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1 URI UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕES PRÓ-REITORIA DE PESQUISA, EXTENSÃO E PÓS-GRADUAÇÃO DEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA, LETRAS E ARTES CAMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN MESTRADO EM LETRAS ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LITERATURA GRASIELA LOURENZON DE LIMA LITERATURA COMPARADA E TRADUÇÃO INTERSEMIÓTICA: O TEMA DA VIOLÊNCIA URBANA EM O MATADOR E O HOMEM DO ANO Prof. Dr. MARCELO MARINHO Frederico Westphalen, RS, Brasil Agosto de 2011

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URI – UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕES

PRÓ-REITORIA DE PESQUISA, EXTENSÃO E PÓS-GRADUAÇÃO DEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA, LETRAS E ARTES

CAMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN MESTRADO EM LETRAS – ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LITERATURA

GRASIELA LOURENZON DE LIMA

LITERATURA COMPARADA E TRADUÇÃO INTERSEMIÓTICA: O TEMA DA VIOLÊNCIA URBANA EM O MATADOR E O HOMEM

DO ANO

Prof. Dr. MARCELO MARINHO

Frederico Westphalen, RS, Brasil

Agosto de 2011

2

GRASIELA LOURENZON DE LIMA

LITERATURA COMPARADA E TRADUÇÃO INTERSEMIÓTICA: O TEMA DA VIOLÊNCIA URBANA EM O MATADOR E O HOMEM

DO ANO

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do Título de Mestre em Letras na Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – URI, campus de Frederico Westphalen. Área de concentração: Literatura. Orientador: Prof. Dr. Marcelo Marinho

Frederico Westphalen, RS, Brasil

Agosto de 2011

3

URI- UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕES

PRÓ-REITORIA DE PESQUISA, EXTENSÃO E PÓS-GRADUAÇÃO DEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA, LETRAS E ARTES

CAMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN MESTRADO EM LETRAS – ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LITERATURA

A Comissão Examinadora, abaixo assinada,

aprova a Dissertação de Mestrado

LITERATURA COMPARADA E TRADUÇÃO INTERSEMIÓTICA: O TEMA DA VIOLÊNCIA URBANA EM O MATADOR E O HOMEM

DO ANO

Elaborada por GRASIELA LOURENZON DE LIMA

como requisito parcial para a obtenção do grau de

Mestre em Letras

COMISSÃO EXAMINADORA:

____________________________________________ Prof. Dr. Marcelo Marinho – URI

(Presidente/Orientador)

_____________________________________________ Profa. Dr. Cássio dos Santos Tomaim – UFSM

(1º arguidor)

____________________________________________ Prof. Dr. Lizandro Carlos Calegari – URI

(2º arguidor)

Frederico Westphalen, 19 de agosto de 2011

4

“Traduzir é repensar a configuração de escolhas do original, transmutando-as

em uma outra configuração seletiva e sintética”. (Julio Plaza)

5

Para Helena, Érica, Heloísa e Jean Pierre.

6

AGRADECIMENTOS

Muitas pessoas contribuíram para a materialização de mais um sonho e

uma etapa acadêmica. Quero manifestar meu agradecimento à coordenadora e

professora Denise de Almeida e Silva e a todo o corpo docente do curso de Pós-

Graduação – Mestrado em Letras: concentração Literatura, da URI, pela

oportunidade, dedicação e carinho.

Em especial, agradeço ao professor Marcelo Marinho pelas orientações

precisas, pelo apoio, incentivo e afeto. Seu jeito tranquilo e sereno de ser sempre

acalmaram minhas angústias e revigoraram forças para que eu acreditasse

sempre em minhas potencialidades. Obrigada de coração.

Um agradecimento especial para o professor Lizandro Carlos Calegari, que

sempre soube ouvir, orientar pacientemente minhas dúvidas. Além de professor,

mostrou-se sempre um amigo.

À Magali, pela disponibilidade e gentileza com que sempre realizou os

favores solicitados.

À colega e amiga do programa de mestrado Viviani, pela presença

constante, amizade e companheirismo.

Aos demais colegas Adriana, Karine, Fábio, Sandra e Solange, pelas trocas

teóricas, desabafos e descontrações.

Ao meu marido Jean Pierre, pela cumplicidade, apoio e, principalmente,

pela compreensão nos momentos de ausência. Seu incentivo foi valioso e

essencial. Obrigada por compartilhar esse momento comigo.

A todos meus familiares que torceram para que esse trabalho chegasse ao

êxito: ao apoio incondicional de Iara, Ori e Jacques que por diversas vezes me

substituíram em minhas tarefas de mãe. A meus pais, que me ensinaram a ser

responsável e humilde.

Agradeço a todos por acreditarem e participarem de cada conquista minha,

que também é de vocês.

7

RESUMO

Estudos dedicados à relação entre literatura e cinema são uma eficaz ferramenta para analisar as articulações entre distintos sistemas sígnicos, tais como o verbal e o sonoro-visual. Em sua condição de tradução intersemiótica, a adaptação fílmica é um privilegiado objeto para investigações científicas no âmbito da literatura comparada. Nessa perspectiva, o presente trabalho resulta de um estudo comparativo entre o livro O matador (1995, de autoria de Patrícia Melo) e o filme O homem do ano (2003, dirigido por José Henrique Fonseca). Em estreita correspondência com o contexto sócio-histórico em que ambas as obras são produzidas (o crescimento vertiginoso da violência a partir da chamada “década perdida”), o estudo centra-se nos aspectos que decorrem da representação estética da violência, sobretudo no que se refere à tradução da expressividade literária para o âmbito da linguagem cinematográfica. A pesquisa dedica-se a analisar certos elementos temáticos e estilísticos da obra literária, assim como as estratégias específicas utilizadas para traduzi-los em imagens fílmicas, por meio da linguagem própria ao cinema. O fulcro último é a análise das articulações entre produção artística, expressividade estética e contexto social. Palavras-chave: Tradução intersemiótica. Linguagem literária. Linguagem cinematográfica. Representação estética. Representação social. Violência urbana.

8

ABSTRACT

Studies focused on the relation between literature and cinema can be an efficient tool to analyze the articulations amongst different systems of signs, such as the verbal and the sonorous-visual ones. Through its condition of intersemiotic translation, a movie literary adaptation is a privileged object for scientific inquiries within the frame of Comparative Literature. Thus, the present work is a comparative study on the book O matador (1995, written by Patricia Melo) and its movie adaptation O homem do ano (2003, directed by Jose Enrique Fonseca). In close correspondence with the socio-historical context in which both artistic works were produced (i.e., the vertiginous raising of social violence from the so-called “década perdida”), the study is focused on issues related to the aesthetic representation of the violence, particularly with regard to the translation of literary expressiveness into cinematographic language. The research is aimed to analyze some thematic and stylistic elements of the literary work, as well as the specific strategies used to translate those elements into film images. The main scope is to analyze the articulations amongst artistic production, aesthetic expressiveness and social context. Keywords: Intersemiotic translation. Literary language. Cinematographic language. Aesthetic representation. Social representation. Urban violence.

9

SUMÁRIO CONSIDERAÇÕES INICIAIS....................................................................... 10

1- Literatura Comparada e tradução intersemiótica ............................. 14

1.1 Tradução intersemiótica .............................................................. 18

1.2 Da linguagem literária a linguagem cinematográfica................... 22

1.3 Adaptação cinematográfica: fidelidade ou liberdade

criativa?........................................................................................ 28

2- A violência urbana na literatura e no cinema brasileiros (1990-2010) 36

2.1 A violência na literatura ............................................................... 44

2.2 A violência no cinema .................................................................. 49

3- Tradução intersemiótica: a estética da violência em O matador e O

homem do ano ............................................................................................ 62

3.1 Violência e corrupção ................................................................... 66

3.2 Violência e exclusão social .......................................................... 77

3.3 Violência e fatalismo .................................................................... 83

CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................... 96

REFERÊNCIAS.............................................................................................. 100

GLOSSÁRIO ............................................................................................... 106

FIGURA 1 E 2 ............................................................................................. 18

FIGURA 3 E 4 ............................................................................................. 40

FIGURA 5 .................................................................................................. 76

FIGURA 6, 7 E 8 ........................................................................................ 80

FIGURA 9 .................................................................................................. 87

FIGURA 10 E 11........................................................................................ 88

FIGURA 12 .............................................................................................. 89

FIGURA 13, 14 E 15 ................................................................................ 92

10

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Entre os graves problemas que afetam a vida cotidiana no espaço

urbano brasileiro, talvez a violência difusa e intensa seja um dos mais

preocupantes. No último quartel do século XX e neste início de século XXI, a

violência urbana aumentou vertiginosamente no Brasil, chegando a níveis

altíssimos. Estudos e pesquisas revelam que a violência disseminou-se

amplamente pelo tecido social a partir da década de 1980, em razão dos

problemas sociais e econômicos da chamada “década perdida”. A partir de

então, a sensação dos moradores em grandes cidades é a de insegurança e

medo generalizados, em função dos elevados índices de homicídios, assaltos,

sequestros, tráfico de drogas e armas, para além dos constantes escândalos

em torno da corrupção política e policial.

Ora, as inquietações da sociedade brasileira com a violência são

representadas, sob forma especular, no conjunto das produções artísticas

contemporâneas. A proposta do presente trabalho é a de analisar a

representação da violência urbana nas artes, por meio da leitura comparativa

de dois textos que pertencem a campos semióticos distintos: o thriller

romanesco O matador (1995), de Patrícia Melo, e sua adaptação fílmica O

homem do ano (2003), de José Henrique Fonseca.

São antigas e muito produtivas as relações entre literatura e cinema: já

“nos primeiros passos do cinema produzido no Brasil, no início do século XX, a

literatura de ficção fora logo aproveitada como matéria-prima para produções

ainda artesanais, em busca do público que a aceitasse”1. Na busca do prestígio

social que reveste as demais linguagens artísticas (como o teatro, a música, a

dança, a pintura e a literatura), o cinema inspira-se abertamente de romances

clássicos: surge a adaptação (ou transposição) fílmica, em pleno vigor ainda

nos dias de hoje.

1DANTAS, Geyson Bezerra. De O matador a O homem do ano: civilização e barbárie nos

(des)caminhos da adaptação da literatura para o cinema brasileiro. 2007. 178f. Dissertação (Mestrado em Letras) - Universidade Federal da Paraíba: João Pessoa, 2007, p. 55.

11

A representação ficcional da violência incide, de maneira reiterada,

sobre algumas de nossas mais expressivas manifestações artísticas, pois o

estado atual da violência em nosso país torna difícil ignorar a existência desse

flagelo social. Por meio da literatura, muitos escritores brasileiros têm buscado

estabelecer com o leitor um diálogo sobre os problemas e os conflitos que

desestruturam o país. Patrícia Melo faz parte de uma geração de escritores que

surge na década de 1990 e se mostra disposta a representar o mundo paralelo

das periferias suburbanas e das favelas brasileiras, trazendo à ribalta a história

de personagens que vivem à margem da sociedade. Ao estilo de Rubem

Fonseca, a escritora paulista busca retratar a mente de criminosos, por meio de

instantâneos fragmentários e contundentes. Em sua ficção, percebe-se a

influência do “realismo feroz” dos anos 1960/70, da estética daqueles autores

cuja leitura “agride pela violência, não apenas dos temas, mas dos recursos

técnicos”.2

Assim, o presente trabalho busca contribuir para os estudos

relacionados à representação da violência e do crime na literatura e no cinema

brasileiros, com um olhar atento e inquiridor ao contexto social em que o livro O

matador e o filme O homem do ano foram produzidos. A transposição da

representação literária dessa violência em adaptações cinematográficas

também permite desenvolver uma produtiva reflexão sobre essa questão.

Embora sirvam-se de linguagens distintas, ambas as artes articulam uma

estrutura narrativa que coloca o leitor e o espectador diante de uma verdade

inabalável: a violência distribui-se parcimoniosamente entre todas as classes

sociais. Por esse viés, a violência pode ser tomada como um filtro por cujo

intermédio é possível refletir sobre certos aspectos do universo

contemporâneo, sobre certas características da sociedade moderna e das

relações sociais que se inscrevem num contexto de desestruturação gradual.

Para levar a termo uma tal reflexão, o método de análise adotado é o

comparativo. Ambos os textos pertencem a sistemas semióticos distintos,

razão pela qual é necessário retomar diferentes conceitos de tradução, em

contextos e circunstâncias de adaptação cinematográfica de uma obra literária

2CANDIDO, Antônio. A nova narrativa. In:____. Educação pela noite e outros ensaios. 2. ed. São Paulo: Ática, 1989, p. 211.

12

– também chamada de “tradução intersemiótica”. Esses conceitos e certas

reflexões sobre a profícua relação entre literatura e cinema, bem como a

especificidade da linguagem de cada uma das artes, são apresentados na

primeira parte do trabalho, intitulada “Literatura comparada e tradução

intersemiótica”.

Na segunda parte, “A violência urbana na literatura e no cinema

brasileiros (1990-2010)”, com base em estudos e pesquisas relacionadas à

violência urbana no Brasil, analisam-se dados sobre a escalada da violência na

sociedade brasileira, bem como o consequente reflexo desse aspecto na arte

literária e cinematográfica. No primeiro tópico, realiza-se uma breve

recapitulação histórica da produção literária que, a partir dos anos 1960/1970,

investe na criação de enredos narrativos que tem como cenário o espaço

urbano e seus problemas – entre os quais a violência ocupa lugar de destaque.

No segundo tópico, é apresentada a representação dessa temática no cinema

brasileiro, sobretudo naquilo que se convencionou chamar de “Cinema da

Retomada”, período da história cinematográfica que amiúde remete ao tema da

violência urbana. No que se refere à estetização da violência e por intermédio

de um panorama da produção literária e cinematográfica do período 1990-

2010, busca-se analisar a violência representada nas artes, em sua condição

de fator articulador da dinâmica social e cultural brasileira.

A terceira parte, intitulada “Tradução Intersemiótica: a estética da

violência em O matador e O homem do ano”, é dedicada à análise da

tradução do livro de Patrícia Melo para o filme de José Henrique Fonseca,

segundo três tópicos temáticos: violência e corrupção; violência e exclusão

social; violência e fatalismo. Tais fatores estão intrinsecamente relacionados

com o desenvolvimento da narrativa. Por intermédio da análise comparatista,

busca-se analisar o modelo de estetização da violência tanto no livro quanto no

filme, assim como as estratégias utilizadas pelo realizador e pela equipe

cinematográfica para transpor em imagens as frases do texto literário. Dessa

forma, apresentam-se algumas significativas passagens literárias selecionadas

em função dos três tópicos temáticos, para em seguida analisar certos

aspectos da tradução intersemiótica. Destaca-se que ao final do trabalho

consta um glossário com vocábulos explicativos, especialmente no que se

refere à linguagem cinematográfica.

13

Para além das meras relações entre literatura e cinema, esta pesquisa

leva em conta aspectos teóricos e críticos que contemplam aspectos sociais da

época de produção das obras. Entre os autores que embasam teórica e

metodologicamente a pesquisa, destacam-se: Antonio Candido, Daniel-Henri

Pageaux, Fábio Messa, Ismail Xavier, Julio Plaza, Karl Erik Schøllhammer, Luiz

Zanin Oricchio, Randal Johnson e Tânia Pelegrini, em estreita articulação com

dados estatísticos referentes ao período histórico-social estudado.

14

1. LITERATURA COMPARADA E TRADUÇÃO INTERSEMIÓTICA

Em Literatura Comparada [...] há apenas, de fato, conclusões provisórias que levam a novas leituras e novas investigações “por mares nunca dantes navegados”...

(Álvaro Manuel Machado e Daniel-Henri Pageaux, Da literatura comparada à teoria da literatura, p. 196)

A Literatura Comparada é um amplo e fecundo campo de estudo nos

tempos modernos. Da mesma forma que a cultura e a literatura possuem um

caráter corrediço, a Literatura Comparada também tem uma natureza móvel,

em razão da multiplicidade de definições teóricas e metodológicas que decorre

da “vastidão de seu campo e pluralidade de seus métodos”3.

Entre os diversos conceitos propostos para a Literatura Comparada ao

longo de sua trajetória histórica, o de Henry H. H. Remak, retomado por

Carvalhal, revela-se adequado para o propósito desta pesquisa. O estudioso

entende a Literatura Comparada como

o estudo da literatura além das fronteiras de um país em particular, e o estudo da relações entre literatura de um lado e outras áreas do conhecimento e crença, como as artes (pintura, escultura, arquitetura, música), a filosofia, a história, as ciências sociais (política, economia, sociologia), as ciências, as religiões, etc., de outro. Em suma é a comparação de uma literatura com outra ou outras, e a comparação da literatura com outras esferas da expressão humana

4.

A partir dessa definição, o comparativismo, para além do confronto entre

obras e autores, passa também a explorar o imbricamento da literatura com

outras formas de expressão artística e outras formas de conhecimento – como

as relações interdisciplinares como literatura e filosofia, literatura e psicanálise,

literatura e história e o diálogo entre literatura e outras formas de artes, como a

música, a pintura, a escultura e o cinema tornam-se objeto de estudo regulares

e tem ampliado o campo de investigação dos estudos comparados.

3 PERRONE-MOISÉS, Leyla. Flores na escrivaninha: ensaios. São Paulo: Companhia das

Letras, 1990, p. 91. 4CARVALHAL, Tânia Franco. Literatura comparada. 4. ed. São Paulo: Ática, 2006, p. 74.

15

Esse diálogo da literatura com outras esferas do conhecimento surge do

fato de que, a partir do momento em que os problemas levantados pelo

investigador comparativista “exigem uma pesquisa mais ampla (por exemplo,

reflexão sobre um mito literário), o estudo comparativista [...] ultrapassa o

quadro estreito das relações binárias e alarga forçosamente o campo de

investigação”5 (grifo meu). Forçosamente, porque a literatura, mesmo em

terreno ficcional, não se desvincula do contexto no qual está inserida e

acompanha as transformações históricas. Tal condição sugere que o resultado

de suas investigações será sempre provisório, pois sempre vêm à luz novas

descobertas, novas leituras e novas investigações. Os caminhos da Literatura

Comparada, portanto, são abertos.

