[livro] sete aulas sobre linguagem memoria historia jeanne gagnebin.pdf

Upload: editoraliteracidade

Post on 13-Oct-2015

87 views

Category:

Documents


27 download

TRANSCRIPT

  • 5/24/2018 [livro] sete aulas sobre linguagem memoria historia jeanne gagnebin.pdf - sl...

    http:///reader/full/livro-sete-aulas-sobre-linguagem-memoria-historia-jeanne-

  • 5/24/2018 [livro] sete aulas sobre linguagem memoria historia jeanne gagnebin.pdf - sl...

    http:///reader/full/livro-sete-aulas-sobre-linguagem-memoria-historia-jeanne-

    Jeanne Marie Gagnebin

    SETE AULAS

    SOBRE LINGUAGEM,

    MEMRIA E HISTRIA

    I mago

  • 5/24/2018 [livro] sete aulas sobre linguagem memoria historia jeanne gagnebin.pdf - sl...

    http:///reader/full/livro-sete-aulas-sobre-linguagem-memoria-historia-jeanne-

    6129s

    C opyr i gh t Jeanne M ar ie Gagnebin, 1997

    R e v i s o . -Nina Schipper, Mari f lor Rocha e

    J M Gagneb in

    C a p a :

    Barbara Szaniecki

    CIP-B rasil Catalogao.na-fonte

    Sindicato N acional dos Edi tores de Livros, RJ

    Jeanne Marie Gagnebin

    Sete Aulas Sob re L inguagem , Memr ia e Histdna -

    - R io de Jane i ra . /m ago E d . 1997

    192 p . /B ib lio te ca P ie rre M enard /

    Inclui apnd ice e bibl iografia

    ISBN 85,3/20544 t

    /. Filosofia 2 Li teratura F i losof ia. 3 . Filosofia grega..

    L Thu la. lL Srie.

    cm- 100C00 i97-0222

    Reservados rodos o s direitos

    Nenhum a pane desta obra poder ser

    reproduzida sem permisso exp ressa

    da Ed itora

    1997

    IM AG O f0 /T O R A LT D A.

    Rua San tos Ro dr igues 201-A fs tno

    20250430 Rio de Jane i ro R J

    Tel:/02 I/ 293 /092

    Imptesso no Brasi l

    Panted in Brazi l

  • 5/24/2018 [livro] sete aulas sobre linguagem memoria historia jeanne gagnebin.pdf - sl...

    http:///reader/full/livro-sete-aulas-sobre-linguagem-memoria-historia-jeanne-

    SUMARIO

    Apresentao

    I. O Incio da Histria e as Lgrimas de Tucdides

    Il. As Flautistas, as Parteiras e as Guerreiras

    III. Morte da Memria, Memria da Morte:da Escrita em Plato

    TV . Dizer o Tempo

    V. Do Conceito deMimesis no Pensamento de

    Adorno e Benjamin

    VI. Do Conceito de Razo em Adorno

    9

    15

    39

    49

    69

    81

    107

    VII. O Hino, a Brisa e a Tempestade: dos Anjos emWalter Benjamin 123

    I . Baudelaire, Benjamin e o Moderno

    Apndices

    139

    II . O Campons de Paris: Uma Topografia Espiritual

    Ill. Infncia e Pensamento

    Fontes

    155

    169

    185

  • 5/24/2018 [livro] sete aulas sobre linguagem memoria historia jeanne gagnebin.pdf - sl...

    http:///reader/full/livro-sete-aulas-sobre-linguagem-memoria-historia-jeanne-

  • 5/24/2018 [livro] sete aulas sobre linguagem memoria historia jeanne gagnebin.pdf - sl...

    http:///reader/full/livro-sete-aulas-sobre-linguagem-memoria-historia-jeanne-

    APRESENTAO

    Recolher vrios textos de pocas diferentes, espalhados em diversasrevistas, para public-los urna segunda vez juntos esse gesto nodeixa de me assustar. Ele tem um perfume de venerao quasefetichista que no gostaria de reivindicar para mim. Tais coletneasso organizadas, no mais das vezes, por discpulos saudosos, ouespertos editores que se aproveitam de algumas pginas inditas domestre para lanar mais um livro. No se trata disso aqui. Para dizera verdade, as razes que me convenceram da utilidade desse empreen-dimento, afora a charmosa insistncia de Arthur Nestrovski, so deordem contingente e material, o que me tranqiliza. Dizem respeito precariedade de nossas instituies, em particular de nossas revistasacadmicas: quantas vezes um colega escreve um artigo que poderialhe interessar e voc nem sabe de sua existncia ou, ento, noconsegue o nmero desejado do peridico! Reunir textos esparsos

    pode, assim, ter o mrito simultaneamente trivial e essencial de juntarmateriais para a continuao do trabalho: do seu trabalho como autore do trabalho dos leitores, quem sabe de um trabalho comum

    Nesse contexto de trabalho e de reflexo conjuntos, publico aquisete aulas, seguidas de trs apndices, que tambm se inserem numesprito que pode ser chamado de pedaggico embora esse adjetivose preste a inmeras confuses. Se, segundo a clebre frmula kan-tiana, no se pode ensinar a filosofia, s se ensina a filosofar, entoo tom pedaggico desses textos consistir menos na transmisso,certamente importante, de saberes, e mais numa tentativa conjuntade elaborao de algumas questes. Elaborao demorada, paciente,

  • 5/24/2018 [livro] sete aulas sobre linguagem memoria historia jeanne gagnebin.pdf - sl...

    http:///reader/full/livro-sete-aulas-sobre-linguagem-memoria-historia-jeanne-

    1 0 : SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM. MEMRIA E HISTORIA

    s vezes hesitante, s vezes precipitada, atravessada por ritmos e

    tempos diferentes como o caminhar e conversar de amigos, segundoas variaes metafricas em torno do mtodo filosfico, de Plato e

    sua "longa estrada "at Benjamin e seu "mtodo" como "desvio".Mas ser que h uma questo central nesse itinerrio mltiplo?

    A releitura desses textos me parece indicar, revelia das intenesprimeiras e explicitas da autora pois as questes verdadeiras nonos pertencem, nem so o privilgio exclusivo da conscincia clara

    um ncleo de interrogao em redor do qual gravitam todos osensaios, um ncleo que seria, simultaneamente, objeto do desejo efundamento do pensamento, que o pe em movimento e se lhe

    esquiva; encontro essa interrogao formulada no texto sobre oslivros X e XI das Confisses de Santo Agostinho, "Dizer o Tempo", oensaio mais pedaggico de todos para mim, pois no sou nenhumaespecialista em patrstica. a questo da relao transcendentalmtua entre tempo e linguagem, porque no h linguagem que se

    diga sem se desdobrar nas vrias dobras do tempo, nem tempo quepossa se configurar e adquirir sentido, por mais fugaz que seja, semser recolhido e articulado por linguagem. Co-pertencer recproco queressalta a sua comum ligao ausncia: a linguagem s remete aoreal, s "coisas", como se diz, porque presentifica sua ausncia e,portanto, como o viu bem Maurice Blanchot, anuncia sempre sua

    morte; e o tempo no se deixa agarrar, mas s nos pertence no seuincessante escapulir, nesse movimento de promessa e de evaso quenos desapossa de qualquer posse, da dos objetos e daqueles queamamos, mas tambm da posse de ns mesmos.

    Essa questo genuinamente filosfica, talvez mesmo metafsica ousei at usar o adjetivo "transcendental" , pertence tradiofilosfica clssica; uma outra interrogao a acompanha, que geral-

    mente s6 intervm na filosofia como seu no-dito, seu recalcado,talvez: a questo da diferena sexual. Hoje, relendo esses textos, mepergunto se as problemticas no se cruzam e se enredam coin umaintensidade que no suspeitava quando procurava interrogar o usodas metafras sexuais, ou as tentativas de partilha clara entre femi-

    nino e masculino, por exemplo, na obra de Plato. Pois a diferenasexual tambm remete a esse limite de ns mesmos que no podemosultrapassar, que nos limita no duplo sentido de delimitao, portantode definio, e de limitao, portanto de restrio. Tambm esselimite, to impensado pelo discurso filosfico, nos constitui e nosescapa corno o fazem temporalidade e linguagem, tambm ele o

  • 5/24/2018 [livro] sete aulas sobre linguagem memoria historia jeanne gagnebin.pdf - sl...

    http:///reader/full/livro-sete-aulas-sobre-linguagem-memoria-historia-jeanne-

    Apresenlaco : 1 1

    signo incontestvel de nossa incompletude, de nossa condio demortal, como j dizia Homero. E seu reconhecimento pleno, com asangstias e alegrias que comporta, talvez no seja to distante da

    atividade do pensamento e de seus jogos incessantes, sempre outros,entre alteridade e identidade.Por fim, gostaria de agradecer aos alunos, que, em todos esses

    anos, pela curiosidade e pelo entusiasmo, mas tambm pelas hesita-es e dificuldades, me incitaram a continuar apostando nesse exer-ccio simultaneamente srio e leve, essencial e ldico, que se chamafilosofia.

    Campinas, abrilde 1996.

  • 5/24/2018 [livro] sete aulas sobre linguagem memoria historia jeanne gagnebin.pdf - sl...

    http:///reader/full/livro-sete-aulas-sobre-linguagem-memoria-historia-jeanne-

  • 5/24/2018 [livro] sete aulas sobre linguagem memoria historia jeanne gagnebin.pdf - sl...

    http:///reader/full/livro-sete-aulas-sobre-linguagem-memoria-historia-jeanne-

    SETE AULAS

    SOBRE LINGUAGEM,

    MEMRIA E HISTRIA

  • 5/24/2018 [livro] sete aulas sobre linguagem memoria historia jeanne gagnebin.pdf - sl...

    http:///reader/full/livro-sete-aulas-sobre-linguagem-memoria-historia-jeanne-

  • 5/24/2018 [livro] sete aulas sobre linguagem memoria historia jeanne gagnebin.pdf - sl...

    http:///reader/full/livro-sete-aulas-sobre-linguagem-memoria-historia-jeanne-

    I. O INCIO DA HISTRIA

    E AS LAGRIMAS DE TUCDIDES

    Em memria de Celso M. Guimares

    Este artigo retoma algumas aulas de um curso de filosofia da histria,dado h vrios anos. A sua pretenso no acrescentar um comentriooriginal aos numerosos j existentes sobre as obras de Herdoto e

    Tucdides, l mas esboar uma descrio da constituio deste tipo dediscurso que, mais tarde, ser chamado de histria.Trs aspectos sero

    ressaltados nesta anlise das prticas narrativas de Herdoto e deTucdides: a construo da memria do passado, a questo da causa-lidade e a posio do narrador. So estes trs aspectos que emetema uma concepo subjacente, explcita ou implcita, das relaes entreo tempo da histria dita "real" (o conjunto dos acontecimentos,Geschichte, em alemo) e o tempo da histria contada (a narrao dosacontecimentos, Geschichte, mas tambmErzhlung), isto , a din-mica temporal que preside histria enquanto saber (disciplina,

    "cincia", em alemo tambm Historie).J menciu:lamos que os discursos de Herdoto e Tucdides rece-

    bero, mais tarde, o nome de histria. Her6doto ficou, na tradio,como "o pai da histria", enquanto se fazia de Tucdides o primeiro

    1 Utilizamos em particular a excelente traduo (com introduo de Jacqueline de Romilly)de Herdoto e Tucdides, na Bibliothequedela Pliade ( Herdote, L'enqute, trad. et notesde A. Barguet; Thucydide, La Guerre du Peloponese, trad. et notes de D. Roussel). Astradues brasileiras de Mrio da Gama Kury deixam muito a desejar e so, freqente-

    mente, corrigidas. Sobre Her6doto e Tucdides, citemos: Franois Chtelet, La naissancede l'histoire (Paris: Minuit, 1962), v. 1, pp. 10-18; Jacqueline de Romilly, na j citadaintroduo do volume da Pliade; Marcel Dtienne, L'invention de la mythologie (Paris:Gallimard, 1981). Sobre Her6doto, o livro fundamental de Franois Hartog, Le miroird'Hrodote Essai sur la reprsentationde l'autre (Paris: Gallimard, 1980). Sobre Tucdides,Jacqueline de Romilly, Histoire et raison chez Thucydide (Paris: Belles Lettres, 1967); etambm Problmes de la democratie grecque (Paris: Hermann, 1975).

