livro lingua latina

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Autor Rodrigo Tadeu Gonçalves Língua Latina 1.ª edição

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  • Autor Rodrigo Tadeu Gonalves

    Lngua Latina

    1. edio

  • 2007 IESDE Brasil S.A. proibida a reproduo, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorizao por escrito dos autores e do detentor dos direitos autorais.

    Todos os direitos reservados

    IESDE Brasil S.A.

    Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482 Batel

    80730-200 Curitiba PR

    www.iesde.com.br

    Gonalves, Rodrigo Tadeu.

    Lngua Latina. /Rodrigo Tadeu Gonalves Curitiba: IESDE Brasil S.A., 2007.

    184 p.

    ISBN: 978-85-7638-771-8

    1. Lngua latina Didtica 2. Lngua latina Estudo e ensino 3. Lngua Latina Gramtica 4. Lngua latina Literatura I. Ttulo.

    CDD 470.07

    G635

  • Sumrio

    Histria do latim e as lnguas neolatinas | 7A hiptese do indo-europeu | 9Histria do latim | 11A passagem do latim para as lnguas romnicas modernas | 13A latinizao | 14

    Fonologia e prosdia do latim | 21A questo da durao das vogais | 22O alfabeto latino | 23O acento de intensidade | 25As pronncias do latim | 26

    Estrutura da lngua latina comparada com a do portugus | 31A estrutura da lngua portuguesa | 31A estrutura do latim | 32Comparao entre as duas lnguas | 36

    Sistema nominal latino | 43As declinaes nominais | 43 Os adjetivos de primeira classe | 47Preposies | 49

  • Sistema nominal latino II | 55Terceira declinao dos nomes | 55Adjetivos de segunda classe | 59

    Graus dos adjetivose formao de advrbios | 73A formao do comparativo dos adjetivos | 73A formao do superlativo dos adjetivos | 75Comparativos e superlativos irregulares | 76Advrbios regulares | 76

    Estrutura da lngua latina: os verbos | 81Caractersticas morfolgicas dos verbos em latim | 81Primeira conjugao verbal | 85Segunda conjugao verbal | 88

    Aprofundamento da morfologia verbal latina | 95Terceira conjugao | 95Quarta conjugao | 97Conjugao mista | 99Verbos irregulares | 101

    A voz passiva e os verbos depoentes | 115Voz passiva | 115Verbos depoentes | 121

    Os pronomes em latim | 131Pronomes pessoais | 131Pronomes possessivos | 132Pronomes interrogativos e indefinidos | 133Pronomes demonstrativos | 134Pronomes relativos | 136

    Conjunes: coordenao e subordinao | 147 Conjunes | 147Conjunes coordenativas | 147Conjunes subordinativas | 149A questo da subordinao sem conjuno: o acusativo com infinitivo | 153

    Os numerais, o calendrio romano, a quarta e quinta declinaes | 161Os numerais | 161O calendrio romano | 163A quarta e a quinta declinaes nominais | 167

    Gabarito | 175

    Referncias | 183

  • Apresentao

    muito difcil no reconhecer a importncia da lngua latina para todos os estudiosos e profissionais de reas relacionadas com a lngua portuguesa, dada a relao de descendncia histrica direta entre elas. Assim, a incluso do estudo, ainda que incipiente, do latim nos currcu-los de Letras fundamental.

    Este livro tentar apresentar questes importantes da lngua la-tina para alunos de graduao em Letras. O ensino do latim pretendido aqui , portanto, instrumental, voltado para uma compreenso da nossa prpria lngua. Em especial, pensamos, o contato com a lngua da qual a nossa deriva diretamente deve aumentar a nossa capacidade de refletir sobre estruturas lingusticas e sobre a nossa prpria concepo da nos-sa prpria lngua, tanto no sentido histrico quanto no sentido sistem-tico, nos termos da diacronia e da sincronia saussureanas.

    Dessa forma, no pretendemos, por razes de escopo do mate-rial e do papel que essa disciplina exerce numa licenciatura em Letras Portugus, oferecer um ensino extremamente complexo e aprofunda-do de todas as formas possveis da gramtica latina, nem pretendemos levar os aprendizes aos caminhos dos textos originais de forma mila-grosa. Mas sim, por outro lado, em uma tentativa metodologicamente reflexiva e crtica, pretendemos abrir o caminho ao aluno interessado para que, a partir daqui e das referncias apresentadas ao longo do livro, continuem seus estudos a fim de que se apoderem dos tesouros do conhecimento, do pensamento, da literatura, da religio e da filoso-fia ocidentais a que o domnio pleno da lngua latina conduz.

    Isso no quer dizer, no entanto, que no tentaremos incentivar os alunos ao acesso desde o primeiro momento aos textos autnticos do vasto corpus da literatura latina: com glossrios explicativos e adaptaes mnimas, apresentaremos alguns excertos como base dos exerccios, para que, atravs de metodologia moderna no ensino da habilidade de leitura, possamos ajudar os alunos a se tornarem leitores capazes de compreen-der uma lngua como o latim em sua base estrutural to diversa da nossa.

    Por esse mesmo motivo, como o ensino da lngua latina (que no tem mais falantes nativos vivos) s pode ser pensado de modo plausvel visando a habilidade de leitura (e no as de escrita, produ-o e compreenso oral), ser necessrio trabalhar com exemplos no-autnticos e que fugiriam aos moldes da literatura latina cannica. Faremos tudo, esperamos, de maneira dosada e sem distorcer o que deveria ter sido de fato a lngua de Roma.

  • Histria do latim e as lnguas neolatinas

    Rodrigo Tadeu Gonalves*

    O latim a lngua que era falada na regio central da Itlia, chamada de Lcio, durante o primeiro milnio antes de Cristo e que, juntamente com o Imprio Romano, estendeu-se por grande parte da Europa, pelo norte da frica e por diversas regies da sia, at se transformar, atravs do curso natural das lnguas, em dialetos incompreensveis entre si, que acabaram dando origem a lnguas como o nosso portugus, o francs, o catalo, o espanhol, o italiano, o romeno, o provenal, entre outras.

    O latim que aprendemos hoje corresponde variante literria de um perodo muito importante para a histria do Ocidente: o perodo que, de maneira geral, compreende os sculos I a.C. e I d.C. Nesse perodo, grandes autores escreveram obras literrias que ajudaram a moldar as bases culturais, polticas, sociais, filosficas e religiosas da Europa e, consequentemente, do mundo Ocidental. Dentre esses auto-res, podemos destacar o mantuano Pblio Virglio Maro1, que, dentre outras obras, escreveu a Eneida no final do sculo I a.C. Virglio narra, em doze livros de cerca de 700 a 1 000 versos cada, as origens histri-cas e mitolgicas da grandiosa Roma que, no seu tempo, era governada pelo imperador Augusto2, que, aps longas dcadas de guerras civis, havia sido declarado imperador em Roma, e criaria um perodo de paz e prosperidade para a capital de um imprio que, se j vinha se expandindo enormemente ao longo dos sculos precedentes, avanaria seus domnios para lugares to distantes quanto as Ilhas Britnicas, a costa do Norte da frica (incluindo o Egito), e vrios territrios do atual Oriente Mdio, at as bordas do Mar Negro.

    * Mestre em Letras e bacharel em Letras: portugus, ingls e latim pela Universidade Federal do Paran (UFPR).1 Virglio nasceu no ano 70 a. C. perto de Mntua, na Glia Cisalpina, e morreu no ano 19 a.C.2 De nome Gaio Jlio Csar Otaviano, Augusto recebeu esse ttulo quando se tornou o primeiro imperador de Roma. Nasceu em 63 a.C. e morreu no ano 14 da nossa Era. Sob seu imprio, cessam quase cem anos de guerras civis entre os romanos, em especial, a mais importante, travada entre seu tio, Jlio Csar, e Pompeu.

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    Mapa do Imprio Romano por volta da poca de Augusto.

    Na Eneida de Virglio, o surgimento de Roma est ligado s razes mitolgicas europias, pois Enias, o heri do poema, fugindo como um dos poucos sobreviventes da Guerra de Tria3, recebe a misso de buscar uma nova terra para fundar uma cidade que viria a ser a capital do mundo.

    Os destinos e os deuses ento guiam Enias por terras distantes, at que ele chega na foz do rio Tibre, por volta do sculo VIII a.C., perto das famosas sete colinas que hoje ficam em Roma. L, seu filho Ascnio d origem a uma linhagem de reis que misturam sua ascendncia com as dos povos locais, que incluam etruscos, faliscos, oscos, sabinos, entre outros, e que, com seus descendentes Rmulo e Remo, fundam a cidade de Roma.

    Acompanhemos as palavras que Enias ouve de seu pai, Anquises, quando desce aos infernos para encontrar-se com ele e conhecer o futuro glorioso de Roma:

    Outros, certo, ho de o bronze animado amolgar com a mo destra, ningum o nega; do mrmore duro arrancar vultos vivos. Nos tribunais falar bem, apontar com o seu rdio as distncias na azul abbada e os astros marcar quando a leste despontam. Mas tu, romano, aprimora-te na governana dos povos. Essas sero tuas artes; e mais: leis impor e costumes, poupar submissos e a espinha dobrar dos rebeldes e tercos.4

    A partir dos relatos mticos da fundao de Roma, as conquistas desse povo belicoso e austero tornaram grande parte do mundo conhecido falante de latim, e, com a fuso de Imprio Romano e Igreja ao longo dos primeiros sculos da Era Crist, a religio, a cultura, a literatura, a filosofia e a admi-

    3 Os gregos sitiaram a cidadela de Tria por cerca de dez anos e finalmente a destruram porque o belo Pris, filho de Pramo, rei de Tria, raptara a belssima princesa Helena, esposa do chefe grego Menelau. Dentre os gregos destacavam-se, por exemplo, o engenhoso Odisseu, protagonista da Odissia do poeta grego Homero, e o furioso Aquiles, tema do outro poema pico homrico, a Ilada. Tambm durante a guerra de Tria encontramos o ardil do cavalo de madeira cheio de soldados, o famoso presente de grego.4 Traduo de Carlos Alberto Nunes para os versos 847 a 853 do Livro VI da Eneida. Em latim: Excudent alii spirantia mollius aera, / credo equidem, vivos ducent de marmore voltus, / orabunt causas melius, caelique meatus / describent radio, et surgentia sidera dicent: / tu regere imperio populos, Romane, memento; / hae tibi erunt artes; pacisque imponere morem, / parcere subiectis, et debellare superbos.

    Expanso do Imprio Romano para a morte de Csar.Expanso territorial desde Augusto at Nero e poca de Trajano.Tentativa de penetrao Romano-Germnica na poca de Augusto.

    8 Lngua Latina

  • nistrao pblica levaram a antiga lngua da Itlia, ao longo da Antigidade e da Idade Mdia, para a grande parte da Europa.

    Assim, se falamos portugus hoje, porque a regio onde hoje fica Portugal fez parte desse proces-so de recepo da cultura dos conquistadores romanos e a lngua latina l falada foi aos poucos se diferen-ciando do latim falado pelas outras regies, at que j no fosse a mesma lngua. Somos, de certa forma, herdeiros lingsticos da empreitada do mtico Enias, e, por isso, ainda muito importante aprendermos ao menos um pouco dessa lngua que constitui um dos pilares fundamentais da cultura ocidental.

