesmo, sem mimetizar outros locutores no discurso direto. De um certo modo, na lgica da

    prpria exposio, pode-se entender igualmente que a a&plhV dihvghsi" seria a forma

    bsica de narrativa, de que as demais so derivadas, a partir do momento em que se

    introduzem nela elementos mimticos: assim, a) quando Homero, aps falar como ele

    mesmo, "tenta o mais possvel fazer-nos supor que no Homero que fala, mas o

    sacerdote, que um ancio"15, temos a narrativa mista; b) e "quando se tiram as palavras

    (Nas citaes da Repblica, utilizo a traduo de Maria Helena da Rocha Pereira (Plato,1980), com pequenas modificaes, sempre que me parecer necessrio manter-me maisprximo do texto grego, ainda que com prejuzo do estilo. Sempre substituo imitar,imitao e congneres por mimetizar, mimese, etc., para evitar os riscos de confuso damivmhsi" com a imitatio dos romanos. Sobre este ltimo ponto, ver Brando, 1992, emque discuti com vagar o assunto, e a bibliografia ali citada).13 Cf. Rep. III, 392 d: "Acaso tudo quanto dizem os prosadores e poetas no umanarrativa de acontecimentos passados, presentes ou futuros? (...) Porventura eles no aexecutam por meio de simples narrativa [aJplhV dihvghsi"], atravs de mimese [diaVmimhvsew"], ou por meio de ambas?"14 Rep. III, 394 c.15 Rep. III, 393 a.

  • 7do poeta no meio das falas, e fica s o dilogo", tem-se "uma espcie que toda mimese",

    a narrativa dramtica16.

    Desse modo, para Plato, de uma perspectiva que classificaria como gentica (e que

    corresponderia ao prprio esforo de construo da plis desde o princpio - ex arkhs), a

    digesis o oposto da mmesis. Mas, enquanto "tudo que dizem os prosadores e poetas

    narrativa", trata-se de saber, atravs da anlise proposta dos modos de enunciao, que

    gneros narrativos se mostram mais ou menos contaminados de procedimentos mimticos.

    Numa escala crescente, citam-se o ditirambo ("preferencialmente, em parte"), a epopia

    (alm de "muitos outros gneros"), a tragdia e a comdia. Ora, se com relao aos gneros

    misto e mimtico Plato dispe de modelos bem definidos, no que concerne narrativa

    simples tem dificuldades de encontrar um exemplo de todo adequado. Tanto assim que,

    para exemplificar o que entende por isso, apela para um interessante processo de reescritura

    da primeira cena da Ilada, ou, nos termos de Montanari, traduz Homero do grego ao

    grego17. O que se constata, ento, que a diferena da narrativa mista para a narrativa

    simples no depende apenas da ocorrncia ou no de discursos diretos, mas antes do uso de

    processos mimticos atravs dos quais o poeta, efetivamente, mimetiza o discurso de suas

    personagens; dito de outro modo: no se trata apenas de fazer Crises ou Agammnon falar

    em primeira pessoa, mas de o poeta falar "como se se tivesse transformado em Crises", que

    um velho, e no como Homero18.

    2. Do histrico ao terico

    Acredito que o processo de elaborao da teoria platnica parte de exemplos

    existentes - a epopia e o teatro - de que se desdobra um terceiro gnero, a narrativa

    simples, em decorrncia da lgica do prprio modelo. Explico-me melhor: antes de tudo,

    evidente a proximidade dos discursos existentes na poesia homrica com relao ao drama

    (como afirma o prprio Plato, desde que se retirem do meio das falas das personagens os

    textos narrativos, tem-se o drama a partir da epopia); dessa perspectiva, a constituio do

    16 Rep. III, 394 b-c.17 Cf. a observao de Spina, 1994, p. 174. Ver tambm, no mesmo trabalho, exemplos dabibliografia mais recente sobre esse processo, em que se destacam trabalhos de Genette, emespecial Genette, 1988.18 Rep. III, 393 c-394 a.

  • 8gnero dramtico se daria atravs de uma purificao da epopia dos elementos puramente

    narrativos; assim, se h, com relao epopia, um gnero puro, que s mimese, deve

    haver tambm, de acordo com a lgica do modelo terico, um outro gnero que, tambm

    em face da epopia, seja puramente narrativo.