  • 5/24/2018 [livro] sete aulas sobre linguagem memoria historia jeanne gagnebin.pdf - sl...

    http:///reader/full/livro-sete-aulas-sobre-linguagem-memoria-historia-jeanne-

    16 : SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMRIA E HISTRIA

    historiador crtico. Tais denominaes repousam sobre atribuiesposteriores, caractersticas, alis, de qualquer cincia em busca deseucertificado de origem. Mas, nos textos de nossosprimeiros "historia-dores", a palavra "histria" no existe (no se encontra, fora engano,nenhuma vez na obra de Tucdides), 2 ou, ento, possui um sentidomuito afastado do nosso. Pois quando Herdoto declara, nas primei-ras linhas da sua obra, "Herdoto de Halicarnassos apresenta aqui osresultados da sua investigao(histories apodexis)...", apalavrahistorieno pode sersi mplesmente traduzida por histria. O nosso conceitoi mplica um gnero cientfico bem determinado; a palavra gregahistorie tem, nesta poca e neste contexto, uma significao muito

    .mais ampla: ela remete palavra hictr,"aquele que viu, testemu-nhou". O radical comum(v)idest ligado viso (videre, em Latim

    ver), ao ver e ao saber(oida em grego significa eu vie tambmeu sei,pois a viso acarreta o saber). 3 Herdoto quer apresentar, mostrar(apodexis) aquilo que viu epesquisou. Trata-se, ento, de um relatode viagem, deum relatrio de pesquisa, de umanarrativa informativae agradvel que engloba os aspectos da realidade dignos de menoe de memria. No h nenhuma restrio a um objeto determinado:

    a historiepode pesquisara tradio dos povos longnquos, as causasdas enchentes do Nilo ou as razes de uma derrota militar. Estaprofuso de dados que nos parecem heterogneos e que incomodamos sriosprofessores atuais, preocupados em distinguir a histria da

    geografia ou a sociologia da antropologia, estaprofuso no embara- a Herdoto, pelo contrrio. O que diferencia a sua pesquisa de outras

    formas narrativas no o(s) seu(s) objeto(s), mas o processo deaquisio destes conhecimentos. Herdoto fala daquilo que ele mes-

    mo viu, ou daquilo de que ouviu falarpor outros; ele privilegia apalavra da testemunha, a suaprpria ou a deoutrem. Inmeras vezes, Ino decorrer da sua narrativa, o nosso viajante menciona as suas"fontes", se ele mesmo viu o que conta ou se s ouviu falar e, nestecaso, se o "informante" tinha visto, ele mesmo, ou s ouvido falar. 4Esta preocupaoque podemos relacionarcom a crescente prtica

    judiciria, na Grcia do sculo V, de audio de testemunhas t raz

    2 0 que l invalida o titulo da traduo brasileira: Histria da Guerra do Peloponeso, poishistria no existe no titulo grego!

    3 Cf. Emile Benveniste, Vocabulaire des institutionsindo-europens, citado por Hartog, op.cit., p. 272.

    4A este respeito, cf. Franois Hartog, op. cit., 2". pane, cap. 2; e Marcel Dtienne, op. cit.,cap. 3.

  • 5/24/2018 [livro] sete aulas sobre linguagem memoria historia jeanne gagnebin.pdf - sl...

    http:///reader/full/livro-sete-aulas-sobre-linguagem-memoria-historia-jeanne-

    0 INICIO DA HISTORIA E AS LAGRIMAS OE TUCIOIDES 17

    consigo uma primeira diferena essencial entre a narrativa "histrica"

    de Herdoto e as narrativas mticas, a epopia homrica por exemplo.

    Herdoto s quer falar daquilo que viu ou daquilo de que ouviu falar.

    O perodo cronolgico alcanado se limita, portanto, a duas ou trsgeraes antes da sua visita, pois o resto do tempo se perde nono-mais-visto, isto , no no-relatvel. Em oposio ao nosso con-ceito de histria, esta pesquisa, ligada oralidade e viso, nopretende abarcar um passado distante. Tal restrio tambm a deli-mita em relao ao discurso mtico, que fala de um tempo longnquo,de um tempo das origens, tempo dos deuses e dos heris, do qual sas musas podem nos fazer lembrar, pois, sem elas, no podemos saber

    (idein) daquilo que no vimos.Muito mais que a conscincia de inaugurar uma nova disciplina,

    designada posteriormente pelo nome de histria, esta oposiocrescente tradio mtica que determina, de maneira diversa, tantoa obra de Herdoto como a de Tucdides. interessante notar queHerdoto, quando se refere s vrias partes da sua obra, no usa apalavra histria mas sim a palavra logos (discurso) para identific-las;

    no fala da "histria" dos Scitas, do Egito ou de Darius, mas sim delogos scita, de logos egipcio ou de logos a respeito de Darius etc. Oprprio vocabulrio insiste na grande oposio entre logos e mythos,na qual vai se enraizar a distino entre o discurso cientfico, filos-fico ou histrico e o discurso potico-mtico. Distino progressivaque no tem nada de necessrio, nem de evidente, nem de eterno,como uma certa historiografia iluminista triunfante gostaria de esta-belecer. Nas primeiras linhas das historiai do nosso primeiro "histo-

    riador

  • 5/24/2018 [livro] sete aulas sobre linguagem memoria historia jeanne gagnebin.pdf - sl...

    http:///reader/full/livro-sete-aulas-sobre-linguagem-memoria-historia-jeanne-

    1 8 S E T E AULAS SOBRE L INGUAGEM , MEM RIA E HISTRIA

    nesta religao constante: tarefa profundamente religiosa, portanto,se lembrarmos que a religio tem a ver, primeiro, com este desejo de"religao" e, s depois, com uma sistemtica de crenas. Tarefareligiosa ou mtica de comemorao que unia o poeta arcaico, osacerdote e o adivinho 5 e que se transmite, at os nossos dias, naspalavras do poeta e na preocupao "cientifica" do historiador como passado. Herdoto tambm quer lutar contra o tempo que destrie aniquila at a lembrana dos atos hericos dos homens, s que eleno canta mais, ele tenta dar a razo, a causa (aitia) dos acontecimen-tos, anunciando a famosa exigncia platnica de logon didonai ("dar

    a razo"). J dissemos que esta busca privilegia a palavra de testemu-nhas vivas, que passa pelo ver e pelo ouvir. Herdoto no usa equase no menciona documentos escritos que poderiam ajud-lona reconstruo do passado. Esta Primazia da oralidade tambmsublinha a sua proximidade da tradio mtica e potica, transmitidade gerao em gerao atravs de um aprendizado de cor, sem a ajudada escrita e da leitura, na imediatez da palavra falada e ouvida.

    O ritmo narrativo das historiai tambm lembra o do poema pico,

    declamado em voz alta ao pblico reunido em tomo do aedo: a prosade Herdoto est cheia de digresses maravilhosas, de anedotasamenas ou pedaggicas que mantm aceso o interesse do ouvinte (edo leitor) . 6 Nada da arquitetura austera e argumentativa do textotucidideano, escrito para ser lido no futuro, mas a fluidez de histriascontadas, sem dvida, para informar e ensinar, mas tambm pelosi mples prazer de contar. Neste rio de histrias que, como o Nilo quedescrevem, transborda s vezes o seu leito e fertiliza terras no

    previstas pelo estrito desenho do raciocinio, nestas histrias, porm,reina um principio novo e exigente: a busca das verdadeiras razes(aitiai), das causas que Herdoto pde, sua maneira, verificar, emoposio s alegadas pela tradio mtica. Aps explicitar sua tarefa

    de resgate do passado, Herdoto enumera algumas pseudocausasgeralmente citadas para explicar a inimizade entre os gregos e osbrbaros; 7 so lendas antigas e confusas que variam segundo o povo

    5 A este respeito cf. J. P. Vernant, Mythe et pensechez Ies G recs (Paris: Maspro, 1965); eMarcel Dtienne, Les mattres de vritdans la Greta archaque (Paris: Maspro, 1967).

    6 Cf. Francois Hartog, op. cit., pp. 282 s s .7 Os brbaros sio os no-gregos, aqueles que falam uma lingua estranha, incompreensivel:

    "bar, bar, bar". Nessa primeira definio, no h nenhum sentido pejorativo apriori. Queo outro, o estrangeiro, dedlferente que se torne selvagem e cruel, j remetea um processohistrico bem determinado.

  • 5/24/2018 [livro] sete aulas sobre linguagem memoria historia jeanne gagnebin.pdf - sl...

    http:///reader/full/livro-sete-aulas-sobre-linguagem-memoria-historia-jeanne-

    0 IN C IO OA HISTRIA E AS LAGRIMAS DE TUCDIDES : 19

    que as conta. Falam de sucessivos raptos de mulheres: os fenciosteriam raptado lo, filha do rei grego de Argos; em represlia, algunsgregos (cujos nomes so desconhecidos) fizeram o mesmo com a filha

    do rei dos fencios e, mais tarde, com Medfa, uma outra princesaestrangeira. Vendo que os gregos arrebatam mulheres impunemente,Pris de Tria foi at Esparta roubar a bela Helena. Em vez de seconformar com este acontecimento desagradvel, mas, afinal, nadacatastrfico, os gregos ficaram irados e desencadearam uma expedi-o punitiva contra Tria. Segundo esta tradio mtica, portanto, aorigem das Guerras Mdicas deveria ser procurada na Guerra de Trbia.Herdoto no esconde sua ironia. Tais narrativas, diz ele, no sodignas de f, pois mudam totalmente segundo quem as conta. Elasno conseguem verdadeiramente explicar, so at ridculas, poisningum de bom senso acreditar que estas histrias de rapto podemdesencadear guerras: nenhuma mulher vale uma guerra, sobretudo,nenhuma mulher, nos afirma o varo Herdoto, se deixa raptarcontra a sua vontade (I, 4).

    A estas lendas contadas de gerao a gerao sem nenhuma

    garantia de exatido, Herdoto ope a certeza daquilo que ele mesmosabe: "So estas as verses dos persas e dos fencios. Quanto a mim, nodirei a respeito dessas coisas que elas aconteceram de uma maneira ou deoutra, mas apontarei a pessoa que, em minha opinio, foi a primeira aofender os helenos, e assim prosseguirei com a minha narrao, falandoigualmente das pequenas e grandes cidades dos homens" (I, 5).

    Herdoto opera aqui uma partilha entre dois tipos de narrativasque correspondem a duas formas de tempo: h uma narrativa mtica,

    lendria, sem cronologia possvel, que remete ao tempo afastado dosdeuses e dos homens; e h uma narrativa "histrica" (de um tempopesquisvel e pesquisado), com referncias cronolgicas passveis deserem encontradas, que trata do tempo mais recente dos homens.Como o ressalta Vidal-Naquet,8 esta oposio orienta o discurso deHerdoto muito mais que uma suposta oposio entre tempo cclicoe tempo linear. Notemos tambm que Herdoto no duvida daexistncia deste tempo anterior, mtico e sagrado. A sua descrio do

    Egito, pais que para os gregos clssicos sempre representou a autori-dade e a sabedoria de uma civilizao muito mais antiga, ressalta queeste tempo realmente existiu, mas est muito mais afastado do nosso

    8 Cf. Pierre Vidal-Naquet, "Temps des dieux et temps des hommes", emLe chasseur noir(Paris: Maspro, 1981), sobretudo pp. 81 ss.

  • 5/24/2018 [livro] sete aulas sobre linguagem memoria historia jeanne gagnebin.pdf - sl...

    http:///reader/full/livro-sete-aulas-sobre-linguagem-memoria-historia-jeanne-

    20 SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMRIA E HISTRIA

    do que geralmente acreditamos. 9 No se trata de negar o tempomtico e sagrado; trata-se, para Herdoto, de recusar os procedimen-tos narrativos do mito para descrever o nosso tempo humano, restri-

    to, finito..., enfim, "histrico"! A busca das verdadeiras razes dosacontecimentos atravs do testemunho prprio ou alheio inscreve-seneste esforo racional do logos em oposio ao rnythos de escritadanossahistria.