    A hiptese do indo-europeuAo longo principalmente do sculo XVIII, estudiosos europeus interessados em vrias lnguas e

    culturas comearam a perceber similaridades muito claras entre palavras de lnguas que j se sabia que eram aparentadas, como o grego e o latim, e lnguas de regies muito afastadas da Europa Ocidental, como o snscrito, lngua sagrada da antiga civilizao dos Vedas, da ndia. Perplexos, os pesquisadores comearam a estabelecer relaes entre essas lnguas e a maioria das lnguas faladas na Europa, e fo-ram mapeando semelhanas que constituam evidncia forte demais para levantar a hiptese de que todas essas lnguas teriam derivado de algum ancestral comum. Em 1786, Sir William Jones, magistrado do Imprio Britnico que fora enviado para a ndia, pronunciou em um discurso na Sociedade Asitica aquilo que seria o pontap inicial da cincia lingustica que viria a se desenvolver ao longo do sculo XIX: a lingustica histrico-comparativa. Eis o famoso trecho do discurso:

    O snscrito, sem levar em conta a sua antiguidade, possui uma estrutura maravilhosa: mais perfeito que o grego, mais rico que o latim e mais extraordinariamente refinado que ambos. Mantm, todavia, com essas duas lnguas to grande afinidade, tanto nas razes verbais quanto nas formas gramaticais, que no possvel tratar-se do produto do acaso. to forte essa afinidade que qualquer fillogo que examine o snscrito, o grego e o latim no pode deixar de acreditar que os trs provieram de uma fonte comum, a qual talvez j no exista. Razo idntica, embora menos evidente, h para supor que o gtico e o celta tiveram a mesma origem que o snscrito. (ROBINS, 1983, p. 107).

    Essa nova cincia buscava compreender a sistematicidade das relaes histricas entre as lnguas que passaram a ser chamadas de indo-europias. Elas foram assim chamadas porque os pesquisadores acreditavam que no s o latim, o grego e o snscrito, mas tambm a maioria das lnguas europias e muitas asiticas, como o ingls, o alemo, o russo, o persa, o hindi, o francs, e tantas outras, derivavam de uma mesma lngua-me, o proto-indo-europeu.

    Essa protolngua5 da Europa e de grande parte da sia teria sido falada h cerca de sete mil anos por um povo de origem ainda relativamente misteriosa, que, em virtude da necessidade de migraes em massa, levou sua lngua e costumes (como seus hbitos agrcolas, o uso de cavalos e de instrumentos de guerra, e sua sociedade patriarcal) por diversas regies em ondas migratrias que deixaram o grupo original fragmentado em grupos menores, sem contato uns com os outros. Assim, as regies que, em perodos diferentes e em locais diferentes receberam grupos de nmades indo-europeus, desenvolveram seus dialetos de maneiras diferentes, gerando ramos diferentes de dialetos que foram se diferenciando e formando lnguas diferentes. Dessa forma, temos o ramo indo-iraniano, do qual fazem parte lnguas como

    5 Chamam-se protolnguas as lnguas originrias de todo um ramo de uma famlia lingustica ou da famlia inteira. Assim, a famlia das lnguas indo-europias tem a sua protolngua, o indo-europeu, enquanto que dentro dessa famlia vrias outras so protolnguas, como o protogermnico, o proto-eslavo e assim por diante.

    Histria do latim e as lnguas neolatinas 9

  • o persa, o snscrito e o bengals; o ramo eslvico, do qual fazem parte lnguas como o russo, o blgaro, o servo-croata, o polons; o ramo germnico, do qual fazem parte lnguas como o alemo, o ingls, o islan-ds, o noruegus, o holands; o ramo helnico, do qual fazem parte, entre outras, o grego antigo e o grego moderno; o ramo cltico, do qual fazem parte lnguas como o gauls, o galico escocs e irlands, o gals, entre outras; o ramo anatlico, do qual fazem parte lnguas de locais bastante distantes da Europa, como o tocrio, falado numa regio da sia Central, hoje pertencente China, e, por fim, o ramo itlico, do qual fazem parte o latim, o osco e o umbro, por exemplo.

    islands

    dinamarqus

    sueco

    noruegus

    Proto-Indo-Europeu

    ITLICO

    latim

    [Romance]

    francs

    italiano

    espanhol

    portugus

    romeno

    grego clssico

    grego koin

    (Novo Testamento)

    grego moderno

    HELNICO

    galico escocs

    galico irlands

    gals

    CLTICO BALTO-ESLVICO

    lituano

    blgaro

    russo

    polons

    ucraniano

    snscrito

    hindi

    NDICO ALBANS ARMNICO GERMNICO

    Germnico Ocidental

    frsio alemoingls holands

    Germnico Setentrional

    nrdico antigo

    Germnico Oriental

    gtico

    bengalsbengalsbengals

    Assim como nos outros ramos, lnguas mais antigas deram origens a lnguas mais novas com base em processos de dialetao semelhantes aos que levaram o proto-indo-europeu a vrios lugares diferentes e que o transformaram em vrias lnguas diferentes. Do mesmo modo que do gtico antigo ns temos hoje o alemo e o ingls modernos, do latim antigo ns temos hoje um sub-ramo, chamado de ramo das lnguas neolatinas ou romnicas, composto por lnguas como o portugus, o francs, o italiano, o espanhol, entre outras.

    Vejamos uma tabela com algumas palavras em vrias lnguas indo-europias:

    Portugus pai me irmo lobo

    Latim pater mater frater lupus

    Grego pater meter phrater lykos

    Snscrito pitar matar bhratar vrkas

    Espanhol padre madre hermano lobo

    Francs pere mere frere loup

    Ingls moderno father mother brother wolf

    10 Lngua Latina

  • Ingls antigo fder modor brothor wulf

    Alemo Vater Mutter Bruder Wolf

    Histria do latim Estudamos o latim por meio de seus registros escritos, que so dos mais variados, como inscries

    em muros, monumentos fnebres, documentos transcritos e copiados em vrias pocas, citaes de textos mais antigos em textos de autores mais recentes, dentre outras fontes. Assim, h documentos de vrios perodos, e h, obviamente, escassez maior de registros escritos de estgios mais antigos da lngua. A histria do latim que faremos aqui , portanto, bastante resumida e de carter didtico.

    Latim arcaicoSupe-se que o latim tenha sido falado na regio do Lcio por volta do sculo XI a.C., mas os

    primeiros registros da lngua escrita encontrados datam do sculo VII ou VI a.C. Mais tarde, por volta do sculo III a.C., comeam a ser produzidos textos literrios em latim, em grande parte por meio de um processo de assimilao da cultura e literatura gregas do perodo.

    Roma, ento j uma potncia, conquistava territrios de vrios fundos culturais diferentes, e em pou-co tempo, por volta do sculo II a.C., o Mar Mediterrneo j era praticamente dominado pelos romanos.

    O ambiente cultural efervescente produzido pelo contato de vrias culturas produziu em Roma o incio de uma literatura que, de certa forma, surgiu como adaptao para o pblico falante de latim de textos picos e dramticos da tradio grega. desse perodo, por exemplo, a suposta primeira obra da literatura latina, uma traduo da Odissia de Homero feita pelo escravo grego Lvio Andrnico para propsitos educacionais. Lvio, capaz de ler e escrever em grego, trazido para Roma como escravo, tornou-se responsvel pela educao dos filhos de seu senhor e, pela escassez de material, traduz o poema homrico para poder ensinar as letras s crianas em Roma. Assim sur-ge a literatura latina. Nesse perodo, ainda, outros autores produziram textos mais ou menos adap-tados da tradio grega, como as comdias de Plauto e Terncio, de gosto popular, que seguem a tradio da Comdia Nova6 grega e as tragdias (em grande parte perdidas) de Nvio e nio, por exemplo. Seguindo o caminho aberto por Lvio, Nvio e nio tambm escrevem os primeiros textos picos em latim, dos quais, infelizmente, restaram apenas fragmentos.

    Latim clssicoConvencionou-se chamar de latim clssico o estilo literrio da lngua ao longo do primeiro sculo a.C.

    at o incio do primeiro sculo da Era Crist. So desse perodo a prosa elaborada do poltico, filsofo e orador Ccero, a poesia lrica e a pica nacional de Virglio, com as suas Buclicas e a sua Eneida, e a lrica amorosa de

    6 A Comdia Nova grega surge no perodo da virada do sculo IV para o III antes de Cristo, e baseia-se em tramas familiares, convencionais, com personagens caricaturais, como o velho imbecil, seu filho sem responsabilidades e, em geral, apaixonado por uma moa que no pode se casar com ele, o escravo sagaz do velho que ajuda o filho em suas desventuras etc. O principal autor grego dessa tradio Menandro.

    Histria do latim e as lnguas neolatinas 11

  • Catulo, Proprcio, Tibulo, Horcio e Ovdio. Em geral, o latim que ensinamos hoje em dia a lngua literria desse perodo, tanto por causa da beleza do estilo cuidadosamente trabalhado desses autores, quanto pelo fato de que grande parte do corpus mais substancial dos textos clssicos literrio, o que nos deixou sem muito acesso aos outros registros lingsticos do perodo.

    Latim cultoO latim culto era a variedade falada pela classe culta de Roma. Esse dialeto era a base do latim

    clssico, a variante literria. O latim culto deveria ser muito mais rgido quanto s normas gramaticais que estudamos hoje como sendo a gramtica do latim, mas certamente muito menos estilizado que a lngua literria, o chamado latim clssico. Documentos escritos nessa variedade lingustica so menos comuns, mas possvel encontrar esse tipo de registro, por exemplo, em cartas de autores antigos, como as cartas de Ccero para seu irmo ou as cartas de Sneca para sua me, nas quais a estilizao e o trabalho esttico consciente com a linguagem so menos intensos, ainda que presentes.

    Latim vulgarA variedade do latim chamada de latim vulgar a lngua das massas, dos analfabetos, do povo em

    geral. Os registros dessa lngua so mais difceis de se encontrar, mas do testemunhos muito interes-santes da evoluo do latim. As inscries encontradas em muros, em banheiros pblicos, e at mesmo em obras literrias que tentavam retratar a variedade lingustica (como o romance chamado Satyricon, de Petrnio, autor do sculo I d.C., que apresenta longas passagens que tentam representar a lngua do povo de Roma) nos mostram uma lngua viva, muito frequentemente aberta s mudanas que ocorrem naturalmente nas lnguas.

    Um texto extremamente interessante o chamado Appendix Probi, annimo, provavelmente datado do sculo III a.C., que se constitui simplesmente de uma lista na forma de X non Y, que fun-cionaria para que as pessoas dissessem ou escrevessem X ao invs da forma realmente usada, Y. Nessa lista temos, por exemplo, a seguinte linha: auris non oricla. Essa linha nos diz muita coisa sobre como as pessoas falavam, e sobre como a lngua seguia seu curso de mudana natural. A forma auris, em latim culto, que significa orelha, na fala popular, possivelmente recebia o sufixo diminutivo cula, resultando em auricula7 orelhinha. Da para a forma oricla, que deveria ser evitada, temos a mudana do ditongo au para simplesmente o, e a queda da vogal u entre c e l. Ao estudarmos a passagem do latim para o portugus, vemos que sistemtica e regular essa mesma mudana de ditongos a vogais plenas, essas quedas de vogais e, alm disso, vemos que frequentemente formas como cla resultam em -lha e que vogais como i podem se transformar em e. Assim, orelha em portugus descende diretamente de auris ou de oricla? Parece claro que, ao menos nesse caso, a instruo do Appendix no funcionou! Mais de 20 sculos depois, sobrevive a forma errada! Curiosamente, como vimos acima, oricla j era uma forma diminutiva, ento, etimologicamente, quando dizemos orelha, remetemo-nos historicamente ao jeito de dizer orelhinha em latim.