É natural que aconteça esse alargamento nas fronteiras da Literatura

Comparada uma vez que, como sublinha Carvalhal, “comparar é um

procedimento que faz parte da estrutura do pensamento do homem e da

organização da cultura”6. Quando, por exemplo, lemos um determinado livro

escrito em um tempo distante do nosso, automaticamente somos levados a

comparar o contexto histórico no qual ele foi escrito com aquele no qual

estamos inseridos. Assim, a obra literária estaria migrando da tradição original

em que surgiu para incluir-se em outro contexto cultural. Certamente, uma

investigação aprofundada de tal livro obrigaria o leitor a decifrar com outros

olhos seu sentido conotativo.

Essa ideia fica ainda mais evidente quando se tem como centro de

análise ou investigação um estudo comparativista entre sistemas de signos

diferentes. Segundo os teóricos da Literatura Comparada Álvaro Machado e

Daniel-Henri Pageaux, o texto (literário ou não) “é um sistema de signos que

colaboram com outros signos, musicais, pictóricos, icônicos. E assim se afirma

a necessidade de uma análise em que se conjuguem análise textual e

semiologia”7. Nesse sentido, cada vez mais se percebe a proximidade da

5 MACHADO, Álvaro Manuel, PAGEAUX, Daniel-Henry. Da literatura comparada à teoria da

literatura. Portugal: Edições 70, 1988, p. 141. 6 CARVALHAL, Tânia Franco. Literatura comparada. 4. ed. São Paulo: Ática, 2006, p. 6.

7 MACHADO, Álvaro Manuel, PAGEAUX, Daniel-Henry. Da literatura comparada à teoria da

literatura. Portugal: Edições 70, 1988, p. 147.

16

literatura com outras artes, uma vez que esta relação “constitui uma orientação

dinâmica, fértil, com grande futuro no domínio geral da Literatura Comparada”8.

O cruzamento entre literatura e cinema data do século XIX. Na busca de

ser prestigiado como linguagem artística (como eram o teatro, a pintura e a

literatura), o cinema passa a utilizar-se de romances clássicos para construir

suas histórias. Nessa perspectiva, foram adaptadas para a linguagem

cinematográfica obras de renomados autores como os franceses Honoré de

Balzac (por exemplo, a adaptação de La grande Bretèche, 1881, pelo cineasta

André Calmettes, em 1909, fase em que o cinema ainda era mudo) e Gustave

Flaubert (entre as várias adaptações do livro Madame Bovary, tem-se a

realizada pelo cineasta Claude Chabrol, em 1991), os russos Fiodor

Dostoievsky (O idiota, 1868, adaptado para o filme homônimo, em 1951, pelo

cineasta japonês Akira Kurosawa), Leon Tolstói (por exemplo, entre as diversas

adaptações do romance Ana Karenina, 1877, tem-se a de Julien Duvivier, em

1948), o espanhol Miguel de Cervantes (Dom Quixote, 1605, adaptado para o

filme homônimo em 1992, pelo renomado cineasta Orson Welles), entre outros.

Entre autores modernos que tiveram suas obras adaptadas destaca-se Ernest

Hemingway (o filme Ilhas da corrente, 1975, dirigido por Frankin F. Schaffner,

baseado no livro homônimo, 1970), Franz Kafka (a adaptação do livro O

processo, 1925, para o filme homônimo, em 1962, dirigido por Orson Welles),

Jack London (Caninos brancos, 1991, direção de Randal Kleiser, baseado no

livro homônimo, 1906) e William Faulkner (A fúria do destino, 1959, direção

de Martin Ritt, baseado em O som e a fúria, 1929).

Esses exemplos mostram que o cinema tem buscado inspiração com a

literatura, pois nela os cineastas encontraram “modelos de construção de

enredo, métodos de delinear personagens, modos de apresentar processos de

pensamento e meios de lidar com o espaço e o tempo”9. Nas palavras da

professora e pesquisadora sobre estudos intermídias Thaís Flores Nogueira

Diniz, foi o próprio Sergéi Eisenstein – cineasta reconhecido pelas inovações

na técnica da montagem que deram consolidação ao cinema como meio

artístico – “que há quarenta anos afirmou que os romances contêm

8 Id. Ibid.

9 DINIZ, Thais Flores Nogueira. Tradução intersemiótica: do texto para a tela. Cadernos de

Tradução, Florianópolis, v. 1, n. 3,1998, p. 317.

17

equivalentes de fades, dissolvências, close-ups, métodos de composição e

edição”10. Em uma descrição detalhada, por exemplo, pode-se dizer que os

escritores conseguem “fotografar” o objeto, o espaço ou um detalhe do

personagem que se quer transmitir ao leitor. A literatura, ao articular

procedimentos verbais para contar suas histórias, oferece ao cinema exemplos

para fazer o mesmo, no entanto, neste último caso, com recursos visuais.

No entendimento do cineasta Jorge Furtado, esse aprendizado do

cinema através da literatura se materializa porque, além de o cinema filmar as

histórias criadas pela literatura, também reproduz seus procedimentos

narrativos11. Dessa forma, a sétima arte pode ser considerada, de acordo com

um dos mais importantes cineastas soviéticos, o russo Eisenstein, “uma

expansión de la dicción estricta, hermoseada por la poesia y la prosa, en um

nuevo reino en el cual la imagem deseada se materializa directamente en

percepciones auditivas e visuales”.12

Segundo Flávio Aguiar13, o desenvolvimento do cinema no século XX

implicou o surgimento de grande número de produções calcadas em enredos e

personagens consolidadas inicialmente na literatura, pois adaptar obras

consagradas, além de trazer segurança, também facilita granjear prestígio e

aprovação do público. No Brasil, dentre os inúmeros filmes baseados em textos

literários já consagrados destacam-se: Macunaíma (1969), de Joaquim Pedro

de Andrade, inspirado no romance homônimo de Mario de Andrade; A hora da

estrela (1985), de Suzana Amaral, que tem como origem o romance de mesmo

nome da escritora Clarice Lispector; Memórias póstumas de Brás Cubas

(2001), de André Klotzel, baseado na obra homônima de Machado de Assis;

Lavoura arcaica (2001), de Luís Fernando Carvalho, inspirado na obra de

Raduan Nassar; Cidade de Deus (2002), de Fernando Meireles, a partir do

10

Id. Ibid. 11

FURTADO, Jorge apud SILVA, Ângela Maria Lessa. Do texto literário ao filme: diálogos intersemióticos em “A hora da estrela”. 2006. 190f. Dissertação (Mestrado em Literatura Brasileira) – Universidade Federal de Alagoas, Maceió, 2006, p. 34. 12

EISENSTEIN, 1959, p. 202 apud GUALDA, Linda Catarina. Literatura cinema: elo e confronto. Matrizes, São Paulo, v. 3, n. 2, jan./jul. 2010, p. 218. Tradução da autora: “uma expansão da dicção exata, formada pela poesia e pela prosa, em um novo universo no qual a imagem desenhada se materializa diretamente em percepções auditivas e visuais”. 13

AGUIAR, Flavio. Literatura, cinema e televisão. In: PELLEGRINI, Tânia et al. Literatura, cinema e televisão. São Paulo: Editora Senac São Paulo e Instituto Itaú Cultural, 2003, p. 119.

18

romance de Paulo Lins; sem falar numa série de outros textos levados à

televisão, por meio de novelas e minisséries.

FIGURA 1 – Filme A hora da estrela FIGURA 2 – Filme Cidade de Deus

Esse processo através do qual uma obra literária tem seus elementos

considerados constitutivos transpostos para uma narrativa fílmica é chamado

de adaptação cinematográfica. Em outros termos, consiste em uma forma de

tradução, pois tradução, do latim traductio, significa “ação de transferir de uma

ordem a outra; versão de uma língua para outra; ato ou efeito de traduzir; meio

pelo qual se converte uma linguagem para outra”14. O interpositivo do verbo

traduco, etimologia latina da palavra traduzir, é –duz – que significa levar,

transportar, conduzir, fazer passar15. Nesse sentido, quando um diretor opta

por produzir um filme baseado em um texto já existente, ele estará conduzindo,

transferindo, transportando este texto para um outro lugar – para uma nova

linguagem, para um outro campo semiótico – o cinematográfico.

1.1 Tradução intersemiótica

Segundo o teórico em tradução intersemiótica Julio Plaza, foi o linguísta

russo Roman Jakobson o primeiro a discriminar e definir os tipos de tradução: a

interlingual (que ocorre entre línguas diferentes – a tradução propriamente

14

HOUAISS, Antônio. Grande dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2008, p. 2745. O Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, em sua versão integral, traz a origem e o significado etimológicos de certos vocábulos que representam conceitos de extrema valia para o presente estudo. Por tal razão, faremos frequente alusão à etimologia do léxico aqui utilizado, tal qual se desenvolve nesse conceituado dicionário. 15

Id. Ibid., p. 1092.

19

dita), a intralingual (que acontece no âmbito da mesma língua de origem) e a

intersemiótica. Esta última foi definida por Jakobson em 1959 como um tipo de

tradução que “consiste na interpretação dos signos verbais por meio de

sistemas de signos não verbais, ou de um sistema de signos para outro, por

exemplo, da arte verbal para a música, a dança, o cinema ou a pintura”16.

Dessa forma, ao distinguir os tipos de tradução, Jakobson descentraliza o

conceito dado ao termo – pois até então a maioria dos teóricos tratava o

processo da tradução como algo relacionado somente a signos verbais – e

amplia seu campo de atuação.

É esse último tipo de tradução – a intersemiótica – que interessa para o

presente estudo, uma vez que se têm dois textos – um literário e outro fílmico –

“que se apresentam como icônicos um do outro, isto é, são signos numa

mesma cadeia semiótica, podemos dizer que um pode ser considerado uma

transformação, ou tradução, do outro, uma tradução intersemiótica”17. De

acordo com as ideias de Diniz, cada atividade semiótica18 tem seu próprio

sistema de sentido, e o modo como cada signo representa outro – neste

estudo, como o filme representa o livro – e a relação que existe entre eles é o

objeto de estudo da tradução intersemiótica.

Além dessas considerações, a definição de tradução intersemiótica

elaborada por Julio Plaza colabora para melhor esclarecemos os estudos que

enfocam sistemas de signos diferentes:

Tradução como prática crítico-criativa na historicidade dos meios de produção e re-produção como leitura, como metacriação, como ação sobre estruturas eventos, como diálogo de signos, como síntese e reescritura da história. Quer dizer: como pensamento em signos, como trânsito dos sentidos, como transcriação de formas na historicidade

19.

16

PLAZA, Julio. Tradução intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 2001, p. X (apresentação do livro). 17

DINIZ, Thais. Flores Nogueira. A tradução intersemiótica e o conceito de equivalência. In: IV Congresso da ABRALIC, 1995, São Paulo. Literatura e Diferença: IV Congresso da ABRALIC. São Paulo: Bartira Editora Gráfica, 1999, p. 1002. 18

A autora exemplifica algumas atividades semióticas que expressam sentido: acenar bandeiras, colocar sinais ou linhas nas estradas, construir edifícios, fazer um filme, escrever um romance, uma peça de teatro ou poemas, pintar, esculpir, modelar ou bordar. Para ela, “cada uma dessas práticas têm seu próprio sistema de sentido e não são como „linguagens‟ em seu meio de expressão, mas procedimentos que permitem especificar seus processos e práticas semióticas distintas”. Id. Ibid., p. 1001. 19

PLAZA, Julio. Tradução intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 2001, p. 14.

20

Ao defender a tradução intersemiótica como uma prática crítico-criativa,

Plaza deixa evidente a influência do poeta e tradutor brasileiro Haroldo de

Campos em seus estudos. Segundo Plaza, foi esse crítico que o introduziu,

com rigor e sensibilidade, na teoria da “operação tradutora” intra e interlingual

de cunho poético. Para Haroldo de Campos, toda tradução é uma recriação,

pois é uma forma privilegiada de leitura crítica. A informação estética pode ser

codificada unicamente pela forma em que foi transmitida pelo artista. Assim, o

crítico assegura que é impossível uma codificação estética na prática tradutora,

porque “a fragilidade da informação estética é, portanto, máxima”20. Na terceira

parte desta pesquisa, analisa-se de que forma alguns elementos estéticos do

livro O matador foram traduzidos para a linguagem cinematográfica de O

homem do ano e se verifica que, por pertencerem a campos semióticos

distintos, a recriação torna-se inevitável. A mudança de título na obra traduzida,

por exemplo, já aponta para uma recriação. No livro O matador há uma

passagem em que Máiquel, protagonista da história, recebe o “Prêmio Cidadão

do Ano” pelos serviços prestados à comunidade (é contratado por pessoas

bem sucedidas para eliminar bandidos). Aproveitando-se da expressão que

homenageia Máiquel, roteirista e cineasta recriam o nome do filme, o qual,

valoriza a figura do matador apresentado na obra de Patrícia Melo. A crítica ao

ineficiente sistema policial do país, assim como à classe médio-alta brasileira, é

evidenciada de forma mais contundente no título do filme do que no do livro,

pois há uma parcela da sociedade que homenageia/enobrece pessoas que

disseminam a violência para, na verdade, beneficiarem-se com a situação. No

filme, o cidadão do ano, do livro, passa a ser o homem do ano, possibilitando

uma reflexão mais crítica sobre a estrutura social brasileira: no Brasil, é

frequente assistirmos bandidos e corruptos não serem punidos pelos seus

crimes.

Além disso, ao definir a tradução “como transcriação de formas na

historicidade”, Plaza refere-se ao fato de que numa tradução intersemiótica é

preciso levar em consideração o contexto histórico-social em que os signos

foram produzidos, pois a “arte não se produz no vazio” e “a história, mais do

que simples sucessão de estados reais, é parte integrante da realidade

20

CAMPOS, Haroldo de. Da tradução como criação e como crítica. In:____. Metalinguagem e outras metas: ensaios e crítica literária. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2006, p. 33.

21

humana”21. Portanto, ao considerarmos a transposição de um signo literário

para signo cinematográfico – no presente estudo, do romance O matador

(1995) para o filme O homem do ano (2003) –, essas informações precisam

ser levadas em consideração, uma vez que ambas as artes refletem problemas

da sociedade contemporânea.

Se em tradução intersemiótica há um “diálogo entre os signos”, uma

“prática crítico-criativa”, uma “reescritura da história”, como afirma Plaza,

haverá também, no seu entendimento, uma tendência dos signos em “formar

novos objetos imediatos, novos sentidos e novas estruturas que, pela sua

própria característica diferencial, tendem a se desvincular do original”22. Tal é o

que ocorre nas traduções de obras literárias para o cinema. Ao passar

elementos linguísticos de um romance para as imagens de um filme, será

necessário realizar escolhas que podem manter, suprimir ou acrescentar

significados ao original.

Em um estudo esclarecedor, Linda Catarina Gualda retoma certas ideias

do escritor João Batista de Brito e afirma que, “na era da interdisciplinaridade,

nada mais saudável do que tentar ver a verbalidade da literatura pelo viés do

cinema, e a iconicidade do cinema pelo viés da literatura”23. Isso mostra a

existência de uma profícua relação entre as duas artes, pois, assim como o

cinema tem aprendido com a literatura, o caminho inverso também tem

ocorrido. O romance contemporâneo tem abandonado estruturas narrativas

convencionais e procurado renovar-se, “introduzindo clima e ação

cinematográficos” da mesma forma que se vê “um cinema narrativo totalmente

vinculado às peculiaridades literárias”24. O signo linguístico e icônico estão

mais do que nunca imbricados, e um auxilia na leitura do outro.

21

PLAZA, Julio. Tradução intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 2001, p. 2. 22

Id. Ibid., p. 30. 23

GUALDA, Linda Catarina. Literatura cinema: elo e confronto. Matrizes, São Paulo, v. 3, n. 2, jan./jul. 2010, p. 202. 24

MESSA, Fabio. O gozo estético do crime: dicção homicida na ficção contemporânea. Tubarão: Unisul, 2008, p. 204.

22

1.2 Da linguagem literária à linguagem cinematográfica

Pela profícua relação entre literatura e cinema, o estudo das adaptações

cinematográficas torna-se de grande interesse tanto para críticos de literatura

como de cinema, pois “a passagem de um texto de romance para a sinopse de

um filme [...] pode levar a importantes conclusões sobre a escrita, sobre a

imagem e sua cristalização da palavra, sobre a relativa autonomia de um texto

literário, etc”25. A transposição de um romance para a linguagem fílmica pode

levar o espectador/leitor a constatar, por exemplo, que muitas das escolhas

realizadas pelo tradutor estão relacionadas à ordem quantitativa, ou seja,

“quase sempre o que é pequeno em um filme (um único plano, por exemplo)

corresponde algo de muito grande no texto literário (uma frase ou trecho

longo), e vice-versa, ao que é grande no cinema, pode equivaler um elemento

diminuto – como a palavra – na literatura”26.

Embora pertencendo a campos semióticos distintos – um verbal e outro

sonoro-visual –, literatura e cinema possuem a estrutura narrativa como

elemento comum. A narrativa do cinema se assemelha ao romance, pois “sua

existência gesta-se na narração, no encadeamento de ideias, no

entrelaçamento de temas”27.

Essa narração, no entanto, para se concretizar em linguagem

cinematográfica, passa por procedimentos, muitos deles próprios da arte

cinematográfica. Enquanto a narrativa literária utiliza-se de diferentes tipos de

narrador para contar suas histórias (narrador-personagem, narrador-

observador, narrador-onisciente...), no cinema, essa função é exercida pela

câmera28: focaliza, recorta, aproxima, expõe e descreve através do close-up,

do travelling ou da panorâmica.

