louro, guacira lopes teoria queer 1

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  • 7/27/2019 Louro, Guacira Lopes Teoria Queer 1

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    Teoria queer - uma poltica

    ps-identitria para a educao

    Guacira Lopes Louro

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    este texto est disponvel em:we.riseup.net/subta/ queer-ed

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    As chamadas "minorias" sexuais so, hoje, muito

    mais visveis do que antes, e, consequentemente, torna-semais acirrada a luta entre elas e os gruposconservadores. Esse embate, que merece uma especialateno de estudiosos/as culturais e educadores/as, torna-se ainda mais complexo se pensarmos que o grande

    desafio no consiste, apenas, em assumir que as posiesde gnero e sexuais se multiplicaram e escaparam dosesquemas binrios; mas tambm em admitir que asfronteiras vm sendo constantemente atravessadas e queo lugar social no qual alguns sujeitos vivem exatamentea fronteira. Uma nova dinmica dos movimentos (e dasteorias) sexuais e de gnero est em ao. dentro dessequadro que a teoria queer precisa ser compreendida.Admitindo que uma poltica de identidade pode se tornar

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    cmplice do sistema contra o qual ela pretende seinsurgir, tericos/as queer sugerem uma teoria e umapoltica ps-identitrias. Inspirados no ps-

    estruturalismo francs, dirigem sua crtica oposioheterossexual/homossexual, compreendida como acategoria central que organiza as prticas sociais, oconhecimento e as relaes entre os sujeitos. O que,afinal, esta teoria tem a dizer para o campo da Educao?

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    Nos dois ltimos sculos, a sexualidade tornou-seobjeto privilegiado do olhar de cientistas, religiosos,psiquiatras, antroplogos, educadores, passando a seconstituir, efetivamente, numa 'questo'. Desde ento,

    ela vem sendo descrita, compreendida, explicada,regulada, saneada, educada, normatizada, a partir dasmais diversas perspectivas. Se, nos dias de hoje, elacontinua alvo da vigilncia e do controle, agoraampliaram-se e diversificaram-se suas formas deregulao, multiplicaram-se as instncias e asinstituies que se autorizam a ditar-lhe as normas, adefinir-lhe os padres de pureza, sanidade ouinsanidade, a delimitar-lhe os saberes e as prticas

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    pertinentes, adequados ou infames. Ao lado deinstituies tradicionais, como o Estado, as igrejas ou acincia, agora outras instncias e outros grupos

    organizados reivindicam, sobre ela, suas verdades e suatica. Foucault certamente diria que,contemporaneamente, proliferam cada vez mais osdiscursos sobre o sexo e que as sociedades continuamproduzindo, avidamente, um "saber sobre o prazer" ao

    mesmo tempo que experimentam o "prazer de saber".

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    Hoje, as chamadas "minorias" sexuais esto muitomais visveis e, consequentemente, torna-se maisexplcita e acirrada a luta entre elas e os gruposconservadores. A denominao que lhes atribudaparece, contudo, bastante imprpria. Como afirma emseu editorial a revistaLa Gandhi Argentina,2 "as minorias

    1 FOUCAULT, 1993.2 La Gandhi Argentina, 1998.

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    nunca poderiam se traduzir como uma inferioridadenumrica mas sim como maiorias silenciosas que, ao sepolitizar, convertem o gueto em territrio e o estigma

    em orgulho gay, tnico, de gnero". Sua visibilidadetem efeitos contraditrios: por um lado, alguns setoressociais passam a demonstrar uma crescente aceitao dapluralidade sexual e, at mesmo, passam a consumiralguns de seus produtos culturais; por outro lado,

    setores tradicionais renovam (e recrudescem) seusataques, realizando desde campanhas de retomada dosvalores tradicionais da famlia at manifestaes deextrema agresso e violncia fsica.