    Um outro aspecto de grande importncia que, embora todos os gneros referidos

    como exemplos sejam em verso, o modelo se aplicaria tambm a gneros em prosa, j que a

    dihvghsi" prpria tanto dos poihtaiv quanto dos muqolovgoi (que acima traduzi por

    prosadores), o que nos levaria a admitir, na tenso comum entre gneros tericos e

    histricos, ou a existncia factual das trs espcies em prosa, j na poca de Plato, ou (o

    que talvez seja mais plausvel ou, no mnimo, mais interessante) que se admite sua

    existncia virtual19. Seja como for, a referncia aos muqolovgoi em contraposio aos

    poetas pode ser esclarecedora, na medida em que, ao narrar seus prprios mitos, Plato

    pratica uma modalidade de narrativa em prosa, prevalentemente sem representao de

    discursos e sem os demais elementos mimticos existentes em Homero. Se tivermos

    presente que o ditirambo teria por objeto narrativas sobre Dioniso, acrescentaramos mais

    um elemento no sentido da compreenso do mito como modelo preferencial da narrativa

    simples.

    No h porque estranhar essa tenso entre o factual e o virtual na teoria dos gneros,

    pois a prpria Repblica se elabora em movimento idntico: para a cidade feita (ou, mais

    exatamente, pepoihmevnh , isto : poetizada) no e com o lgos, o ponto de partida so as

    cidades inchadas existentes; do mesmo modo, para pensar um gnero potico no e com o

    lgos, o ponto de partida so os gneros inchados de mimese existentes. A narrativa

    simples seria uma sorte de gnero anti-mimtico, correspondente a um estado de pureza que

    se procura tambm na povli" lovgw/ , que tambm simples20. Isso embora a prpria

    19 Tanto do ponto de vista histrico quanto terico trata-se de um problema interessante.Basta lembrar que, como exemplo do terceiro gnero, pura mimese, em prosa, poderamoscitar o prprio dilogo platnico: "quando se tiram as palavras do poeta no meio das falas,e fica s o dilogo", o que temos? Responde Adimanto: a tragdia e a comdia. Reponderiaeu: o dilogo platnico! o prprio dilogo em que isso se l e - afinal - se condena.20 A simplicidade atributo importante, na medida em que define o mais prprio danatureza divina: "Por conseguinte, Deus absolutamente simples e verdadeiro em palavrase atos, e nem se altera nem ilude os outros, por meio de aparies, falas ou envio de sinais,quando se est acordado ou em sonhos" (Rep. 382 c). Um deus amimtico e assemitico,portanto.

  • 9construo da povli" lovgw/ s seja possvel no dilogo, uma espcie que toda mimese,

    segundo a prpria classificao de Plato!21

    Observe-se o que h de importante nisso: s se pode pensar uma narrativa simples a

    partir de outros gneros narrativos inchados de mimese, ou seja, so os gneros histricos

    conhecidos os pontos de partida para teorizar sobre o gnero; no entanto, enquanto a

    digesis (a narrativa) que a base do modelo platnico, o gnero terico a que se chega no

    deixa de ser o ponto central de que decorrem os outros gneros. Ou seja: se tudo quanto

    dizem poetas e prosadores digesis, qual a forma que toda e apenas digesis?

    Responder que se trata do ditirambo significa trair o que declara o prprio Plato, pois o

    ditirambo lembrado apenas por aproximao, numa declarao mediatizada por uma

    locuo adverbial em que o mavlista (muitssimamente, o mais possvel) relativizado

    pela partcula pou (em parte, mais ou menos, de alguma forma ou, mais literalmente, em