    7 De onde vem, por exemplo, auricular em portugus? Essa uma palavra que foi emprestada do latim muito tempo depois de a forma orelha j estar em uso pelos falantes de portugus. Esse tipo de emprstimo considerado erudito, pois os falantes voltam ao latim para recuperar formas que, quando depois acolhidas pela lngua, vivem lado a lado com as formas populares que j existiam. Os exemplos so muitos, como a forma popular maduro e a forma erudita maturidade, vindos do latim maturus, a forma popular pai e as formas eruditas como patronmico, ambos do latim pater, patris.

    12 Lngua Latina

  • Latim tardioAps o perodo do latim clssico, o latim continuou sendo usado como lngua do Imprio Ro-

    mano, que cresceu cada vez mais e, posteriormente, o latim tornou-se a lngua oficial da Igreja Catlica ocidental. Assim, ao longo de muitos sculos, o latim foi usado como lngua universal para relaes internacionais, para administrao do Imprio e da Igreja, e ao longo da Antiguidade e da Idade Mdia, tudo que fosse importante era escrito em latim. Aos poucos, as comunidades foram desenvolvendo seus dialetos de forma que se afastassem mais e mais do latim, dando origem a lnguas diferentes, mas a lngua escrita continuava a seguir, na medida do possvel, os padres do latim culto, de forma que te-mos muito material escrito em latim culto por falantes nativos de outras lnguas ou de outras varieda-des do latim. Esses registros escritos so bastante abundantes. Como exemplo, temos desde a traduo latina dos textos bblicos, a Vulgata, vertida por So Jernimo para o latim nos fins do sculo IV, at os documentos portugueses de administrao e legislao do sculo XI, passando pela filosofia medieval e renascentista. Encontramos at mesmo textos escritos como teses e monografias de universidades no sculo XX, como a monografia que Karl Marx escreveu em latim sobre a filosofia do grego Epicuro.

    evidente que o latim, ao longo de tantos sculos de usos to variados, foi sofrendo alteraes substanciais, de forma que as variedades lingusticas resultantes foram se tornando incompreensveis entre si, resultando, no curso dos sculos, em lnguas diferentes, as chamadas lnguas romnicas.

    A passagem do latim para as lnguas romnicas modernasComo vimos anteriormente, o latim a lngua da qual surgem as chamadas lnguas romnicas,

    grupo que inclui no s o nosso portugus, mas tambm lnguas importantes como o francs, o espa-nhol, o italiano, e lnguas menores e menos conhecidas como o galego falado na regio da Galcia , na Espanha, o provenal idioma quase extinto falado em algumas regies de fronteira da Itlia com a Frana , o catalo lngua oficial de Andorra e falado na Catalunha na Espanha , o romeno lngua oficial da Romnia , entre outras.

    Como sabemos, alm de o latim ter sido a lngua de um dos maiores imprios que o mundo j viu durante tantos sculos, e alm de ter sido a lngua da administrao religiosa, da produo cientfica e fi-losfica de grande parte da Europa por tanto tempo, as lnguas diretamente derivadas do latim tambm encontraram seu caminho ao redor do mundo. O portugus, como sabemos, falado no s no Brasil e em Portugal, mas tambm em Angola, Cabo Verde, Macau, Moambique, Guin-Bissau, Timor Leste, So Tom e Prncipe, entre outros pases asiticos e africanos pelos quais os portugueses passaram nos sculos XV e XVI, quando navegaram ao redor do mundo. Os espanhis, de modo similar, levaram seu idioma a grande parte das Amricas, o que explica o nome Amrica Latina. O francs, tambm falado no Canad, Sua, Luxemburgo, Congo, Haiti, Senegal e em vrios outros pases, ajuda a dar uma idia da importncia das lnguas romnicas ou neolatinas ao redor do globo.

    Alm disso, mas no somente por esse fato, grande parte do vocabulrio do ingls (que, embora seja uma lngua indo-europia, faz parte de outro ramo, o das lnguas germnicas) de origem latina, via emprstimos do francs, ocorridos durante o perodo em que a Inglaterra foi dominada pelos Nor-mandos, por volta dos sculos XI e XII. Assim, a expanso de um vocabulrio de origem latina ao longo das lnguas mais importantes do mundo na atualidade faz com que grande parte do ncleo comum

    Histria do latim e as lnguas neolatinas 13

  • dessas lnguas seja aparentado, facilitando a ns, falantes de uma lngua latina, o reconhecimento de muitas palavras das outras lnguas europias importantes.

    A latinizaoTendo sido exposta toda a importncia das lnguas neolatinas no contexto mundial, passemos ao

    estudo de como o latim veio a se transformar nessas outras lnguas.

    Durante o perodo em que o Imprio Romano mantinha uma administrao poltica centralizada, as conquistas de territrios, em geral, significavam a instalao de um governo local, que deveria utilizar-se do latim para fins gerenciais. No s isso, mas tambm os povos dominados, por motivos diversos, acabavam falantes do latim, ou como lngua materna ou como segunda lngua. As lnguas locais, mais ou menos aparentadas do latim, acabavam influenciando a lngua latina usada na regio e, com o passar do tempo, conforme os dialetos latinos das provncias iam se consolidando, eles iam tomando caractersticas individualizadas, e aos poucos esses dialetos se constituam como lnguas autnomas. A seguinte passagem explica esse processo chamado latinizao:

    Latinizao ou romanizao a assimilao cultural e lingstica dos povos incorporados ao universo da civilizao latina. O fato de tantos povos de lngua, raa e cultura diferentes terem adotado a lngua e, pelo menos em parte, a civi-lizao dos vencedores um fenmeno nico na histria da humanidade. Essa aceitao, porm, no se deveu a impo-sies diretas. As conquistas romanas tinham carter poltico e econmico; no houve por parte de Roma pretenso de impor aos conquistados sua lngua ou sua religio; ao contrrio, considerava o uso da lngua latina como uma honra. Se os dridas foram perseguidos na Glia, isso aconteceu porque a utilizao de vtimas humanas nos sacrifcios feria o di-reito romano, ao qual se dava grande valor e importncia. O Novo Testamento mostra que os romanos no eliminavam instituies polticas, religiosas ou jurdicas, obviamente desde que no conflitantes, dos povos incorporados: o povo judeu manteve a religio, o sindrio, o sumo sacerdote, os levitas e os saduceus; a casa real de Herodes continuou a existir. Deviam pagar os impostos, enquanto as legies cuidavam da segurana e ao governador romano era reservada a palavra final em questes jurdicas especficas, como no caso da condenao morte. (BASSETO, 2005, p. 103).

    Esse processo no nada simples. Por exemplo, embora o latim tenha sido usado nas Ilhas Bri-tnicas, uma das ltimas provncias a serem conquistadas (o que se deu por volta do sculo I d.C.), ao longo do processo de descentralizao do poder imperial, ao longo do perodo de queda do Imprio Romano (que atinge seu pice quando o Imprio Romano Ocidental deixa de ter um centro poltico no sculo V, em virtude das invases brbaras), as provncias mais afastadas e aquelas onde havia menor centralizao do poder e unidade cultural no mantiveram o latim como lngua oficial. Isso explica porque territrios mais prximos de Roma, como as terras onde hoje temos Frana, Espanha, Portugal e Itlia, mantiveram-se falando latim, enquanto que, uma vez que o domnio imperial enfraquecia-se, provncias como a Bretanha acabaram por continuar a falar as lnguas locais, o que aconteceu em gran-de parte do resto da Europa e das outras regies ao redor do Mar Mediterrneo, da sia Menor, entre outros. Por isso os ingleses, os egpcios, os escandinavos e tantos outros hoje em dia no falam uma lngua neolatina.

    Nos locais em que a lngua latina foi falada por mais tempo, mesmo com o enfraquecimento e posterior queda do domnio do imprio, os dialetos foram se diferenciando cada vez mais dos dialetos das outras regies falantes do latim. Aos poucos, falantes do latim da Ibria j no conseguiam entender plenamente falantes da pennsula itlica, por exemplo.

    14 Lngua Latina

  • Como vimos nas sees anteriores, havia uma diferena substancial entre o dialeto da classe ur-bana culta de Roma, base da lngua literria que conhecemos como latim clssico, e o chamado latim vulgar, lngua falada pelas classes mais baixas, em geral analfabetas. Esse latim vulgar, provavelmente muito diferente de regio para regio, por ser a lngua viva que fervilhava nos mercados, que era falada pelos estrangeiros, pelos escravos de outros lugares, pelos trabalhadores, pelos soldados de baixa pa-tente em tantos lugares diferentes, deve ter sofrido mudanas mais rapidamente que o dialeto urbano culto de Roma. Com o passar dos sculos, esse latim vivo das provncias foi o que serviu de base para as transformaes posteriores que resultaram nas lnguas neolatinas.

    Vejamos alguns exemplos de semelhanas nos vocabulrios das lnguas romnicas ou neolatinas:

    a) nos nomes de algumas cores:

    Portugus Francs Espanhol Italiano latim

    branco blanc blanco bianco album

    negro noir negro nro niger, nigra, nigrum

    verde vert verde vrde viridis

    b) nos nomes dos nmeros de um a dez:

    Portugus 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

    Latim unus duo tres quattuor quinque sex septem octo novem decem

    Espanhol uno dos tres cuatro cinco seis siete ocho nueve diez

    Catalo un dos tres quatre cinc sis set vuit nou deu

    Galego un dous tres catro cinco seis sete oito nove dez

    Portugus um dois trs quatro cinco seis sete oito nove dez

    Francs un deux trois quatre cinq six sept huit neuf dix

    Italiano uno due tre quattro cinque sei sette otto nove dieci

    Romeno unu doi trei patru cinci ase apte opt nou zece

    Texto complementarO seguinte texto corresponde a um trecho da Eneida de Virglio, na traduo do paraense Carlos

    Alberto Nunes. O trecho conta o incio da histria do Cavalo de Tria, e consiste no incio do Canto II do poema. Nele, o protagonista Enias narra sua amante, Dido, a rainha de Cartago, como foi esse episdio da Guerra de Tria, na qual ele lutara, e da qual ele sara como sobrevivente e com a misso de encontrar a terra prometida, a Nova Tria, que viria a ser Roma.

    Histria do latim e as lnguas neolatinas 15

  • Prontos escuta calaram-se todos, dispostos a ouvi-lo.

    O pai Enias, ento, exordiou do seu leito elevado:

    Mandas, rainha, contar-te o sofrer indizvel dos nossos,

    como os aquivos9 a grande potncia dos teucros10 destruram,

    reino infeliz, espantosa catstrofe que eu vi de perto,

    e de que fui grande parte. Quem fora capaz de conter-se

    sem chorar muito, mirmdone ou dlope ou cabo de Aquiles?

    A mida noite do cu j descamba, e as estrelas, caindo

    devagarinho no poente, os mortais ao repouso convidam.