Para a professora e pesquisadora sobre estudos de cinema Anelise

Reich Corseuil, a presença do narrador em um texto literário é evidente para o

25

Id. Ibid., p.146. 26

GUALDA, Linda Catarina. Literatura cinema: elo e confronto. Matrizes, São Paulo, v. 3, n. 2, jan./jul. 2010, p. 211. 27

Id. Ibid., p. 206. 28

Através do recurso da câmera, o cinema deu um salto maior que a fotografia – deu movimento aos seres/personagens. In: PELLEGRINI, Tânia et al. Literatura, cinema e televisão. São Paulo: Editora Senac São Paulo e Instituto Itaú Cultural, 2003, p. 32.

23

leitor, ao passo que no cinema, “o fato de as palavras serem substituídas por

imagens, como se a plateia estivesse vendo a ação sem interferência de um

narrador ou de sua voz, produz a impressão de que não há narração, mas

apenas um processo de mostrar”29. No entanto, ao retomar as análises do

crítico de cinema e de literatura Seymour Chatman, a autora sustenta que “a

presença do narrador no cinema se dá pela edição de imagens, reveladora da

interferência do narrador na organização dos eventos da história”30. A

montagem, segundo ela, aponta para existência de um narrador, que seria um

mediador, quem organiza os eventos da história no tempo e no espaço.

Além da montagem, técnicas cinematográficas como a focalização, a

mise-en-scène e a trilha sonora também apontam para a presença de um

narrador. De acordo com Corseuil, “o focalizador tem sido definido de uma

maneira geral como o agente que vê e sente as ações”31, é pela sua

sensibilidade que os espectadores de um filme podem “entender as emoções

dos personagens e a visão que eles têm do mundo ficcional sem que a

manipulação do narrador se torne visível”. E, para melhor esclarecer, a autora

afirma: “enquanto que no romance o pensamento e as ações dos personagens

são intermediados pelo discurso direto ou indireto do narrador, no cinema

ocorre um apagamento dessa intermediação através da focalização dos

eventos pelo próprio personagem, sem a aparente intermediação do

narrador”32.

Com base no dicionário de termos cinematográficos do escritor Edmund

Penney, Thais Flores Diniz relembra que mise-en-scène é um termo utilizado

na linguagem cinematográfica para definir “aquilo que comprime todos os

sistemas de signos que criam sentido no espaço, isto é, o que é oferecido para

ser filmado, a imagem da ação total, criada por elementos como os atores, a

cenografia, o vestuário, a iluminação e os adereços”33. A partir de reflexões

sobre um filme de Martin Scorsese (A época da Inocência, adaptação da obra

literária de Edith Wharton), Anelise Corseuil acrescenta que a mise-en-scène

29

CORSEUIL, Anelise Reich. Literatura e cinema. In: BONNICI, Thomas; ZOLIN, Lucia Osana (Org.). Teoria Literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas. 3 ed. Maringá: Eduem, 2009, p. 374. 30

Id. Ibid. 31

Id. Ibid., p. 375. 32

Id. Ibid. 33

DINIZ, Thais Flores Nogueira. Tradução Intersemiótica: do texto para a tela. Cadernos de Tradução, Florianópolis, v. 1, n. 3, 1998, p. 335.

24

favorece a interpretação da crítica social que o filme busca transmitir. No filme

citado pela autora, “as mesas ricamente decoradas, com o brilho dos cristais e

da prataria e as especiarias gastronômicas, ricas em detalhes, forma[m] um

espetáculo revelador do excesso de rituais sociais que fazem parte da ordem

vigente”. E ainda esclarece: “os detalhes da mise-en-scène, enfatizados pela

edição de imagens e pelos closes da prataria, da beleza dos arranjos

ornamentais de centros de mesa, revelam o luxo do espetáculo mantenedor da

ordem”. Dessa forma, percebe-se que os efeitos da mise-en-scène contribuem

para uma crítica social.

Vale destacar que, tanto na narrativa fílmica como na literária, o tempo

pode desenrolar-se cronológica ou aleatoriamente. O que difere em ambas as

formas de narrar são os recursos utilizados para marcar a temporalidade. Para

narrar uma situação de lembrança que passa pela mente de um determinado

personagem, por exemplo,

os filmes podem seguir uma sequência com saltos ou lapsos de um tempo para outro ou então valerem-se das técnicas literárias do flashback ou do flashward, mas precisará de algum efeito na tela (mudança de cor – geralmente as lembranças aparecem para o espectador em preto e branco ou com coloração pálida, envelhecida – velocidade das chamadas, ausência de ação ou mesmo de falas etc.) enquanto que na literatura essas mudanças podem ser facilmente representadas por meio de um marcador temporal – advérbio ou tempo de verbo

34.

Isso leva a concluir que o tempo, no romance, manifesta-se

linguisticamente, ao passo que, no filme, ele se apresenta com imagens de

ações concretas. Como no filme nota-se a predominância da ação e do

movimento, o tempo aparece invisível, subjacente ao espaço, o que no

romance não acontece, pois nele tempo e espaço estão associados – não há

tempo sem espaço e vice-versa. Assim, Linda Catarina Gualda, ao desenvolver

as ideias de João Batista de Brito, esclarece que o espaço aparece sempre no

romance, que é eminentemente conceitual e mediatizante, como se

temporalizado, enquanto que no filme, eminentemente espetáculo atualizante,

presentificador, o tempo aparece como que espacializado35. Constata-se,

assim, que o tempo e o espaço são elementos que se fundem para dar

34

GUALDA, Linda Catarina. Literatura cinema: elo e confronto. Matrizes, São Paulo, v. 3, n. 2, jan./jul. 2010, p. 212. 35

Id. Ibid., p. 212.

25

condição à narrativa, seja ela verbal (como o conto, a lenda, o romance) ou

visual (como o cinema e a televisão).

Ao passo que a literatura trabalha com a diferença entre o tempo do

leitor e o tempo da narrativa, o cinema pode “dispor dos acontecimentos em

qualquer ordem temporal, embora valorizando o impacto imediato; enfoca o

passado e mesmo o futuro como se tratassem do tempo presente”36. O modo

como utiliza a câmera, de forma lenta ou acelerada, por exemplo, pode

representar o passado ou o futuro, no entanto, o espectador tem a impressão

de que as ações se desenrolam no presente. Isso porque, segundo Metz37, o

espectador percebe sempre o movimento, a imagem, como atual.

Teorias cinematográficas como a do francês Christian Metz, por

exemplo, retomado em um brilhante estudo por Randal Jonhson38, e a do

francês naturalizado brasileiro Jean-Claude Bernardet, definem o plano39 como

a unidade elementar do discurso fílmico, como o equivalente a uma palavra na

linguagem verbal. Da mesma forma que as palavras se combinam em frases,

os planos se combinam em sequências. Os planos influenciam muito na

dramaticidade de uma cena, na capacidade de emocionar o espectador. Por

isso, eles estão relacionados aos movimentos de câmera, uma vez que, ao

aproximar ou distanciar a câmera de um objeto que está sendo filmado,

consequentemente, se estará escolhendo por este ou aquele plano, e, por fim,

pelo melhor enquadramento da imagem. É o cinema na busca de sua

“gramática”, como declara Bernardet40.

Ainda em relação a distinção entre a forma fílmica e a literária,

o historiador e crítico de cinema Paulo Emilio Sales Gomes assim compreende

a liberdade de interpretação que seria, segundo esse pesquisador, maior nos

livros do que nos filmes: “A Capitu de uma fita de cinema nunca seria

36

LAWSON, 1967, p. 267, apud GUALDA, Linda Catarina. Literatura cinema: elo e confronto. Matrizes, São Paulo, v. 3, n. 2, jan./jul. 2010, p. 213. 37

METZ, Christian. A significação do cinema. São Paulo: Perspectiva, 1972, p. 32. 38

JOHNSON, Randal. Literatura e cinema – Macunaíma: do modernismo na literatura ao cinema novo. Trad. Aparecida de Godoy Johnson. São Paulo: T. A. Queiroz, 1982, p. 13-15. 39

“Um dos conceitos mais básicos ao se realizar um trabalho com a câmera é buscar determinar qual é o melhor enquadramento a ser utilizado, ou qual o olhar que se deseja obter. Em outras palavras, trata-se de buscar determinar o que será enquadrado na tela que será vista pelos espectadores” – é a busca do plano mais adequado para representar a cena. In: MODRO, Nielson Ribeiro. Nas entrelinhas do cinema. Joinville: UNIVILLE, 2008, p. 25. Neste mesmo livro encontramos a definição dos seguintes planos: plano geral, plano de conjunto, plano americano, plano médio, primeiro plano, primeiríssimo plano, plano de detalhe/close. 40

BERNARDET, Jean-Claude. O que é cinema. São Paulo: Brasiliense, 1980, p.37-38.

26

essencialmente olhos e cabelos, e nos imporia necessariamente tudo o mais,

inclusive pés e cotovelos. Essa definição física completa imposta pelo cinema

reduz a quase nada a liberdade do espectador nesse terreno”41. O livro

solicitaria em maior grau a imaginação, as imagens fílmicas oferecem ao olhar

e aos ouvidos um certo imediatismo detalhativo que, por vezes, poderia

submergir a função imaginativa do espectador. Comparado ao livro, o filme

poderia exigir menos trabalho intelectual para ser entendido – ler “ele entrou na

sala” possibilita diferentes formas de se imaginar essa situação, ao passo que

ver “ele entrando na sala” encerra o olhar no quadro representado na tela. No

entanto, inúmeros filmes exigem de seus espectadores uma intensa

capacidade imaginativa e analítica, sobretudo no caso do cinema autoral; por

vezes, a exigência é superior àquela que se manifesta na leitura de obras

literárias complexas, como no caso de textos em versos poéticos.

Por outro lado, o cinema, ao limitar o olhar, pode sugerir, a partir das

cenas criadas para equivaler as palavras do texto literário, imagens que o

espectador, enquanto leitor do livro, jamais imaginara. Em outros termos, “as

imagens podem mostrar aquilo que as palavras não conseguem exprimir. Elas

podem esclarecer e amparar a mensagem verbal”42. Assim, percebe-se mais

uma vez que literatura e cinema, ao mesmo tempo em que se afastam,

também se complementam.

Outro aspecto que precisa ser destacado na relação entre literatura e

cinema diz respeito à capacidade de significação dessas formas de arte. Para

Randal Johnson, estudioso e crítico das relações entre literatura e cinema,

tanto filme como romance significam basicamente com a mesma capacidade,

porém fazendo uso de forma diferente: “Os dois meios usam e distorcem o

tempo e o espaço, e ambos tendem a usar a linguagem figurativa ou

metafórica”43.

A metáfora em um filme pode ser alcançada, por exemplo, pela

justaposição de dois ou mais planos. No entanto, no entendimento de Johnson,

41 GOMES, Paulo Emilio Sales. A personagem cinematográfica. In: CANDIDO, Antônio et al. A personagem de ficção. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 1972, p. 111. 42

PETTIT, 2009, p. 50 apud ORGADO, Gisele T. M. Redondo. A tradução de metáforas do filme japonês A viagem de Chihiro. 2010. 112f. Dissertação (Mestrado em Estudos da Tradução) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2010, p. 52. 43

JOHNSON, Randal. Literatura e cinema – Macunaíma: do modernismo na literatura ao cinema novo. Trad. Aparecida de Godoy Johnson. São Paulo: T. A. Queiroz, 1982, p. 29.

27

é preciso que esta justaposição acrescente um significado adicional ao objeto

filmado. Entre os vários tipos de metáforas utilizadas no cinema, exemplifica

metáfora interplano44 utilizada em um filme brasileiro: “Nelson Pereira dos

Santos, em seu clássico Vidas secas, usa o som estridente de uma roda de

carro de boi como uma metáfora do infindável desespero dos camponeses

brasileiros presos num círculo de miséria causado por secas cíclicas e pela má

distribuição da terra”45. Com esse exemplo (e outros que apresenta), o crítico

quer esclarecer que o cineasta, pela montagem, busca um equivalente

cinematográfico para o tropo46 literário, ou seja, busca elementos

cinematográficos que consigam transpor em imagens o emprego figurado de

uma palavra ou expressão literária. Assim, da mesma forma como as

metáforas que estão nos textos literários escondem significações, provocam

emoções e pensamentos, as criadas pelos recursos cinematográficos também

procuram fazê-lo. Dessa forma, pode-se afirmar que “a arte das palavras e a

arte das imagens [...] se encontram no mesmo nível semiológico; são vizinhos

no andar da conotação”47.

Com esse exemplo dado por Johnson, é possível constatar, ainda, que o

material de expressão do sistema cinematográfico vai além das imagens: é

constituído também de palavras, signos impressos, música e ruídos. Estes

últimos muito contribuem para a carga dramática e emocional do filme e, se

utilizados adequadamente, podem garantir grande parte do sucesso de um

filme. A música, por exemplo, aliada às imagens e à temática, pode contribuir

muito na representação dos sentimentos dos personagens, o que a torna peça

imprescindível, garantindo que o filme, muita vezes, seja premiado nesse

quesito. Ressalta-se, ainda, que “a trilha sonora serve como auxílio inclusive na

44

Além da metáfora interplano (aquela que usa a técnica cinematográfica ou a composição figurativamente dentro de um só plano), o autor define e exemplifica a montagem metafórica, a montagem poética, a montagem alegórica e as metáforas literárias, que Bela Balzás chama de montagem intelectual. In: JOHNSON, Randal. Literatura e cinema – Macunaíma: do modernismo na literatura ao cinema novo. Trad. Aparecida de Godoy Johnson. São Paulo: T. A. Queiroz, 1982, p. 30. 45

Id. Ibid., p. 31. 46

O termo tropo, do grego trópos significa “direção (de um duto, canal etc.), atitude, modo, maneira, tom, estilo, figura de palavras, hábito, caráter, sentimentos”. Neste presente estudo, está relacionado ao emprego figurado de palavras ou locuções. In: HOUAISS, Antônio. Grande dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2008, p. 2777. 47

METZ, Christian. A significação do cinema. São Paulo: Perspectiva, 1972, p. 99.

28

percepção do ritmo das cenas por parte do espectador, auxiliando no processo

de recepção e de criação de empatia com o assunto focado”48.

1.3 Adaptação cinematográfica: fidelidade ou liberdade criativa?

Pelo o que até aqui foi exposto, pode-se afirmar que, do ponto de vista

estético, literatura e cinema têm suas características próprias, no que diz

respeito à natureza de suas linguagens (uma verbal e outra imagética) e

procedimentos narrativos. No entanto, em se tratando de adaptação

cinematográfica, as discussões nem sempre são pacíficas. A questão da

fidelidade do texto cinematográfico em relação ao texto original tem sido motivo

de divergências entre críticos da literatura e do cinema. Alguns argumentam a

respeito da distância semiótica entre as duas artes e condenam a falta de

fidelidade. Outros, por sua vez, argumentam que deve existir liberdade em

qualquer trabalho de criação.

Entre tantos que apoiam a adaptação cinematográfica estão os críticos

franceses Philippe Durand e André Bazin. O primeiro aconselha a adaptação

de textos literários por acreditar que romance e filme possuem a mesma

vocação (contar histórias). O segundo se apoia em dois argumentos: um de

cunho histórico – o cinema se tornou uma arte popular atingindo todas as

camadas sociais – e outro social – ao adaptar as grandes obras, o cinema

proporciona maior acesso aos clássicos, uma vez que depois da exibição dos

filmes, a venda das obras originais cresce consideravelmente49.

A respeito da noção de fidelidade, Julio Plaza afirma:

A operação tradutora como trânsito criativo de linguagens nada tem a ver com a fidelidade, pois ela cria sua própria verdade e uma relação fortemente tramada entre seus diversos momentos, ou seja, entre passado-presente-futuro, lugar-tempo onde se processa o movimento de transformação de estruturas e eventos

50.

48

MODRO, Nielson Ribeiro. Nas entrelinhas do cinema. Joinville: UNIVILLE, 2008, p.41. 49

GUALDA, Linda Catarina. Literatura cinema: elo e confronto. Matrizes, São Paulo, v. 3, n. 2, jan./jul. 2010, p. 214. 50

PLAZA, Julio. Tradução Intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 2001, p. 1.

29

Julio Plaza, em seus estudos sobre tradução intersemiótica, alerta para

o fato de que é necessário levar em consideração a questão da atualização da

obra traduzida no contexto histórico-social ao qual faz parte a tradução – aqui

estendida à adaptação. E para complementar, o crítico parafraseia Karl Marx:

“os artistas não operam de maneira arbitrária, em circunstâncias escolhidas por

eles mesmos, mas nas circunstâncias com que se encontram na sua época,

determinadas pelos fatos e as tradições”51. Portanto, artista e sua arte estão

num constante enfrentamento com a história, com a época em que vivem.

Nesse sentido, quando há filmes baseados em clássicos da literatura criados

em uma época muito distante da atual, é necessário atualizar a obra traduzida,

adequá-la ao contexto e ao gosto de um novo público.

Além disso, quando Plaza se refere à tradução como uma relação

fortemente tramada entre passado-presento-futuro, o crítico quer ressaltar que

uma tradução pode fazer “reviver” algo que estava acabado. Em outros termos,

a obra literária que será adaptada (o texto original) seria um “passado” (um livro

já lido e teoricamente esquecido) que pelo processo tradutor (a adaptação) se

firmaria como realidade no “presente” (se atualizaria), traçando possíveis

leituras para o “futuro” (trazendo novas leituras, novos olhares sobre o livro).

Portanto, a adaptação cinematográfica, sendo entendida como processo de

tradução criativa, é um processo de criação em aberto, uma vez que

acompanha a história que também se mostra inacabada. Por essas razões, a

pretensa fidelidade da obra traduzida em relação ao original cede lugar à

criatividade da equipe de produção do filme.