    O embate por si s merece uma especial atenode estudiosos/as culturais e educadores/as. Mas o que otorna ainda mais complexo sua contnuatransformao e instabilidade. O grande desafio no apenas assumir que as posies de gnero e sexuais se

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    multiplicaram e, ento, que impossvel lidar com elasapoiadas em esquemas binrios; mas tambm admitirque as fronteiras vm sendo constantemente

    atravessadas e o que ainda mais complicado que olugar social no qual alguns sujeitos vivem exatamentea fronteira.

    Escola, currculos, educadoras e educadores noconseguem se situar fora dessa histria. Mostram-se,

    quase sempre, perplexos, desafiados por questes paraas quais pareciam ter, at pouco tempo atrs, respostasseguras e estveis. Agora as certezas escapam, osmodelos mostram-se inteis, as frmulas soinoperantes. Mas impossvel estancar as questes. Noh como ignorar as 'novas' prticas, os 'novos' sujeitos,

    suas contestaes ao estabelecido. A vocaonormalizadora da Educao v-se ameaada. O anseiopelo cnone e pelas metas confiveis abalado. A

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    tradio pragmtica leva a perguntar: que fazer? Aaparente urgncia das questes no permite que seantecipe qualquer resposta; antes preciso conhecer as

    condies que possibilitaram a emergncia dessessujeitos e dessas prticas.

    Construindo uma poltica de identidade

    A homossexualidade e o sujeito homossexual soinvenes do sculo XIX. Se antes as relaes amorosas esexuais entre pessoas do mesmo sexo eram consideradascomo sodomia (uma atividade indesejvel oupecaminosa qual qualquer um poderia sucumbir),

    tudo mudaria a partir da segunda metade daquelesculo: a prtica passava a definir um tipo especial desujeito que viria a ser assim marcado e reconhecido.

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    Categorizado e nomeado como desvio da norma, seudestino s poderia ser o segredo ou a segregao umlugar incmodo para permanecer. Ousando se expor a

    todas as formas de violncia e rejeio social, algunshomens e mulheres contestam a sexualidade legitimadae se arriscam a viver fora de seus limites. A cincia, aJustia, as igrejas, os grupos conservadores e os gruposemergentes iro atribuir a esses sujeitos e a suasprticas distintos sentidos. A homossexualidade,discursivamente produzida, transforma-se em questosocial relevante. A disputa centra-se fundamentalmenteem seu significado moral. Enquanto alguns assinalam ocarter desviante, a anormalidade ou a inferioridade dohomossexual, outros proclamam sua normalidade e

    naturalidade mas todos parecem estar de acordo deque se trata de um 'tipo' humano distintivo.

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    Esses so os discursos mais expressivos quecirculam nas sociedades ocidentais, pelo menos at oincio dos anos de 1970. O movimento de organizao

    dos grupos homossexuais , ainda, tmido; suasassociaes e reunies suportam, quase sempre, aclandestinidade. Aos poucos, especialmente em pasescomo os Estados Unidos e a Inglaterra, um aparatocultural comea a surgir: revistas, artigos isolados emjornais, panfletos, teatro, arte. No Brasil, por essa poca,a homossexualidade tambm comea a aparecer nasartes, na publicidade e no teatro. Alguns artistas3

    3 Nos anos 70, o cantor Ney Matogrosso e o grupo Dzi Croquetesembaralham propositalmente as referncias femininas emasculinas em suas performances e, segundo Jos SilvrioTrevisan, acabam por desempenhar um papel importante eprovocador no debate sobre poltica sexual no Brasil. Trevisan(2000, p. 288) afirma que os Dzi Croquetes "trouxeram para oBrasil o que de mais contemporneo e questionador havia no

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    apostam na ambiguidade sexual, tornando-a sua marcae, desta forma, perturbando, com suas performances,no apenas as plateias, mas toda a sociedade. A partir de

    1975, emerge o Movimento de Libertao Homossexualno Brasil, do qual participam, entre outros, intelectuaisexilados/as durante a ditadura militar e que traziam, desua experincia no exterior, inquietaes polticasfeministas, sexuais, ecolgicas e raciais que entocirculavam internacionalmente.