    (in)certos lugares). Independentemente de sabermos o que seria o ditirambo ou alguma

    modalidade do ditirambo a que Plato pudesse eventualmente estar-se referindo, importa

    preservarmos a questo a respeito de que gnero seria a narrativa simples. Apenas para

    avaliarmos a dimenso do que se prope, vale recordar que Aristteles entende que,

    historicamente, o teatro surgiu do ditirambo, o gnero que Plato considera o menos

    contaminado de mimese. Provavelmente, a diferena de avaliao do ditirambo da parte dos

    dois filsofos poderia advir do fato de que, para Plato, a narrativa que est no centro do

    modelo, enquanto para Aristteles a mimese que ocupa essa posio: se para o primeiro

    tudo quanto dizem prosadores e poetas (incluindo os dramaturgos) digesis, para o

    segundo tudo mmesis. Assim, se para Plato o ditirambo seria o gnero histrico que

    mais se aproximaria de um gnero amimtico (ou, mais corretamente, da narrativa

    simples), para Aristteles o ditirambo s pode ser mimtico, como qualquer outro gnero -

    talvez at em vista do fato de que o filsofo no logre descobrir, como seu antecessor, um

    exemplo concreto de gnero amimtico e, por isso mesmo, universalize a mimese como o

    que de mais prprio tem a arte potica.

    21 Sobre essa aparente contradio de Plato, ver Kosman, 1992: "For the philosophicaltask in Plato's view is not to create or to discover an impossible transparent narrative style,a mode of dicourse non-theatrical and non-mimetic, nor to discover thereby some pure andunrefracted world of Being. The task is rather to discover how, fixed firmily in the necessity

  • 10

    3. O que a narrativa simples: traduzir do grego para o grego

    O exemplo paradigmtico de narrativa simples o que o prprio Plato elabora,

    reescrevendo Homero. Uma breve comparao dos efeitos desse processo, no que concerne

    s variaes de gnero, pode ser til para nossos objetivos. Justaponho as partes incial e

    final dos dois textos, sem a pretenso de examinar todos os aspectos do processo de

    reescritura, visando apenas a que o leitor possa minimamente experimentar os seus efeitos,

    ainda que atravs da mediao de novas tradues (agora para o portugus).

    O que na Ilada l-se do modo seguinte:

    "...Este [Crises] viera, at s cleres naus dos Aquivossplice, a filha reaver. Infinito resgate trazia,tendo nas mos as insgnias de Apolo, frecheiro infalvel,no cetro de ouro enroladas. Implora aos aquivos presentes,sem exceo, mas mormente aos Atridas, que povos conduzem:Filhos de Atreu, e vs outros, Aquivos de grevas bem feitas,dem-vos os deuses do Olimpo poderdes destruir as muralhasda alta cidade de Pramo, e, aps, retornardes a casa.A minha filha cedei-me, aceitando resgate condigno,e a Febo Apolo, nascido de Zeus, reverentes mostrai-vos."22 -

    Scrates traduz assim, aps observar que o far em prosa por no ser poeta: "O sacerdote

    chegou e fez votos por que os deuses lhes concedessem conquistar Tria e salvasse, mas

    que lhe libertassem a filha mediante resgate, por temor aos deuses"23.

    Em seguida, aps os ataques que Agammnon dirige contra o sacerdote de Apolo,

    continua Homero deste modo:

    "Isso disse ele; medroso, o ancio curvou s ameaas,e, taciturno, se foi pela praia do mar ressoante,onde, de um ponto afastado, dirige orao fervorosaa Febo Apolo, nascido de Leto de belos cabelos:Ouve-me, deus do arco argnteo, que Crisa, cuidoso, proteges,e a santa Cila, e que tens o comando supremo de Tnedo!

    of our displaced mimetic voice, we may learn to read the silent world of Being as it speaksmimetically in the flux of appearance".22 Ilada, I, 12-21. Cito a traduo de Carlos Alberto Nunes, atravs da qual o leitor que notem acesso ao texto grego poder, acredito, perceber a contento o procedimento platnico.Para uma anlise em detalhe dos dois originais, ver Spina, 1994.23 Rep.

  • 11

    Ajudador! J te tenho construdo magnficos templos,bem como coxas queimado de pingues ovelhas e touros.Ouve-me, agora, e realiza este voto ardoroso que fao:possas vingar dos Aqueus, com teus dardos, o pranto que verto."24

    Esse trecho homrico foi assim reescrito por Plato, em narrativa simples, a qual ele ps na

    boca de Scrates:

    "O ancio, ao ouvir estas palavras, teve receio e partiu em silncio, e,afastando-se do acampamento, dirigiu muitas preces a Apolo, invocando osatributos do deus, recordando e pedindo retribuio, se jamais, ouconstruindo templos, ou sacrificando vtimas, lhe tinha feito oferendas doseu agrado. Como retribuio, pedia que os Aqueus pagassem as suaslgrimas com os dardos do deus."