    Mas, se realmente desejas ouvir esses tristes eventos,

    breve relato do lance postremo11 da guerra de Tria,

    bem que a lembrana de tantos horrores me deixe angustiado,

    principiarei. Pela guerra alquebrados, dos Fados12 repulsos

    em tantos anos corridos, os cabos de guerra da Grcia

    com a ajuda da arte de Palas13 construram na praia um cavalo

    alto como uma montanha, de bojo com tbuas de abeto.

    Voto de pronto regresso era a mquina, todos diziam.

    Nessa medonha caverna, tirados por sorte, os guerreiros

    de mais valor ingressaram, num pice enchendo as entranhas

    daquele monstro, com armas e gente escolhida de guerra.

    Tnedo, ilha famosa se encontra defronte de Tria,

    rica no tempo em que o imprio de Pramo ainda existia,

    ora uma enseada de pouco valor ou nenhum para as naves.

    Prestes mudaram-se os dnaos; na praia deserta se ocultam.

    Ns os supnhamos longe, a caminho da rica Micenas.

    Com isso a Tucria respira mais leve no luto penoso.

    Abrem-se as portas; alegram-se os troas de ver mais de espao

    o acampamento dos drios, as praias desertas agora:

    O ponto era este dos dlopes; eis onde Aquiles se achava;

    9 Os gregos.10 Os troianos. 11 ltimo.12 Os Fados so os destinos, os desgnios que fogem at mesmo vontade dos deuses.13 A deusa da sabedoria, Palas Atena.

    16 Lngua Latina

  • surtos na terra, os navios; o campo em que as hostes lutavam.

    Muitos pasmavam de ver o presente ominoso da deusa,

    a imensido do cavalo. Timetes, primeiro de todos,

    aconselhou derrubarmos o muro e direto o postarmos

    na cidadela, ou por dolo isso fosse ou dos Fados previsto.

    Cpis, porm, e outros mais de melhor parecer insistiam

    para que ao mar atirssemos logo a armadilha dos dnaos,

    fogo deitssemos nela ou que ao menos o ventre do monstro

    fosse explorado ou sondadas as vsceras sem mais reservas.

    Assim, o vulgo inconstante oscilava entre vrios alvitres.

    Nisso, Laocoonte ardoroso, seguido de enorme cortejo,

    da sobranceira almeidina desceu para a praia, e de longe

    mesmo gritou: Cidados infelizes, que insnia vos cega?

    Imaginais porventura que os gregos j foram de volta,

    ou que seus dons sejam limpos? A Ulisses, ento, a tal ponto

    desconheceis? Ou esconde esta mquina muitos guerreiros,

    ou fabricada ela foi para dano de nossas muralhas,

    e devassar nossas casas ou do alto cair na cidade.

    Qualquer insdia contm. No confieis no cavalo, troianos!

    Seja o que for, temo os dnaos, at quando trazem presentes.

    Disse, e arrojou com pujana viril um venablo dos grandes

    contra os costados e o ventre abaulado do monstro da praia,

    no qual se encrava, a tremer; sacudida com o baque, a caverna

    solta um gemido, abaladas no fundo as entranhas do monstro.

    Oh! Se no fosse a vontade dos deuses e a nossa cegueira,

    com o ferro, ento, deixaramos frustra a malcia dos gregos,

    e em p, Tria, estarias, o pao luxuoso de Pramo.

    (Eneida II, 1-56)

    Histria do latim e as lnguas neolatinas 17

  • Atividades1. Individualmente ou em grupo, analise as indicaes do Appendix Probi abaixo e discuta em que

    medida ainda hoje cometemos os mesmos erros e por qu.

    a) umbilicus non imbilicus

    b) uiridis non uirdis.

    c) formica non furmica

    18 Lngua Latina

  • 2. Explique a chamada Hiptese do Indo-europeu.

    Histria do latim e as lnguas neolatinas 19

  • 20 Lngua Latina

  • Fonologia e prosdia do

    Este texto pretende capacitar os alunos a pronunciar o latim de acordo com o que se considera a maneira mais correta, segundo estudos baseados em vrias evidncias. Algumas delas so os erros cometidos por falantes de latim menos cultos em inscries (por exemplo, quando um falante de portu-gus escreve caza ao invs de casa, sabemos que porque o som do grafema1 s, quando em posio intervoclica, e o do z so iguais), os testemunhos de gramticos antigos (quando tentavam descrever articulatoriamente o som de cada letra2) e o modo como certos grafemas so pronunciados em diversas lnguas derivadas do .

    Portanto, aceitvel que haja consenso no modo como se pronuncia o latim hoje, e uma sistemati-zao (inclusive se mais prxima do modo como os falantes do latim no perodo clssico falavam) do modo como se pronuncia uma lngua que j no possui mais falantes extremamente desejvel e importante. Por exemplo, podemos superar barreiras internacionais quando pensamos em estudos que envolvam o latim e podemos nos comunicar com estudiosos do latim no mundo todo e sermos entendidos. Como ou-tro exemplo da importncia da tentativa de padronizar a pronncia do , se a reconstituio da pronncia do latim clssico realmente acurada, poderemos nos treinar para pronunciar a literatura escrita em latim de maneira correta, o que nos permitir admirar uma dimenso extremamente importante da literatura do perodo, que envolvia ritmo e durao de vogais.

    A pronncia que usaremos, portanto, a chamada pronncia reconstituda ou restaurada do , que re-sultante de evidncias como as descritas acima. H ainda pelo menos duas outras maneiras de pronunciar o latim que so importantes e comuns. Uma delas, mais ampla em nvel internacional, a chamada pronncia eclesistica. A pronncia eclesistica mais comum entre estudiosos do latim ligados religio e apresenta

    1 Tentaremos no cometer confuses terminolgicas srias como atribuir um som a uma letra. Na verdade, as letras so smbolos grficos (unidades chamadas grafemas) que representam fonemas, ou unidades mnimas de som de uma dada lngua. Ainda que estejamos lidando com uma lngua chamada de morta, porque no h mais falantes nativos vivos dela, com os avanos da lingustica, possvel falar em grafemas e fonemas para o . Ainda que no estejamos empregando os smbolos do Alfabeto Fontico Internacional (International Phonetic Alphabet IPA), usaremos algumas notaes caras aos estudos lingusticos, como os sinais [ ] para indicar pronncia aproximada (nesse livro, sempre de modo impressionstico, dadas as caractersticas do , lngua j sem falantes nativos). 2 Conforme se pode ver no texto complementar, ao final dessa aula.

  • algumas diferenas com relao pronncia reconstituda, como veremos. Uma terceira maneira de pronun-ciar o latim mais regional, e, no caso do Brasil e de Portugal, chamada de pronncia tradicional (ou portu-guesa). Na verdade, as pronncias tradicionais locais so pronncias do latim influenciadas pela fonologia da lngua local. Assim, alm da pronncia tradicional portuguesa, encontramos uma pronncia tradicional do latim influenciada pelo ingls, outra pelo alemo e assim por diante.

    Os motivos que nos levam a adotar a pronncia reconstituda nesse material so de diversas ordens:

    Como exposto anteriormente, os argumentos para a reconstituio da pronncia do latim a. que chamamos de pronncia restaurada ou reconstituda so baseadas em vrias evidn-cias, muitas delas baseadas em diversos dados, como os erros de ortografia dos falantes nativos do latim de pocas antigas, os testemunhos de gramticos antigos sobre como eram pronunciadas as letras e a evoluo da pronncia das diversas lnguas derivadas do , as ln-guas romnicas.

    Se as evidncias so de natureza variada, plausvel que a pronncia reconstituda seja mais b. prxima do que se considera que fosse a pronncia do latim pela classe culta no perodo cls-sico. Isso inclui o fato de que a construo potica na literatura latina se baseava fortemente no som das palavras e, assim, pronunciando o latim de forma mais prxima como se deveria pronunciar, apreciamos a literatura latina mais plenamente.

    Uma pronncia adotada em vrios lugares do mundo e sem vieses ideolgicos (como o reli-c. gioso ou o nacionalista) mais apropriada para estudos tambm no enviesados.

    A questo da durao das vogaisSo cinco as vogais em : a, e, i, o, u (o y tambm considerado vogal, porm usado basicamente

    em palavras estrangeiras, como as gregas). No entanto, cada vogal poderia ser pronunciada de forma longa ou breve. Comumente, representam-se as vogais longas com o sinal diacrtico mcron ( ) e as vogais breves com o sinal diacrtico braquia ( ) sobre as vogais. Assim, temos as vogais longas , , , e e as vogais breves , , , e .

    De acordo com os testemunhos da mtrica clssica e dos gramticos antigos, a durao de uma vogal dizia respeito ao tempo relativo de produo de cada vogal. Cada vogal longa corresponderia ao tempo de durao da pronncia de duas breves. Dessa forma, um corresponderia pronncia seguida de dois ( = ).

    A pronncia adequada de vogais breves e longas em latim era extremamente importante, uma vez que palavras de mesma grafia pronunciadas com diferena apenas na durao de uma vogal poderiam significar coisas totalmente diferentes. Por exemplo, hc significa este, enquanto que hc significa aqui; st a forma de terceira pessoa do singular do presente do indicativo do verbo ser latino, enquanto que st a forma de terceira pessoa do singular do presente do indicativo do verbo comer latino.

    Por isso, ainda que no pronunciemos todas as vogais longas e breves como os falantes de latim as pronunciavam, j que, em portugus, a durao de vogais no fonologicamente distintiva como era em , nesse material tentaremos marcar como longa ou breve toda vogal que, para fins de reconhe-cimento e distino de formas lingusticas, seja necessariamente breve ou longa.

    22 Lngua Latina

  • O alfabeto latinoO alfabeto latino teve origem no alfabeto usado pelos gregos. Em perodos mais antigos, o latim

    era escrito apenas com letras maisculas, sem sinais de pontuao. Hoje, costuma-se usar pontuao e letras minsculas, mesmo em incio de sentenas. Maisculas so usadas apenas em nomes prprios.

    O alfabeto latino praticamente igual ao alfabeto usado hoje por ns, falantes de portugus, exceto pelo fato de que a letra V/u exercia as funes do que hoje so as letras V/v e U/u e a letra I/i do que hoje so o I/i e o J/j.

    Vamos s letras individuais:

    A a: l-se como o nosso a aberto, no nasal, como em amor, casa.

    B b: como o nosso b em boca.

    C c: na pronncia reconstituda, o c sempre se l como uma consoante oclusiva3 [k], e nunca como uma fricativa [s]. Assim, Cicero l-se sempre kkero, e no sssero.

    D d: como o nosso d em dedo. A regra que transforma o d antes de i em alguns dialetos do portugus em [dj] no se aplica em .

    E e: o e breve () l-se como o e aberto em portugus, como em p. O e longo () l-se como o e fechado em portugus, como em cabelo.

    F f: como o nosso f em flor.

    G g: assim como o c, o g em latim era sempre oclusivo, como em gato. Assim, genus deveria ser lido como [gunus] em portugus, e no como [jnus].

    H h: o h latino era sempre uma consoante fricativa aspirada e, portanto, era sempre pronuncia-do. Assim, o h em hodie deveria ser pronunciado como uma consoante, aspirado na garganta, e no como o h em hoje, que no pronunciado. O h era pronunciado aspirado mesmo quando logo aps consoantes oclusivas, como em philosophia (lido com um p seguido da soltura do ar entre os lbios antes da produo da vogal), e thalamus (com a soltura do ar antes da vogal depois da pronncia do t), por exemplo.