    Nos grandes centros, os termos do debate e da lutaparecem se modificar. A homossexualidade deixa de servista (pelo menos por alguns setores) como umacondio uniforme e universal e passa sercompreendida como atravessada por dimenses de

    classe, etnicidade, raa, nacionalidade etc. A aopoltica empreendida por militantes e apoiadores torna-

    movimento homossexual internacional, sobretudo americano".

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    se mais visvel e assume um carter libertador. Suascrticas voltam-se contra a heterossexualizao dasociedade. A agenda da luta tambm se pluraliza: para

    alguns o alvo a integrao social a integrao numasociedade mltipla, talvez andrgina e polimorfa; paraoutros (especialmente para as feministas lsbicas) ocaminho a separao a construo de umacomunidade e de uma cultura prprias. Intelectuais,espalhados em algumas instituies internacionais,mostram sua afinidade com o movimento, publicamensaios em jornais e revistas e revelam sua estreitaligao com os grupos militantes.

    Pouco a pouco constri-se a ideia de umacomunidade homossexual. Conforme Spargo,4 ao final

    dos anos 70, a poltica gay e lsbica abandonava omodelo que pretendia a libertao atravs da

    4 SPARGO, 1999, p. 29.

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    identidade, a comunidade funciona como o lugar daacolhida e do suporte uma espcie de lar. Portanto,haveria apenas uma resposta aceitvel para o dilema

    (repetindo uma frase de Spargo, to come home, of course,you first had to 'come out'5): para fazer parte dacomunidade homossexual, seria indispensvel, antes detudo, que o indivduo se 'assumisse', isto , revelasse seu'segredo', tornando pblica sua condio.

    Tambm no Brasil, ao final dos anos 70, omovimento homossexual ganha mais fora: surgemjornais ligados aos grupos organizados, promovem-sereunies de discusso e de ativismo, as quais, segundoconta Joo Silvrio Trevisan, se faziam ao "estilo do gayconscious raising group americano", buscando "tomar

    5 SPARGO, 1999, p. 30.

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    conscincia de seu prprio corpo/sexualidade" econstruir "uma identidade enquanto grupo social".6

    Em conexo com o movimento poltico (no

    apenas como seu efeito mas tambm como sua parteintegrante), cresce, internacionalmente, o nmero detrabalhadores/as culturais e intelectuais que se assumemna mdia, na imprensa, nas artes e nas universidades.Entre esses, alguns passam a "fazer dahomossexualidade um tpico de suas pesquisas eteorizaes".7 Sem romper com a poltica de identidade,colocam em discusso sua concepo como umfenmeno fixo, trans-histrico e universal e voltam suasanlises para as condies histricas e sociais do seusurgimento na sociedade ocidental. No Brasil (de forma

    mais visvel a partir de 1980), a temtica tambm passa a

    6 TREVISAN, 2000, p. 339.7 SEIDMAN, 1995, p. 121.

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    Como a Histria da Sexualidade de Foucault haviamostrado, tal escolha do objeto nem sempre tinhase constitudo a base para uma identidade e, comomuitas vozes discordantes sugeriam, esse no era,inevitavelmente, o fator crucial na percepo detoda e qualquer pessoa sobre sua sexualidade. Estemodelo fazia, efetivamente, com que os bissexuaisparecessem ter uma identidade menos segura oumenos desenvolvida (assim como os modelos

    essencialistas de gnero fazem dos trans-sexuaissujeitos incompletos), e exclua grupos quedefiniam sua sexualidade atravs de atividades eprazeres mais do que atravs das preferncias degnero, tais como os/as sadomasoquistas.8

    Com esses contornos, a poltica de identidadepraticada durante os anos 70 assumia um carter

    8 SPARGO, 1999, p. 34.

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    marginalizada. Mais do que diferentes prioridadespolticas defendidas pelos vrios 'subgrupos', o queestava sendo posto em xeque, nesses debates, era a

    concepo da identidade homossexual unificada quevinha se constituindo na base de tal poltica deidentidade. A comunidade apresentava importantesfraturas internas e seria cada vez mais difcil silenciar asvozes discordantes.