    Ora, cumpre observar que a diferena entre a narrativa mista de Homero e a

    narrativa simples de Plato no se reduz ocorrncia ou no de discursos diretos, embora

    esse seja o aspecto que o filsofo percebe mais claramente, por entender que a produo da

    narrativa mista depende de contaminao da narrativa pura com a mimese dramtica.

    importante entretanto no reduzir o carter mimtico de um texto apenas ocorrncia

    tcnica do discurso direto, mas considerar se, de fato, o poeta passa a falar como se fosse a

    sua personagem, isto , se mimetiza o discurso do outro (como, no exemplo em pauta, o

    discurso do velho sacerdote).

    O exerccio platnico de traduo supe entretanto ainda vrios outros aspectos,

    dentre os quais salientaria: a) do ponto de vista do modo narrativo, uma significativa perda

    dos elementos visuais caractersticos do estilo homrico25; b) do ponto de vista do ritmo da

    narrativa, a eliminao dos elementos de retardamento da ao, em benefcio de um estilo

    que leva rapidamente aos desfechos, narrando o essencial; c) com relao ao colorido do

    estilo homrico, destaca-se o desaparecimento de todos os eptetos; d) no que concerne aos

    aspectos de organizao estrutural do discurso, tem-se um predomnio da hipotaxe, em vez

    da parataxe homrica.

    Novos exemplos de narrativa simples poderiam ser encontrados nos prprios

    dilogos de Plato. Com efeito, os mitos narrados por diversas personagens apresentam

    24 Ilada I, 33-42.25 Estudei essa caracterstica do modo de narrativa homrico em Brando, 1995.

  • 12

    uma estrutura narrativa prxima do exerccio de reescritura de Homero, como no caso da

    histria de Giges, que aparece na prpria Repblica, que reproduzo na ntegra:

    "Era ele [Giges] um pastor que servia em casa do que era ento soberanoda Ldia. Devido a uma grande tempestade e tremor de terra, rasgou-se osolo e abriu-se uma fenda no local onde ele apascentava o rebanho.Admirado ao ver tal coisa, desceu por l e contemplou, entre outrasmaravilhas que para a fantasiam, um cavalo de bronze, oco, com umasaberturas, espreitando atravs das quais viu l dentro um cadver,aparentemente maior do que um homem, e que no tinha mais nada senoum anel de ouro na mo. Arrancou-lho e saiu. Ora, como os pastores setivessem reunido, da maneira habitual, a fim de comunicarem ao rei, todosos meses, o que dizia respeito aos rebanhos, Giges foi l tambm, com o seuanel. Estando ele, pois, sentado no meio dos outros, deu por acaso umavolta ao engaste do anel para dentro, em direo parte interna da mo, e,ao fazer isso, tornou-se invisvel para os que estavam ao lado, os quaisfalavam dele como se se tivesse ido embora. Admirado, passou de novo amo pelo anel e virou para fora o engaste. Assim que o fez, tornou-se visvel.Tendo observado estes fatos, experimentou, a ver se o anel tinha aquelepoder, e verificou que, se voltasse o engaste para dentro, se tornavainvisvel; se o voltasse para fora, ficava visvel. Assim senhor de si, logo fezcom que fosse um dos delegados que iam junto do rei. Uma vez l chegado,seduziu a mulher do soberano, e com o auxlio dela, atacou-o e matou-o, eassim se assenhoreou do poder."26

    Seria de esperar que, no estilo homrico, a mesma histria seria narrada de modo bem

    diverso - com a incluso de eventuais discursos das personagens, bem como dos demais

    elementos a que me referi acima. Entretanto, pode-se argumentar que, no mito de Giges,

    Plato no substitui a tcnica do discurso direto pelo indireto, como no traduo socrtica

    da abertura da Ilada. Um exemplo diferente, que inclui o uso do discurso indireto,

    encontramos no mito de Er, que significativamente o tlos, o fechamento e coroamento

    da Repblica:

    "A verdade que o que te vou narrar no um conto de Alcnoo, mas de umhomem valente (a*lkivmou), Er o Armnio, Panflio de nascimento. Tendoele morrido em combate, andavam a recolher, ao fim de dez dias, os mortosj putrefatos, quando o retiraram em bom estado de sade. Levaram-nopara casa para lhe dar sepultura e, quando, ao dcimo segundo dia, estavajazente sobre a pira, tornou vida e narrou o que vira no alm. Contava eleque, depois que sara do corpo, sua alma fizera caminho com muitas ehaviam chegado a um lugar divino..."27

    26 Rep. 359 d-360 a.27 Rep., 614 b.

  • 13

    Observe-se que a partir de "narrou o que vira no alm" poderia ter sido introduzido

    um discurso em primeira pessoa que mimetizasse o discurso de Er. O narrador, isto ,

    Scrates, entretanto, prefere manter a estrutura de uma narrativa simples, que dominar o

    mito at o fim28. Isso no quer dizer que no haja no texto, tecnicamente, discursos diretos,

    nos dois pontos em que se reproduzem falas do profeta29 . Trata-se, entretanto, de discursos

    diretos at certo ponto amimticos, mais propriamente de declaraes reproduzidas que de

    falas representadas, como se pode constatar no primeiro deles:

    "Declarao da virgem Lquesis, filha da Necessidade. Almas efmeras, vaicomear outro perodo portador da morte para a raa humana. No umgnio que vos escolher, mas vs escolhereis o gnio"30

    Falta nessa fala, como em outros discursos diretos inseridos em outros mitos narrados por

    Plato, o colorido da fala homrica ou a expresso de sentimentos fortes da tragdia.

    Tambm essas falas so extremamente concisas, como a prpria dico do narrador (penso

    nas falas de Zeus, no mito de Epimeteu e Prometeu, no Protgoras)31.

    4. O dilogo filosfico como palindia de Homero

    Para tentarmos uma aproximao mais acurada da questo, tomemos a seqncia do

    Fedro em que Scrates profere seu discurso sobre o amor, como contraponto da leitura que

    Fedro fizera antes dos discurso de Lsias32. Scrates provocado por Fedro, que lhe prope

    um tema, e, como "homem amante de discursos" ("a*ndriV filolovgw/"), no pode furtar-

    se. Abre sua fala com uma invocao s Musas, introduz um pequeno entrecho narrativo e,

    28 No se esquea de que toda a Repblica um dilogo narrado por Scrates (estando,portanto, no na esfera da pura mimese, mas de alguma modalidade de narrativa mista). Oque importa ter em vista a riqueza de nuances que pode haver na distino dos gneros.29 Rep., 617d & 619 a.30 Rep., 617 d.31 Curiosamente, outros exemplos de narrativas simples poderiam ser encontrados noprprio teatro: os trechos narrativos das tragdias, postos na boca das personagens, tm essafeio. Em outro estudo, ressaltei esse fato, relacionando a funo narrativa do mensageiro(a!ggelo") com a escolha aristotlica do termo a*paggevllwn para designar o narrador(cf. Brando, 1996, p. 29-31)

  • 14

    logo em seguida, mimetiza o discurso do amante de um belo jovem que intenta convenc-lo

    a favorecer antes ao que no o amava que ao que o amava. O que me interessa aqui que,

    deixando-se transportar, Scrates observa, interrompendo o mesmo discurso mimetizado,

    estar num estado divino e que o que diz no est muito longe do ditirambo33.

    A segunda interrupo, alm da qual se recusa a avanar, pondo um telos (isto : um

    fim, uma finalidade) ao discurso34, justifica-se com a observao de que j proferia pea

    (versos picos) e no mais ditirambos: se pois continuar, como insiste Fedro, pergunta

    Scrates, "o que parece que farei?" (ou, se quisermos, poetizarei, j que o verbo usado

    poihvsein"35). Continuar - ainda Scrates quem afirma - significaria entregar-se

    totalmente possesso da Ninfas36. Ora, na seqncia do ditirambo aos pea, o prximo

    passo, evitado por Scrates, deveria ser a pura mimese. Contra isso Fedro sugere que eles

    permaneam dialogando (dialecqevnte") a respeito das coisas ditas.