    Coexistem, porm, em Herdoto, ao lado do esforo de estabele-cimento de uma cronologia e de uma causalidade lineares, outrastentativas de explicao muito mais antigas, ligadas ao pensamentoque nossa razo continua designando como mtico. Seguindo Vidal-

    Naquet e Franois Chtelet,10

    devemos mencionar a crena de Her-doto numa lei cosmolgica de repetio e de compensao. Esta idiade repetio orienta a prpria estrutura das historiai: assim, o reiCresus anuncia Xerxes e a guerra de Darius contra os scitas anunciaa expedio de Xerxes contra os gregos.'

    1

    Fundamentalmente, a idiade repetio retoma a antiga lei de compensao e reviravolta, ligada noo mtica de vingana, que se transformar no conceito dejustia natural e social, na dike de Anaximandro.

    12

    Depois de recusar as causas lendrias das Guerras Mdicas, Her-doto declara: "Quanto a mim, no direi a respeito dessas coisas queelas aconteceram de uma maneira ou de outra, mas apontarei a pessoaque, em minha opinio, foi a primeira a ofender os helenos, e assimprosseguirei com a minha narrao, falando igualmente das pequenase das grandes cidades dos homens, pois muitas cidades outroragrandes agora so pequenas, e as grandes no meu tempo eram outrora

    pequenas. Sabendo portanto que a prosperidade humana jamais estvel, farei meno a ambas igualmente" (I, 5).Temos, aqui, a convico, ao lado da busca das causas polticas,

    de que existe um processo cclico de compensao justa: nada dehumano que seja estvel, o pequeno cresce at se tomar grande, mastambm o grande desmorona e se torna pequeno de novo. EmHerdoto, como no pensamento grego em geral, no h lugar para

    9 Ibid.10Cf. Pierre Vidal-Naquet, op. cit.; e Franois Chatelet, op. cit. Deste, cf. tambm,Lesldologla (orgs. Chatelet e G. Mairet, Paris: Marabout, 1981), v.1, pp. 171 ss.

    11 Cf. Pierre Vidal-Naquet, op. cit.; Franois Chatelet, op. cit.; e, tambm,Franois Hartog,op. cit., p. 376.

    12 Anaximandro, fragmentos citados por Simplicius, Fsica, 24, 13; cf. Pr-socrticos (SaoPaulo:Abril Cultural, 1973 e reed.); Coleao Os Pensadores, p. 16.

  • 5/24/2018 [livro] sete aulas sobre linguagem memoria historia jeanne gagnebin.pdf - sl...

    http:///reader/full/livro-sete-aulas-sobre-linguagem-memoria-historia-jeanne-

    INICIO O A HISTRIA E AS LAGRIMAS DE TUCIOIOES : 21

    uma idia de progresso histrico linear. H sim, muito mais, a certezade que qualquer excesso, mesmo um excesso de felicidade, deve sercastigado, pois coloca em questo o equilbrio csmico (lembremos

    que a palavra ,(Cosmos, em grego, significa "mundo" e "ordem": omundo j est em ordem e deve ser mantido nesta sua ordemessencial). Vrios episdios das historiai confirmam esta necessidade(ananke) secular, qual, segundo o pensamento mtico, mesmo osdeuses obedecem; por exemplo, a famosa histria de Polfcrates (III,39.43), tirano que tudo consegue e tenta em vo se livrar dessa sortegrande demais, jogando no mar um anel muito precioso, reencontra-do, alguns dias depois, na barriga do peixe servido sua mesa.Polfcrates acabar assassinado vergonhosamente (III, 125), tendo umf i m cruel, proporcionalmente ao seu excesso de sorte.

    Reina ento em Herdoto um principio de causalidade profun-damente grego e, para ns modernos, pouco "racional": ".,. o que osdeuses castigam (...) o orgulho desmedido (a hybris), a pretenso deum homem de ser mais que um homem. A narrao histrica reen-contra as lies da tragdia." 13 Mesmo se Herdoto menciona, commuita perspiccia, uma srie

    de causas mais imediatas das guerras (umincndio criminoso, um juramento transmitido de gerao em gera-o, o carter especialmente irascvel de um rei etc.), 14 a verdadeirarazo da derrota persa deve ser procurada no necessrio castigo daambio ilimitada de Darius e de Xerxes. esta hybris que caracteriza,alis, os reis brbaros (e alguns tiranos gregos): 15 o rei dos reis semprequer ir alm dos limites impostos pela ordem material ou social. Estavontade de transgresso o faz ultrapassar as fronteiras naturais para

    deixar a Asia, seu dominio prprio, e invadir a Europa, que no lhepertence: Ciro, fundador da dinastia, constri uma ponte sobre o rioAraxe no norte de seu imprio; Darius atravessa o Bsforo; Xerxes,enfim, ergue, por duas vezes, uma ponte sobre o Helesponte parachegar Grcia. A primeira ponte destruda por uma tempestadeque manifesta claramente a recusa do mar divino. Xerxes mandaflagelar o Helesponte, como se fosse o seu escravo, e constri umasegunda ponte; no por acaso que ser derrotado na batalha naval

    de Salaminas: o mar ultrajado se vinga atravs da frota ateniensevitoriosa. O rei persa tampouco respeita as leis estabelecidas pelos

    13 Franois Chatelet,Les ideologies, loc. cit., v. I, pp. 134-135.14 Ibid.15 Cf . Franois Hartog, "Le pouvoir despotique", op. cit.,parte III, cap. 3.

  • 5/24/2018 [livro] sete aulas sobre linguagem memoria historia jeanne gagnebin.pdf - sl...

    http:///reader/full/livro-sete-aulas-sobre-linguagem-memoria-historia-jeanne-

    22 SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMRIA E HISTRIA

    homens: ultraja o corpo dos seus sditos, os flagela, os corta, osamputa, os tortura ou, ento, os deseja demais (apalavra eros s seaplica aos reis e aos tiranos nas historiai).Deseja-os mais ainda quando

    lhe so proibidos pelas leis humanas: Cambisies deseja suas irms, ofara Mikerinos sua filha,Xerxes a mulher de seu filho etc. Imperia-li s mo e erotismo caracterizam esta vontade sem freio do soberanoque, finalmente, o levar suaperda.

    Com efeito, na anlise de Herdoto, os gregos no vencemporque so melhoressejam eles mais "civilizados" que estes brba-ros "selvagens", 1fisejam eles guerreiros mais corajosos. O que fundaa superioridade dos gregos que eles no obedecem ao chicote deum senhordesptico (odespotespersa), mas a uma regra, a uma lei(nomos) que eles mesmos escolheram e estabeleceram.' Aoprivilegiara democracia, emparticulara democracia ateniense, contra a monarquiae a tirania, Herdoto no escolhe simplesmente um regime politico.Defende uma concepo da sociedade humana fundada no logos, isto ,no dilogo argumentativo entreiguais queprocuramjuntos uma regracomumde ao; a esteparadigma racional e democrtico se ope umaconcepo do social baseada nopodere na vontade (para no dizerna vontade de poder!) do mais forte, na sua transgresso das regrasdo convvio social e na sua expanso sem li mites. Este conflito, queperdura at hoje, preside a oposio-mestra das historiai, a oposioentre gregos ebrbaros. Umagerao mais tarde, com Tucidides, e,depois, comPlato e a sofistica, a contradio entre nomos (lei, regra)ephysis (natureza) corroer pordentro obelo edificio da polis atenien-

    se. Conta-se queHerdoto leu, em 445 ou 444 a.C., o seu texto emvoz alta aopovo ateniense

    reunido; transportados pelo entusiasmo, oscidados de Atenas lhe ofereceram um prmio, como se fazia nosconcursos depoesia trgica. Talvez uma das razes deste sucesso decor-resse de Herdoto terconseguido construiratravs da longa descriodospovos brbaros uma imagem convincente de "n6s", dos gregos,em particular dos atenienses. Observe-se: no uma imagembelademais ou demagogicamente lisonjeira, mas a confrontao com o"outro" permite, por um jogo de espelhos,' g pintarum retrato do

    16 Esta sera a opinio de Tucidides que, por isso, desinteressar-se-a dos brbaros, estgioanteriorda civilizao. Cf. Tucidides, Guerra do Peloponeso, I , 6; e Franois Hartog, op. cit.,p. 371.

    17 Cf. Franois Hartog, op. cit., pp. 340 ss.18 Daf o belo titulo do livro de Hartog, Le miroird'Hrodote Essai sur la representation del'autre.

  • 5/24/2018 [livro] sete aulas sobre linguagem memoria historia jeanne gagnebin.pdf - sl...

    http:///reader/full/livro-sete-aulas-sobre-linguagem-memoria-historia-jeanne-

    0 I N C I O D A H I S T O R I A E A S L A G R I M A S D E T U C D I D E S 23

    "mesmo" muito mais coerente e pleno do que teria feito uma simplesreproduo dos seus traos; somente a mediao pelo outro permiteesta auto-apreenso segura de si mesmo.

    De que, pois, falam as historiai seno dos gregos atravs dosbrbaros? Como o mostra o livro de F. Hartog, uma lei estrutura aobra: a lei da comparao entrebrbaros e gregos, no para decidirquem melhor (Herdoto foi acusado de barbarophilia, de gostardemais dos brbaros), mas muito mais para entendercomo funcionao diferente. Esta estrutura forma a unidade da obra, muitas vezesnegada pela tradio critica. Osprimeiros quatro livros so dedicados descrio dos "outros" dospersas, dos egipcios, dos scitas etc. ,

    os cinco ltimos histriapropriamente dita das Guerras Mdicas.Muitos comentadores quiseram ver um corte epistemolgico entreum "Herdoto etnlogo", apaixonado pelo diferente, pelo maravi-lhoso, pelo extico, e um "Herdoto historiador", relatorsereno emaduro da primeira vitria da racionalidade ocidental sobre as forascaticas do Oriente. Ora, como o ressalta Hartog, 19 o "Herdotoetnlogo" e o "Herdoto historiador" so um e s pesquisador quetgnt entender aquilo que condiode convivncia e tambm__

    possibilidade de &tierra: a diferena. Se ele mais prolixo e estseduzido pelo extico nos quatro primeiros livros, porque o outro to diferente que s pode provocar admirao; os cinco ltimoslivros,por tratarem de "n6s mesmos,pedem um tom mais sbrio.

    Um pouco imagem da sua cidade natal Halicamassos, situadana costa da sia, mas pertencendo civilizao grega , Herdototentaria manter uma posio privilegiada de intermedirio, de media-doraquele que est no meio, entre os brbaros asiticos e os gregoseuropeus, aquele que estabelece uma mediao entre dois opostos.Lugar mediano, singular, que o estatuto de exilado de Herdotorefora.20As anlises de Hartog ressaltam essa vontade explicita doautorde marcar a sua posio de narrador, isto , desujeito soberanoda enunciao: "eu vi", "eu ouvi", "eu contarei", "eu mostrarei", "eudirei", mas tambm "eu no direi", "eu sei, mas manterei a informa-o secreta" etc. Estas expresses pontuam o texto e nos lembram

    incessantemente que a nossa informao s provm do seu saber.Hartog tambm chama a ateno para o fato de Herdoto falar, s

    19 Cf. Franois Hartog, op. cit., pp. 373 ss.20 Herdoto tem que se exilar, pois a sua familia se opios sem sucesso ao tirano da cidade.

    Observe-se que tambm Tucidides sera um exilado.

  • 5/24/2018 [livro] sete aulas sobre linguagem memoria historia jeanne gagnebin.pdf - sl...

    http:///reader/full/livro-sete-aulas-sobre-linguagem-memoria-historia-jeanne-

    24 SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMRIA E HISTRIA

    vezes, nos brbiros e em "ns (isto , eu e os outros gregos incluin-do-se nos "ns"), mas tambm, muitas vezes, nos brbaros e nosgregos, usando esta terceira pessoa que, segundo as anlises deBenveniste,21 rio realmente uma pessoa, reservando, assim, ao"eu-narrador" um lugar parte, a igual distncia dos brbaros e dosgregos.