    I i: essa letra em latim representava tanto o i voclico quanto o i semivoclico (que aparece imediatamente antes ou depois de uma outra vogal, funcionando como uma ditongao da vogal um exemplo em portugus o i em pai, que no pronunciado como uma vogal plena, e sim como uma semivogal, ou seja, algo intermedirio entre a vogal i e a consoante j). Assim, o i latino se pronuncia como o i em ilha (vogal) ou como o i em ioi (semivogal). Posteriormente, o i semivoclico latino transformou-se no j do portugus. Assim, de Iuppiter em latim temos Jpiter em portugus. No ha-via em latim o som que representamos pela consoante J j em portugus, embora alguns dicionrios e edies de textos latinos apresentem a semivogal latina grafada como J j e a vogal grafada como I i, por questes didticas.

    K k: assim como o k em portugus, o k latino era usado em palavras emprestadas de outras lnguas, em especial do grego. Assim, o k em kalendas se pronuncia como o c em calendrio.

    3 Uma consoante oclusiva uma consoante que, para ser produzida, requer que haja fechamento completo da passagem do ar pela boca e soltura posterior. So oclusivas, por exemplo, as consoantes [d, t, p, b, k], entre outras, enquanto as fricativas so consoantes que requerem passagem constante do ar pela boca, com alguma constrio (que nunca completa) em algum local, como com a lngua perto dos dentes superiores, o que produz os sons [s] e [z], ou com os dentes superiores no lbio inferior, que produz os sons [f ] e [v].

    Fonologia e prosdia do latim 23

  • L l: como o l em lua.

    M m: antes de vogal e em posio intervoclica, como em mel. Em fim de palavra, ocorria nasa-lizao da vogal anterior, assim como em amaram.4

    N n: antes de vogal e em posio intervoclica, como em nariz. Em fim de palavra, diferentemen-te do m, o n era pronunciado como consoante plena, e no como nasalizao da vogal. Por exemplo, o n sublinhado em nomen est pronunciado da mesma forma que o n sublinhado em benefcio.

    O o: assim como o e, o o breve () era pronunciado como o o aberto em dio e o o longo () era pronunciado como o o fechado em orelha.

    P p: como o p em pipoca.

    Q q: o q em latim era sempre seguido da semivogal u, de forma que sempre era pronunciado como o [kw] de aqurio [akwrio], e nunca como o [k] de quente [kente].

    R r: o r latino nunca era pronunciado como o r aspirado fricativo de rua [hua], e era sempre pro-nunciado como o r em era ou, ainda, como o r vibrante de alguns dialetos do sul do Brasil, que como se fosse uma sequncia rpida de vrios r como o de era.

    S s: como o s em silncio. O s latino nunca era pronunciado sonorizado como o s de casa, mesmo quando em final de palavra. No ocorre em latim o processo de sonorizao que ocorre em portugus. Em portugus, o s em final de palavra antes de outra palavra que comece com vogal ou com consoante sonora sofre sonorizao, e assim a pronncia de casas, por exemplo, tem [s] ou [z] pro-nunciados no final, a depender do que vem depois. Dessa forma, temos [kazas] em casas quadradas e [kazaz] em casas azuis ou casas vermelhas.

    T t: como o t em tatu. A regra que transforma o t antes de i em alguns dialetos do portu-gus em [tch] no se aplica em latim.

    V u: Essa letra em latim representava tanto o u voclico quanto o u semivoclico (que aparece imediatamente antes ou depois de uma outra vogal, funcionando como uma ditongao da vogal um exemplo em portugus o u em mau [maw], que no pronunciado como uma vogal plena, e sim como uma semivogal, ou seja, algo intermedirio entre a vogal u e a consoante v; outro exemplo o som do w em kiwi). Assim, o u latino se pronuncia como o u em uva (vogal) ou como o u em au (semivogal). Posteriormente, o u semivoclico latino transformou-se no v do portugus. Assim, de uita em latim temos vida em portugus. No havia, em , o som que representamos pela consoante V v em portugus, embora alguns dicionrios e edies de textos latinos apresentem a semivogal latina grafada como V v e a vogal grafada como U u por questes didticas.

    X x: sempre como o encontro [ks] em portugus, assim como no estrangeirismo ecstasy, e nunca como em xtase.

    Y y: como o francs ou alemo, ou seja, trata-se de uma vogal como i, mas pronunciada com os lbios arredondados para produzir um u. Estrangeirismos como Mller exemplificam o som dessa vogal, de origem grega no alfabeto latino.

    4 H controvrsias entre os tericos sobre se o m final representava apenas a nasalizao da vogal anterior ou se era pronunciado como consoante oclusiva bilabial nasal, ou seja, com o fechamento completo dos lbios e a produo de um m como o de minha. Sigo aqui a teoria de que o m final nasaliza a vogal anterior em virtude de que, em mtrica latina, uma slaba final de uma palavra pode sofrer o processo chamado de crase quando termina em vogal + m e a palavra seguinte inicia-se por vogal, o que indica que o m possivelmente no era consonantal em final de palavra. Outra evidncia a favor dessa posio que palavras com n final no se encaixam nessa regra de crase na mtrica.

    24 Lngua Latina

  • Z z: Assim como o x, o z era pronunciado como consoante dupla, e devia ser lido como [dz].

    Os ditongos em latim so apenas os seguintes:

    ae (tambm grafado ):::: pronuncia-se como o ditongo ai no portugus pai, por exemplo.

    oe (tambm grafado ):::: pronuncia-se como o ditongo oi no portugus foi, por exemplo.

    ei:::: como o ditongo ei no portugus andei.

    ui:::: como o ditongo ui no portugus fui.

    au:::: como o ditongo au no portugus mau.

    eu:::: como o ditongo eu no portugus cresceu.

    O acento de intensidadeO , alm de marcar todas as vogais como longas ou breves, mantinha em seu sistema prosdico a

    marca de intensidade das slabas relativamente independente do sistema de durao.

    A marcao de intensidade de slabas cria o fenmeno chamado acento. Trata-se de acento do ponto de vista da produo das slabas mais fortes (tnicas) ou mais fracas (tonas), e no do ponto de vista da marcao grfica de acentos (graves, agudos, circunflexo e til, por exemplo).

    Em, no havia palavras cujo acento principal caa na ltima slaba (oxtonas), a no ser que a pala-vra consistisse de apenas uma slaba.

    Todas as outras palavras tinham acento tnico principal ou na penltima ou na antepenltima slaba, a depender dos seguintes fatores:

    se a penltima slaba for longa, recebe o acento principal (a palavra paroxtona).a.

    se a penltima slaba for breve, o acento no recai sobre ela, e o acento principal cai sobre a a. antepenltima slaba (a palavra proparoxtona).

    Reconheceremos uma slaba longa das seguintes maneiras:

    a vogal principal naturalmente longa (marcada com o sinal de mcron; ex.: a. habre);

    a slaba contm um ditongo (ex.: b. prlium);

    uma vogal seguida por duas consoantesc. 5 ou por consoante dupla x ou z por exemplo: ctus.

    Por isso, saber se uma vogal longa ou breve bastante importante, e marcaremos a vogal longa nesse livro sempre que ela for importante para o reconhecimento do padro acentual da palavra. Bons dicionrios de latim marcam as vogais longas e breves de todas as palavras.

    5 O grupo formado por consoante seguida de r ou l, as chamadas lquidas, no conta como consoante dupla para essa regra.

    Fonologia e prosdia do latim 25

  • As pronncias do latimExistem vrias maneiras de pronunciar o . Como neste livro adotaremos a pronncia reconstruda

    ou reconstituda, importante saber que adeptos de outras formas acabam pronunciando ligeiramente diferente da que adotaremos aqui. Vejamos quais so as formas mais comuns de se pronunciar o .

    Pronncia reconstitudaComo vimos nas sees anteriores, a pronncia reconstituda aquela que tenta resgatar o modo

    como os romanos cultos do perodo clssico pronunciavam a sua lngua. As evidncias para a recons-tituio da pronncia original do latim so, por exemplo, erros de ortografia de falantes menos cultos (escrever caza ao invs de casa indica, em portugus, que pronunciamos o s e o z nesses contextos da mesma forma assim acontecia com exemplos em latim que servem para que se possa reconstituir a pronncia do ), testemunhos de gramticos antigos sobre a pronncia das letras, regras do sistema potico latino, entre outros.

    Pelo fato de que se trata de uma pronncia que tenta, com a maior quantidade de dados empri-cos que for possvel coletar, reproduzir a exata forma como os falantes nativos de latim pronunciavam seu idioma, adotaremos essa pronncia em nosso curso.

    Pronncia eclesisticaO latim foi pronunciado por muito tempo com forte influncia da lngua-me da regio onde era

    falado. Assim, o italiano influenciou fortemente a pronncia do latim na Itlia, sede da Igreja Catlica. Os ritos tradicionais da Igreja acabaram sendo pronunciados com a pronncia italiana do , o que fez com que houvesse grande influncia da pronncia italiana do latim ao redor do mundo, em especial no que concerne s relaes entre latim e Igreja Catlica. A essa pronncia com forte influncia da pronncia do italiano chamamos de pronncia eclesistica do .

    Algumas caractersticas da pronncia eclesistica so:

    Os ditongos ae e oe so sempre pronunciados como um e aberto (como em p). Assim, femi-nae, que na pronncia reconstituda se pronuncia com um ditongo [ai] no final, na pronncia eclesisti-ca se pronuncia [femin], com acento principal em fe.

    A letra c no pronunciada sempre como se fosse um k, como na pronncia reconstituda, e sim como o tch de tch antes de e e i. Assim, na pronncia eclesistica, Ccero pronuncia-se tch-tchero, e no kkero.

    26 Lngua Latina

  • As pronncias locaisAs pronncias influenciadas por outras lnguas locais acabaram por gerar variaes regionais no

    modo como o latim pronunciado. Por exemplo, na chamada pronncia tradicional portuguesa, pronun-ciam-se as palavras latinas quase como se estivesse usando o sistema de pronncia do portugus.

    Algumas caractersticas so, por exemplo:

    Os ditongos ae e oe so pronunciados [], assim como na pronncia eclesistica. ::::

    Os grafemas j e v so pronunciados como consoantes, e no como semivogais. Assim, a ::::forma Iupiter pronunciada [Jpiter], como em portugus, e a forma uita se pronuncia [vita], como no portugus vitalidade.

    O t antes de i e no precedido das consoantes s, t e x pronunciado [ss]. Portanto, :::: iusti-tia l-se [justssia].

    Listamos aqui apenas algumas das caractersticas das pronncias eclesistica e tradicional portugue-sa, apenas para que se saiba que pode haver variao no modo como se pronuncia o . No entanto, pelos motivos listados ao longo deste captulo, sugere-se que o aprendiz de latim tente pronunciar as palavras do modo mais prximo ao que teria sido o modo como os romanos pronunciavam o latim em Roma por volta dos sculos I a.C. e I d.C., ou seja, usando a pronncia chamada de restaurada ou reconstituda.

    Texto complementarO seguinte texto trata das teorias dos autores antigos sobre as letras e seus sons. O trecho destacado

    em negrito serve como exemplo de testemunho de tentativas de descrio dos sons das letras pelos autores antigos.