Em conformidade com essas ideias, Johnson afirma que “dizer que a

mesma história pode ser narrada por meios diferentes não significa dizer que a

mesma estrutura tem que ser mantida no caso de uma tradução fílmica de um

romance”52. Isso porque, segundo o autor, o discurso narrativo é “uma camada

autônoma de significação com uma estrutura que pode ser isolada da

linguagem específica que o transmite”53. Logo, a mesma história, ou narrativa,

pode ser narrada em diferentes meios (livro, filme, teatro, quadrinhos) sem

modificar sua estrutura, mas, dependendo dos meios utilizados, alterar

51

Id. Ibid., p. 5. 52

JOHNSON, Randal. Literatura e cinema – Macunaíma: do modernismo na literatura ao cinema novo. Trad. Aparecida de Godoy Johnson. São Paulo: T. A. Queiroz, 1982, p. 23. 53

Id. Ibid.

30

significações. E, ao alterar significações, “uma obra artística, seja ela romance,

conto, poema, filme, escultura ou pintura, tem de ser julgada em relação aos

valores de outro campo”54.

Nesse contexto, o campo literário e o cinematográfico possuem

diferenças e dinâmicas essenciais nas suas produções. Ao passo que o

escritor tem à sua disposição a linguagem verbal com toda sua riqueza

metafórica e figurativa, um cineasta trabalha, segundo Johnson, com pelo

menos “cinco matérias de expressão diferentes: imagens visuais, a linguagem

verbal oral (diálogo, narração e letras de música), sons não verbais (ruídos e

efeitos sonoros), música e a própria língua escrita (créditos, títulos e outras

escritas)”55. Por isso, alerta o estudioso, a diferença entre as duas artes não

pode ficar na simples distinção entre linguagem escrita e visual, como se

costuma considerar.

Além disso, o ensaísta, crítico e professor de cinema, Ismail Xavier,

ressalta que “haverá um modo de fazer certas coisas próprias ao cinema, que é

análogo ao modo como se obtêm certos efeitos no livro, „modo de fazer‟ que

diz respeito exatamente à esfera do estilo”56. Isso quer dizer que, no processo

de tradução intersemiótica, em que o cinema busca equivalências entre o signo

fílmico e o literário, uma mesma informação será expressa de maneira diversa,

ou melhor, com estilo diferente.

Esse aspecto do estilo, do “modo de fazer” que é próprio a cada arte,

está relacionado ao que afirma Fábio Messa:

Na adaptação de obras literárias para o cinema ocorrem esforços no sentido de ajustar procedimentos cinematográficos às indicações da narrativa, para que sejam obtidos determinados efeitos. Como resultado dessa operação, há tanto um aproveitamento quanto uma transformação da linguagem literária de modo a agir enquanto técnica cinematográfica

57.

54

JOHNSON, Randal. Literatura e cinema, diálogo e recriação: o caso de Vidas Secas. In: PELLEGRINI, Tânia l. Literatura, cinema e televisão. São Paulo: Editora Senac São Paulo e Instituto Itaú Cultural, 2003, p. 44. 55

Id. Ibid., p. 42. 56

XAVIER, Ismail. Do texto ao filme: a trama, a cena e a construção do olhar no cinema. In: PELLEGRINI, Tânia et al. Literatura, cinema e televisão. São Paulo: Editora Senac São Paulo e Instituto Itaú Cultural, 2003, p. 63. 57

MESSA, Fabio. O gozo estético do crime: dicção homicida na ficção contemporânea. Tubarão: Unisul, 2008, p. 202-203.

31

Para agir enquanto técnica cinematográfica, para instaurar estilo em

suas produções, o cinema necessita, segundo Messa, aproveitar e transformar

a linguagem literária. Percebe-se subjacente a essa afirmação a noção de

tradução como recriação proposta por Haroldo de Campos e retomada por

Plaza, já mencionada anteriormente. Na busca do recurso cinematográfico

mais adequado para equivaler ao signo literário, o cineasta vê-se constrangido

a projetar na obra recriada sua interpretação.

Numa perspectiva claramente antagônica àquela sustentada por Haroldo

de Campos no tocante à tradução intersemiótica, Randal Johnson alerta para o

fato de que na tradução de um texto literário para o cinema, “a autonomia total

é com certeza impossível; o texto literário funciona inevitavelmente como uma

„forma-prisão‟”58. Ao mesmo tempo em que o cineasta tem a liberdade de

desviar do modelo (texto original) ele precisa permanecer dentro do seu espaço

semântico geral. Observa-se, portanto, que o cineasta encontra-se em

permamente movimento pendular entre a liberdade total e a constrição formal.

Muitas vezes, alerta Johnson, o modelo original é reduzido a um

“subcódigo do filme, isto é, um léxico comum a certos grupos de falantes de

uma língua, porém não a todos”. O livro, para os espectadores que o leram,

funcionará como um subcódigo que auxiliará no entendimento do filme e,

também, na verificação das alterações ou transformações que foram

realizadas. Certamente, uma discussão do filme adaptado entre espectadores

que leram o livro será mais produtiva do que entre os que não o conhecem.

Entre essas discussões, principalmente entre pessoas leigas no assunto

adaptação de romance para filme, é comum haver a comparação entre os dois

campos resultando na prevalência do livro sobre o filme. Ao julgar

erroneamente a adaptação - pensar que o filme deve ser fiel ao livro - grande

parte dos telespectadores não aprova o filme porque suas expectativas

acabam sendo frustradas. A esse respeito, Hélio Guimarães tece comentários

sobre a adaptação de livros para programas televisivos que são perfeitamente

aplicáveis ao cinema. Para ele, a visão de que

58

JOHNSON, Randal. Literatura e cinema – Macunaíma: do modernismo na literatura ao cinema novo. Trad. Aparecida de Godoy Johnson. São Paulo: T. A. Queiroz, 1982, p. 10.

32

quanto mais fiel ao texto literário, melhor será o programa de TV, [e]stá subsumido [...] que a obra literária é sempre boa, ou pelo menos sempre melhor que o programa de TV [...] supõe existir uma leitura “correta” e “única” para o texto literário, cabendo ao adaptador descobrir o verdadeiro sentido do texto e transferi-lo para uma nova linguagem e um novo veículo. Essa visão nega a própria natureza do texto literário, que é a possibilidade de suscitar interpretações diversas e ganhar novos sentidos com o passar do tempo e a mudança das circunstâncias. Levada ao limite, a ideia de fidelidade supõe que o programa de TV fiel ao texto literário de alguma forma possa substituí-lo

59.

Como já se afirmou páginas acima, a linguagem literária e a

cinematográfica devem ser respeitadas e apreciadas de acordo com suas

peculiaridades, ou melhor, de acordo com o seu campo de valores. Portanto, a

nada levaria comparar uma obra literária com a fílmica no sentido de classificá-

las em “melhor” ou “pior”. Trabalhando com a noção de tradução como ato

criativo, é preciso respeitar a liberdade criativa do cineasta, aquele que

estabelece ligação entre o roteiro de um filme e a montagem.

O roteiro, “diferente de um texto literário, possui algumas características

textuais próprias, pois terá como objetivo demonstrar o que deverá ser

transformado em imagens”60. Por isso, em consonância com o que Hélio

Guimarães afirma acima, precisa-se entender que um escritor, ao criar suas

histórias, não está pensando em um roteiro para um filme. O roteirista, ao

apropriar-se de uma obra literária, irá alterar, suprimir ou incluir informações,

ações, dados, para melhor representar o signo verbal. O cineasta, por sua vez,

ao receber o roteiro, poderá também alterá-lo, conforme suas impressões do

texto original e suas interpretações a respeito dos recursos cinematográficos de

que dispõe. Portanto, escritor, roteirista e cineasta têm sensibilidades e

propósitos diferentes, por isso, um filme não pode substituir o livro.

Além disso, como alerta Geyson Bezerra Dantas, precisa-se considerar

que o roteiro:

é encarado mais enquanto item técnico da “linha de montagem” audiovisual do que propriamente criação artística, ele é o

59

GUIMARÃES, Hélio. O romance do século XIX na televisão: adaptação de Os Maias. In: PELLEGRINI, Tânia et al. Literatura, cinema e televisão. São Paulo: Editora Senac São Paulo e Instituto Itaú Cultural, 2003, p. 94-95. 60

MODRO, Nielson Ribeiro. Nas entrelinhas do cinema. Joinville: UNIVILLE, 2008, p. 48. Normalmente, segundo o autor, os principais elementos encontrados em um roteiro são os seguintes: a divisão das cenas, a narração, o diálogo e a rubrica.

33

intermediário indispensável na passagem da “literariedade” do livro para a “iconicidade” da imagem; lugar onde se dá o “ponto de viragem sígnico”: o roteiro dá condição ao signo de se integrar a um novo médium

61.

Retomando as ideias de Syd Field, autor de manual de roteiros de

grande tiragem, Dantas esclarece que, ao criar um roteiro que tem como

partida um texto já existente, será necessário ao roteirista fazer adequações e

ajustes de informações, de episódios ou diálogos contidos no texto literário.

Dessa forma, o roteiro surge como um texto novo, como texto original: “uma

adaptação deve ser vista como um roteiro original. Ela apenas começa no

romance, livro, peça, artigo ou canção. Essas são as fontes, o ponto de

partida”62.

No entanto, baseado nas informações de Di Moretti, roteirista brasileiro

com experiência em adaptação do teatro para o cinema, Dantas alerta que o

roteiro tem que respeitar o texto que toma como base, ou seja, não deve “trair”

sua ideia original. O diretor precisa também ter essas ideias esclarecidas, pois

sua liberdade de intervenção no roteiro precisa ser cautelosa. Há muitos casos

de roteiros adaptados muito bem escritos que acabam arruinados devido às

inadequadas intervenções do diretor e vice-versa. O trabalho de intervenção do

diretor no roteiro torna-se, então, “desdobramento necessário da adaptação

roteirizada, sendo no ponto final o lugar onde na maioria das vezes o filme se

resolve”63.

Assim, é por meio da montagem que esses caminhos (texto original –

roteiro – filme) irão se concretizar. O roteiro final de um filme está intimamente

relacionado à montagem, que, no entender de Fábio Messa, ao retomar o

cineasta e roteirista russo Vsevolod Pudovkin, é:

o fundamento da arte cinematográfica, um atributo essencial do cinema, que consiste em organizar e reunir uma série de fragmentos, sendo eles planos, sons e cores, de forma a adquirirem valor estético. A montagem é, então, um método para mostrar pontos de vista

61

DANTAS, Geyson Bezerra. De O matador a O homem do ano: civilização e barbárie nos (des)caminhos da adaptação da literatura para o cinema brasileiro. 2007. 178f. Dissertação (Mestrado em Letras). Universidade Federal da Paraíba: João Pessoa, 2007, p. 99. 62

Id. Ibid., p.101. 63

Id. Ibid., p.103.

34

compostos ou diversos sobre um mesmo tema, enfim, para mostrar multiplicidade

64.

Assim como o cinema utiliza-se da montagem para combinar as

sequências das imagens/cenas filmadas, diversos textos literários

contemporâneos têm utilizado este recurso. É possível, baseados no elemento

montagem e na temática da violência (no caso desta pesquisa), verificar o

cruzamento entre literatura e cinema, o diálogo entre linguagens que se

afastam e se influenciam ao mesmo tempo. No livro O matador, por exemplo,

verifica-se a presença da fragmentação e justaposição de imagens

(característica da montagem fílmica) na descrição das cenas, entre outros

aspectos da linguagem cinematográfica. Essas características têm marcado a

escrita de Patrícia Melo, assim como de vários outros escritores

contemporâneos.

Além disso, “é devido à montagem, que a arte fílmica rompe com a

narrativa linear e impõe mudanças no modo de cortar e montar um texto-filme,

criando novos ritmos e novos índices temporais”65. Os pensamentos, a

inconsistência dos padrões de tempo e a descontinuidade do enredo do

romance, equivalem aos cortes e as dissoluções das imagens do filme. Ainda,

por meio da montagem, acontecimentos podem ser justapostos para marcar a

simultaneidade dos fatos, da mesma forma que pode auxiliar na representação

de ocorrências temporais distintas.

Essas questões permitem considerarmos que em uma adaptação

cinematográfica a figura do tradutor se potencializa. Uma produção fílmica

exige mais do que somente a intervenção do cineasta ou realizador do filme.

Roteirista, figurinista, fotógrafo, cenarista entre outros componentes da

produção fílmica possuem papel importante na execução do filme. Em O

homem do ano, por exemplo, Rubem Fonseca assina o roteiro e José

Henrique Fonseca assina a direção; Dado Villas-Lobos é o responsável pela

trilha sonora; Sérgio Mekler contribui com José Henrique na execução da

montagem e Michael Semanick auxilia na mixagem. Dessa forma, podemos

considerar que, no cinema, o tradutor é dúplice ou coletivo.

64

MESSA, Fabio. O gozo estético do crime: dicção homicida na ficção contemporânea. Tubarão: Unisul, 2008, p. 203. 65

Id. Ibid., p. 204.

35

Assim, percebe-se que num processo de tradução intersemiótica, livro e

filme são obras independentes, mas intimamente relacionadas. “Como

resultado do processo transformacional [a adaptação] surge como uma

estrutura nova. No entanto, não pode ser julgada se tomada apenas como

transformação. É preciso entender que ele [o texto-novo – adaptação] surge

como seu interpretante”66. Como afirma a pesquisadora em estudos

intersemióticos Thais Flores Diniz, não basta apenas verificar as

transformações, as mudanças que ocorreram na adaptação de um livro para o

filme – apenas constatar que um personagem negro, no romance, foi

representado por um ator de pele branca no filme, por exemplo. O fundamental

é interpretar o que essas mudanças acarretam, por que razão elas foram

realizadas, com que intenções.

66

DINIZ, Thais. Flores Nogueira. A Tradução intersemiótica e o conceito de equivalência. In: IV Congresso da ABRALIC, 1995, São Paulo. Literatura e Diferença: IV Congresso da ABRALIC. São Paulo: Bartira Editora Gráfica, 1994, p. 1003.

36

2. A VIOLÊNCIA URBANA NA LITERATURA E NO CINEMA BRASILEIROS

(1990-2010)

Dependendo das condições de tempo e lugar, o trabalho artístico, subjetivo, está inserido em uma determinada cultura, que define

certos recursos, certa sensibilidade e certas formas particulares de representação.

(XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico, 2005, p. 56)

A violência é e sempre será um assunto polêmico, inquietante, que induz

o ser humano a mergulhar imaginariamente em situações que implicam medo,

agressividade, sofrimento, injustiça, tragédia, conflito. Sem dúvida, é um tema

importante para se pensar o mundo. Segundo Carlos Alberto Pereira, a

violência “sempre esteve presente em qualquer coletividade, pois a luta e a

disputa são o fundamento de qualquer relação social”67. Por tal razão, é

possível considerá-la como uma das peças fundamentais na dinâmica das

sociedades, uma vez que é uma forma de “linguagem/comunicação, estando

relacionada às diferenças, à heterogeneidade presente em cada sociedade”68.

Mas como definir “violência”, um vocábulo tão abrangente e complexo?

Derivada do latim violentia, a palavra “violência” implica “arrebatamento,

caráter violento, ferocidade, rigor, severidade”69. Dessa forma, pode ser

definida como “qualidade ou efeito do que é violento; ação ou efeito de

violentar, de empregar força física contra (alguém ou algo) ou intimidação

moral contra (alguém); ato violento, crueldade, força”70.

Como se percebe, a violência pode se manifestar de diferentes formas,

abrindo um grande leque de possibilidades de classificação: violência física e

psicológica, violência sexual, violência doméstica, violência contra crianças e

adolescentes, violência contra a mulher, violência contra o idoso, violência no

67 PEREIRA, Carlos Alberto Messeder et al (Org.). Linguagens da violência. Rio de Janeiro: Rocco, 2000, p. 22. 68 HERSCHAMANN, Micael. Imagens das galeras funk na imprensa. In: PEREIRA, Carlos Alberto Messeder et al (Org.). Linguagens da violência. Rio de Janeiro: Rocco, 2000, p. 169. 69 HOUAISS, Antônio. Grande dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2008, p. 2866. 70 Id. Ibid.,

37

trabalho e violência no trânsito, por exemplo. Nessa perspectiva, inclui-se

nessa classificação a violência urbana, objeto de particular interesse no

presente estudo, uma vez que é por intermédio dessa temática que se busca

analisar o processo de transcriação do livro O matador para o filme O homem

do ano.

Embora a violência urbana, de certa maneira, abarque muitas das

formas anteriormente mencionadas, ela traz algumas características que a

diferenciam das demais – manifesta-se no alto índice de criminalidade e na

infração dos códigos elementares de convívio no espaço urbano. Entende-se

como violência urbana o fenômeno social que se traduz por um comportamento

deliberadamente transgressor e agressivo decorrente do convívio no espaço

urbano. Ela é determinada por valores sociais, culturais, econômicos, políticos

e morais de uma sociedade.71

Estudos e pesquisas revelam que as manifestações mais extremadas da

violência urbana ocorrem em sociedades nas quais há uma tradição cultural de

violência e acentuada divisões étnicas, sociais e econômicas. Um país como o

Brasil pode ser tomado como exemplo, uma vez que, historicamente, suas

relações sociais são marcadas pela violência, desigualdade e exclusão da

grande maioria da população.72 Desde a sua colonização, o Brasil foi marcado

por violentas disputas de poder, jugo e dominação, por lutas intestinas,

conflitos e discriminação, afetando todas as camadas sociais. O último quartel

do século XX marca-se pelo crescimento vertiginoso da violência no país,

resultado de um processo histórico iniciado com o extermínio dos indígenas

quando da chegada dos colonizadores europeus.