    Ora, esta posio privilegiada do narrador, que deveria assegurartanto o seu poder como a sua objetividade (to cara aos historiadoresfuturos), esta posio mediadora e imparcial sub-repticiamenteminada pelo fluxo da narrativa. Se, como j assinalamos, a lei dacomparao entre gregos e brbaros que estrutura o texto herodotia-

    no, esta comparao se transforma, na maioria dos casos, numainverso simtrica, cujo primeiro termo s pode ser o referencialgrego. Hartog

    22

    observa que Herdoto quer realmente descrever osoutros povos, narrar com generosidade e admirao os seus toestranhos costumes; mas ele s consegue falar deles "em grego", isto, com as categorias e com a lgica de compreenso de um grego dosculo V. Ele, alis, no sente nenhuma necessidade em aprender as

    lnguas dos povos que visita. Assim, ao tentar entender o que o

    diferente, Herdoto o transforma no "outro do mesmo", no duploinverso e simtrico do modelo primeiro isto , grego , modelo

    sempre presente, tambm, quando no est explcito (sobretudoquando no est explicito?). O Livro II, consagrado ao fabuloso Egito,est cheio destas descries invertidas, que deveriam, sem dvida, nosmostrar o quanto so estranhos os egpcios, mas cujo efeito consiste

    muito mais em nos remeter aos nossos costumes de gregos. Assim,por exemplo, a deliciosa passagem do Livro II, 35 , na qual a inverso

    entre gregos e brbaros descrita pela inverso dos papis masculinoe feminino (pois a primeira e incompreensvel diferena a dossexos):

    Mas vou alongar-me em minhas observaes a respeito do Egito,pois emparte alguma h tantas maravilhas como l , e em todasas terras restantes no h tantas obras de inexprimvel grandeza

    para serem vistas; porisso falarei mais sobre ele. Da mesma forma

    que o Egito tem um clima peculiar e seu rio diferente porsuanatureza de todos os outros rios, todos os seus costumes e insti-

    21 CE EmileBenveniste, Problmes de linguistique generate (Paris: Gallimard, 1966), cap. 18.22 Cf. Franois Hartog, op. cit.,pp. 224 ss.

  • 5/24/2018 [livro] sete aulas sobre linguagem memoria historia jeanne gagnebin.pdf - sl...

    http:///reader/full/livro-sete-aulas-sobre-linguagem-memoria-historia-jeanne-

    D INICIO DA HISTRIA E AS LAGRIMAS DE TUCIOIOES 25

    tuies so geralmente diferentes dos costumes e instituies dos

    outros homens. Entre os egpcios as mulheres compram e ven-

    dem, enquanto os homens ficam em casa e tecem. Em toda a parte

    se tece levando a trama de baixo para cima, mas os egpcios alevam de cima para baixo. Os homens carregam os fardos em suas

    cabeas, mas as mulheres os carregam em seus ombros. As mulhe-

    res urinam em p, e os homens acocorados. Eles satisfazem as suas

    necessidades naturais dentro de casa, mas comem do lado de fora,

    nas mas, alegando que as necessidades vergonhosas do corpo

    devem ser satisfeitas secretamente, enquanto as no-vergonhosas

    devem ser satisfeitas abertamente. Nenhuma mulher consagrada

    ao servio de qualquer divindade, seja esta masculina ou femini-

    na; os homens so sacerdotes de todas as divindades. Os filhos

    no so compelidos contra a sua vontade a sustentar seus pais,mas as filhas devem faz-Io, mesmo sem querer.

    Para ser fiel inteno das suas historiai, o narrador Herdototenta permanecer firmemente no lugar privilegiado do meio e da

    mediao, significando aos gregos que os brbaros no so nempiores nem melhores, mas, simplesmente, diferentes. Para descrever

    e entend-los, recorre oposio, inverso, ao contrrio, a todas asfiguras que transformam a diferena mltipla em alteridade (nosentido etimolgico do latim alter[outro de dois]). Esta lei de oposiobinria to forte que, como assinala Hartog,23 quando Herdotodescreve um conflito entre dois povos brbaros, um deles tende,

    inexoravelmente, a se helenizar, a assumir, por exemplo, a estratgiados hoplitas gregos: entre o grego e seu contrrio, o brbaro, no hlugar para uma terceira (quarta, quinta) possibilidade. Nesta partilha,o eu do narrador j escolheu, talvez contra a sua vontade consciente,

    o lado grego, esse lado que no entende a lingua "br/ba/ra", etampouco precisa aprend-Ia. Como se a bela lingua grega pudesse

    dizer tudo: desejo ou hybris? do primeiro historiador, e de outrosdepois dele, de poder descrever o outro sem que este nos desalojasse

    necessariamente da nossa gramtica e da nossa terminologia, nosforasse a sair da nossa lngua com o risco de ficarmos, talvez pormuito tempo, sem palavras.

    23 Ibid., pp. 369 ss.

  • 5/24/2018 [livro] sete aulas sobre linguagem memoria historia jeanne gagnebin.pdf - sl...

    http:///reader/full/livro-sete-aulas-sobre-linguagem-memoria-historia-jeanne-

    26 SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMRIA E HISTRIA

    Existem, tambm, vrias histrias sobre Herdoto. Uma delasconta que leu trechos de sua obra num concurso literrio que acom-

    panhava as provas esportivas dos jogos olmpicos; na assistncia, um

    adolescente ficou emocionado at as lgrimas: era o jovem Tucfdides.Histria "verdadeira" ou fico "mentirosa"? Nada nos impede decontinuar essa bela histria, nos perguntando sobre as lgrimas deTucfdides. Por que chorou? Por que teve revelada af a sua "vocao"de historiador, como pretendem vrios comentadores? Ou, talvez,

    porque chorava sobre esta bela imagem da Atenas democrtica eherica, salvadora da Grcia inteira, imagem j prestes a desaparecer?Ou, ainda, porque pressentia que, em breve, deveria despedir-se deste

    estilo amvel e sereno que ainda confiava no prazer da palavra e natolerncia da razo? Ningum o sabe.

    Agora, quando lemosA Guerra do Peloponeso, o que chama a nossaateno o corte radical24 introduzido por Tucfdides em relao tradio narrativa da "histria", em particular em relao a Herdoto(que, por sua vez, tambm tinha criticado seu antecessor, o viajanteHecateu). Nada mais da emoo que, talvez, sentiu ao escutar o "pai

    da histria" (e de tantas histrias). Tucfdides rejeita Herdoto nodomnio das antigas tradies mticas, no mythodes que recusa por-que, sob seus aspectos agradveis e sedutores, ele no possui nenhu-ma solidez ese desfaz com a rapidez das palavras lanadas ao vento.Com ormythodes o maravilhoso to caro a Herdoto, Tucfdidesrejeita, tambm, a importncia da memria, relegando ao passado aantiga deusa Mnemosyne. Herdoto queria salvar o memorvel,resgatar o passado do esquecimento, buscando nas palavras dastestemunhas a lembrana das obras humanas. Tucfdides ressalta afragilidade da memria, tanto alheia como sua; as falhas constantesde memria motivam uma profunda mudana no trabalho do "his-toriador", que no pode confiar nem na sua exatido nem na suaobjetividade. Nos primeiros pargrafos da sua obra consagrados poderfamos dizer sua metodologia de pesquisa, Tucdides despa-cha juntos as suas prprias lembranas e os testemunhos dos outros,

    ambos condenados A subjetividade das preferncias pessoais e relatividade da memria:

    24 Sobre a distancia de Tucfdides em relao ao mito e memria, cf. as pginas decisivasde Marcel Dtienne, L'invention de la mythologie, pp. 105 ss.

  • 5/24/2018 [livro] sete aulas sobre linguagem memoria historia jeanne gagnebin.pdf - sl...

    http:///reader/full/livro-sete-aulas-sobre-linguagem-memoria-historia-jeanne-

    0 INCIO OA HISTRIA E AS LAGRIMAS DE TUCOIOES : 27

    Quanto aos discursos pronunciados por diversas personalidadesquando estavam prestes a desencadear a guerra ou quando jestavam engajados nela, foi difcil recordar com preciso rigorosa

    os que eu mesmo ouvi ou os que me foram transmitidos por vriasfontes. Tais discursos, portanto, so reproduzidos com as palavrasque, no meu entendimento, os diferentes oradores deveriam terusado, considerando os respectivos assuntos e os sentimentosmais pertinentes ocasio em que foram pronunciados, emboraao mesmo tempo eu tenha aderido to estritamente quantopossvel ao sentido geral do que havia sido dito. Quanto aosacontecimentos da guerra, considerei meu dever relat-los, no

    como apurados atravs de qualquer informante casual nem comoera a minha impresso pessoal, mas somente aps investigar cadadetalhe com o maior rigor possvel, seja no caso de eventos dosquais eu mesmo participei, seja naqueles a respeito dos quaisobtive informaes de terceiros. O empenho em apurar os fatosconstituiu uma tarefa laboriosa, pois testemunhas oculares devrios eventos nem sempre faziam os mesmos relatos a respeitodas mesmas coisas, mas variavam de acordo com suas simpatias

    por um lado ou pelo outro, ou de acordo com sua memria25

    notvel, aqui, a insistncia de Tucfdides em afirmar que no vairelatar as palavras realmente pronunciadas. Isto poderia ser at i m-plcito se lembrarmos que os discursos proferidos o eram em assem-

    blias ad hoc, sem relator nem secretrio; mas se Tucfdides insistenesse ponto que ele quer ressaltar uma impossibilidade mais essen-cial: nse gde acreditar na memria para garantira fidelidade dorelato realidade. Em oposio toda tradio anterior, a memriaem Tucldides ri assegura nenhuma autenticidade. Esta desconfian-a motiva a critica severa aos mtodos de pesquisa de Herdoto, aquiclaramente citado, mesmo se no nomeado: perguntar s mais diver-sa s pessoas sobre um mesmo evento no traz informaes, mas socasiona confuso, pois cada um responde "... de acordo com suassimpatias (...) ou de acordo com sua memria". verdade que, vriasvezes, Herdoto no esconde seu ceticismo em relao As verses dosfatos ou As explicaes ouvidas. Tucfdides no se contenta com umceticismo benevolente; exige uma reconstituio crtica dos aconte-

    25Tucfdides, La Guerra du PeloponAse, I,22.

  • 5/24/2018 [livro] sete aulas sobre linguagem memoria historia jeanne gagnebin.pdf - sl...

    http:///reader/full/livro-sete-aulas-sobre-linguagem-memoria-historia-jeanne-

    28 S ET E AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMORIA E HISTORIA

    cimentos, cujos critrios racionais soa verossimilhanada situaoe apertinnciadaspalavraspronunciadas:

    Tais discursos, portanto, so reproduzidos com as palavras que,no meu entendimento, os diferentes oradores deveriam ter usado,considerando os respectivos assuntos e os sentimentos mais per-tinentes ocasio em que foram pronunciados...

    26

    Significaria esta passagem que Tucfdides, em vez de relatar aspalavras ditas, as inventa sem dar a devida importncia aos famosos

    fatos?27

    Talvez. No mnimo,significa que Tucfdides escreveu os seusnumerosos e famosos discursos segundo a ordem das razeshistri-cas, como o faria um filsofo poltico ou umobservadorpsiclogo,e no como um cronista, confiando em suas lembranas. Na ordemdos discursos (dos logoi)prevalece, portanto, o critrio racional daconvenincia e da verossimilhana, amparado por uma anlise daconjuntura poltica e da natureza psicolgica do orador. Na ordemdos acontecimentos e das aes (dos erga) reina o critrio da verifica-

    o, igualmente amparado na verossimilhana racional. Tucfdidesno conta as vrias verses possveis do mesmo fato, para deixar oleitor livre de escolher a que mais lhe apraz. O seu texto resulta deuma escolha prvia a partirde um material que no nem sequermencionado, e segundo critrios cujos detalhes desconhecemos. Ainteligncia de Tucfdides j decidiu por ns a verso racional a seradotada. A sua narrativa se desenvolve de maneira coerente, com umalgica que nos convence das suas hipteses e das suas interpretaes.