    (WEEDWOOD, 2002, p. 43-46)

    Gregos e romanos compartilhavam concepes semelhantes da natureza da littera (grego: grmma), a menor unidade da fala (vox; grego: phon). Havia duas vises distintas, frequentemente expostas lado a lado. De acordo com uma, a littera era o smbolo escrito, a representao do som da fala (: elementum; grego: stoikheon). Essa viso, a precursora da moderna dicotomia letra-som, foi menos importante na Antigidade (e, de fato, at por volta de 1800) do que a segunda viso, mais complexa. Esticos e romanos descreviam a littera como uma entidade com trs propriedades: seu nome (nomen), sua forma ou aspecto escrito (figura) e seu som ou valor (potestas). Essa viso mais flexvel, suscetvel de extenso e refinamento num grau muito maior que a crua oposio entre letra e som, foi a base para uma srie de abordagens multifacetadas e infinitamente variadas da littera por parte dos estudiosos antigos e, mais ainda, dos medievais.

    Fonologia e prosdia do latim 27

  • Potestas era a propriedade da littera cujo domnio mais se aproximava do moderno campo da fontica. Plato, Aristteles e os latinos classificam as litterae do seguinte modo:

    Vogais

    Litterae

    Semivogais

    Consoantes

    Mudas

    (A categoria das semivogais inclua o que modernamente chamamos de continuantes: Do-nato inclui F, L, M, N, R, S, X sob esta rubrica.)

    S uns poucos estudiosos sentiram a necessidade de ir mais fundo na fontica articulatria. Entre eles estavam Dionsio de Halicarnasso (em atividade entre 30 e 8 a.C.), cuja notvel descrio da articulao dos sons do grego ficou desconhecida do Ocidente latino at sua primeira edio em 1508 pelo grande impressor veneziano Aldo Mancio, e o metricista Terenciano Mauro (sculo II), cujo relato em versos dos sons e metros latinos foi pouco lido antes do Renascimento. Na prtica, as vinhetas de uma linha oferecidas por Marciano Capela (sculo V) em sua enciclopdia alegrica, O Casamento de Filologia e Mercrio (III, 261), foram as nicas descries articulatrias dos sons do latim disponveis para a maioria dos estudiosos medievais. Caracterizaes do tipo o D surge do ataque da lngua perto dos dentes superiores ou o L soa docemente com lngua e palato ou Apio Cludio detestava o Z porque imita os dentes de um cadver ainda eram citadas no sculo XVI. Somente depois de se familiarizarem com as descries articulatrias muito mais deta-lhadas, que eram lugar-comum nas gramticas medievais do hebraico e do rabe, que os cristos do Renascimento comearam a se interessar pela fontica articulatria.

    Em contrapartida, as propriedades do nomen e da figura despertavam um interesse mais ativo e criativo entre os estudiosos medievais. Colees de alfabetos exticos grego, hebraico, caldeu, gtico, runas, ogamos, vrios cdigos e cifras circulavam amplamente, bem como breves tratados sobre a inveno de vrias escritas. Uma antiga forma de taquigrafia, as notas tironianas, era pratica-da em alguns centros monsticos nos sculos IX e X, enquanto em outros os escribas adicionavam subscries em latim transliterado em caracteres gregos. Um notvel pequeno tratado do sculo VII ou VIII, atribudo a certo Serglio[...], descreve o movimento da pena ao formar cada letra e d o nome de cada gesto em , grego e hebraico: Quais so os nomes dos trs gestos da letra A nas trs lnguas sagradas? Em hebraico, abst ebst ubst. Como so chamados em grego? Albs elbs ulbs. E em ? Duas linhas oblquas e uma reta traada entre elas.

    Mas o que interessava aos autores medievais no era a littera como uma unidade de fala fisi-camente visvel ou audvel, e sim, muito mais, sua possvel importncia na iluminao dos aspectos

    28 Lngua Latina

  • superiores da ordem do mundo. Um autor do sculo VII, Virglio Gramtico, explicava: Tal como o homem consiste de corpo, alma e uma espcie de fogo celeste, assim a littera constituda de corpo isto , sua forma, sua funo e sua pronncia (suas juntas e membros, por assim dizer) e tem sua alma em seu sentido, e seu esprito em sua relao com as coisas superiores. Outros autores aplicavam interpretaes tipolgicas e alegricas a vrios aspectos da littera, no mais das vezes sua forma. Seu som era de menor importncia: era a parte terrena da littera, seu corpo. S lentamente, medida que a Idade Mdia se encerrava, que os pensadores ocidentais comearam a voltar seu interesse para a parte fsica da fala, tal como passaram a levar mais a srio as manifestaes fsicas do mundo natural. O mpeto para tal iniciativa no veio de dentro da prpria tradio ocidental, mas de fora dela: primeiro, durante o Renascimento, do mundo semita; mais tarde, por volta de 1800, da ndia.

    Atividades1. Em duplas ou grupos de at quatro alunos, escolham algumas das palavras latinas abaixo e

    organizem-se de forma que cada aluno leia uma palavra por vez, enquanto outro aluno ouve a pronncia da palavra e procura nas regras da pronncia reconstituda informaes para julgar se o colega est lendo corretamente a palavra, tanto do ponto de vista da pronncia das letras individualmente quanto do ponto de vista de onde vai o acento principal da palavra. O aluno que estiver ouvindo dever apontar os eventuais erros ou inconsistncias e tentar corrigir o leitor.

    abre dexter ingens proponre tendreaccusre diuus iubre puella tollereaddre eques iuure quietus utilitasaestas facre luna quis uehemensamicitia ferox luxuria redre uenreaqua gens mediocris rex uoluntasbibre grauitas necessario saeuus uoluptascaput homo nuntius sapientiaciuis hora obiicre saxumdecem humantas paruus suauisdelre indignus postridie surgre

    2. Selecione palavras de trs ou mais slabas no exerccio anterior, escreva-as abaixo, marque a slaba tnica da palavra com um acento agudo ( ) e justifique, segundo as regras de acentuao aprendidas nesta aula.

    Fonologia e prosdia do latim 29

  • 30 Lngua Latina

  • Estrutura da lngua latina comparada com

    a do portugusNeste texto, veremos as principais diferenas entre a estrutura morfossinttica1 da lngua portu-

    guesa e do latim. Para um curso com a extenso deste, possvel que esta seja a questo mais relevante a ser aprendida apropriadamente sobre o latim, pois, ainda que a Lngua portuguesa seja diretamente derivada do latim, a estrutura das duas lnguas bastante diferente no que concerne ao modo de esta-belecer as conexes entre as palavras.

    A estrutura da lngua portuguesaBasicamente, o sentido de uma orao em Portugus depende da ordem em que colocamos as

    palavras umas diante das outras. Assim, as seguintes oraes tm sentidos diferentes:

    a) O poeta v a lua.

    b) A lua v o poeta.

    Claramente, embora a segunda sentena seja gramatical2, ela significa algo bastante diferente da primeira. Isso se d porque a ordem em que sujeito e objeto direto so ditos influencia na nossa per-cepo de quem faz o qu para quem, nas sentenas normais da lngua. Explicando melhor, na primeira sentena, o sujeito o poeta quem v com seus olhos o objeto direto a lua, a coisa vista. Na segunda,

    1 Morfossinttica porque envolve tanto a forma interna das palavras quanto o modo como as palavras se combinam umas com as outras para produzir expresses bem-formadas da lngua. 2 Sentenas gramaticais so aquelas que no violam regras gramaticais da lngua, e que, portanto, poderiam ser ditas por qualquer falante dela.

  • a mesma expresso lingstica, o poeta, aparece depois do verbo transitivo direto, de modo que ele passa a ser o que visto no evento de ver denotado pela sentena. Nesse segundo caso, por causa da ordem das palavras, quem age no evento de ver a lua (mesmo que parea implausvel ou estranho imaginar que a lua veja alguma coisa mas, afinal, o que seria da linguagem se ela no nos permitisse dizer todas as coisas que quisssemos?), que, atravs dos seus olhos, v o poeta.

    O que queremos mostrar que o processo sinttico na Lngua portuguesa envolve a colocao das palavras em uma ordem linear mais rgida, e o que define quem o sujeito e quem o objeto em sentenas transitivas simples, como as duas acima, qual expresso nominal aparece antes e qual ex-presso nominal aparece depois do verbo.

    Isso se d de vrias formas, e em vrios nveis. Por exemplo, dizemos o poeta, e no poeta o; dizemos v a lua, e no a v lua, nem v lua a. Tudo isso tem a ver com o fato de que em Portugus as palavras so concatenadas s outras seguindo regras sintticas rgidas de colocao.

    Vejamos quais so as funes sintticas importantes em uma sentena mais complexa, e como elas se realizam em Portugus:

    c) O cozinheiro d um camelo para o escravo do senhor no frum.

    Analisando a sentena com calma, temos o seguinte:

    o cozinheiro a expresso sujeito do verbo principal da sentena, pois concorda com ele e ::::aparece antes dele.

    d o verbo principal da sentena, e requer trs argumentos:::: 3 para ter a idia do evento com-pleta: algum que d (o sujeito), algo que dado (o objeto direto) e para quem se d a coisa (o objeto indireto).

    um camelo o objeto direto do verbo, o :::: algo que dado.

    para o escravo o objeto indireto, o :::: para quem se d algo.

    do senhor uma expresso preposicionada que se junta a um nome (o escravo) de modo ::::a formar uma adjuno, ou seja, uma expresso que pode (mas no precisa) se unir a outro nome para especific-lo mais (um adjetivo poderia fazer a mesma coisa por exemplo, pode-ramos ter o escravo esperto ao invs de o escravo do senhor).

    no frum uma expresso preposicionada que funciona como um circunstancializador do ::::evento, que diz onde o evento ocorreu.

    Com essa sentena analisada, passamos anlise da estrutura do latim.

    A estrutura do latimDiferentemente do Portugus, que estabelece a maioria das relaes sintticas atravs da ordem

    sequencial em que colocamos as palavras, o latim estabelece as relaes das funes dos termos da

    3 Argumentos so aqueles termos que so obrigatrios para que um verbo expresse seu sentido completo. Por exemplo, um verbo transitivo direto requer dois argumentos: o sujeito e o objeto. Caso um falte, o evento no expresso propriamente. Exemplo: o menino quebrou..., a menina viu... so sentenas em que falta o argumento objeto. A terminologia remete lgica tradicional.

    32 Lngua Latina

  • orao atravs do chamado sistema de casos. Assim, embora a ordem das palavras seja relativamente importante em latim, ainda mais importante o caso em que uma palavra se encontra flexionada. Ve-jamos como isso se d.

    Os casosTodas as palavras pertencentes a categorias nominais4 em latim acontecem em uma orao ne-

    cessariamente em um dos seis casos latinos5 , o que significa que elas apresentam flexes morfolgicas correspondentes a esses casos. Cada caso corresponde basicamente a uma funo sinttico-semntica na maneira de construir expresses lingsticas. Segue-se uma lista dos nomes dos casos latinos e de suas principais funes:

    O :::: nominativo o caso da nomeao, o caso fundamental de um nome.6 o caso em que os substantivos se encontram quando so sujeitos dos verbos. Os substantivos so encontrados no dicionrio na forma nominativa. Um nome como dominus (senhor, dono, mestre), tem marca de nominativo singular -us e plural -i (dominus, domini). Um exemplo seria dominus camelum uidet, o senhor v o camelo.