    No incio dos anos 80, o surgimento da Aidsagregaria novos elementos a este quadro. Apresentada,inicialmente, como o 'cncer gay', a doena teve o efeitoimediato de renovar a homofobia latente da sociedade,intensificando a discriminao j demonstrada porcertos setores sociais. A intolerncia, o desprezo e a

    excluso aparentemente abrandados pela ao damilitncia homossexual mostravam-se mais uma vezintensos e exacerbados. Simultaneamente, a doena

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    tambm teve um impacto que alguns denominaram de'positivo', na medida em que provocou o surgimento deredes de solidariedade. O resultado so alianas no

    necessariamente baseadas na identidade, mas sim numsentimento de afinidade que une tanto os sujeitosatingidos (muitos, certamente, no-homossexuais)quanto seus familiares, amigos, trabalhadores etrabalhadoras da rea da sade, etc. As redes escapam,portanto, dos contornos da comunidade homossexual talcomo era definida at ento. O combate doenatambm acarreta um deslocamento nos discursos arespeito da sexualidade agora os discursos se dirigemmenos s identidades e se concentram mais nas prticassexuais (ao enfatizar, por exemplo, a prtica do sexo

    seguro).Especificamente em relao sociedade

    brasileira, Joo Silvrio Trevisan comenta que, devido

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    J se haviam ampliado, ento, consideravelmente,os grupos ativistas no Brasil, no apenas de gays mastambm de lsbicas. Pelas caractersticas polticas que o

    pas vivia, o movimento homossexual brasileiro via-sedividido entre a possibilidade de se integrar aos partidospolticos ou de continuar sua luta de formaindependente e isso se constitua em mais uma de suastenses internas.

    Em termos globais, multiplicam-se os movimentose os seus propsitos: alguns grupos homossexuaispermanecem lutando por reconhecimento e porlegitimao, buscando sua incluso, em termosigualitrios, ao conjunto da sociedade; outros estopreocupados em desafiar as fronteiras tradicionais de

    gnero e sexuais, pondo em xeque as dicotomiasmasculino/feminino, homem/mulher,heterossexual/homossexual; e ainda outros no se

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    contentam em atravessar as divises mas decidem vivera ambiguidade da prpria fronteira. A nova dinmicados movimentos sexuais e de gnero provoca mudanas

    nas teorias e, ao mesmo tempo, alimentada por elas.A agenda terica moveu-se da anlise dasdesigualdades e das relaes de poder entrecategorias sociais relativamente dadas ou fixas(homens e mulheres, gays e heterossexuais) para o

    questionamento das prprias categorias suafixidez, separao ou limites e para ver o jogo dopoder ao redor delas como menos binrio e menosunidirecional.12

    A poltica de identidade homossexual estava emcrise e revelava suas fraturas e insuficincias.Gradativamente, surgiriam, pois, proposies e

    12 EPSTEIN e JOHNSON, 1998, p. 37-38.

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    formulaes tericas ps-identitrias. precisamentedentro desse quadro que a afirmao de uma poltica ede uma teoria queer precisa ser compreendida.

    Uma teoria e uma poltica ps-identitria

    Queer pode ser traduzido por estranho, talvezridculo, excntrico, raro, extraordinrio. Mas aexpresso tambm se constitui na forma pejorativa comque so designados homens e mulheres homossexuais.Um insulto que tem, para usar o argumento de JudithButler,13 a fora de uma invocao sempre repetida, uminsulto que ecoa e reitera os gritos de muitos grupos

    homfobos, ao longo do tempo, e que, por isso, adquirefora, conferindo um lugar discriminado e abjeto