Além disso, em nosso país, os mecanismos de controle social, político e

jurídico funcionam apenas parcialmente; inevitavelmente, colaboram para o

rápido crescimento da violência urbana. Essa realidade afeta, principalmente,

os grandes centros urbanos, onde se percebem muitos dos atos criminosos de

maior gravidade, como assassinatos, linchamentos, assaltos, tráfico de drogas,

disputas armadas entre quadrilhas rivais. E, para completar, a fragilidade das

71Informação veiculada pelo projeto Renasce Brasil, baseado no livro Renasce Brasil, do autor

Valvim M. Dutra. Disponível em: <http://www. renascebrasil. com.br/f_violencia2. htm>. 72OLIVEIRA, Dinis de; NOGUEIRA, Silas (Org.). Mídia, cultura e violência: leituras do real e

da representação na sociedade midiatizada. São Paulo: Cellac, 2009, p. 37.

38

instituições empresariais e/ou governamentais brasileiras permite que a

corrupção alimente, desmedidamente, as ações criminosas ou violentas.

No entanto, é preciso ressaltar, conforme um esclarecedor estudo da

professora e pesquisadora Marcia Regina da Costa, que a “crueldade, a frieza

e a indiferença pela vida não são próprias da sociedade brasileira, mas uma

possibilidade presente em todas ou em quase todas as sociedades de nosso

planeta no fim do século XX”73 e nesse início de século. O processo de

globalização trouxe profundas mudanças no sistema mundial. “A própria

redefinição do papel do Estado e de suas atribuições tradicionais estaria

relacionada às transformações decorrentes desse processo. Além da

economia, também o crime se globalizou. Exemplo são os cartéis de drogas e

armas que atuam em escala planetária”74.

No Brasil, o tema da violência urbana torna-se, cada vez mais, objeto de

preocupação nacional. Críticos e estudiosos a respeito do assunto no país,

entre eles Carlos Alberto Pereira75, analisam a violência como uma dimensão

bastante explícita do cotidiano social, e também um dado de fundamental

importância para o entendimento da dinâmica cultural brasileira. Se nos

reportarmos ao passado, veremos que cidades como o Rio de Janeiro e São

Paulo, em fins da década de 60 e 70, tornam-se manchetes de notícias de

jornais que atribuem especial atenção a crimes urbanos. Como se não

bastasse a violência policial e política do governo ditatorial, a população sofre

com o auge do “esquadrão da morte”76. Os anos 70 veem crimes graves como

assaltos brutais, tráfico de drogas e de armas, extermínios, homicídios e

chacinas, praticados por policiais, bandidos ou pessoas comuns, multiplicarem-

se assustadoramente. Mesmo com o fim do regime ditatorial e com a

consolidação do processo democrático, a década de 1980 (a célebre “década

73COSTA, Márcia Regina da. A violência urbana é particularidade da sociedade brasileira? São Paulo em Perspectiva, São Paulo, vol. 4, n. 13, 1999, p. 11. 74Id. Ibid., p. 8. 75 PEREIRA, Carlos Alberto Messeder et al. (Org.). Linguagens da violência. Rio de Janeiro: Rocco, 2000, p. 121. 76 O “esquadrão da morte” surgiu em fins dos anos 50, no Rio de Janeiro. Seus integrantes eram policiais da polícia civil que, no início, tentaram justificar sua ação homicida como uma verdadeira missão de limpeza da sociedade de criminosos indesejáveis. No entanto, aos poucos, os membros do esquadrão envolveram-se com quadrilhas de criminosos, grupos de extermínio e delitos de todos os tipos. Em 1968, o esquadrão da morte passou a atuar em São Paulo”. In: COSTA, Márcia Regina da. A violência urbana é particularidade da sociedade brasileira? São Paulo em Perspectiva, São Paulo, vol. 4, n. 13, 1999, p. 11.

39

perdida”) perdeu a oportunidade de atenuar essa situação; na verdade, a

violência permaneceu em patamares mais que preocupantes.

Nesse contexto, na década de 1990, “o sentimento das pessoas que

vivem nas cidades brasileiras é de medo e perplexidade diante da brutalidade

de muitos crimes, assaltos e homicídios. Mas o grande espanto é com a

aparente frieza e ausência de limites de muitos criminosos que praticam tais

atos”77. Como exemplo, Márcia Regina da Costa cita o fato extremo que

aconteceu em Brasília, no ano de 1999, quando jovens de classe média alta

atearam fogo ao corpo de um indígena Pataxó que dormia nas ruas da cidade.

Também menciona a situação das pessoas que vivem em bairros populares

das cidades brasileiras, como o caso dos moradores da periferia de São Paulo

que, nos anos 80, viram suas vidas transformadas pelo aumento indiscriminado

da violência. Um dos eventos que traduz bem essa situação, afirma a autora:

é a história das gangues do “Bronx” e dos “Ninjas”, que atuaram entre 1993 e 1998, no Jardim Ângela, na zona sul da cidade de São Paulo. Em 1992, um ex-policial militar do bairro resolveu formar uma “guarda-mirim” reunindo adolescentes, e os ensinou a atirar para que defendessem a população da região, tentando mantê-los afastados dos traficantes de drogas. Entretanto, acabou sendo assassinado por um dos integrantes da guarda, que se transformou na gangue do Bronx, nome inspirado nos filmes norte-americanos vistos pelos garotos. Especializados em tráfico de drogas e cobrança de pedágio de moradores e comerciantes da região, os membros da gangue mataram, entre 1993 a 1997, segundo levantamento oficial da polícia, 136 pessoas. Com a prisão de suas principais lideranças, um outro grupo, também formado por adolescentes e jovens, ocupou seu lugar, passando a disputar à bala os pontos de venda de drogas da região. Apenas em 1998, os Ninjas mataram 22 pessoas78.

A década de 1990 foi marcada pelo recrudescimento da violência. O Rio

de Janeiro, carinhosamente chamado de “cidade maravilhosa”, torna-se palco

de chacinas como a de Acari, Vigário Geral e Candelária, dos “arrastões” nas

praias e do sequestro ao ônibus 174, em 2000. A beleza da cidade ofusca-se,

enquanto o medo e a insegurança, mais do que nunca, apoderam-se do

cotidiano das pessoas.

77COSTA, Márcia Regina da. A violência urbana é particularidade da sociedade brasileira? São Paulo em Perspectiva, São Paulo, vol. 4, n. 13, 1999, p. 3. 78Id. Ibid.

40

FIGURA 3 – Chacina da Candelária FIGURA 4 – Chacina de Vigário Geral

Além desses, muitos outros episódios poderiam ser citados como

exemplos para retratar o quadro assustador da violência que, como uma

epidemia, tem maltratado a população brasileira. São assustadores os

resultados das pesquisas destinadas a verificar os índices de violência entre os

anos de 1980 a 2000. Nesse período, conforme a Síntese de Indicadores

Sociais, documento preparado para a Câmara dos Deputados e divulgado em

abril de 2004, 600 mil brasileiros foram assassinados79.

Os homicídios, na década de 1990, assumiram o primeiro lugar entre as

mortes resultantes de causas externas (ou fatores externos ao organismo

humano: lesões, envenenamentos, acidentes e violência física) – quase 40%.

Segundo estudos de Luciana da Silva Teixeira, entre 1990 e 2000, os

homicídios foram responsáveis por 401.090 óbitos no Brasil e são a principal

causa de morte para jovens entre 15 e 19 anos, sobretudo entre homens. Vale

sublinhar que, entre 1992 e 1998, a proporção de mortes por causas violentas

(homicídios, suicídios e acidentes de trânsito) entre adolescentes e jovens,

nessa mesma faixa etária, subiu de 63% para 68%. Em 1998, as maiores taxas

foram registradas em São Paulo (77,4%), Pernambuco (74,7%), Distrito

Federal (74,0%), Rio de Janeiro (73,7%) e Espírito Santo (73,3%)80, revelando

79

TEIXEIRA, Luciana da Silva. Determinantes da violência no Brasil. Consultoria Legislativa,

Brasília, nov. 2004. Disponível em: <http://bd.camara.gov.br/bd/bitstream/handle/bdcamara/1221/determinantes_violencia_teixeira.pdf?sequence=1>. 80 Dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), através do texto Brasil termina o século com mudanças sociais, como síntese dos indicadores sociais,

41

que é nos grandes centros urbanos que os moradores ficam mais expostos a

ataques violentos81.

Para complementar, pode-se citar o mapa da violência divulgado pelo

Ministério da Justiça, a partir de um levantamento feito pelo Instituto Sangari, o

qual revela que a taxa de homicídios entre os jovens de 15 a 24 anos cresceu

de 30 para 52,9 por 100 mil habitantes entre 1980 e 2008. Esse aumento nas

mortes por homicídio, suicídio e acidentes de trânsito entre adolescentes,

desde a década de 1980, é chamado pelo sociólogo Julio Jacobo Wailselfisz,

coordenador do estudo, de “novo padrão de mortalidade juvenil”82. E ainda, de

acordo com Edinilza Ramos Souza e Maria Luiza Carvalho, dados do Ministério

da Saúde informam que o Brasil passou de 59,0 mortes por causa externas por

100 mil habitantes na década de 1980, para 72,5 em 2002. Somente em 2001,

foram registrados 46. 685 homicídios, a maior parte causada pelo uso de

armas de fogo (71,5%). Desse total, 89% ocorreram na faixa etária de 15 a 49

anos. “Em 2003, 51. 043 brasileiros foram assassinados. Foram quase 140

mortes por dia!”83, relatam as pesquisadoras. Essas estatísticas mostram “que

as taxas de mortes, por causas violentas nos principais centros urbanos

brasileiros, estão entre as mais altas do continente americano, expressando

uma tendência de crescimento que desde a década de 1980 vem se

acentuando”84.

Mas quais são os fatores que contribuem para a escalada da violência

ao longo das últimas décadas? Segundo Luciana da Silva Teixeira, uma

pesquisa (realizada em março de 2004 para a Datafolha) revelou que, para

metade dos brasileiros, o desemprego é o principal problema do país, seguido

da miséria e da violência. No mesmo ano, o Instituto de Pesquisa Econômica

Aplicada (IPEA) constatou que, “quanto maior o grau de desestruturação social,

elaborado pelo departamento de Comunicação Social, em 4 de abril de 2001. Disponível em: <htttp://www. ibge. gov.br/home/presidencia/noticias/0404sintese. shtm>. 81 TEIXEIRA, Luciana da Silva. Determinantes da violência no Brasil. Consultoria Legislativa, Brasília, nov. 2004, p. 5. 82 CUNHA, Diógenes Marques. Mapa da violência no Brasil. Primeiro Jornal, 24 fev. 2011. Disponível em: <http://noticias. primeirojornal. com.br/index. php?option=com_content&view=article&id=1235%3Amapa-da-violencia-no-brasil&Itemid=153&catid=150%3Ahomicidios>. 83 SOUZA, Edimilsa Ramos de; LIMA, Maria Luiza Carvalho. Panorama da violência urbana no Brasil e suas capitais. Ciência & Saúde Coletiva, n. Sup., vol. 11, 2007, p. 1212. 84 Id. Ibid.,

42

menor o valor atribuído à vida, o que resulta em uma taxa de homicídios maior

para uma certa região”85.

O desemprego seria uma das consequências dessa desestruturação

social; mas, por si só, ele não basta para justificar a criminalidade. Estudos

revelam que outros fatores como desigualdade de renda, o tamanho dos

municípios e sua localização espacial (proximidade a localidades violentas),

podem também explicar a violência.

Por outro lado, de acordo com Edimilsa Ramos de Souza e Maria Luiza

Carvalho, “a desestruturação familiar, o sentimento de frustração e uma busca

desenfreada de padrões sociais apresentados como possíveis em um mundo

de consumo se acirram principalmente nos grandes centros urbanos e

contribuem para a delinquência e a violência”86.

Como se percebe, cada vez mais a violência difusa provém dos mais

inesperados lugares e surpreende os indivíduos, pois, conforme Carlos Alberto

Pereira, alcança todos os segmentos sociais e manifesta-se em praticamente

qualquer contexto, ganhando assim “um ar um tanto assustador”87. Ela afeta a

população de modo assimétrico, gerando riscos que incidem de forma desigual

em função de gênero, idade, renda, grupo étnico, local de residência ou

trabalho.

A aceitação ou acomodação social diante da violação constante das

normas jurídicas e do desrespeito à cidadania são comportamentos que

também contribuem para a escalada da violência. É comum, na sociedade

brasileira, a aceitação passiva tanto da violência dos agentes do Estado contra

as pessoas mais pobres quanto o descompromisso do indivíduo com as regras

de convívio. Ficam impunes, por exemplo, o uso da tortura pela polícia como

método de investigação, a incompetência administrativa, os crimes do

chamado “colarinho branco”, as infrações de trânsito e a imperícia profissional.

Pelo descrédito dos órgãos de segurança e administração do país, é natural a

população aprovar uma punição violenta sem chances de julgamento. Não se

pode esquecer ainda outro grande vilão que faz parte desta lista de fatores que

85 TEIXEIRA, Luciana da Silva. Determinantes da violência no Brasil. Consultoria Legislativa,

Brasília, nov. 2004, p. 6. 86SOUZA, Edimilsa Ramos de; LIMA, Maria Luiza Carvalho. Panorama da violência urbana no Brasil e suas capitais. Ciência & Saúde Coletiva, n. Sup., vol. 11, 2007, p. 1221. 87 PEREIRA, Carlos Alberto Messeder et al. (Org.). Linguagens da violência. Rio de Janeiro:

Rocco, 2000, p. 121.

43

contribuem para o aumento da criminalidade: a corrupção, fator que inúmeras

vezes tem sido manchete de notícias que divulgam ou denunciam ações ilegais

praticadas por políticos, policiais, funcionários de órgãos públicos, empresários,

entre outras pessoas.

Dessa forma, a insegurança, o medo, a desconfiança, são sensações

comuns no cotidiano de cada indivíduo, à mercê de perigos visíveis e invisíveis

que permeiam essa “selva urbana” em que se vive. Mais do que nunca, a

violência tornou-se um tema de debate nacional, um problema de saúde

pública. Assim, “a importância que o fenômeno da violência tem na dinâmica

cultural contemporânea se reflete nas artes – literatura, cinema e assim por

diante, – na mídia e no cotidiano mais amplo dos agentes sociais onde sua

presença é frequente e bastante expressiva”88. Consolida-se uma literatura que

podemos qualificar como factualista, ou seja, uma literatura que busca

representar – tanto quanto possível, com relativa fidelidade – fatos do universo

cotidiano. Dessa forma, no presente estudo, consideramos a noção de

“realismo” como sinônimo de “factualismo”, evitando assim, a ambiguidade que

o termo “realismo” pode provocar, em função do seu emprego na história da

literatura e na crítica cinematográfica.

Se, como afirmamos no início deste capítulo, a violência está presente

em qualquer sociedade e faz parte de sua dinâmica, é inegável, conforme

sublinha Pelegrini, que a “violência surge como constitutiva da cultura

brasileira, como um elemento fundador a partir do qual se organiza a própria

ordem social e, como consequência, a experiência criativa e a expressão

simbólica”89. Compartilhando das mesmas ideias, Pereira argumenta que no

plano da linguagem e das representações – neste estudo, literatura e cinema –

a violência revela-se como enunciação genuína e às vezes legítima de conflitos

vivenciados no dia a dia da vida social”90. Em outras palavras, os desequilíbrios

e instabilidades sociais, a opressão física e psicológica do cotidiano, o

exercício invasivo de qualquer poder, o (sub)mundo da marginalidade, a fúria

que explode em todos os tipos de relações, são temas que seduzem escritores

88Id. Ibid., p. 15. 89 PELEGRINI, Tânia. As vozes da violência na cultura brasileira contemporânea. In: Crítica marxista, Rio de Janeiro, n. 21, 2005, p. 134. 90 PEREIRA, Carlos Alberto Messeder et al. (Org.). Linguagens da violência. Rio de Janeiro:

Rocco, 2000, p. 15-16.

44

e cineastas. No mais das vezes, esses artistas entregam-se a uma abordagem

direta, crua e simbolicamente agressiva das consequências da violência.

2.1 A violência na literatura

Uma investigação sobre a forma de expressão da violência na arte

literária, tanto em prosa como em poesia, revela diferentes ramificações para o

tema: a conquista, a ocupação e a colonização do território; o extermínio dos

indígenas; a escravidão; as lutas pela independência; os levantes regionais; a

formação das cidades e dos latifúndios; os conturbados processos de

industrialização; o imperialismo; a ditadura... Por esse viés, a literatura

representa e denuncia o seu tempo.

Esses temas distribuem-se conforme a já clássica nomenclatura

“literatura urbana” e “literatura regional”, que sempre estiveram presentes

desde a formação da literatura brasileira e que, segundo Tânia Pellegrini91, em

decorrência da industrialização do país, a partir da década de 1960, têm se

enfraquecido, abrindo espaço para diversas temáticas de cunho urbano. Assim,

ao longo da história da literatura brasileira, o cenário para o tema da violência

foi inicialmente o interior, o campo, o sertão; e, mais recentemente, transferiu-

se para o espaço urbano.

Com a industrialização e a expansão das cidades, o êxodo rural

sobrecarrega o espaço urbano, faveliza as periferias, produz legiões de

excluídos que rapidamente se tornam marginais. A população rural, atraída

pelas cidades, vê, assim, seus valores, usos e costumes sendo enfraquecidos

por outros que a eles se sobrepõem. Isso vai dar força à ficção centrada na

vida dos grandes centros urbanos, que populacionalmente crescem e se

deterioram. Consequentemente, “aos poucos vão ficando raros os temas

ligados à terra, à natureza, ao misticismo, ao clã familiar, ao sincretismo

religioso”92. A violência, constitutiva do espaço urbano, a partir do anos 1960,

91 PELLEGRINI, Tânia. A ficção brasileira hoje: os caminhos da cidade. Revista de Filología Románica, Madrid, n. 19, p. 355-370, 2002. 92Id. Ibid., p. 358.