    O :::: vocativo o caso que se usa quando o nome est sendo usado para interpelar um interlo-cutor na segunda pessoa, como quando chamamos algum (um exemplo , senhor, venha c, que ter a forma domine, hc ueni). Exceto por alguns tipos de substantivos, como o tipo em que se enquadra dominus, todos os vocativos so iguais em sua forma aos nominativos.

    O :::: acusativo o caso que corresponde basicamente aos objetos diretos latinos. No caso acusati-vo, senhor ser dominum no singular e dominos no plural. do acusativo plural que derivam os nomes em Portugus que vieram direto do latim (donos de dominos).7 Outro uso importante do acusativo o que d idia de movimento para dentro de ou para junto de algum outro ponto. Esse uso , em geral, oposto ao do caso ablativo, como veremos abaixo. Um exemplo de acusati-vo em uma sentena seria dominum camelus uidet, o camelo v o senhor.

    O :::: genitivo o caso que corresponde basicamente idia de posse. Assim, domini significa, em latim, do senhor, e seu plural dominorum. O genitivo, juntamente com os prximos dois casos, o dativo e o ablativo, so casos que foram sendo substitudos por formas preposiciona-das nas lnguas derivadas do latim. O nome do caso apresenta relao com a idia de genus, gens, gentis, ou seja, de gerao, pertencimento a alguma famlia, por exemplo. Um exemplo simples poderia ser camelus domini, camelo do senhor.

    4 Categorias nominais se definem em oposio a categorias verbais. Assim, nome (substantivo), adjetivo, pronome e particpio so classes de palavras que apresentam o trao nominal. O trao verbal encontrado nos verbos e nos particpios (por participar tanto do grupo das categorias verbais quanto das nominais, o particpio recebe esse nome). As outras classes de palavras no se flexionam, ou seja, so invariveis (dentre essas temos os advrbios, as conjunes, as preposies e os numerais). 5 A palavra caso, etimologicamente, vem de casus em latim, particpio do verbo cado, cadere, que significa cair. Assim, casus significa aquele ou aquilo que caiu, cado, queda. Da temos a idia de que caso significa o modo pelo qual o substantivo acontece, se d, cai em uma estrutura lingstica.6 Chamo de nomes todas as palavras pertencentes a categorias nominais, ou seja, que podem ser flexionadas em casos.7 Entenderemos melhor isso se pensarmos que em italiano os nomes derivam das formas de nominativo, por isso temos plural ragazzi para meninos.

    Estrutura da lngua latina comparada com a do portugus 33

  • O :::: dativo o caso que melhor representa o objeto indireto, de modo que domin significa para o senhor e dominis significa para os senhores. O nome do caso deriva do verbo do, dare, datus dou, dar, dado, ou seja, se trata do argumento para quem se d alguma coisa no evento de dar. O dativo tambm expressa uma idia bsica de movimento em direo a um alvo, como quando dizemos algo a algum ou entregamos algo a algum. Um exemplo desse substantivo no da-tivo seria seruus camelum domini dat, o escravo d o camelo para o senhor.

    O :::: ablativo o caso que tem significados bsicos de afastamento a partir de algum ponto ou de meio ou instrumento pelo qual se faz alguma coisa. O nome domin significa, ento, atra-vs do senhor, pelo senhor, a partir do senhor (essas formas de ablativo sero melhor en-tendidas no contexto das oraes latinas), e seu plural dominis8 O ablativo tambm significa posicionamento em algum ponto ou afastamento a partir do mesmo ponto. Nesse sentido, o ablativo oposto ao acusativo. Um exemplo do ablativo com o uso instrumental ou de meio com dominus seria seruum thesaurum habet domin, o escravo possui um tesouro atravs do senhor/por causa do senhor. Outro exemplo, mais compreensvel, poderia ser dominus seruum necat gladio, o senhor mata o escravo com o gldio.

    Funes sintticasPara entendermos melhor o funcionamento bsico da lngua latina, voltemos orao em Por-

    tugus usada como exemplo:

    a) O cozinheiro d um camelo para o escravo do senhor no frum.

    Ao traduzirmos essa sentena com a mesma ordem de palavras para o latim, teremos:

    b) coquus dat camelum seru domini in for

    As primeiras observaes que precisam ser feitas so:

    No h, em latim, artigos (o, a, os, as, um, uma, uns, umas). Os artigos, se necessrios, so ex-::::pressos atravs de pronomes. No exemplo acima, no h necessidade de artigos, e um nome como coquus poderia significar, a princpio, tanto o cozinheiro quanto um cozinheiro. O con-texto resolver essa questo.

    A ordem das palavras e o tipo de vocabulrio adotados nos exemplos sero bastante artificiais, ::::com relao ao modo como o latim realmente era utilizado.

    Vejamos o vocabulrio utilizado no exemplo, analisado morfologicamente:

    coquus: o substantivo aqui significa O cozinheiro e, dado o final -us, sabemos que se trata do sujeito do verbo da frase.

    dat: o verbo dare est flexionado na terceira pessoa do singular do presente do indicativo, e signi-fica [ele/ela] d [algo] [a algum].

    camelum: o substantivo camelus aqui se encontra no acusativo (veja o final -um) e, portanto o objeto direto do evento representado pela sentena.

    8 No caso desse substantivo especificamente as formas de dativo e ablativo so iguais. Veremos adiante que isso no acontece com todos os substantivos.

    34 Lngua Latina

  • seru: o substantivo seruus aqui est no dativo (final -9) e, portanto representa o objeto indireto, ou seja, para quem se d o camelo.

    domini: o substantivo dominus aqui est no caso genitivo, e sabemos disso pela terminao -i. Assim, sabemos que domini significa do senhor, ento procuraremos algum substantivo na sentena que possa representar algo que seja do senhor.

    in: trata-se da preposio em. Veremos adiante que as preposies em latim exigem que os subs-tantivos selecionados por ela estejam em casos especficos. Nesse caso, o in se segue de um substantivo no caso ablativo, dando a idia de que algo aconteceu em algum lugar. Nesse caso, o evento de dar um camelo para o escravo do senhor pelo cozinheiro aconteceu no frum.

    for: como vimos acima, pelo fato de que a preposio in significa, nesse contexto, em, no sentido de dentro de algum lugar, sem pressupor movimento para dentro de (que seria um outro uso da prepo-sio in com outro caso), o caso que ela exige do seu substantivo o ablativo, significando estaticidade dentro de algum lugar. Por isso, for est no ablativo, por esse motivo sabemos que o evento se deu dentro do [no] frum.

    Vejamos um quadro que resume as informaes a respeito dos casos:

    Caso Exemplo no singular Exemplo no plural Funes bsicas TraduoNominativo dominus domini sujeito o(s) senhor(es)Vocativo domine domini interpelao senhorAcusativo dominum dominos objeto direto /

    movimento em direo a ou para dentro de

    o(s) senhor(es)

    Genitivo domini dominorum posse / adjunto adnominal

    do(s) senhor(es)

    Dativo domin dominis objeto indireto para o(s) senhor(es)

    Ablativo domin dominis meio / instrumento / afastamento a partir de / estaticidade em

    (a partir d)o(s) senhor(es) / pelo(s) senhores

    A ordem das palavras em latimComo vimos, as funes sintticas em latim se do basicamente atravs das marcas morfolgicas

    de caso, e no da ocorrncia sequencial das palavras, como em portugus. Para exemplificar, mante-remos as funes sintticas principais da sentena latina usada como exemplo acima, e mostraremos

    9 Se voc percebeu que o final - tambm poderia significar a forma de ablativo, parabns! Na verdade, embora essa ambigidade seja legtima, o contexto aqui favorece a leitura de dativo para seru, uma vez que o evento de dar requer um objeto indireto para quem se d a coisa dada.

    Estrutura da lngua latina comparada com a do portugus 35

  • como a ordem de palavras secundria em latim, com relao ao processo de marcao de caso.

    A sentena, na ordem em que est, mantidas as funes sintticas principais10, como se segue:

    c) coquus dat camelum seru

    Assim, embora a ordem das palavras na sentena acima mantenha-se fiel ordem de palavras de uma sentena com o mesmo sentido em portugus, isso apenas um acidente. Isso porque qualquer uma das sentenas listadas abaixo poderia significar exatamente a mesma coisa que a sentena (c) em latim:

    d) coquus seru camelum dat

    e) coquus camelum dat seru

    f ) coquus camelum seru dat

    g) camelum seru dat coquus

    h) dat seru camelum coquus

    i) camelum dat seru coquus

    Qualquer uma das sentenas listadas acima, e qualquer outra possvel ordenao das palavras, poderia significar exatamente a mesma coisa: O cozinheiro d um camelo para o escravo. Como vimos, isso acontece porque no a posio na frase que diz que coquus sujeito do verbo dat, e sim a mar-cao morfolgica de nominativo (nesse caso, -us). Da mesma forma, a marcao de acusativo (-um) que diz que camelum o objeto direto do verbo dat, e no sujeito ou qualquer outra coisa. O mesmo se d finalmente com seru, que, com a marca de dativo (-), reconhecido como objeto indireto do verbo dat.

    Isso significa que o latim dependia fundamentalmente de informao morfolgica para estabe-lecer as relaes sintticas, ou seja, o modo como as palavras se conectam para produzir sentido, e que, portanto, a ordem das palavras era relativamente secundria11 no modo de construo da orao latina.

    Comparao entre as duas lnguasComo vimos, ento, as estruturas do latim e do portugus so bastante diferentes. Se a mesma

    palavra em portugus pode ser sujeito ou objeto direto do verbo, bastando que a posicionemos antes ou depois do verbo, em latim a mesma palavra sofrer flexo de caso para poder exercer funo de sujeito ou objeto (por exemplo, em uma orao declarativa simples com um verbo transitivo direto, dominus pode ser sujeito, mas no objeto direto, enquanto dominum pode ser objeto direto, e no sujeito).

    10 A deciso de se trabalhar apenas com as funes sintticas bsicas aqui tem a ver com o fato de que certas funes acessrias como as expresses adjuntas e adverbiais (como do senhor e no frum) dependem um pouco mais de ordem do que as funes bsicas sujeito, verbo, objeto direto e objeto indireto, na sentena do exemplo. Veremos como isso se d. 11 Dizemos aqui secundrio, pois, no verdade, em absoluto, que qualquer ordem de palavras em latim era permitida para os falantes. Os falantes costumavam usar ordenaes mais ou menos comuns de sujeito, verbo e complementos, por exemplo, ou de substantivo e o adjetivo que o modifica, e assim por diante. As ordens mais comuns constituam a forma no-marcada da lngua, e quaisquer alteraes de ordem surtiriam efeitos de sentido que, embora sutis, seriam percebidos pelos falantes. Para termos uma idia, a sentena (d) dentre as sentenas (d) a (i) do conjunto acima era a mais comum do ponto de vista da ordem, para um falante de latim. Ou seja, sujeito objeto indireto objeto direto verbo era a ordem considerada no-marcada, neutra.

    36 Lngua Latina

  • Isso se d em virtude de que a Lngua portuguesa no manteve o sistema de casos que existia em latim.12 Assim, se analisarmos a mesma sentena usada acima para exemplificar a liberdade relativa de ordem em latim, e se efetuarmos as mesmas permutaes da posio das palavras, obteremos sentenas que, ou significam coisas completamente diferentes, ou so agramaticais e no podem significar nada porque no so sentenas que seriam ditas por nenhum falante da Lngua portuguesa. Vamos mesma sequncia de sentenas:

    a) O cozinheiro ao escravo um camelo d.

    b) O cozinheiro um camelo d ao escravo.

    c) O cozinheiro um camelo ao escravo d.

    d) Um camelo ao escravo d o cozinheiro.

    e) D ao escravo um camelo o cozinheiro.

    f ) Um camelo d ao escravo o cozinheiro.