    Observe-se bem: h uma seqncia que, partindo do discurso escrito de Lsias (uma

    logografia, portanto), avana pelo ditirambo, pela pica e desdobra-se, a partir da, em duas

    possibilidades: 1) a pura mimese, se o que estou supondo for correto; 2) e o dilogo, o

    prprio dilogo que continua. A situao curiosa, pois trata-se no propriamente de

    narrativa, mas de um discurso mimetizado por Scrates. Esse carter mimtico garantido,

    contudo, pela pequena introduo diegtica que situa todo o entrecho. Se pois se entende

    que, primeiramente, o que Scrates diz no se afasta muito do ditirambo, deve-se admitir

    que o ditirambo entendido, por Plato, como tendo tambm um certo grau de mimese, o

    que justificaria o mavlistav pou da Repblica. Isso reforaria o que venho propondo, a

    saber: que a narrativa simples um gnero terico, pensado a partir da lgica do modelo, e

    no a descrio de um gnero histrico.

    Esses exemplos so significativos no apenas para expor o que Plato poderia estar

    visando ao referir-se a narrativa simples, como tambm para apontar qual seria o estatuto

    do prprio dilogo platnico. J o Pseudo-Longuino, no tratado Sobre o sublime, apontava

    Plato como o melhor exemplo de emulao com Homero: tendo disputado com o antigo

    32 Fedro, 237 ss.33 Fedro, 238 d.34 Fedro, 241 d.35 Fedro, 241 e: - "tiv me oi!ei poihvsein;"36 Fedro, 241 e: "u&poV tw'n Numfw'n safw'" e*nqousiavsw".

  • 15

    poeta, como um guerreiro jovem diante de outro mais velho, muitas vezes o ultrapassou.

    Essa observao nos d uma pista preciosa para compreendermos que o modelo de Plato

    escritor de dilogos o prprio Homero. Isso permite-nos voltar ao modelo terico dos

    gneros, para entender sua gnese. A narrativa homrica o ponto de partida, que serve

    tanto para o exerccio de reescritura, de onde se tira a narrativa simples, quanto para a

    experincia no pensamento que estabelece suas relaes com o drama. De fato, na mesma

    Repblica admite-se que Homero o maior dos poetas e o primeiro dos tragedigrafos37 ,

    ou seja, admite-se que epopia e drama provenham da mesma fonte e, mais ainda, que essa

    fonte Homero.

    Como entretanto situar o dilogo platnico? J vimos que o mito de Er se abre com

    a declarao de que no se trata de um "conto de Alcnoo"- e, nesse sentido, ele contrape-

    se aos contos homricos, mais especificamente s narrativas feitas por Ulisses na corte dos

    fecios. No Fedro, aps as etapas a que me referi antes, que levam da logografia a algo

    prximo do ditirambo e da aos pea, a passagem para o dilogo s se faz possvel como

    palindia de Homero (da mesma forma que no exemplo de Estescoro que, compondo sua

    palindia sobre Helena, recuperou a viso). Creio que nesse processo de mimese e disputa

    com Homero que o dilogo platnico se institui. De um certo modo, o caminho adequado

    para atingir-se a simplicidade da verdade seria um discurso simples, que evitaria os riscos

    da disputa entre poesia e filosofia, que o prprio Scrates reconhece, na Repblica, ser

    antiga. No entanto, como a prpria atividade do filsofo, para usar uma outra figura

    platnica, assemelha-se a crianas tentando capturar andorinhas sempre lhes escapam

    quando esto a ponto de peg-las, a constituio de um gnero prprio para a filosofia

    deriva de Homero que, em vez de enveredar pela via da Musa dramtica, cria o dilogo

    filosfico, um gnero mimtico sem dvida, mas que tem sua finalidade no no prazer, mas

    na utilidade.

    Restaria assim uma ltima questo: se verdade que Homero o maior dos poetas e

    o primeiro dos tragedigrafos, se for verdade tambm o que acabei de afirmar - que o

    dilogo filosfico provm de Homero, como uma sorte de alternativa aoo drama - seria

    possvel admitir que Homero , igualmente, o primeiro dos filsofos? Nesse caso, para

    voltar ao Conselheiro Aires, vale mesmo o original mais que a traduo? Ou o original

    37 Cf. Rep. 607 a.

  • 16

    apenas fruto de uma experimentao terica e lidamos sempre com tradues que

    conformam uma tradio de leituras?

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

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  • 17

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