45

começa a ser simbolizada por autores como João Antônio, Dalton Trevisan e

Rubem Fonseca. Enquanto o primeiro tematiza e mapeia a marginalidade das

ruas de São Paulo, o segundo escreve sobre Curitiba e o terceiro sobre o Rio

de Janeiro.

Para o crítico literário Antonio Candido, o escritor João Antônio (estreia

em 1963, com a coletânea Malagueta, perus e bacanaço) e Rubem Fonseca

(estreia em 1963, com Os prisioneiros) foram os propulsores do que ele

chama de “realismo feroz”. Para Candido, esses escritores:

agride[m] o leitor pela violência, não apenas dos temas, mas dos recursos técnicos – fundindo ser e ato na eficácia de uma fala magistral em primeira pessoa, propondo soluções alternativas na sequência da narração, avançando as fronteiras da literatura no rumo duma espécie de notícia crua da vida93.

Esse “realismo feroz”, segundo o crítico, revela-se mais intenso nas

narrativas em primeira pessoa, quando a “brutalidade da situação é transmitida

pela brutalidade do seu agente (personagem)”94. Dominante na ficção brasileira

atual, a narrativa em primeira pessoa é uma estratégia utilizada para impor

força, vigor ao texto e apagar a distância entre o escritor e a matéria narrada,

ambientada em espaço popular. Para tanto, o escritor renuncia ao realismo

tradicional e à narração em terceira pessoa.

Mestre do conto, Rubem Fonseca continua sendo o grande

representante dessa vertente brutalista95, tematizando a violência que atinge as

diferentes camadas da pirâmide social. Bandidos, mendigos, prostitutas e

policiais corruptos povoam as narrativas de Fonseca que, com uma linguagem

enxuta, direta, comunicativa, e muitas vezes, chocante, retrata o submundo

carioca com suas tragédias cotidianas. No entanto, destaca Erik

Schøllhammer, a tendência brutalista na literatura brasileira não possui

intenção de legitimar a crua realidade dos submundos cariocas. “Ao contrário,

[...] ao representar uma realidade inaceitável, do ponto de vista ético ou

93 CANDIDO, Antonio. A nova narrativa. In: ____. Educação pela noite e outros ensaios. 2. ed. São Paulo: Ática, 1989, p. 211. 94Id. Ibid., p. 212. 95 Termo usado por Alfredo Bosi no texto “Situação e formas do contemporâneo”, citado por SCHØLLHAMMER , Karl Erik. Os cenários urbanos da violência na literatura brasileira. In: PEREIRA, Carlos Alberto Messeder et al (Org.). Linguagens da violência. Rio de Janeiro: Rocco, 2000, p. 243.

46

político, abre um diálogo com seu conteúdo desarticulado, permitindo assim

enxergar uma procura de comunicação abafada culturalmente”96.

São muitos os escritores que seguiram os passos de Rubem Fonseca e

que procuram, cada um a seu modo, explorar os marginalizados da sociedade.

Nos anos 1990, surgem muitos escritores dispostos a retratar ou desnudar a

“crueza humana”, a trazer para sua prosa temas do cotidiano, demonstrando

que seus textos buscam revelar novas facetas do universo cotidiano. Marçal

Aquino (O invasor, 2002), Fernando Bonassi (Um céu de estrelas, 1991) e

Patrícia Melo (O matador, 1995) revelam a tragédia da violência urbana; André

Sant‟Anna (A amor e outras histórias, 2001) e Marcelo Mirisola (O herói

devolvido, 2000) desvelam o cinismo e a hipocrisia da sociedade; Nelson de

Oliveira (Naquela época tínhamos um gato, 1998), o inverossímil da

realidade e Luiz Ruffato (Histórias de remorsos e rancores, 1998), os dramas

dos personagens que vivem na miséria atual97. E não se pode esquecer ainda

de Paulo Lins (Cidade de Deus, 1997), Dráuzio Varela (Estação Carandiru,

1999), Luiz Alberto Mendes (Memórias de um sobrevivente, 2001) e

Reginaldo Ferreira da Silva – Férrez – (Capão pecado, 2005), escritores que

em suas obras também trazem recortes extremos da torpeza humana98.

Embora todos esses escritores exponham em seus textos “marcas

demasiadamente cruéis da nossa cultura, tais como a violência, a fome e o

desemprego”99, Schøllhammer e Levy sublinham que há diferenças

significativas entre as suas propostas estéticas. Enquanto alguns buscam o

que os autores denominam de “realismo representativo”, outros procuram um

“realismo afetivo”. O primeiro, relacionado ao realismo histórico, tradicional,

está vinculado à mimesis, à criação da imagem verossímil, a uma estética do

efeito. “Nesse caso, a ideia subjacente é que a arte, ao se colocar de forma

mais objetiva possível, é capaz de representar o real „tal qual é‟ e de assim

criar a ilusão da realidade”100. O segundo, por outro lado, “ao invés de constituir

96SCHØLLHAMMER , Karl Erik. Os cenários urbanos da violência na literatura brasileira. In: PEREIRA, Carlos Alberto Messeder et al (Org.). Linguagens da violência. Rio de Janeiro: Rocco, 2000, p. 257. 97Id. Ibid., p. 18 98 DIAS, Ângela. Cruéis paisagens: literatura brasileira e cultura contemporânea. Niterói: Editora da Universidade Federal Fluminense, 2007, p. 15. 99 LEVY, Tatiana Salem; SCHØLLHAMMER, Karl Erik. Os novos realismos da cultura do espetáculo. ECO-PÓS, Rio de Janeiro, v. 5, n. 2, 2002, p. 16. 100Id. Ibid., p. 16-17.

47

um retrato que se quer fiel ao mundo extratextual, acentua a realidade do

próprio texto literário, criando uma experiência afetiva da realidade aludida e

indicada”. No “realismo afetivo”, a realidade não está na verossimilhança da

descrição, mas no efeito estético da leitura, que envolve o leitor afetivamente

na realidade da narrativa.

Buscando estratégias diferenciadas no modo de trabalhar com a

linguagem, muitos dos escritores acima referidos têm inovado na maneira de

representar o mundo – suas estratégias de realismo acentuam a experiência

sensível/ emotiva do mundo factual. Nas análises de Schøllhammer e Levy, tais

autores “evidenciam o lado cruel do real, não pelo excesso de descrições, mas,

ao contrário, por sua escassez”101. Em outras palavras, pode-se afirmar que há

uma transformação das formas representativas do universo cotidiano e das

técnicas modernas do efeito chocante, do grotesco e do escândalo. O desafio

literário se coloca em termos de uma estética do afeto – o surgimento de um

estímulo imaginativo que liga a ética diretamente à estética102. Para além da

questão “o que é isso?”, em relação ao que está sendo representado, outra

surge: “como me porto em relação a isso?” – e é esta última que, de fato,

mostra-se como um desafio ao leitor, como um estímulo para que possa

entregar-se ao desconhecido, a um mundo que, ao poucos, vai sendo

descoberto de maneira nova, nunca antes pensada ou analisada – e, de certa

forma, desafiando-o a pensar sobre sua ação existencial.

A questão da violência urbana vem alinhavada a um reconhecimento

das diferenças e desigualdades sociais e, nesse sentido, a escritora paulista

Patrícia Melo tem se destacado no cenário nacional e internacional por

conseguir traduzir a velocidade dos acontecimentos e a violência das grandes

metrópoles em arte; e, ainda, por dedicar seus livros a desvelar a situação dos

indivíduos marginalizados socialmente. Ao estilo de Rubem Fonseca, espécie

de mentor intelectual da escritora, Patrícia Melo estreou em ficção no ano de

1994 (com Aqua toffana) e demonstra um grande domínio da linguagem

literária, numa prosa ágil, irônica e marcada pelo humor ácido, principalmente

no que tange ao assunto polêmico da violência. Entre seus livros, destacam-se

O matador (1995), Inferno (2000, Prêmio Jabuti de Literatura, no ano de

101Id. Ibid., p. 18. 102Id. Ibid., p. 15-16.

48

2001), Mundo perdido (2006); e o mais recente, Jonas, o copromanta

(2008). Com obras traduzidas para diversas línguas, a autora é também

roteirista de cinema, teatro e televisão. Seu livro O matador foi adaptado para

o cinema, em 2003, com roteiro de Rubem Fonseca, tendo como título O

homem do ano.

Vale ressaltar que o texto de Patrícia Melo revela-se como uma possível

exceção ao convencionalismo. Geralmente, a escrita feminina apresenta

aquela preocupação quase exclusiva com temáticas memorialistas e

autobiográficas, tais como corpo, casa, maternidade, infância – enfim,

elementos que se inscrevem no universo do lar e do eu. No caso de Patrícia

Melo, encontramos um universo totalmente diferente, permeado por uma

linguagem corrosiva, agressiva, despudorada. Chama a atenção do leitor a

habilidade que a escritora demonstra em seus eficazes retratos do universo

masculino.

Nessa perspectiva, é importante atentar para o fato de que “a cadência

da linguagem na narrativa contemporânea, composta, muitas vezes, de frases

curtas e incisivas, faz com que os ficcionistas incorporem ao próprio modo de

narrar a tensão e o horror do que se narra”103. Em função da sua comunicação

literária, é possível perceber que a prosa de Patrícia Melo é um meio eficiente

de apreensão ficcional “demasiadamente humana” da violência, e também

como uma reelaboração dessa realidade – como é também a prosa de

Fonseca, seu mestre.

Segundo Fábio Messa, como a temática de Rubem Fonseca e Patrícia

Melo geralmente se atém ao crime, os valores neles evidenciados referem-se à

transgressão de regras e valores compartilhados pela sociedade. Em outras

palavras, a linguagem violenta empregada pelos escritores – oscilando entre o

penumbrismo e a objetividade – é também reflexiva:

Rubem Fonseca, assim como Patrícia Melo, não vivem o crime, a transgressão, mas são historiadores do crime, do homicídio. Violência, prazer e aventura aparecem „historiados‟ em sua obra, pressupondo um intervalo entre o relato e experiência de vida, mesmo que o narrador tente camuflar essa distância104.

103Id. Ibid., p. 16. 104 MESSA, Fabio. O gozo estético do crime: dicção homicida na ficção contemporânea.

Tubarão: Unisul, 2008, p. 92.

49

Nesse sentido, vale destacar as ideias de Schøllhamer, quando afirma

que “comunicar a violência é uma maneira não de divulgar a violência, mas de

ressimbolizá-la”105. Certamente, muitos dos leitores dos textos de Melo e

Fonseca, se tornarão seres humanos mais sensibilizados com relação ao

universo do subúrbio, aos indivíduos a quem a sociedade negou dignidade.

Esses artistas, a partir de seu imaginário e por meios estéticos, articulam um

novo espaço comunicativo para a compreensão da violência. Como não causar

estranheza o fato de um pai de família ser um assassino compulsivo? (como é

o caso do protagonista do conto “Passeio noturno”, de Rubem Fonseca) Ou

um dentista, como o Dr. Carvalho, de O matador, contratar um assassino de

aluguel para “limpar a sujeira” da sociedade? Como se percebe, nem sempre

os criminosos vivem na pobreza ou à margem da sociedade; muitas vezes,

estão confortavelmente instalados em consultórios, condomínios de luxo ou

famílias bem estruturadas. Enfim, ressimbolizar e historiografar a violência

(tarefa a que se comprometem Melo, Fonseca e tantos outros escritores da

atualidade) é proporcionar ao leitor a possibilidade de pensar a violência sob

novas perspectivas, enxergar aspectos até então excluídos, “superar o silêncio

da não-comunicação violenta”106.

Para tanto, escritores valem-se de recursos estéticos para comunicar a

violência narrativa do texto. Entre eles podemos destacar a narração em

primeira pessoa, a escolha de vocábulos que fazem parte de um mesmo

campo semântico e cuja sonoridade é cadenciada pelo uso de aliterações e

assonâncias; a fragmentação dos períodos e das cenas descritas (linguagem

cinematográfica); a construção de capítulos curtos.

2.2 A violência no cinema

Assim como a literatura, o cinema, em sua diversidade expressiva,

desvela novos universos e contribui para que o ser humano abrigue-se diante

da crueldade da vida. Por esse viés, vale retomar as palavras do crítico de

cinema Luiz Zanin Oricchio:

105 SCHØLLHAMMER, Karl Erik. Os cenários urbanos da violência na literatura brasileira. In: PEREIRA, Carlos Alberto Messeder et al (Org.). Linguagens da violência. Rio de Janeiro: Rocco, 2000, p. 252. 106 Id. Ibid.

50

O crime é uma suposta regra do funcionamento normal da sociedade. E, como se sabe, muitas vezes o estudo da exceção é o melhor caminho para compreensão da norma. O cinema não seria, nesse ponto, diferente da literatura, e filmes sobre crimes despertaram interesse desde os primórdios da arte cinematográfica107.

Conforme Daniel Caetano, crítico cinematográfico, roteirista e cineasta,

“é sempre problemático tentar achar a unidade, tentar definir os contornos de

um fenômeno tão abrangente quanto o cinema feito em um país ao longo de

uma década”108. Considerando-se que esta pesquisa procura investigar a

produção cinematográfica dos anos 1990-2010, especialmente no que tange à

temática da violência urbana, a asserção de Caetano revela-se bastante

produtiva.

Ao revisar a produção cinematográfica do período proposto,

inevitavelmente somos levados a buscar compreender o que é o “Cinema da

Retomada”. Ao tomar posse em 1990, o presidente Fernando Collor de Mello

extinguiu alguns órgãos fomentadores da produção e distribuição de filmes

brasileiros, como a Embrafilme109, o Concine e a Fundação do Cinema

Brasileiro. Segundo o crítico cinematográfico Luiz Zanin Oricchio, nada foi

criado para suprir a função dos órgãos extintos, e o cinema nacional acabou

ficando “ao sabor do mercado, conforme rezava os dogmas das políticas

107 ORICCHIO, Luiz Zanin. Cinema de novo: um balanço crítico da retomada. São Paulo:

Estação Liberdade, 2003, p. 28. 108 CAETANO, Daniel (Org.). Cinema brasileiro 1995-2005: ensaios sobre uma década. Rio de

Janeiro: Azougue, 2005, p. 38. 109 “A Embrafilme (Empresa Brasileira de Filmes S/A) foi criada pela Ditadura Militar, em 1969,

como órgão de cooperação do Instituto Nacional de Cinema (INC) com objetivo de distribuir e promover filmes nacionais no exterior. Em 1975, a empresa sofreu um redirecionamento, tornando-se mais ágil para a disputa no mercado cinematográfico, começando a produzir e distribuir filmes brasileiros. Durante os anos seguintes seu sucesso foi expressivo, tendo conquistado cerca de 40% do mercado, incomodando as companhias norte-americanas a ponto delas recorrerem a pressões diplomáticas a fim de pressionar o governo brasileiro a abrandar o perfil protecionista da política cinematográfica adotada [...]. A crise econômica dos anos 80 e a incapacidade do Estado em ampliar os investimentos na Embrafilme foram, aos poucos, tornando a empresa incapaz de competir e regular o mercado cinematográfico. Além disso, setores da sociedade civil estavam incomodados com a interferência do Estado na economia e a imprensa, influenciada pela ideologia neoliberal, criticava as ações do governo na cultura, considerando-as protecionistas”. Aos poucos então, a Embrafilme foi enfraquecendo e Fernando Collor de Mello, ao extingui-la, no início de seu mandato, acabou com um processo que já há tempo estava em curso. Informação disponível no blog intitulado Caleidoscópio, de autoria da jornalista e professora Larissa Herbst, da PUC-SP e suas alunas Cyntia Calhado e Camila Fink. Entre seus comentários sobre cinema está o texto: “Os anos 90 e o modelo de incentivo cultural pós-Embrafilme”. Disponível em: <http://www. cinecaleidoscopio. com.br/anos_90_modelo_de_incentivo_cultural. html>.

51

neoliberais, na época no apogeu do seu prestígio”110. Dessa forma, cinema e

cultura assumem o papel de mercadorias como outras quaisquer, e encerrou-

se um ciclo da história cinematográfica brasileira:

Um dos principais efeitos do desmonte da estrutura institucional do cinema brasileiro, em 1990, foi a paralisação quase total da produção de filmes nacionais de longa-metragem, pela inexistência de mecanismos oficiais de fomento e financiamento aos produtores e realizadores. Para ter dimensão do que significou esta medida governamental, basta comparar a produção dos anos 70, de 100 filmes por ano, chegando a alcançar 35% do mercado interno da década seguinte. Já em 1992, a produção foi de apenas 2 filmes111.

No entanto, no governo de Itamar Franco, a Lei do Audiovisual (1993)

cria mecanismos de captação de recursos por meio da renúncia fiscal,

estimulando a criação de leis municipais e estaduais de incentivo à cultura. Os

cineastas têm suas esperanças renovadas e o cinema nacional, que estava

sumido do horizonte cultural brasileiro, começa a reabilitar-se. A partir do ano

de 1995, a produção cinematográfica avança, e Carlota Joaquina, de Carla

Camurati, “funciona como espécie de marco zero da Retomada do cinema

brasileiro”112, pelo sucesso de público que alcançou. Foi o primeiro filme da

Retomada a passar a barreira do milhão de espectadores – chega a 1.286.000

de espectadores. E o mais importante, segundo Oricchio, é que – como no

tempo do Cinema Novo113 – esse filme voltou a falar sobre fatos da história

brasileira.