    Fica claro que esse conjunto de sentenas no possui o mesmo significado, como o conjunto das sen-tenas latinas possua. Ainda que, nas sentenas de (a) a (c), o significado seja quase o mesmo, e ainda que consigamos entender pelo contexto o que acontece, no caso das trs ltimas fica claro que a relao de quem d o que invertida (ainda que implausvel): o camelo que d um cozinheiro ao escravo.

    Ao eliminarmos a dificuldade relacionada com a questo do contexto estranho (camelos, cozinheiros e escravos na mesma sentena formam um cenrio bem estranho), perceberemos claramente a diferena fundamental entre uma estrutura lingustica baseada na ordem das palavras e uma baseada no sistema de casos. Imaginemos um verbo transitivo simples como v (uidet), que significa que x v y (sequncia que no igual a y v x). Com esse verbo, criemos uma frase simples como:

    g) O cozinheiro v o escravo.

    Em latim, a frase pode ser dita de inmeras maneiras do ponto de vista da ordem, pois quem dir com certeza quem o sujeito de v e quem o objeto direto de v so as flexes de nominativo e acusativo, respectivamente. Assim, as seguintes ordenaes em latim significaro a mesma coisa que (g) acima (com pequenas alteraes no ponto de vista de nfase, estilo etc., que no so importantes neste ponto):

    h) coquus seruum uidet. (ordem mais comum em latim)

    i) coquus uidet seruum.

    j) seruum coquus uidet.

    l) seruum uidet coquus.

    m) uidet coquus seruum.

    n) uidet seruum coquus.

    Se fizermos o mesmo com a orao em portugus, obteremos significados diferentes e algumas sentenas que causaro sensao de estranheza:

    12 Exceto em alguns resqucios, como no caso dos pronomes pessoais eu, me, mim, meu, tu, te, ti, teu, que significam a mesma coisa do ponto de vista semntico, mas que tm formas diferentes para funes sintticas diferentes. O eu pode ser sujeito do predicado ver o camelo, mas no pode ser objeto direto que preenche a expresso o camelo viu. Na posio de objeto direto, o pronome pessoal eu transforma-se em me, ou seja, O camelo me viu uma sentena em que o eu se encontra no caso acusativo, por assim dizer.

    Estrutura da lngua latina comparada com a do portugus 37

  • o) O escravo v o cozinheiro. (sentido completamente diferente)

    p) O cozinheiro o escravo v. (estranha)

    q) O escravo o cozinheiro v. (estranha)

    r) V o cozinheiro o escravo. (estranha)

    s) V o escravo o cozinheiro. (estranha)

    Resumindo, se em portugus quem aparece antes do verbo costuma ser o seu sujeito e quem aparece depois costuma ser o seu objeto direto, em latim essa relao se d antes pela marcao morfolgica de caso em cada palavra, e no atravs da posio das palavras na frase.

    Por causa dessa diferena, ser crucial identificar as formas em que as palavras de categorias no-minais esto quando aparecem num texto latino, sob pena de simplesmente no entendermos o sen-tido das expresses. A partir desse momento, portanto, o sistema de casos ser o que nos guiar pelo caminho da compreenso dos textos latinos.

    Texto complementarO texto abaixo retirado do livro Uma Estranha Lngua?, de Alceu Dias Lima, um dos maiores

    classicistas vivos do Brasil. Trata-se de um trecho de um dos captulos do livro, em que o autor discute, com um elevado grau de erudio, as questes de ensino da estrutura da sentena latina, nosso objeto de estudo nesta aula.

    A frase latina segundo o esquema: nome sujeito versus nome objeto + verbo Consideraes de ordem sinttica

    (LIMA, 1995)

    Sejam os enunciados

    a) O patro chama o criado;

    b) O criado chama o patro.

    Aqui aleatria e globalmente assumidos, sem nenhum esforo, em razo apenas do seu acabamento gramatical de unidades frasais quaisquer, conaturais ao falante nativo do portugus, tudo como convm a estas consideraes com vistas descrio do sistema, mas que, em situao real de discurso, so concebveis no latim de Roma, quando mais no seja por parafrasearem ocor-rncias autnticas. [...]

    38 Lngua Latina

  • Submetido um e outro enunciado (a e b) s perguntas que a competncia em lngua natural materna, corroborada por uma correta escolarizao elementar, deve autorizar, tais como: 1. Quais so as unidades morfossintticas do enunciado a?; 2. Quais so as unidades morfossintticas do enunciado b?; 3. Quais as unidades lxicas de a?; e 4. Quais as de b?, fora constatar que, no to-cante gramtica, pelo menos a gramtica do Ensino Mdio, e ao vocabulrio, eles so idnticos. No h, pois, como explicar com esses conhecimentos, ainda que tenham sido objeto de ensino na escola, a diferena bvia entre os dois enunciados no que concerne sua referncia, ou seja, sua indicao de sentido. Nem ser difcil concluir que a anlise sinttica tradicional as coisas no pare-cem mudar muito no ensino lingustico moderno, ao qual ela est pressuposta deixou sempre de valorizar e, por isso, de batizar esse componente bsico, por mais que de natureza no-segmental que faz da colocao dos nomes antes e depois do verbo, fator indispensvel da significao frsi-ca em idiomas como o Portugus. Ningum duvida que a conotao no apenas constatativa da declarao algo malcriada e provocadora do menino mesa: Feijo eu no quero retira sua fora expressiva, conotadora mais de um estado emocional do que denotadora da emisso de um juzo, da alterao dessa colocao dos nomes no enunciado e, portanto, fornece mais um fundamento ao seu valor morfemtico. A fora desse morfema constituinte bsico da frase verncula dos falantes naturais do Portugus (aqueles para quem ele a lngua de bero) responde por forte interferncia13

    desse idioma sobre o latino. Requer-se por isso particular cuidado para que mesmo um enunciado gramaticalmente latino, mas to pouco romano em seu uso discursivo quanto

    philosophum non facit barba

    No seja entendido e apressadamente traduzido pelo incauto aprendiz falante nativo dessa lngua moderna como O filsofo no faz a barba. O erro do principiante tem como causa outro maior, pois envolve o leitor moderno: no perceber o chiste do humanista cristo que forjou essa verso latina para o popular O hbito no faz o monge. Mesmo depois de ter-lhe sido, ao disc-pulo, metodicamente ensinado em aula que: 1. no latim, a colocao anterior e posterior ao verbo, pertinente no que concerne nfase, no o pelo que toca gramtica, que ope nominativo a acusativo, quer dizer, no faz parte do que, segundo R. Jakobson, deve ser dito14 na lngua de Lu-crcio; 2. tratando-se do latim, a competncia verbal do romano antigo pe em jogo, com base na flexo, um sistema de pressuposies sintagmticas portador de alto ndice de autocorreo (sem escapar, talvez, a um certo grau de redundncia), em que cada nome deve chegar frase provido de uma desinncia especfica, conforme exigncias contextuais ou sintticas. Estas o fazem pressentir, antes mesmo da identificao, na linearidade frasal, dos outros termos da seleo determinada pela regncia e pela concordncia, na funo de sujeito, objeto direto ou indireto, adjunto adnominal, adjunto adverbial, aposio, regime de preposio, predicativo, simples exclamativo, alm de por-tador daquelas indicaes comuns s lnguas modernas, ainda que, com uso diverso, isto , com

    13 Interferncia, s. f.: Em didtica das lnguas: dificuldades enfrentadas pelo aluno e erros que ele comete em lnguas estrangeiras por causa da influncia de sua lngua materna ou de outra lngua estrangeira anteriormente estudada (GALISSON; COSTE, 1976, s.v.).14 Nota do autor: Alceu Dias Lima aqui faz uso de uma famosa postura terica de vrios linguistas estruturalistas importantes da primeira metade do sculo XX, como Roman Jakobson e Franz Boas, que diziam que as lnguas diferem no que nos obrigam a dizer, e no no que podem dizer. Assim, para ficarmos com um exemplo do latim em oposio ao Portugus, se na primeira lngua no temos artigos de nenhum tipo, ao traduzirmos daquela para esta deveremos preencher a lacuna do artigo com alguma coisa: ou um artigo definido, ou um indefinido, ou um quantificador assim por diante. Dessa forma, de dominus latino o Portugus nos obriga a dizer o senhor, um senhor e assim por diante.

    Estrutura da lngua latina comparada com a do portugus 39

  • outra realizao fontica, quais sejam o gnero e o nmero. Ou no sequer de redundncia, nem no sentido corrente, nem no da teoria da informao, que se h de falar aqui e sim de legtima fora expressiva! Nem, por um lado, a eventualidade, alis comprovada, de serem muitos os fatos da ex-presso situados fora das relaes da fonologia, da morfossintaxe e da lexicologia, os quais explicam plenamente a existncia e o bom desenvolvimento de domnios inteiros, como o da retrica, da es-tilstica e da potica, nem, por outro, a grande incidncia de variantes, quer contextuais, quer livres, no latim, como, de resto, em qualquer lngua, nada justifica os exageros da chamada morfologia latina das gramticas de inspirao donatiana, conforme visto.

    Atividades1. Atravs do que se aprendeu sobre a marcao de casos nessa aula, flexione os substantivos abaixo

    para construir sentenas com os verbos disponveis e traduza as sentenas construdas.

    Substantivos: deus deus mundus mundo Verbos:

    agnus cordeiro dominus senhor philosophus filsofo habet tem, possui

    amicus amigo equus cavalo populus povo uidet v

    asinus asno filius filho porcus porco amat ama

    Augustus Augusto fungus cogumelo oculus olho est

    Brutus Bruto gladius gldio, espada seruus escravo st come

    camelus camelo Homerus Homero ursus urso dat d

    capillus cabelo Marcus Marco necat mata

    coquus cozinheiro medicus mdico laudat louva

    crocodilus crocodilo Minotaurus Minotauro docet ensina

    Exemplos:

    a) Augustus mundum docet: Augusto ensina o mundo.

    b) agnus asinum amat: O cordeiro ama o asno.

    c) porcum necat equus: O cavalo mata o porco.

    d) Minotaurus amic ursum dat: O Minotauro d um urso para o amigo.

    e) Brutus est fungus: Bruto um cogumelo15.

    f ) Brutus st fungum: Bruto come um cogumelo.

    15 Em latim, fungus tambm era uma maneira de chamar algum de imbecil ou pouco inteligente (via a metfora da cabea grande, como a de um cogumelo).

    40 Lngua Latina

  • 2. Tente explicar por que, dentre os exemplos da atividade 1, o exemplo (e) tem dois nominativos (Brutus e fungus), e no um nominativo e um acusativo. Para isso, compare a sentena com a sua traduo em Portugus e com a sentena seguinte, a de letra (f ).

    Estrutura da lngua latina comparada com a do portugus 41

  • 3. Com base nos exemplos da atividade 1, explique a diferena na ordem de palavras nas sentenas latinas e portuguesas.

    42 Lngua Latina

  • Sistema nominal latinoVeremos, neste texto, como os substantivos so divididos em declinaes e como os adjetivos