    Pela primeira vez, a histria humana nos apresentada como com-preensvel e explicvel racionalmente, com todas as suas implicaese possibilidades. A trama escura e dramtica da Guerra do Peloponesodesenha-se sobre o fundo luminoso de um discurso (logos) e de umarazo (logos tambm) que atravessam o caos dos fatos, para delesretirarem concluses valiosas e ensinamentos eternos. O discernimentode Tucfdides nos permite compreender racionalmente a histria; nosi mpede, ao mesmo tempo, de conceber uma outra histria que aquela

    escrita por ele. Ns no conseguimos imaginar uma outra verso daguerra, uma outra Guerra do Peloponeso, uma outra histria do

    26 Ibid.27 Tal suspeita leva, porexemplo, R. G. Collingwood a criticar a falta de "cientificidade" de

    Tucdides.Cf.ILG. Collingwood,A IANadeHistdria (So Paulo: Martins Fontes),pp. 42 ss .

  • 5/24/2018 [livro] sete aulas sobre linguagem memoria historia jeanne gagnebin.pdf - sl...

    http:///reader/full/livro-sete-aulas-sobre-linguagem-memoria-historia-jeanne-

    O INICIO DA HISTRIA E AS LAGRIMAS OE TUC(OIOES 29

    imperialismo ateniense, pois Tucfdides no cita as suas fontes nemmenciona documentos (uma exigncia "cientifica" profundamentemoderna) e s6 nos oferece o resultado da sua reflexo rigorosa.

    Enquanto Herbdoto contava inmeras histrias, tambm pelo pr-prio gosto de contar, Tucfdides constri a verso racional edefini-tiva da histria sem se deixar Levar pelo prazer da narrao; dal,tambm, a austeridade do seu relato, no qual as emoes raramentetransparecem.

    A escrita tucidideana obedece a uma partilha que reencontra-mos em Plato: de um lado, a razo, a austeridade, o rigor e o

    controle; de outro, a emoo, o prazer, o maravilhoso cheio decores que atrai mulheres e crianas: o mythodes. De um lado, unspoucos que conseguem compreender, analisar, ter um discursocompetente e justo, que tambm sabem dirigir (Pricles); de outro,os muitos, o povo que se deixa levar pelas impresses superficiais e

    pelos encantos das belas palavras, que no sabe dirigir nem a simesmo e precisa da autoridade alheia. Em Tucfdides diferente-mente de Plato, que resguardar o seu valor sagrado , a memriapertence ao mythodes e ao engodo. Ela no reproduz fielmente opassado, mas dispe dele segundo as convenincias do momentopresente. Assim, por exemplo, a tradio ateniense conta a faanhamemorvel do assassinato dos tiranos pelos heris Harmodios eAristogito. Esta histria pertence ao repertrio das lendas queglorificam a democracia em vigor na cidade. Na verdade, diz Tucfdi-des, os "tiranocidas" no obedeceram a elevados motivos politicos,

    mas, sim, a cimes amorosos bem mais comuns; prova disso ques6 um dos tiranos foi morto, enquanto o outro, mais velho e maispoderoso, continuou reinando at que um complb de cidados(ajudados pela inimiga Esparta!) o derrotasse. 28 A desconfiana emrelao memria inscreve-se num projeto muito mais amplo, quechamaramos, hoje, de crtica ideolgica, pois memria e tradioformam este conglomerado confuso de falsas evidncias, do qual

    presente tira sua justificativa. A escrita desmistificadora de Tucf-dides no poupa nem a tradio poltica nem a tradio religiosa.Exemplares, aqui, so as suas observaes depois da dramticadescrio da "peste" em Atenas:

    28 Cf. Tucfdides, citado porMarcel Dtienne, op. cit., p. 108.

  • 5/24/2018 [livro] sete aulas sobre linguagem memoria historia jeanne gagnebin.pdf - sl...

    http:///reader/full/livro-sete-aulas-sobre-linguagem-memoria-historia-jeanne-

    30 : SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMRIA E HISTRIA

    Emseu desespero [os atenienses] lembravam-se, como era natural,doseguinte verso oracularque, segundo os mais velhos entre eles,foraproferido havia muito tempo: 'Vir um dia a guerra daria, e com

    ela a peste.'Houve na poca muita discusso entre opovo,pois umaparte da populao pretendia que no verso em vez depeste (loimos)se deveria entender fome (limos), e naquela ocasio prevaleceu oponto de vista de que a palavra era peste; isso era muito natural,pois as lembranas dos homens se adaptam a suas vicissitudes. Sehouveroutra guerra daria depois desta e com ela vier a fome,i magino que entendero o verso luz das novas circunstancias.29

    O nico remdio para evitaresta manipulao do passado deixarresolutamente os encantos da oralidade, das palavras que voam deboca para boca, incham-se de desejos e paixes e chegam cheias dehistrias inverificveis. 30Tucdides reivindica a escrita como meio defixao dos acontecimentos, fazendo da imutabilidade do escrito umagarantia de fidelidade. 31 Vrias vezes, elese define como sendo umsyggrapheus, aquele que escreve (graphein) junto (sun) aos aconteci-mentos, titulo que tambmse aplica aos juristas

    redatores de projetosde lei ou de contratos precisos entre cidados. Trata-se, ento, de umagrafia que engaja a quem a escreve ou ale, uma escrita que exige umaatitude prtica e uma coerncia a longo prazo. No remete tradio

    potico-literria do mythodes, como o faziam ainda as historiai deHerdoto, mas s exigncias poltico-jurdicas de um cidado preocu-pado com o futuro. O "historiador" abandona por Longo tempo adimenso ficcional da histria para consagrar-se sua dimenso

    poltica, muitas vezes erigida como a nicaverdadeiramente histri-ca. 32 Tucdides explicita esta escolha com uma clareza exemplar:

    Pode acontecer que a ausencia do fabuloso (mythodes) em minhanarrativa parea menos agradvel ao ouvido, mas quem quer quedeseje ter uma idia clara tanto dos eventos ocorridos quantodaqueles, semelhantes ou similares, que a natureza humana nosreserva no futuro, julgar a minha narrativa til e isto me bastar.

    29 Ibid., p. 109.30 Ibid., pp. 115 ss.

    31 Neste ponto no concorda com Plato, que no Fedro v2 na fixidez da escrita uma provada sua rigidez arbitrria.

    32 Nos debates historiogrficos contemporneos, assistimos a uma revalorizao destadimenso ficcional... e a uma redescoberta de Herdoto!

  • 5/24/2018 [livro] sete aulas sobre linguagem memoria historia jeanne gagnebin.pdf - sl...

    http:///reader/full/livro-sete-aulas-sobre-linguagem-memoria-historia-jeanne-

    0 INCIO OA HISTRIA E AS LAGRIMAS OE TUCDIDES : 31

    Mais do que uma composio a ser ouvida porumpblico domomento da competio, ela foi feita para ser uma aquisio para

    sempre 33

    Nestepargrafofamoso, Tucdidesse despede definitivamente domythos e do mythodespara fundarum discurso racional (logos) da

    histria. Ele no quer mais contar o maravilhoso (em oposio aHerdoto, que falava demoradamente do Egito "pois nenhum outro

    pals do mundo contm tantas maravilhas"),34

    nem salvar os atos

    passados do esquecimento, como Homero e, ainda que de maneira

    diferente, tambm Herdoto o desejavam. A sua vontade de "ter uma

    idia clara (...) dos eventos ocorridos" tampouco remete a umapreocupao exclusiva de fidelidade para com opassado (motivaomuito mais tpica dohistoricismo moderno). Demonstra muito maisuma exigncia de penetrao racional e analtica deste magma infor-me que so os fatos do passado, para deles extrair um ktma eis aei,uma aquisio, um tesouro para sempreisto ,primeiropara o leitoratento e futuro que IerA Guerra do Peloponesopara tirar desta histria

    antiga ensinamentos atuais. Herdoto escrevia pararesgatar um

    passado ilustre; Tucdides escreve no presente sobre opresente35para

    instruir o futuro, confiante que da histria do passado possa-seaprenderpara opresente,pois a natureza humana continua inaltera-da, isto , sempre prestesa obedecerao desejo depoder, sacrificandoo interesse geral aos interessesparticulares e egostas. Inaugura, assim,a figura da Historia Magistra Vitae, 36 desenhando estes quadros renas-centistas nos quais um historiadorsbrio e sbio, de p no segundo

    plano, olhapara um jovemprncipe que decifra as regras da vidapoltica nos antigos livros de histria.

    A oralidade do texto lido em voz alta para "um pblico nomomento da competio" contrape-se a escrita rigorosa, destinadaao leitora vir, debruado com pacincia e ateno sobre o texto.Todos os comentadores concordam em observar que esta rupturadecisiva em favor da escrita contra a vivacidade da palavra oral noremete s critica da tradio mtica (e herodotiana) mas, tambm,

    33 Tuddides, op. cit., 1, 22.34 Herdoto,Historiai, 1 1 , 3 5 .35 A guerra comea em 431 a.C., Tucdides comea a redaoda sua obra neste mesmo ano.

    A suamorte o impedir de contar o fim da guerra (404 a.C.), que ele presencia.36 Cf. R. Koselleck, Vergangene Zukunft. Zur Semantik GeschichaicherZeiten (Frankfurt am

    Main:Suhrkamp, 1979), cap. 2.

  • 5/24/2018 [livro] sete aulas sobre linguagem memoria historia jeanne gagnebin.pdf - sl...

    http:///reader/full/livro-sete-aulas-sobre-linguagem-memoria-historia-jeanne-

    32 SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMRIA E HISTRIA

    e sobretudo,' critica dos usos da palavra na democracia ateniense37

    Atrs da necessidade de reformular a escrita da histria, encontramos

    a necessidade de reformular a democracia ateniense. Para Tucfdides,

    uma das causas essenciais da derrota de Atenas a cegueira do povo,que se deixa arrebatar pelos seus desejos e pela voz dos demagogos.O nico dirigente que no fala para "agradar o povo", mas sim paraeduc-lo, Pricles

    R

    (observemos que esta oposio entre agradar eeducar lembra aquela que Tucfdides constri entre Herdoto e ele

    mesmo). Com sua morte, comea o reino dos demagogos, que notem autoridade pessoal e, por isso, tentam agradar ao povo paravencer na assemblia, pois "... equivalentes uns aos outros mas cada

    um desejoso de ser o primeiro, procuravam sempre satisfazer aoprazer do povo":

    39

    A palavra hdon (prazer) ressalta o carter afetivoe emocional das decises populares; esta falha de razo na conduta

    dos negcios da cidade vai, segundo a anlise tucidideana, conduzirAtenas sua perda. Vrias vezes, Tucfdides nos conta episdios que,a rigor, no tm uma importncia decisiva no desenrolar das opera-es blicas, mas que so paradigmticos desta irracionalidade. Umdos mais caractersticos a histria de Mitilena, cidade de

    Lesbos, quese absteve de apoiar Atenas; um contingente ateniense sitia a cidade,esperando a deciso da metrpole; com o inverno e a falta de socorro

    do campo oposto, Mitilena se rende. Que fazer com seus habitantes?A assemblia ateniense delibera. Clon, um demagogo famoso pelo

    seu carter desmedido, intervm e prope a morte de todos cidadosde Mitilena; "sob efeito da clera" (org), diz Tucfdides,40o povo votaem favor da matana e envia um navio com esta ordem para a ilha.