    13 BUTLER, 1999.

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    queles a quem dirigido. Este termo, com toda suacarga de estranheza e de deboche, assumido por umavertente dos movimentos homossexuais precisamente

    para caracterizar sua perspectiva de oposio e decontestao. Para esse grupo, queer significa colocar-secontra a normalizao venha ela de onde vier. Seu alvomais imediato de oposio , certamente, aheteronormatividade compulsria da sociedade; masno escaparia de sua crtica a normalizao e aestabilidade propostas pela poltica de identidade domovimento homossexual dominante. Queer representaclaramente a diferena que no quer ser assimilada outolerada e, portanto, sua forma de ao muito maistransgressiva e perturbadora.14

    14 Algumas vezes queer utilizado como um termo sntese para sereferir, de forma conjunta, a gays e lsbicas. Esse uso , noentanto, pouco sugestivo das implicaes polticas envolvidas na

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    A poltica queer est estreitamente articulada produo de um grupo de intelectuais que, ao redor dosanos 90, passa a utilizar este termo para descrever seu

    trabalho e sua perspectiva terica. Ainda que esse sejaum grupo internamente bastante diversificado, capaz deexpressar divergncias e de manter debates acalorados,h entre seus integrantes algumas aproximaessignificativas. Diz Seidman:

    Os/as tericos/as queer constituem umagrupamento diverso que mostra importantesdesacordos e divergncias. No obstante, eles/elas

    eleio do termo, feita por parte do movimento homossexual,exatamente para marcar (e distinguir) sua posio no-

    assimilacionista e no-normativa. Deve ser registrado, ainda,que a preferncia por queer tambm representa, pelo menos natica de alguns, uma rejeio ao carter mdico que estariaimplcito na expresso "homossexual.

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    compartilham alguns compromissos amplos emparticular, apoiam-se fortemente na teoria ps-estruturalista francesa e na desconstruo comoum mtodo de crtica literria e social; pem em

    ao, de forma decisiva, categorias e perspectivaspsicanalticas; so favorveis a uma estratgiadescentradora ou desconstrutiva que escapa dasproposies sociais e polticas programticaspositivas; imaginam o social como um texto a serinterpretado e criticado com o propsito decontestar os conhecimentos e as hierarquiassociais dominantes.15

    As condies que possibilitam a emergncia domovimento queer ultrapassam, pois, questes pontuais

    da poltica e da teorizao gay e lsbica e precisam sercompreendidas dentro do quadro mais amplo do ps-

    15 SEIDMAN, 1995, p. 125.

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    outro, ou melhor, que ele sempre se percebe e seconstitui nos termos do outro. Longe de ser estvel ecoeso, esse um sujeito dividido, que vive,constantemente, a intil busca da completude. Aspossibilidades de autodeterminao e de agnciatambm so postas em xeque pela teorizao deAlthusser quando este demonstra como os sujeitos sointerpelados e capturados pela ideologia. ConformeAlthusser, ao se entregar ideologia, o sujeito realiza, de

    forma aparentemente livre, seu prprio processo desujeio.

    Ao lado dessas teorizaes que problematizaramde forma radical a racionalidade moderna, destacam-seos insights de Michel Foucault sobre a sexualidade,

    diretamente relevantes para a formulao da teoriaqueer. Conforme Foucault, vivemos, j h mais de umsculo, numa sociedade que "fala prolixamente de seu

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    prprio silncio, obstina-se em detalhar o que no diz,denuncia os poderes que exerce e promete liberar-se dasleis que a fazem funcionar".16 Ele desconfia dessealegado silncio e, contrariando tal hiptese, afirma queo sexo foi, na verdade, "colocado em discurso": temosvivido mergulhados em mltiplos discursos sobre asexualidade, pronunciados pela igreja, pela psiquiatria,pela sexologia, pelo direito... Empenha-se em descreveresses discursos e seus efeitos, analisando no apenas

    como, atravs deles, se produziram e se multiplicaramas classificaes sobre as 'espcies' ou 'tipos' desexualidade, mas tambm como se ampliaram os modosde control-la. Tal processo tornou possvel, segundo ele,a formao de um "discurso reverso", isto , um discurso

    produzido a partir do lugar que tinha sido apontadocomo a sede da perversidade, como o lugar do desvio e