Posteriormente, produções de Renato Aragão e Xuxa alcançaram

semelhante sucesso, assim como outros que, embora com menor sucesso de

bilheteria, alcançaram reconhecimento por sua contribuição artística, vindo até

a ganhar prêmios em festivais. Destacam-se Baile perfumado (1996), de

110 ORICCHIO, Luiz Zanin. Cinema de novo: um balanço crítico da retomada. São Paulo:

Estação Liberdade, 2003, p. 25. 111Informação disponível no blog intitulado Caleidoscópio, de autoria da jornalista e professora

Larissa Herbst, da PUC-SP e suas alunas Cyntia Calhado e Camila Fink. Entre seus comentários sobre cinema está o texto: “Os anos 90 e o modelo de incentivo cultural pós-Embrafilme”. Disponível em: http://www. cinecaleidoscopio. com.br/anos_90_modelo_de_incentivo_cultural. html. 112 ORICCHIO, Luiz Zanin. Cinema de novo: um balanço crítico da retomada. São Paulo: Estação Liberdade, 2003, p. 26. 113 O Cinema Novo surgiu nos anos 60. Esse movimento cinematográfico brasileiro pretendia lutar contra a dominação estrangeira do mercado cinematográfico brasileiro que resultava na alienação do povo brasileiro da sua própria realidade. Com propostas nacionalistas e libertadoras, isto é, com uma visão crítica da realidade brasileira, teve como principais representantes os cineastas Glauber Rocha, Cacá Diegues e Nelson Pereira dos Santos.

52

Paulo Caldas e Lírio Ferreira e Um céu de estrelas (1996), de Tata Amaral. “A

produção cresceu e se estabilizou em torno de 20 a 30 títulos por ano. Entre

1995 e 2001, o país produziu 167 longas-metragens, contra 30 nos primeiros

anos da década anterior”114. Além disso, “60 novos diretores surgiram e o

público de filmes brasileiros saltou de menos de 400 mil espectadores, de 1990

a 1994, para 25 milhões, entre 1995 e 2000”115.

Embora tenha conseguido “reviver das cinzas” e produzir muitos filmes,

alguns críticos afirmam que o Cinema da Retomada não conseguiu consolidar

uma imagem definida, uma cinematografia sólida. Prova está na variedade de

temas e gêneros divulgados: “há comédias, filmes políticos, obras de denúncia,

de entretenimento puro, filmes destinados ao público infantil, [...] policiais,

épicos, etc.”116. O lado positivo dessa Retomada consiste na satisfação de

gostos e expectativas de – acostumados aos produtos atrativos nas gôndolas

do supermercado ou nas vitrinas de shoppings, ou mesmo a uma produção

televisiva de crescente qualidade, o espectador torna-se cada vez mais

exigente.

Luiz Oricchio afirma que essa variedade de oferta de filmes (tanto no

plano dos gêneros quanto no dos estilos) pode ser também um reflexo da

“típica fragmentação mental do homem dos anos 1990. De uma maneira

deliciosamente livre e confusa, o criador pode optar entre expressar seus

fantasmas pessoais, divertir o público ou preocupar-se com a questão social do

país”117.

Dessa forma, o filme a que este estudo dedica-se – O homem do ano –

enquadra-se na produção cinematográfica da Retomada e reflete sobre o tema

da violência, estabelecendo direta conexão com o perfil dramático da

experiência social. Filmes que abordam a temática da violência permeiam o

114 ORICCHIO, Luiz Zanin. Cinema de novo: um balanço crítico da retomada. São Paulo: Estação Liberdade, 2003, p. 27. 115Informação disponível no blog intitulado Caleidoscópio, de autoria da jornalista e professora Larissa Herbst, da PUC-SP e suas alunas Cyntia Calhado e Camila Fink. Entre seus comentários sobre cinema está o texto: “Os anos 90 e o modelo de incentivo cultural pós-Embrafilme”. Disponível em: <http://www. cinecaleidoscopio. com.br/anos_90_modelo_de_incentivo_cultural. html>. 116 ORICCHIO, Luiz Zanin. Cinema de novo: um balanço crítico da retomada. São Paulo: Estação Liberdade, 2003, p. 29-30. 117Id. Ibid., p. 30.

53

elenco das melhores obras da Retomada, tanto a nível estético como

mercadológico.

Interessante destacar que Rubem Fonseca, o mais conhecido autor do

gênero noir118 no Brasil, influenciou diversos cineastas. Dois filmes do gênero –

A grande arte (1991), de Walter Salles e Bufo & Spalanzani (2000), de Flávio

Tambellini – são adaptações de obras suas. O filme Bellini e a esfinge (2001),

de Roberto Santicci, versão para o cinema de um romance de Toni Belloto,

também pode ser tomado como exemplo do gênero noir.

Além desses, podem ser citados muitos outros filmes brasileiros

consagrados ao universo temático do crime: A hora marcada (2001), de

Marcelo Taranto, Minha vida em suas mãos (2001), de José Antônio Garcia e

Condenado à liberdade (2000) – segundo Oricchio, esses são projetos

ostensivamente comerciais (termo que não é aqui utilizado em seu sentido

pejorativo), ou seja, restringem-se aos objetivos modestos desse tipo de

produto. Cada cineasta, à sua maneira, tenta conferir até que ponto vai a

resistência do público brasileiro ao filme policial feito no país. Em outras

palavras, até que ponto os espectadores conseguem desprender-se da

tradição dos modelos norte-americanos, da comparação do filme policial

brasileiro com o hollywoodiano. Muitas vezes, de acordo com Oricchio, um

filme policial brasileiro não é bem aceito porque o espectador espera que o

filme “fale inglês”, ou seja, que crie “todo um clima, um cenário que pede Nova

Iorque ou Chicago, uma mise-en-scène particular, um mood inimitável”119.

Com relação aos filmes produzidos ao longo do período 1990-2010, para

além da aceitação por parte do público ou da crítica especializada, o presente

estudo dedica-se a títulos que se debruçam ostensivamente sobre a

criminalidade e a violência urbana.

Nesse aspecto, são vários os filmes da Retomada que, assim como a

literatura desse período, apresentam uma eficaz crítica social. Títulos como O

118 A narrativa de Rubem Fonseca tem influência do gênero noir norte-americano. Fonseca divulga no Brasil o escritor de clássicos do gênero Raymond Chandler, autor que muito influenciou na sua escrita. No Brasil, o chamado gênero noir é conhecido como gênero policial que tem como principais características a existência de um crime, a apresentação da perspectiva dos criminosos – não da polícia, o uso de uma visão invertida das tradicionais “autoridades” (como a corrupção policial), o retrato de alianças e lealdades instáveis, a demonstração da violência bruta e pura e a manifestação de comportamentos bizarros. 119 ORICCHIO, Luiz Zanin. Cinema de novo: um balanço crítico da retomada. São Paulo:

Estação Liberdade, 2003, p. 190-191.

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invasor (2001), de Beto Brant, diretor já premiado no Festival de Gramado com

o seu primeiro longa-metragem Os matadores (1997); O homem do ano

(2003), de Rubem Fonseca; O rap do pequeno príncipe contra as almas

sebosas (2000), de Paulo Caldas e Marcelo Luna e o curta-metragem Onde

São Paulo acaba (1995), de Andreia Seligmann, mostram o que seria a grande

matriz da violência social do país: “o abismo das classes sociais, uma das

piores distribuição de renda do planeta, a indiferença das elites, o caráter

predatório do capitalismo à brasileira”120.

Segundo Walter Benjamim, “o cinema é a forma de arte correspondente

aos perigos existentes mais intensos com os quais se confronta o homem

contemporâneo”121. Nesse sentido, muitos dos filmes do período aqui estudado

podem ser tomados como exemplo. Um deles é O invasor, um dos mais

importantes filmes da Retomada, pois é um filme que aponta para outras

leituras a respeito da sociedade brasileira. Em O invasor – e, de certa forma,

em O homem do ano também – “a violência passou a ser uma espécie de

moeda comum, que atravessa e une todos os estratos sociais. Passou a ser

um denominador comum nacional”122. De forma complementar, Lúcia Nagib

relembra que esse filme “mostra que, no Brasil, ricos e pobres cheiram o

mesmo pó e se beijam na boca”123; ou seja, é um dos poucos, senão o primeiro

filme brasileiro que, ao trabalhar a temática criminal, estabelece o cruzamento

entre os espaços da periferia e do centro urbano, mostrando o choque que

essa relação pode causar ou denunciar, em termos de desagregação do tecido

social no conjunto do país.

Nessa perspectiva, filmes como O invasor, Ônibus 174 (2002) e O

homem do ano “nos colocam diante de nós mesmos, dessa sociedade de

classes esgarçada, que fomenta a violência e depois se pergunta, perplexa,

porque ela acontece”124. A temática da violência ocupa um espaço central no

120Id. Ibid., p. 180. 121 BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. In:____ et al. Obras Escolhidas. Trad.

Sérgio Paulo Rouanet et al, vol. I. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 192. 122 ORICCHIO, Luiz Zanin. Cinema de novo: um balanço crítico da retomada. São Paulo: Estação Liberdade, 2003, p. 179. 123 NAGIB, Lúcia, 2002, p. 12-13 apud GANDIER, Ângela. O invasor de Marçal Aquino: quando os manos e os bacanas cheiram o mesmo pó. In: DIAS, Ângela Maria; GLENADEL, Paula (Org.). Estéticas da crueldade. Rio de Janeiro: Atlântica Editora, 2004, p. 135. 124 ORICCHIO, Luiz Zanin. Cinema de novo: um balanço crítico da retomada. São Paulo:

Estação Liberdade, 2003, p. 184.

55

cinema da Retomada porque, ao retratá-la, roteiristas e cineastas desvendam

as máscaras que ocultam a corrupção, a desigualdade, o preconceito, a

indiferença pelo próximo – entre tantos outros males que assolam a população

brasileira, cada vez mais submersa nessa violência incontrolável que irrompe

de todas as partes da intrincada malha do tecido social.

Nesse sentido, seria oportuno destacar que umas das características de

muitas produções fílmicas do período 1990-2010 são as narrações em off, que

correspondem à narração literária em primeira pessoa. Por meio dessa

estratégia cinematográfica, a visão dos fatos articula-se por meio da voz do

próprio personagem que conta e interpreta sua história, diferente das narrativas

em terceira pessoa que, por se basearem exclusivamente em diálogos,

descrições e ações, revelam os personagens por intermédio daquilo que estes

fazem ou dizem. Na narrativa em primeira pessoa, ampliam-se as

possibilidades expressivas, pois os personagens revelam-se por intermédio

também daquilo que pensam.

Uma das possíveis explicações para a recorrência da narrativa em voz

off (primeira pessoa) pode se encontrar no contexto violento em que vivemos.

A criminalidade – em forma de assaltos, roubos, sequestros ou homicídios –

está cada vez mais próxima, acuando as pessoas de todas as classes sociais.

Dessa forma, ao assistir a um filme que retrata a violência e utiliza a narração

em voz off, o espectador certamente sente-se envolvido ou próximo do

personagem e da história que está sendo narrada – é como se o relato do

personagem fosse endereçado a alguém íntimo (no caso, nós). Sendo esse

personagem o próprio agente da criminalidade – como Máiquel de O homem

do ano – ou alguém que testemunha os fatos – no exemplo de Buscapé, de

Cidade de Deus – a narrativa envolve o espectador de tal forma que as

emoções podem alcançar expressões como o choque repulsivo, a emoção

condoída ou a cumplicidade comparsa.

O documentário Ônibus 174, de acordo com Luiz Oricchio, é um dos

mais importantes documentários da Retomada, e talvez o mais impactante; é

também um exemplo de que o cinema – como a literatura ou outra forma de

expressão artística – está intimamente relacionado com o seu tempo. O

documentário é baseado no famoso sequestro do ônibus da linha 174, ocorrido

56

no Rio de Janeiro, em 12 de junho de 2000, em que um jovem assaltou o

ônibus e tomou os passageiros como reféns.

Na época, o sequestro foi amplamente documentado e divulgado pelas

câmeras televisivas, durante as cinco horas em que o drama transcorreu. O

documentário possibilita uma reflexão: porque esse sequestro teve tanta

notoriedade nacional em um país em que sequestros a ônibus ou carros

acontecem a todo instante? Pois a resposta está na própria divulgação dada

pela televisão, veículo que consegue exercer o seu poder diante das emoções

e da consciência das pessoas.

A televisão tem sido um meio, ou uma espécie de subtema explorado

tanto por escritores como cineastas para estabelecer uma crítica social. O

sequestrador de Ônibus 174, assim como as crianças do morro, Japa e

Branquinha, personagens do filme Como nascem os anjos (1995), de Murilo

Salles, veem na televisão uma forma de conseguir desfrutar minutos ou horas

de fama. Por exemplo, no conto “O cobrador”, de Rubem Fonseca, o

protagonista da história busca na televisão um estímulo para matar – em sua

condição de excluído, ele irrita-se ao ver nos comerciais televisivos produtos de

que jamais poderá usufruir, e termina por culpabilizar o restante da sociedade

por seu inesgotável infortúnio. No mesmo sentido, Perfume de gardênia

(1995), de Guilherme de Almeida Prado, conta a história do taxista que, nutrido

diariamente pelos programas policiais que escuta ininterruptamente no rádio do

carro, torna-se obcecado pela violência urbana em suas diversas

manifestações. 125

Sem dúvida, a televisão tem exercido o seu grande poder de persuasão

e, em tempos de globalização, tem se revelado um instrumento eficaz de

informação e entretenimento. No entanto, as denúncias feitas pela mídia

parecem inócuas quando se trata de combater o aumento da violência no país,

talvez pelo fato de que a mídia contribua para espetacularizar e rentabilizar

financeiramente o fenômeno, muito mais do que para atacá-lo de forma eficaz.

Habituadas a ver diariamente uma prodigiosa quantidade de notícias sobre

eventos trágicos e violentos (notícias permeadas de atraentes anúncios de

125 ORICCHIO, Luiz Zanin. Cinema de novo: um balanço crítico da retomada. São Paulo:

Estação Liberdade, 2003, p. 203.

57

produtos comerciais), as pessoas acabam minimizando ou simplificando o

problema. Nesse sentido, Nogueira afirma:

As reduções e simplificações dos fenômenos sociais facilitam que suas representações – midiáticas, artísticas ou jornalísticas – sejam mais facilmente transformadas em mercadoria, em produtos de fácil consumo, em espetáculo126.

Dessa forma, muitos filmes (assim como obras literárias) têm dedicado

espaço para a discussão e reflexão da interferência televisiva na vida das

pessoas e, por conseguinte, da sua influência no consumismo através das

propagandas que a televisão veicula. Ademais, esse meio de comunicação

solicita uma profunda reflexão sobre a atual constituição identitária da

sociedade contemporânea. No livro e na adaptação fílmica O homem do ano,

é possível perceber a interferência da televisão e dos comerciais na vida de

Máiquel, personagem central da trama. É em estilhaços, em fragmentos

esparsos, que o jovem matador fica “informado” sobre os fatos cotidianos. As

cenas do filme que mostram Máiquel com o controle remoto em mãos, trocando

de canal a todo instante, retratam esse aspecto: ao ser humano

contemporâneo, soterrado por uma miríade de informações, falta-lhe tempo

para absorvê-las. E Máiquel, devido à sua condição marginal (jovem

desempregado, parcos estudos, morador da favela), ignora como servir-se

delas, da mesma forma que ignora o porquê da sua existência. Ele é um sujeito

em constante crise identitária, pois ora quer ser matador, ora não.

Esses exemplos ilustram o fato de que alguns realizadores de filmes no

Brasil têm optado por fazer um trabalho em que a crítica social desdobra-se

num constante diálogo com as linguagens contemporâneas, tais como a da

publicidade, a do clipe ou da televisão, mas também dos videojogos, da

internet ou das histórias em quadrinhos. Realizadores como Beto Brant, Tata

Amaral, Fernando Meirelles, Jorge Furtado, Murilo Salles, são expoentes desse

novíssimo cinema que se faz no Brasil. Ao mesmo tempo em que fazem um

cinema que se quer veículo de denúncia social, também estabelecem o diálogo

126NOGUEIRA, Silas (Org.). Comunicação, cultura e violência, fascismo, tortura e o filme “Tropa de elite”. In: Mídia, cultura e violência: leituras do real e da representação na sociedade midiatizada. São Paulo: Cellac, 2009, p. 37.

58

com outras linguagens, o qual, para Luiz Oricchio, é “inevitável em um mundo

de trocas culturais mais fáceis e rápidas”127.

Vale ressaltar que essa hibridização do cinema brasileiro – em seu

diálogo com a publicidade e a televisão – ocorre pelo fato de que alguns dos

mais criativos diretores em atividade (tais como Beto Brant, Murilo Salles e Lírio

Ferreira) “dedicam-se regularmente à publicidade como forma de

sobrevivência”128. Para além desse aspecto, tanto no plano nacional quanto no

internacional, é amplamente reconhecida a força da linguagem publicitária e da

televisão brasileira129, força que, transposta para um cinema, resulta em melhor

aceitação pelo público e pelo mercado da cultura, fator essencial para a

consolidação do cinema brasileiro.

Nessa perspectiva, Orichio afirma que Cidade de Deus “funciona como

ponto de inflexão – não apenas na história do cinema da Retomada, mas do

próprio tipo de crítica que venha a ser praticada no Brasil”. Com forte

divulgação por parte da mídia e recordista de público da Retomada – 3,2

milhões de espectadores, deixando para trás produtos ostensivamente

comerciais como os de Xuxa, Angélica e Renato Aragão –, Cidade de Deus

conquistou o gosto do público. Para a crítica (tanto do filme como do livro

homônimo), faltou-lhe contextualização social e histórica – é como se aquela

favela onde tudo acontece nascesse de si mesma e não dependesse do

restante da estrutura social para permanecer em seu estado de existência

vegetativa. Em defesa de seu livro, Paulo Lins esclarece que se trata de “um

ponto de vista interior”. Críticas à parte, a verdade é que “não se podem negar

a ele a agilidade da filmagem, a fluência, o trabalho de atores, a competência

da montagem e a qualidade da música”130, fatores cuja soma resulta num

conjunto de fruição prazerosa.