    No dia seguinte, nova assemblia: os cidados comeavam a searrepender de ter votado medidas to drsticas. Dois oradores entram

    em cena numa situao modelar de briga oratria: Clon, de um lado,que continua afirmando a necessidade da represso sanguinria e, do

    outro, um cidado desconhecido por ns, Diodots, que recomenda

    mais sabedoria, argumentando que essa crueldade s fortalecer odio dos inimigos de Atenas. Desta vez o povo escuta Diodots; um

    37 A esse respeito, cf. Jacqueline de Romilly, Problmes de la democratie grecque, op. cit.,especialmentepp. 19-47; e tambm FrancoisChatelet, op. cit., cap. If.38Tucfdides, op. cit., I I , 66; cf. tambm, Jacqueline deRomilly, Problmes de la democratie

    grecque,op. cit.,pp. 30-38.39Tucfdides, op. cit.40 Tucfdides, op. cit., I I , 36; eJacqueline de Romilly, Problmes de la democratic grecque, op.

    cit.,p . 33.

  • 5/24/2018 [livro] sete aulas sobre linguagem memoria historia jeanne gagnebin.pdf - sl...

    http:///reader/full/livro-sete-aulas-sobre-linguagem-memoria-historia-jeanne-

    O INCIO DA HISTRIA E AS LAGRIMAS DE TUCO IDES 33

    novo navio enviado s pressas para alcanar o primeiro e revogar o

    decreto de morte.Tais episdios preparam, na argumentao tucidideana, a conclu-

    so desastrosa da guerra: a expedio de Sicilia e a derrota final. Um

    outro demagogo, orador brilhante, interessado e charmoso, o beloAlcibiades, leva os atenienses a este empreendimento fatal. Tucfdidesressalta a oposio entre a falta de conhecimento, a ignorncia dopovo a respeito da grande ilha e o seu desejo ardoroso (a palavra

    ecos em VI, 24)41 de novas conquistas. Em vez de informar os seus

    concidados sobre as dificuldades futuras, Alcibiades encoraja os seusdesejos irracionais, conseguindo, assim, vencer os conselhos de pm-

    dncia do velho Nicias.A Guerra do Peloponeso oferece reiteradamente ao leitor estas

    situaes paradigmticas de escolha: entre aquilo que ditam a reflexoe a razo e aquilo a que levam o mpeto da paixo e o prazer. O povo

    ateniense lembra a alma platnica com os seus dois cavalos opostos,que o cocheiro/nous consegue domar a duras penas. Este conflito entre

    razo e desejo motiva o uso particular que Tucfdides faz de uma tcnicamuito em moda na poca: o debate oratrio contraditrio.

    42

    Os sofistas tinham mostrado que possvel defender com igualvigor uma tese Xe a sua anttese Y, colocando, desta maneira, a

    habilidade retrica acima da busca de uma verdade objetiva, inde-pendente da sua apresentao discursiva. O exerccio dos dissoi logoi

    (discursos duplos) foi muito importante, notadamente para o adven-to das prticas judicirias de defesa e de acusao. Os discursos

    contraditrios do retor Antiphon eram modelos do gnero. Tucfdidestransforma esta tcnica de agn log6n (jogo, Luta de discursos opostos)

    num instrumento de anlise poltica; sem precisar sair da sua objeti-vidade impessoal de narrador, ele pode, graas construo antilgi-ca, apontar para os aspectos mais problemticos de uma dada situao

    e desvelar a trama de poderes que af se esconde. Contra os exerccios

    retricos dos sofistas, Plato propels o dilogo comum em vista deuma verdade nica, recusando as antilogias que tornam qualquer

    concluso substancial impossvel, pois sempre precisam de um rbi-tro exterior, de um juiz que saiba compar-las e julg-las. Em Tucfdi-des, este rbitro habita a prpria construo textual: o leitor futuro

    41 CL,Jacqueline de Romilly, Problmes de la democratic grecque, op. cit.,pp . 35 ss.42 Cf., a este respeito,Jacqueline de Romilly, Histoire et raison chez Thucydide, op. cit., cap.

    I I I .

  • 5/24/2018 [livro] sete aulas sobre linguagem memoria historia jeanne gagnebin.pdf - sl...

    http:///reader/full/livro-sete-aulas-sobre-linguagem-memoria-historia-jeanne-

    34 SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM. MEMORIA E HISTORIA

    a quem Tucfdides fornece todos os elementos necessrios de anlisee de deciso atravs da colocao em cena de discursos contraditrios;ao mesmo tempo, a opinio do autor fica clara, sem que se precise dedeclaraes explicitas.

    As discusses antagnicas tambm realam, como o sabiam mui-to bem os sofistas, que as decises pessoais ou coletivas, na sua grandemaioria, no se baseiam na fora racional da argumentao, mas, sim,no poder de cada interlocutor. Poder de persuaso, sem dvida, quea famosa deusa Peith6 encarna, mas tambm poder material e polti-co, potncia concreta daquele que fala, pois poder de persuaso e

    poder poltico so co-pertencentes. Em Tucfdides, tambm, a tcnicato fina da exposio antagnica inseparvel de uma anlise dospoderes politicos em jogo. O que sustenta a construo retrica areflexo tucidideana sobre o poder, em particular a sua teoria doimperialismo ateniense. 43J no comeo da obra este imperialismo(no no sentido moderno, claro) que leva Tucfdides a distinguircom uma acuidade notvel entre os pretextos da guerra, as razesalegadas, e a sua causa verdadeira mas no dita:

    As razes pelas quais eles [os atenienses e os peloponsios] rom-peram a trgua e os fundamentos de sua disputa eu exporeiprimeiro, para que ningum jamais tenha de indagar como osHelenos chegaram a envolver-se em uma guerra to grande. Aexplicao mais verdica, apesarde menos freqentemente alega-da , na minha opinio, que os atenienses estavam tornando-semuito poderosos, e isto inquietava os Iacedemnios, compelin-do-os a recorrerem guerra. As razes publicamente alegadas

    pelos dois lados, todavia, e que os teriam levado a romper a trguae entrar em guerra foram a s seguintes....

    "

    O poder de Atenas nasceu do seu papel essencial na vitria sobreos persas. Os atenienses venceram os brbaros graas sua frota,deslocando o eixo das Guerras Mdicas da terra para o mar. Estaoposio entre terra e mar constitutiva, na anlise de Tucfdides, da

    rivalidade entre Esparta (cidade mais tradicional, ligada terra firme)e Atenas (cidade aberta ao novo que trazemos navegantes). 45 A ligao

    43 Cf., a este respeito, sobretudo, Franois Chtelet, op. cit.44 Tucfdides, op. cit., 1, 23.45 Ibid., I, 18.

  • 5/24/2018 [livro] sete aulas sobre linguagem memoria historia jeanne gagnebin.pdf - sl...

    http:///reader/full/livro-sete-aulas-sobre-linguagem-memoria-historia-jeanne-

    U INCIO OA HISTRIA E AS LAGRIMAS GE TUCIOIDES : 35

    de Atenas ao mar desenha a trajetria da sua grandeza: inicia com avitria de Salamina, aumenta com a constituio da Liga de Delos(originariamente uma confederao de cidades iguais, unidas contra

    a ameaa persa, a Liga transformar-se- no imprio de Atenas sobre osoutros membros) e termina com a expedio de Sicilia. A anlisetucidideana ressalta a necessidade desta trajetria, insistindo, emparticular, na estreita conexo entre democracia e imperialismo ate-nienses. Em oposio a Esparta, que encarna a tradio e a conservaodo statusquo, a jovem democracia representa a vontade de mudanae a dinmica da evoluo. Aberta s novidades tcnicas, econmicas ecientficas, Atenas tem que progredir sempre no seu desenvolvimento,

    pois qualquer interrupo significaria um retrocesso. Orgulhosos desua cidade, os cidados prezam comemoraes, festas e monumentoscada vez mais suntuosos; os metecos (estrangeiros) afluem para a cidadeque conta, sob Pricles, cerca de quatrocentos mil habitantes. A campanhatica no pode fornecer alimentos suficientes para esta multido: odomnio de Atenas, graas Liga de Delos, sobre o Mediterrneo orientalassegura tambm aos seus navios a "rota do trigo", buscado at nasplancies da atual Rssia. H, portanto, para Tucfdides, um vnculo

    necessrio entre a realizao interna da democracia e o estabelecimen-to da dominao, da tirania extrema. A liberdade de Atenas dependeda sua superioridade constantemente renovada e assegurada em rela-o s outras cidades invejosas. Para no se tornarem escravos, oscidados atenienses devem permanecer os senhores a qualquer custo;esta dialtica assume na Antigidade feies muito reais, pois numaguerra os vencidos so geralmente mortos ou vendidos como escravos.A grandeza de Atenas repousa sobre o imperialismo externo e, dentro

    da cidade, sobre a escravido. Diz Chtelet:

    Esquematicamente, acontece com o imprio o mesmo que com aclasse servil. Os cidados asseguravam o seu bem-estar, a suaindependncia e a sua segurana com tanta mais eficcia queexploram uma maior multido de sditos e de escravos.

    46

    A dialtica tucidideana entre dominao e liberdade lembra aantiga noo de hybris, to i mportante para Herdoto: interesse e

    46 Cf. Franois Chtelet, op. cit., p. 261. Poderamos acrescentar aos sditos e escravos,tambm as mulheres atenienses. Cf. Nicole Loraux, L e s enfantsd'Athna, ides athniennessur la citoyennet et la division des sexes (Paris: Maspro, 1981).

  • 5/24/2018 [livro] sete aulas sobre linguagem memoria historia jeanne gagnebin.pdf - sl...

    http:///reader/full/livro-sete-aulas-sobre-linguagem-memoria-historia-jeanne-

    36 : SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMRIA E HISTORIA

    ambio, fontes de grandeza e heroismo, tambm conduzem as cida-des sua perda. Atenas venceu heroicamente os persas, livrando os

    gregos do jugo brbaro, mas estabeleceu sobre os seus compatriotasum domnio talvez pior que teria sido o estrangeiro. Como observarum general siciliano, os belos discursos de igualdade e de liberdade setransformaram em justificativas de dominao.47 O mesmo racioc-nio, alias, aplicar-se- a Esparta: se, no decorrer da guerra, tomou-seironicamente o arauto da liberdade face a uma Atenas democrtica ei mperialista, transformar-se- tambm, quando estiver vitoriosa,numa potncia tirnica, sem respeito aos direitos dos seus sditos.

    Entre o realismo pessimista de Tucfdides e o realismo descarado

    dos sofistas as semelhanas so muitas. Trata-se sempre do conflitoentre justia e poder, ou ainda entre as leis sociais humanas e o direitonatural do mais forte, a oposio entre nomos e physis. A defesa dodireito do mais forte por vrios sofistas encontra o seu correspondentereal e cotidiano na prtica imperialista de Atenas, descrita por Tucfdi-des. O famoso episdio de Meios oferece um paradigma desta prtica.

    Meios era uma pequena ilha, povoada por colonos de Esparta, quetentou ficar neutra na primeira metade da guerra. Atenas exige sua

    submisso e bloqueia o porto. Segue-se um debate altamente tensoentre os embaixadores atenienses e os notveis de Meios, que tentamexpor a justeza da sua posio. Com o fracasso das negociaes comea

    um stio de um ano, no fim do qual Meios deve render-se. Os homensso massacrados, as mulheres e as crianas vendidas como escravas.Mais tarde, Atenas repovoar a ilha com colonos atenienses.

    Tucfdides demora-se no relato das negociaes e nos d aqui uma

    belssima pea de reflexo histrica e poltica. Mais uma vez, elecoloca em cena discursos antagnicos: o dos embaixadores atenienses

    que falam a linguagem do realismo e do poder, e o dos representantes

    da Assemblia de Meios que invocam o direito e a justia. Mas, comoestes ltimos observam, desde o inicio a igualdade dos parceiros dodialogo encontra-se negada pela presena ameaadora das tropas

    atenienses no porto. Os atenienses no s justificam esta desigualda-

    de como tambm a consagram como uma "lei" divina e humana:

    Realmente, em nossas aes no estamos nos afastando da reve-rncia humana diante das divindades ou do que ela aconselha no

    47 Tucfdides, op. cit., VI, 76.

  • 5/24/2018 [livro] sete aulas sobre linguagem memoria historia jeanne gagnebin.pdf - sl...

    http:///reader/full/livro-sete-aulas-sobre-linguagem-memoria-historia-jeanne-

    0 INICIO DA HISTRIA E AS LAGRIMAS O E TUCIOIDES 37

    trato com as mesmas. Dos deuses ns supomos e dos homens ns

    sabemos que, por uma lei de sua prpria natureza, sempre quepodem eles mandam. Em nosso caso, portanto, no impusemos

    esta lei nem fomos os primeiros a aplicar os seus preceitos;encontramo-la vigente e ela vigorar para sempre depois de ns;pomo-la em prtica, ento, convencidos de que vs e os outros,se detentores da mesma fora nossa, agireis da mesma forma.