    16 FOUCAULT, 1993, p. 14.

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    da patologia: a homossexualidade. Mas Foucaultultrapassa amplamente o esquema binrio de oposioentre dois tipos de discursos, acentuando que vivemosuma proliferao e uma disperso de discursos, bemcomo uma disperso de sexualidades. Diz ele:

    assistimos a uma exploso visvel das sexualidadesherticas, mas sobretudo e esse o pontoimportante a um dispositivo bem diferente da lei:

    mesmo que se apoie localmente em procedimentosde interdio, ele assegura, atravs de uma rede demecanismos entrecruzados, a proliferao deprazeres especficos e a multiplicao desexualidades disparatadas.17

    A construo discursiva das sexualidades, expostapor Foucault, vai se mostrar fundamental para a teoria

    17 FOUCAULT, 1993, p. 48.

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    queer. Da mesma forma, a operao de desconstruo,proposta por Jacques Derrida, parecer, para muitostericos e tericas, o procedimento metodolgico maisprodutivo. Conforme Derrida, a lgica ocidental opera,tradicionalmente, atravs de binarismos: este umpensamento que elege e fixa como fundante ou comocentral uma ideia, uma entidade ou um sujeito,determinando, a partir desse lugar, a posio do 'outro',o seu oposto subordinado. O termo inicial

    compreendido sempre como superior, enquanto que ooutro o seu derivado, inferior. Derrida afirma que essalgica poderia ser abalada atravs de um processodesconstrutivo que estrategicamente revertesse,desestabilizasse e desordenasse esses pares.

    Desconstruir um discurso implicaria em minar, escavar,perturbar e subverter os termos que afirma e sobre osquais o prprio discurso se afirma. Desconstruir no

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    b d l i

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    sugere tambm o quanto cada polo , em si mesmo,fragmentado e plural. Para os tericos/as queer, aoposio heterossexualidade/homossexualidade onipresente na cultura ocidental moderna poderia serefetivamente criticada e abalada por meio deprocedimentos desconstrutivos.

    Na medida em que queer sinaliza para o estranho,para a contestao, para o que est fora-do-centro, seriaincoerente supor que a teoria se reduzisse a uma

    'aplicao' ou a uma extenso de ideias fundadoras. Ostericos e tericas queer fazem um uso prprio etransgressivo das proposies das quais se utilizam,geralmente para desarranjar e subverter noes eexpectativas. o caso de Judith Butler, uma das mais

    destacadas tericas queer. Ao mesmo tempo em quereafirma o carter discursivo da sexualidade, ela produznovas concepes a respeito de sexo, sexualidade,

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    B tl fi i d d t

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    gnero. Butler afirma que as sociedades constroemnormas que regulam e materializam o sexo dos sujeitose que essas "normas regulatrias" precisam serconstantemente repetidas e reiteradas para que talmaterializao se concretize. Contudo, ela acentua que"os corpos no se conformam, nunca, completamente, snormas pelas quais sua materializao imposta",19 daque essas normas precisam ser constantemente citadas,reconhecidas em sua autoridade, para que possam

    exercer seus efeitos. As normas regulatrias do sexotm, portanto, um carter performativo, isto , tm umpoder continuado e repetido de produzir aquilo quenomeiam e, sendo assim, elas repetem e reiteram,constantemente, as normas dos gneros na tica

    heterossexual.