    48

    Na sua argumentao, os representantes de Atenas, a cidadedemocrtica "educadora da Grcia", misturam com maestria o rigorda razo e o cinismo do poder; desaconselham os habitantes de Meios

    a esperar pela justia ou pela ajuda dos aliados espartanos, pois aesperana um sentimento que s ilude e engana. A reivindicao dejustia e esperana opem o frio realismo da dominao, que

    culminar na matana futura.O leitor futuro, a quem Tucfdides reserva a sua obra, pergunta-se

    ao ler este episdio sangrento: como distinguir a razo que guia odiscurso to coerente dos embaixadores atenienses da racionalidade

    i mposta pela fora? Como distinguir a racionalidade da realidade

    histrica da razo dos vencedores? A grande questo hegeliana daracionalidade do real j se coloca nas pginas do primeiro historiadorque quis compreender logicamente a histria e s o conseguiu atravs

    de uma teoria do poder e da dominao.

    48 Ibid., V, 105.

  • 5/24/2018 [livro] sete aulas sobre linguagem memoria historia jeanne gagnebin.pdf - sl...

    http:///reader/full/livro-sete-aulas-sobre-linguagem-memoria-historia-jeanne-

  • 5/24/2018 [livro] sete aulas sobre linguagem memoria historia jeanne gagnebin.pdf - sl...

    http:///reader/full/livro-sete-aulas-sobre-linguagem-memoria-historia-jeanne-

    II. AS FLAUTISTAS, AS PARTEIRAS E AS GUERREIRAS

    Emmemria de Elisabeth Sousa Lobo

    Atena, deusa da filosofia, no nasceu da barriga de uma mulher.Segundo a lenda, ela nasce, j toda em armas, da cabea de um

    homem, ou melhor, da cabea de um deus, seu pai Zeus. Em seunascimento, a deusa ressalta uma antiga oposio: entre o ventrefeminino e a cabea masculina. Nascer da cabea do homem significa

    tambm marcar, desde o incio, uma preferncia. A deusa da Razoprivilegia, desde seu primeiro dia, a forma de produo que vem dacabea e dos homens em oposio produo que vem do corpo e das mulheres.

    Por outro lado, Atena, deusa da Razo, tambm deusa da Guerra.Guerra e Razo so inseparveis, como se no pudesse haver umconceito de razo fora da idia de luta e de morte, como se a guerra

    fosse mais racional que a paz. Atena continua virgem e ajuda osguerreiros gregos frente a Tria. Ainda segundo a lenda, ela estfuriosa com o principe troiano Pris (o "efeminado", como dizHomero) que, no concurso entre ela, Hera e Afrodite, no lhe deu ama destinada mais bela. Compreende-se bem a posio de Pris!Afinal, a virgem Razo recusa os jogos sexuais e encoraja os jogosguerreiros; contra Pris, o efeminado, ela ajuda os viris acaios avencer.

    Esta viso provocadora da padroeira dos filsofos me conduz,quando penso no discurso filosfico e naquilo que diz ou no diz dasmulheres, a uma primeira hiptese. No tentemos distinguir entre osfilsofos feministas e os filsofos machistas, entre os esclarecidos eos preconceituosos. No chama a ateno quo "reacionrio" podeser um filsofo "revolucionrio" quando fala das mulheres, seja

  • 5/24/2018 [livro] sete aulas sobre linguagem memoria historia jeanne gagnebin.pdf - sl...

    http:///reader/full/livro-sete-aulas-sobre-linguagem-memoria-historia-jeanne-

    40 : SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMRIA E HISTRIA

    Rousseau, ditando a educao das meninas (de Sofia, de nome torevelador!), seja Nietzsche, denegrindo as feministas de sua poca?

    Prefiro, contudo, questionara constituio do discurso filosfico,propondo a hiptese de que ele se constitui em torno de um duplocontrole do "feminino" (veremos mais tarde a razo destas aspas): eleo exclui, declarando-o imprprio a filosofar, e, ao mesmo tempo, oadmite quando consegue subordina-lo a um "valor" mais "alto".

    Para ilustrar esta hiptese, tratarei aqui de trs figuras de mulhe-res que aparecem na filosofia de Plato, figuras que chamarei, segun-do expresses do prprio Plato, de flautistas, parteiras e guerreiras.

    As flautistas so cortess msicas que enfeitam os jantares mas-culinosda Atenas clssica. Nestes jantares, os convivas comem ebebem e, terminada a refeio, continuam bebendo. Decide-se, ento,

    do programa da noite. Vai-se beber at embriaguez completa,apreciar msica e declamaes de poesia, ou vai-se beber com certamoderao e discutir um tema mais filosfico? Ao tomar a deciso dediscutir e de filosofar, uma concluso prtica se impe: mandar asmulheres tocadoras de flauta para dentro da casa com as outrasmulheres e ficar entre homens.

    Uma vez,pois (....) que estamos de acordo em que hoje cada umde ns poder beber vontade, sem que se sinta constrangidopelo ridculo, desejo que me concedais uma coisa ainda: despa-chemos a flautista que acaba de entrar; ordene-lhe que toque paras i mesma, ou para as mulheres do interior da casa. Trataremos nsde nos divertirmos a conversar (Plato, Banquete, 176 e, trad.Paleikat).

    Mesmo gesto noProtgoras: Scrates fala da virtude, querexami-nar, atravs do dilogo, a natureza da virtude. Um assunto de tali mportancia exige uma certa disciplina, rompida por um intermezzodesagradvel,a conversa entre Protgoras e Scrates a propsito de

    alguns versos do poeta Simnides. este recurso poesia que Scratesrecusa, jogando-o para o lado das flautistas e da futilidade.

    Ao meu ver essas conversas sobre a poesia so muito parecidascom os banquetes de gente vulgar e sem instruo; incapazes dese distrarem mesa, dada a rusticidade que lhes peculiar, com

  • 5/24/2018 [livro] sete aulas sobre linguagem memoria historia jeanne gagnebin.pdf - sl...

    http:///reader/full/livro-sete-aulas-sobre-linguagem-memoria-historia-jeanne-

    AS FLAUTISTAS, AS PARTEIRAS E AS GUERREIRAS : 41

    a prpria voz ou discursos alternados, fazem subir o preo das

    flautistas, alugam caro a voz estranha das flautas e distraem-se

    com ela. Mas nos banquetes de gente fina e educada no encon-

    tramos nem tocadoras de flauta, nem danarinas, nem harpistas;bastando-se os convivas a siprprios, dispensam essas futilidades

    e brincadeiras e se distraem por meio da voz natural, cada um

    falando ou ouvindo por seu turno, com muita ordem aindamesmo que cheguem a beber bastante (Prtagoras, 347 c -347 d,

    trad. A Nunes).

    As condies da pesquisa filosfica esto, desta maneira, defini-

    das. Acima de tudo, no se deve misturar dois tipos de palavra. Deum lado, a palavra "estrangeira" da flauta, palavra da poesia e damsica, do corpo e da dana, palavra exercida por mulheres livres ecortess (que se opem, na sociedade ateniense, s esposas presas casa), uma palavra do riso, do jogo, das bagatelas e das bobagens. Dooutro lado, a palavra autenoma, que s6 precisa de si mesma, a palavrada razo e da cabea, cabea essa capaz de controlar at um corpo

    cheio de vinho, palavra exercida pelos homens, entre eles e um decada vez, enfim, uma palavra das coisas srias, uma palavra filosfica.A expulso das flautistas significa tambm a rejeio da poesia,

    esta grande inimiga da filosofia platnica. Mulher e poesia, ambasto falsamente belas e to perigosamente sedutoras, ambas devendoser rapidamente expurgadas do discurso filosfico, e isso com tantomais energia que a elas se sucumbe com tamanha facilidade, mulhere poesia, a tentao da imagem e do sensvel que devem ser excludos

    da verdade.Desta maneira se esboa, atrs da figura da flautista, uma das

    grandes divises do discurso filosfico: a razo e o srio ficando dolado dos homens e entre eles, na praa pblica ou na sala de estar, a

    poesia e as besteiras charmosas do lado das mulheres, no interior dacasa.lVelha ciso da qual sofremos ainda hoje, mulheres condenadas tagarelice ou ento ao mutismo (e histeria), homens condenadosao falar-certo e ao falar-demais.

    Uma outra figura de mulher freqenta a filosofia de Plato: a daparteira, me de Scrates. Scrates mesmo 95 consegue definir a sua

    atividade como arte do parto, isto , maiutica, com a diferena que

    1 Cf. Vernant, Mythe et Pense chez les Grecs (Paris: Maspro, 1965), tome 1, p. 124 ss.

  • 5/24/2018 [livro] sete aulas sobre linguagem memoria historia jeanne gagnebin.pdf - sl...

    http:///reader/full/livro-sete-aulas-sobre-linguagem-memoria-historia-jeanne-

    42 SETE AULAS SOARE LINGUAGEM, MEMRIA E HISTRIA

    ele no parteja o corpo das mulheres, mas as almas dos homens (cf.Teetto, 150 b). Com efeito, como j nos dizia Atena, a filosofia nocuida do corpo das mulheres, mas de valores mais "nobres". Isto noi

    mpede que a metfora continue vlida, comandando toda a teoriada produo intelectual do Banquete. Scrates ajuda os jovens a pariros seus pensamentos, desta gravidez masculina nascer o conheci-mento do bem. Por isso, a hierarquia amorosa do Banquete , aomesmo tempo, uma hierarquia da produo. No degrau mais baixo,h os que engendram no corpo, que precisam das mulheres para

    produzir filhos; quanto mais ascendemos no perfeito amor, tantomais se apaga esta dependncia em relao ao corpo, ao feminino

    especialmente, tanto mais digno de elogios ser o filho produzido:

    Aqueles cuja fecundidade reside no corpo, dirigem-se de prefern-cia s mulheres, e assim realizam a sua maneira de amar, acredi-tando que pela criao dos filhos atingem a imortalidade, acelebridade e a felicidade eternas.

    Os que, porm, desejam procriar pelo esprito pois hpessoas que mais desejam com a alma do que com o corpo (e ela mais fecunda ainda que o corpo) , esses anseiam por criaraquilo que sua alma compete criar. a criao desses homens aquem chamamos poetas, e a daqueles outros aos quais denomi-namos inventores. (....)

    No h ningum que no prefira tais filhos aos humanos: suficiente considerar Homero, Hesfodo e outros poetas excelen-tes: que filhos deixaram a perpetuar-lhes a glria eterna e a perenememria! (...) No vosso Estado muito honrado Solon, emvirtude das leis que criou, e outro tanto acontece com muitosoutros homens, em muitas terras, entre gregos e entre brbaros.Esses homens realizaram muitas obras belas e criaram virtudes detodo gnero. Muitos templos j lhes foram erguidos que ningumnunca obteve pelos filhos humanos 2 (Banquete, 208 e 209 e,trad. Paleikat).

    notvel que Plato, quando fala daqueles que so fecundossegundo o corpo e daqueles fecundos segundo o esprito, use a mesmapalavra "ekgymn" em ambos casos, que significa, em primeiro lugar,

    2 'Dia de taus anthropinous oudenospo' curiosamente,esta ltima parte faltana traduode Paleikat.