    19 BUTLER, 1999, p. 154.

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    J dith B tl t t d d li g ti

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    Judith Butler toma emprestado da lingustica oconceito de performatividade, para afirmar que alinguagem que se refere aos corpos ou ao sexo no fazapenas uma constatao ou uma descrio dessescorpos, mas, no instante mesmo da nomeao, constri,'faz' aquilo que nomeia, isto , produz os corpos e ossujeitos. Esse um processo constrangido e limitadodesde seu incio, pois o sujeito no decide sobre o sexoque ir ou no assumir; na verdade, as normas

    regulatrias de uma sociedade abrem possibilidades queele assume, apropria e materializa. Ainda que essasnormas reiterem sempre, de forma compulsria, aheterossexualidade, paradoxalmente, elas tambm doespao para a produo dos corpos que a elas no se

    ajustam. Esses sero constitudos como sujeitos "abjetos" aqueles que escapam da norma. Mas, precisamente porisso, esses sujeitos so socialmente indispensveis, j

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    Uma pedagogia e um currculo queer

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    Uma pedagogia e um currculo queer

    Como um movimento que se remete ao estranho eao excntrico pode se articular com a Educao,tradicionalmente o espao da normalizao e doajustamento? Como uma teoria no-propositiva pode'falar' a um campo que vive de projetos e de programas,de intenes, objetivos e planos de ao? Qual o espao,nesse campo usualmente voltado ao disciplinamento e

    regra, para a transgresso e para a contestao? Comoromper com binarismos e pensar a sexualidade, osgneros e os corpos de uma forma plural, mltipla ecambiante? Como traduzir a teoria queer para a prticapedaggica?

    Para ensaiar respostas a tais questes preciso terem mente no apenas o alvo mais imediato e direto dateoria queer o regime de poder-saber que, assentado na

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    das diferenas e trabalhariam, centralmente, com a

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    das diferenas e trabalhariam, centralmente, com ainstabilidade e a precariedade de todas as identidades.Ao colocar em discusso as formas como o 'outro' constitudo, levariam a questionar as estreitas relaesdo eu com o outro. A diferena deixaria de estar l fora,do outro lado, alheia ao sujeito, e seria compreendidacomo indispensvel para a existncia do prprio sujeito:ela estaria dentro, integrando e constituindo o eu. Adiferena deixaria de estar ausente para estar presente:

    fazendo sentido, assombrando e desestabilizando osujeito. Ao se dirigir para os processos que produzem asdiferenas, o currculo passaria a exigir que se prestasseateno ao jogo poltico a implicado: em vez demeramente contemplar uma sociedade plural, seria

    imprescindvel dar-se conta das disputas, dos conflitos edas negociaes constitutivos das posies que ossujeitos ocupam.

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    ignorncia sobre a forma como a sexualidade 27

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    moldada?27 (destaques meus).

    A "reviravolta epistemolgica" provocada pela

    teoria queer transborda, pois, o terreno da sexualidade.Ela provoca e perturba as formas convencionais depensar e de conhecer. A sexualidade, polimorfa eperversa, ligada curiosidade e ao conhecimento. Oerotismo pode ser traduzido no prazer e na energia

    dirigidos a mltiplas dimenses da existncia. Umapedagogia e um currculo conectados teoria queerteriam de ser, portanto, tal como ela, subversivos eprovocadores. Teriam de fazer mais do que incluirtemas ou contedos queer; ou mais do que se preocupar

    em construir um ensino para sujeitos queer. Como

    27 BRITZMAN, 1996, P. 91.

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    lugar. Certamente, essas estratgias tambm acabam porib i d d d i d i d

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    contribuir na produo de um determinado 'tipo' desujeito. Mas, neste caso, longe de pretender atingir,finalmente, um modelo ideal, esse sujeito e essa

    pedagogia assumem seu carter intencionalmenteinconcluso e incompleto.

    Efetivamente, os contornos de uma pedagogia oude um currculo queer no so os usuais: faltam-lhes asproposies e os objetivos definidos, as indicaes

    precisas do modo de agir, as sugestes sobre as formasadequadas para 'conduzir' os/as estudantes, adeterminao do que 'transmitir'. A teoria que lhes servede referncia desconcertante e provocativa. Tal comoos sujeitos de que fala, a teoria queer , ao mesmo tempo,

    perturbadora, estranha e fascinante. Por tudo isso, elaparece arriscada. E talvez seja mesmo... mas,seguramente, ela tambm faz pensar.

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    R f i Bibli fi

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    Referncias Bibliogrficas

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