  • 5/24/2018 [livro] sete aulas sobre linguagem memoria historia jeanne gagnebin.pdf - sl...

    http:///reader/full/livro-sete-aulas-sobre-linguagem-memoria-historia-jeanne-

    AS FLAUTISTAS. AS PARTEIRAS E AS GUERREIRAS 43

    "grvida" e, por analogia, fecundo(a). Poucas linhas antes, em 206 e,

    o intuito do deseo amoroso tinha sido definido como "gerao eparto na beleza", a gerao designando a atividade masculina, o

    parto, a feminina. Como se o ideal do conhecimento amoroso fosseconseguir sozinho fazer um filho, o velho sonho da cabea de Zeus.Mas quem esse filho nascido de um amor que prescinde do outrocorpo, em particular do corpo da mulher? Leia-se a resposta no fimda descrio da iniciao amorosa:

    Ao contrrio, volver-se- agora para o imenso oceano da beleza,contemplando-o, dar luz incansavelmente belos e esplndidosdiscursos. E os pensamentos surgiro da inesgotvel inspirao dosaber (Banquete, 210 d, trad. Paleikat).

    O filho desejado , portanto, novamente o discurso ("logos").

    Velha hierarquia da diviso do trabalho: em baixo, as mulheres quefazem filhos, em cima, os homens que fazem discursos. Velha sepa-rao da produo material e da produo intelectual, esta s se

    referindo quela para melhor ressaltar a sua superioridade.Mas, diro vocs, no foi Plato o primeiro a proclamar a igual-dade do homem e da mulher no clebre texto da Repblica, no qualdefende a mesma educao para os guerreiros e as guerreiras (Rep-

    blica, V, 451 ss.)? Um texto, inclusive, que levou alguns a fazer dePlato o primeiro feminista. Deixemos de lado o problema de saberse Plato era ou no feminista e consideremos, antes, como se

    constri este discurso igualitrio.

    Trata-se de saber se as mulheres podem, como fmeas de bonsces de guarda, cooperar com os machos para a guarda da cidade (id.,451 d). Plato coloca com admirvel clareza a questo da diferenaentre os sexos, a questo do Mesmo e do Outro, e chega conclusode que a diferena biolgica entre homem e mulher no acarreta

    nenhuma diferena de aptido:

    Se, portanto, seevidencia que os dois sexos diferem entre si

    quanto s suas aptides para exercer certa arte ou certa funo,diremos que preciso consignar esta arte ou esta funo a um oua outro; mas se a diferena consiste somente no fato de a fmea

    3 "Tts gentsebs kaltau tokou emti kaldi."

  • 5/24/2018 [livro] sete aulas sobre linguagem memoria historia jeanne gagnebin.pdf - sl...

    http:///reader/full/livro-sete-aulas-sobre-linguagem-memoria-historia-jeanne-

    44SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMORIA E HISTORIA

    conceber e o macho engendrar, nem por isso aceitaremos comodemonstrado que a mulher difere do homem sob o aspecto quenos preocupa, e continuaremos pensando que os guardies e suas

    mulheres devem desempenhar os mesmos empregos

    (Repblica,V, 454 d-e, trad. J. Guinsburg).

    O que so estes empregos? Ora, justamente aqueles que foramdefinidos anteriormente como prprios dos guardies da cidade.

    Trata-se de descobrir se no existe nenhuma tarefa "para qual homeme

    mulher no so igualmente dotados, mas diferem de aptido" (id.454 e), unicamente para decidir se a mulher pode ou no ser tratadacomo um homem. Por conseguinte, a questo da diferena dos sexosse reduz de saber at que ponto a mulher difere do homem e atonde ela se assemelha a ele. Talvez seja esse deslizamento na coloca-o do problema que se manifesta na estranha contradio da con-cluso platnica:

    Por conseguinte, meu amigo, no h emprego concernente administrao da cidade que pertena mulher enquanto mulher,

    ou ao homem enquanto homem; ao contrrio, as aptides natu-rais se distribuem igualmente entre os dois sexos, e conforme natureza que a mulher, tanto quanto o homem, participe de todosos empregos, ainda que seja, em todos, mais fraca do que ohomem (Repblica, V, 455 e, trad. J. Guinsburg).

    Mas de onde saiu, afinal, esta sbita fraqueza feminina? Onde

    Plato foi busc-Ia? Num simples preconceito machista? Este sbitorestabelecimento da hierarquia dos fortes e dos/as fracos/as talvez sejamuito mais profundamente ligado dificuldade do pensamentoplatnico e do pensamento ocidental em geral em pensar adiferena, sexual ou no. Com efeito, diferena e identidade s sopensadas em relao a um referente que tambm e isso pervertea comparao um dos termos da alternativa. Desta maneira, oproblema da igualdade entre os sexos se resume na questo de saber

    se as mulheres so to capazes quanto os homens, sem questionar agnese desta capacidade masculina. Deve-se realmente desejar que asmulheres se tornem idnticas aos homens? Devemos continuar adefini-las como o Outro do homem, a sua falta e o seu negativoenquanto ele representaria o pleno e o positivo? 0 problema no

  • 5/24/2018 [livro] sete aulas sobre linguagem memoria historia jeanne gagnebin.pdf - sl...

    http:///reader/full/livro-sete-aulas-sobre-linguagem-memoria-historia-jeanne-

    AS FLAUTISTAS, AS PARTEIRAS E AS GUERREIRAS 45

    seria, muito mais, de colocar em questo esta plenitude e esta positi-

    vidade?Trs figuras de mulheres, as flautistas, as parteiras e as guerreiras,

    trs "ns" da tradio filosfica ocidental: pensar o discurso ldicono racional, pensar a produo da matria e pensar a diferena. Trstemas que evidenciam aquilo que foi chamado de "recalque dofeminino". Significaria isto que os sujeitos masculinos do discurso

    filosfico no quiseram ou no conseguiram pensar o feminino ou,ao contrrio, que s puderam pens-lo como uma matria passiva eameaadora, uma tagarelice agradvel, mas desprovida de sentido,

    uma outra incompleta? Esta matria tagarela e carente designariarealmente a essncia da feminilidade? Sem dvida, flautistas, partei-

    ras e guerreiras podem nos ajudar a entender melhor que estafamigerada "feminilidade" nada tem de essencial, exceto uma funodeterminada num discurso que procura estabelecer a sua coerncia ea sua verdade pela excluso de outros tipos de palavra.

    Gostaria, ento, guisa de concluso, de colocar uma segundahiptese, que tambm uma interrogao: de fato o feminino,enquanto essncia imutvel, que foi recalcado no discurso filosfico

    ocidental? No seria, antes, que aquilo que foi deixado de lado,rejeitado, excludo, foi, depois, atribudo s mulheres (ou tambm scrianas, aos selvagens, aos loucos) e, conseqentemente, descritocomo tipicamente feminino (ou tambm como infantil, primitivo,

    louco)? Nesta distribuio, as mulheres teriam recebido a sensibilida-de e a natureza, o silncio e o jogo, mas tambm a tagarelice, a inrcia

    e a insuficincia, enquanto, do outro Lado da diviso, erige-se o sujeitomasculino, pleno, autnomo e detentor do discurso verdadeiro. Uma

    reflexo filosfica e feminista! no me parece, portanto, deverreivindicar uma essncia da feminilidade, nem tentar uma aproxima-o cada vez mais eficaz do paradigma masculino, mas deve, sim,

    questionar a verdade deste discurso.

  • 5/24/2018 [livro] sete aulas sobre linguagem memoria historia jeanne gagnebin.pdf - sl...

    http:///reader/full/livro-sete-aulas-sobre-linguagem-memoria-historia-jeanne-

    Post-Scriptum

    Esse pequeno texto panfletrio foi escrito h muitos anos para umamesa-redonda em So Paulo. Voc me pergunta, com razo, o que eudiria

    hoje. Achei primeiro, assustada, que no tivesse mais nempensado, nem escrito nada sobre esses assuntos. Depois, procurandonas minhas pastas e nas minhas lembranas, me dei conta que sim,sem dvida, este "questionamento feminista da filosofia"4 no cessou

    de me acompanhar. Mas sempre se exprimia em ocasies poucofilosficas: um artigo num jornal de grande difuso por ocasio do diadas mes, artigo cujo ttulo "de uma maternidade no domesticada"foi cancelado sem eu saber; um outro sobre "mulheres e escrita" para

    o congresso das mulheres escritoras na cidade de Mxico em 1981; e,tambm, comentrios de teses de colegas mulheres, em literatura, em

    antropologia. Um pouco como se a rede feminista continuasse, maspor fora, sim, apesarde minhas atividades de professora de filosofia.

    No que o meio seja especialmente masculino: h mais mulheresprofessoras e estudantes de filosofia no Brasil do que na Europa, talvezporque as profisses ligadas ao ensino esto subpagas, e os "chefes de

    famlia" preferem, portanto, ser mdicos ou engenheiros. verdadeque os filsofos que ocupam os postos i mportantes e que so os maisconhecidos so, fora raras excees, homens: as mulheres em destaque

    so muitas vezes acusadas por seus colegas (de ambos sexos) de histeria

    ou incompetncia. o medo de tais crticas que, muito provavelmente,me impediu de aprofundar "estudos femininos" 5

    em filosofia. Nutro,porm, um fantasma: o de ser, mais tarde, uma velha senhora muitodigna afastada da sexualidade e prxima da sabedoria! umaScrates em suma, que consagraria seus dias a uma releitura feministairnica e serena da metafsica.

    Como se eu precisasse, por assim dizer, primeiro provar (aosoutros, mas tambm a mim mesma) que tenho realmente acesso ao

    Logos, para ousar explorar outras regies da palavra, para ousarinventar uma outra aproximao da linguagem, para ingressar, ta-

    4Ver Franoise Collin, "Ces tudes qui ne sont 'pas tout'. Fcondit et limites des tudesfministes", in Cahiers dn GR/F, nmero 45, p. 91.5 Ver no mesmo nmero, Savoir etdiffrence des sexes, a maioria dos artigos a esse respeito.

  • 5/24/2018 [livro] sete aulas sobre linguagem memoria historia jeanne gagnebin.pdf - sl...

    http:///reader/full/livro-sete-aulas-sobre-linguagem-memoria-historia-jeanne-

    AS FLAUTISTAS. AS PARTEIRAS E AS GUERREIRAS : 47

    teando, em lugares inditos. Hesitao que no sem vantagens, poisme leva, por descaminhos, a territrios afastados que o logocentrismo

    define muitas vezes como perifricos, para eu medir, prudentemente,minhas foras. Seria interessante estudar a escolha dos assuntos ou

    dos autores que as mulheres-filsofas tratam com mais felicidade:pergunto-me se muitas no praticam essa estratgia do desvio, "ata-

    cam" as questes "capitais" no "frontalmente", como se diz, mas

    pelo intermdio privilegiado de autores "menores" ou de problemassituados, muitas vezes, na fronteira com outras disciplinas. Tticas deaproximao, mas certamente tambm, de maneira mais secreta,

    tticas de solapamento, de corroso, de "desconstruo" do edifcio

    coerente demais do Logos. Quando essa guerrilha tranqila alia com-petncia e impertinncia, indignao e alegria, eis que essas mulheres

    pouco vontade se encontram, de repente, no corao dos debates

    filosficos atuais, pois trata-se para ns todos, mulheres e homens,

    de orientarmo-nos em tradies que desmoronam, de cuidarmos da

    memria de narrativasportadoras de esperana, sem necessidade decrispao para manter discursos totalizantes ou totalitrios. Ento, ofato das mulheres se sentirem deslocadas nos palcios do saber pode

    se tornar uma chance: a de desenhar outros espaos, de modelaroutros tempos, nos quais possam surgir o jogo em sua gratuidade, a

    matria em sua espessura, a diferena em sua imprevisibilidade. Sem

    que, imediatamente, a angstia os sufoque. Esse deslocamento essen-

    cial pode se transformar numa facilidade paradoxal em renunciar

    quilo que, durante muito tempo, foi o apangio da razo: umacontinuidade lisa e sem falhas, que remetia identidade plena dosujeito e ao desenrolar inelutvel de um tempo homogneo. Tantas

    vezes definidas pela falta e pela incoerncia, as mulheres poderiam

    ter menos dificuldade em se desprender desse ideal de uma subjeti-

    vidade soberana que tentaram, em vo e no por acaso, realizar: no

    s porque seu sexo encarnaria a ausncia, mas tambm por razes que

    toda reflexo filosfica moderna, desde Nietzsche, se esfora por

    articular numa linguagem lacunar porque o s