No estilo do realizador de Cidade de Deus, percebe-se a influência do

cinema norte-americano. Expoentes da cinematografia como Quentin

127 ORICCHIO, Luiz Zanin. Cinema de novo: um balanço crítico da retomada. São Paulo: Estação Liberdade, 2003, p. 233. 128 Id. Ibid., p. 226. 129 Vale sublinhar que novelas brasileiras são exportadas para muitos países e fazem grande sucesso, interferindo em alguns casos nas culturas locais; a publicidade brasileira é reconhecida como uma das mais criativas do mundo, acumulando prêmios em festivais internacionais. 130ORICCHIO, Luiz Zanin. Cinema de novo: um balanço crítico da retomada. São Paulo:

Estação Liberdade, 2003, p. 157.

59

Tarantino, Francis Ford Coppola e Martin Scorsese, conhecidos pela forma

crua com que representam a violência e/ou o crime, pela excelente técnica com

que trabalham a linguagem e pela inserção incidental de doses de humor em

situações violentas (especialmente Tarantino), são retomados e tornam-se

marcas patentes no estilo de Fernando Meirelles.

A atitude “espetacularizada” de Cidade de Deus talvez tenha nascido

desse conjunto de fatores: “da busca do que há de estético na destruição, na

guerra, na morte, anulando, por sua transformação em show, tudo aquilo que

essas situações possam ter de insuportável”131. No filme de Fernando

Meirelles, a violência (ou a morte) é “espetacularizada” porque ela é

“neutralizada”, isto é, à medida que o morticínio vai se desdobrando no

decorrer da história, o espectador acaba por não sofrer ou chocar-se com o

que vê na tela. E, as técnicas de filmagem, os recursos de linguagem e tudo o

que impõe o estilo do realizador faz com que se amenize qualquer desprazer

ou choque.

Cada cineasta tem o seu estilo próprio e cabe a ele escolher, dentro de

um amplo leque, as opções mais adequadas para representar assuntos tão

inquietantes e traumáticos como a violência, o crime ou a morte. Enquanto

alguns encaram a morte com pitadas de humor, como é o caso de Tarantino,

outros, como Scorsese, podem abordá-la de forma bastante incômoda, ou

ainda, de forma neutralizada ou espetacularizada, como é o caso de Fernando

Meirelles, em Cidade de Deus.

Representante, resumo ou emblema de toda uma tendência que se

esboça no cinema brasileiro, Cidade de Deus é o exemplo de um filme que

opera dentro de uma lógica de mercado, incorporando imagens e estilos de

circulação internacional. Para muitos críticos, principalmente os apegados aos

modelos do Cinema Novo, isso é motivo de crítica, uma vez que deve ser

evitado a todo custo. No entanto, o que precisa ser considerado é que assim

como os cineastas cinemanovistas, os de hoje continuam querendo “desenhar

a cara” do Brasil. Ao mesmo tempo em que o cineasta incorpora imagens e

estilos de circulação internacional, ele se vê pressionado, como artista, pelas

131ORICCHIO, Luiz Zanin. Cinema de novo: um balanço crítico da retomada. São Paulo:

Estação Liberdade, 2003, p. 158.

60

necessidades de posicionamento dentro da urgência da tragédia social

brasileira. 132

É claro que a maneira de representar ou simbolizar essa realidade torna-

se diferente, pois vivemos em outro contexto histórico-social, em um tempo em

que o maquineísmo se acentua e as pessoas tornam-se gradativamente mais

individualistas e fragmentárias. Dessa forma, o cinema de agora também se

torna fragmentário, sem atenuar sua intensidade expressiva. Assim, o cinema

de hoje não nega a tradição, o passado; ao contrário, busca nele inspiração,

dando continuidade ao trabalho iniciado por Glauber Rocha em 1960. Esse

cinema mais aberto, disposto a dialogar com as linguagens que estão

disponíveis é chamado por Luiz Zanin Oricchio de “cinema impuro”. Um cinema

que fertiliza linguagens e que está em busca de marcar a sua tão problemática

singularidade.

O cinema brasileiro contemporâneo pertence a uma “sociedade marcada

pela forte divisão de classes, pela violência exercida sobre os mais pobres que

são sistematicamente excluídos da cidadania, [e] tem um papel simbólico-

político importante a cumprir”133. Recentes filmes como Tropa de elite (2007) e

Tropa de elite 2 – o inimigo agora é outro (2010), de José Padilha,

evidenciam bem esse aspecto. Com enfoque diferente de produções como

Cidade de Deus e Carandiru (2003, de Hector Babenco), apresentam uma

espécie de naturalismo cruel ou uma espetacularização da violência. Com

estratégias bem definidas e exploradas conseguem levar a intensidade

dramática ao limite da agressão ao espectador.

A série Tropa de elite deixa claro que a “dimensão cruel do cinema

brasileiro contemporâneo embute uma agressividade às instituições e ao

Estado brasileiro (em particular) ou ao Brasil e ao „brasileiro‟ em geral”134.

Tropa de elite, assim como O invasor e O homem do ano – para citar

somente alguns exemplos – são filmes que, a partir da temática da violência,

buscam abrir “a possibilidade de negociação, de redefinição do entendimento

132 PELLEGRINI, Tânia. As vozes da violência na cultura brasileira contemporânea. Crítica marxista, Rio de Janeiro, n. 21, 2005, p. 146. 133 SELIGMANN-SILVA, Márcio. Violência e cinema: um olhar sobre o caso brasileiro hoje. Comunicação e Cultura, Lisboa, n. 5, 2008, p. 105. 134 RAMOS, Fernão Pessoa, 2003, apud VILLAÇA, Zízia. Estética da crueldade e do luxo na comunicação contemporânea. In: DIAS, Ângela Maria; GLENADEL, Paula (Org.). Estéticas da crueldade. Rio de Janeiro: Atlântica Editora, 2004, p. 65.

61

da realidade, permitindo, em última instância, construir um novo conceito sobre

dada realidade”135. São produções que tangem questões cuja formulação é

recente. Muitos títulos cinematográficos e literários – embora sob a forma

aparente de simples e tradicional representação sociológica do Brasil –

rompem o silêncio e partem ao ataque dos criminosos de “colarinho-branco” e

dos setores da classe média que transitam no universo do crime – eis aí grupos

que fomentam a criminalidade em todas as esferas da vida social no Brasil. Por

esse viés, a sétima arte também tem contemplado espaços socialmente

desvalorizados, como as periferias dos grandes centros urbanos e o interior

dos enclaves murados das prisões. Em consequência, o cinema cria

oportunidades para a expressão de um sujeito social até então sem voz: o

pobre ou o favelado.

Vale registrar que filmes como Cidade de Deus, Carandiru e Tropa de

elite são adaptações literárias: grande parte do seu reconhecimento e sucesso

de público decorre do fato de lançarem-se na esteira comercial de êxitos

editoriais. Na primeira parte deste trabalho, enfatizamos que, desde os seus

primórdios, o cinema sempre se inspirou na literatura: hoje, em pleno século

XXI, essa relação de simbiose está mais intensa do que nunca, e são inúmeros

os filmes brasileiros que traduzem para a grande tela histórias consagradas

pela literatura. A literatura e o cinema estão sempre adiante do seu tempo e

suas linguagens dialogam também com outras linguagens contemporâneas,

como a da publicidade, do videoclipe e da televisão. Se as sociedades e os

seres humanos se transformam e aprendem novas técnicas de sobrevivência,

a literatura e o cinema precisam adaptar-se às novas formas de articulação

social para alcançarem sua efetiva expressividade simbólica.

135 PEREIRA, Carlos Alberto Messeder et al (Org.). Linguagens da violência. Rio de Janeiro,

2000, p. 21.

62

3. TRADUÇÃO INTERSEMIÓTICA: A ESTÉTICA DA VIOLÊNCIA EM O

MATADOR E O HOMEM DO ANO

Se o cinema de um lado, nos faz enxergar melhor as necessidades dominantes sobre a nossa vida, consegue, de outro, abrir imenso

campo de ação do qual não suspeitávamos. (Walter Benjamin. Textos escolhidos, 1980, p. 28)

Toda arte é marcada por sua função estética. De acordo com

Houaiss, a estética (do grego aisthetós, que significa “perceptível pelos

sentidos, sensível”) é “a parte da filosofia voltada para a reflexão a respeito

da beleza sensível e do fenômeno artístico. [...] é o estudo dos juízos por

meio dos quais os seres humanos afirmam que determinado objeto artístico

ou natural desperta universalmente um sentimento de beleza ou

sublimidade”136.

Nessa perspectiva, algumas indagações emergem de si próprias: como

é possível tirar prazer estético do inopinado, de tragédias ou do horror de

alguns fatos modernos? Por que sentimos prazer em ler um livro ou assistir a

um filme que explora cenas violentas? O que há de belo nesse construto

artístico?

Ora, o caráter estético de um livro ou de um filme assenta-se, quase

exclusivamente, para além do tema tratado – naturalmente, a violência urbana

escapa ao conceito de “belo” –, pois resulta precisamente do meticuloso

trabalho do artista sobre a linguagem. Assim, a autonomia e a expressividade

estética decorrem da forma como o escritor ou o cineasta exploram os recursos

criativos. Já em seu clássico Poética, Aristóteles (Séc. IV a.C.) analisa os

princípios da poesia trágica e cômica, afirmando que a imitação é uma atitude

congênita ao ser humano. Conforme o filósofo, “contemplamos com prazer as

imagens mais exatas daquelas mesmas coisas que olhamos com repugnância,

136HOUAISS, Antônio. Grande dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro:

Objetiva, 2008, p. 1253.

63

por exemplo, as reproduções dos bichos mais desprezíveis e de cadáveres”137.

Em outras palavras, do prazer da imitação decorreria o prazer da contemplação

do horrível, do trágico, do violento, pois o abalo sensitivo provocado pela

representação imitativa de cenas inicialmente chocantes (capazes de provocar

sentimento de pena e ou de medo) pode resultar no aprendizado de elementos

interpretativos sobre a existência humana.

Ademais, ao perceber ou captar aspectos da sociedade que inquietam

ou incomodam – no caso desta pesquisa, a violência urbana –, o artista traduz

para o livro ou filme sua interpretação dessa realidade. Dessa forma, escritor e

cineasta estão cumprindo também outra função da arte: uma função social, isto

é, possibilitar que os receptores de sua arte reflitam sobre o contexto em que

vivem, sobre sentimentos e ideias já existentes, sobre a cultura em estado de

mutação, a fim de influenciar modos e atitudes num constante interagir entre as

pessoas e a sociedade. Assim, podemos entender a estética da violência como

um veículo para a expressão ou comunicação de sentimentos intuídos pelo

artista e compartilhados pela sociedade, veículo para a provocação,

simbolização ou catarse desses sentimentos.

Com respeito ao livro O matador e ao filme O homem do ano, são

muitos os trechos ou cenas que podem ser analisados para evidenciar a

múltiplas formas da expressão de uma estética da violência. No plano da

linguagem literária e cinematográfica, Patrícia Melo e José Henrique Fonseca

servem-se de recursos estratégicos para intensificar a representação estética

dessa violência. Um primeiro exemplo pode ser encontrado na narração do

episódio do assassinato de Cledir, estrangulada por Máiquel, seu marido e

personagem central do livro:

Fiquei tão desesperado, comecei a correr, correr, vou correr até morrer, pensei, até explodir, até voar, e corri, e cheguei em casa e me tranquei no quarto e cheirei, a Cledir começou a bater na porta, abra, coloquei a cômoda para bloquear a entrada, abra, abra a porta, abra essa porta, abra essa porta, abra essa porta, abra essa porta, abri, ela começou a berrar comigo, eu ouvia tudo, entendia tudo, ela estava assustada, o ódio começou mesmo na boca e explodiu nas minhas mãos e eu apertei o pescoço de Cledir, apertei, apertei, apertei e só parei quando ouvi o osso do pescoço se partir138.

137

ARISTÓTELES. Poética. In: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1994, p. 243. 138MELO, Patrícia. O matador. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 117.

64

No momento em que se inicia a narração desse episódio, verifica-se

que, além da repetição de alguns termos ou frases que enfatizam a ira de

Máiquel, há todo um encadeamento verbal que explora “uma violência narrativa

que vai tomando corpo gradativamente, até culminar no desejo do ódio, no

assassinato banalizado de mais uma de suas vítimas”139. Ao passo que o

personagem-narrador fala de suas preocupações, sua decepção por ter

perdido Érica, sua amante, até a descrição do assassinato da própria esposa, o

leitor sente-se envolvido por uma narração veloz, sem espaço para tomada de

fôlego. Observe-se a longa frase (um inteiro parágrafo) ininterrupta, cuja

sonoridade é cadenciada e fragmentada pela forte recorrência das consoantes

plosivas “p”, “t”, “b”, assim como da consoante vibrante “r” (em “correr”, “voar”,

“abra”, “porta”, “apertei”, por exemplo), pelas vírgulas que quase se sobrepõem

e por palavras que se repetem (como “correr”, “abra”, “porta”, “apertei”). Esses

recursos expressivos são internalizados pelo leitor como se fossem a

estilhaçada imagem sensitiva de uma mesma ideia que se alonga e se

fragmenta, como num delírio.

Para além desse aspecto, o leitor mergulha numa ambiência mental

negativa criada pela justaposição de palavras que expressam ideias

desagradáveis, tais como “desesperado”, “morrer”, “explodir”, “tranquei”,

“bater”, “bloquear”, “berrar”, “assustada”, “ódio”, “apertei”, que culminam com o

verbo “partir” – tal como se houvesse uma progressão gradativa que se encerra

com a morte de Cledir.

Esses elementos estéticos e linguísticos aproximam o leitor do

personagem, numa espécie de superposição identitária: assim como o leitor

recebe as informações sem tempo para refletir sobre elas, numa espécie de

frenesi, a Máiquel também faltam tempo e fôlego para pensar antes de agir. A

rapidez da narração – evidenciada pelos vocábulos curtos, pelo longo período

cadenciado por vírgulas, por exemplo – reflete o ato incontido do personagem.

Na transposição desse texto para a linguagem fílmica, percebe-se que

os artifícios expressivos do cinema mantêm a tensão dramática materializada

no livro. Apesar de Máiquel não estar sob efeito das drogas, como no livro,

139MESSA, Fabio. O gozo estético do crime: dicção homicida na ficção contemporânea.

Tubarão: Unisul, 2008, p. 240.

65

outras estratégias específicas da linguagem cinematográfica conseguem

representar a perturbação e o conflito emocional do protagonista. Um desses

recursos é a sonoridade: os gritos de Cledir reforçam a imagem de Máiquel

sentado na cama, visivelmente tenso e nervoso, e traduzem a explosão

emocional do jovem que vai culminar no assassinato da esposa. Quando

Máiquel sai subitamente do quarto e estrangula Cledir, silencia-se o som de

gritos em forma de eco – e o silêncio representa a falta de ar provocada pelo

estrangulamento da moça – logo se ouvindo o estalo da batida da cabeça na

parede. Toda essa cena, numa expressiva combinação de imagem e som,

insere o espectador na ação representada, permite a ele perceber, assim como

o leitor do livro, a violência narrativa, ou seja, o ódio que, progressivamente

alimentado, pode acabar em um assassinato brutal.

O som incidental contribui para a expressividade da cena: a batida da

porta do quarto, ao se fechar; os socos de Cledir na porta; os passos de

Máiquel ao agarrá-la, empurrando-a contra a parede; o som abafado da batida

da cabeça da vítima, encerrando-se com a imagem de seus olhos arregalados.

Os recursos sonoros revelam-se agressivos aos ouvidos do espectador, tanto

quanto as consoantes plosivas e vibrantes que transformam o texto de Patrícia

Melo em uma melodia desagradável ao ouvido do leitor. Enquanto o texto

literário serve-se de estratégias linguísticas para representar a progressão de

sentimentos negativos que culminam no assassinato, a narrativa fílmica, por

seu lado, recorre à sonoridade, às cores intensas matizadas pelo jogo do claro-

escuro, à expressão facial dos atores, à posição da câmera, para sugerir o

mesmo sentimento de desconforto, angústia e dor.

Após o estrangulamento de Cledir, o rosto de Máiquel é focalizado em

close cerrado, muito próximo à câmera. Aspectos como o movimento mecânico

do personagem, o gesto de colocar desamparadamente a mão na cabeça, o

gradual ofuscamento da claridade que vem da janela em plano de fundo,

traduzem ao espectador a perturbação do jovem matador. Além disso, a cor

escura do quarto reforça a ambiência emotiva. A claridade que vem da janela

divide o quarto segundo um expressivo jogo de claro-escuro: uma tonalidade

mais escura, outra mais clara. Quando Máiquel está sentado na cama, seu

corpo projeta uma sombra que reflete áreas sombrias do quarto, sugerindo ao

espectador que o personagem oscila entre sua parte “clara” (valores positivos)

66

e seu lado “escuro” (valores negativos). Por outro viés, a câmera em ângulo de

contra-plongée (o rosto de Máiquel é focalizado de baixo para cima) sugere um

estado de superioridade do personagem diante da situação: seu ódio é superior

naquele momento, sua força é irrepresável. São estratégias apropriadamente

exploradas pela equipe de produção do filme (realizador, fotógrafo, cenarista,

figurinista etc.) para transpor em imagens fílmicas a carga dramática emocional

que se manifesta na articulação de palavras e sonoridades no texto de Patrícia

Melo.

São muitos os fatores que podem ser levados em consideração para que

se possa compreender o comportamento violento de Máiquel no enredo das

obras. Tanto no livro como no filme, a violência é apresentada como

decorrência de três fatores que tomaremos como os mais impactantes do ponto

de vista social, para fins de análise no presente estudo: violência e corrupção;

violência e exclusão social; e, por fim, violência e fatalismo. Veremos de que

forma esses fatores emergem na obra de Patrícia Melo e de que recursos ou

estratégias se vale José Henrique Fonseca para transpô-los para a linguagem

cinematográfica.

3.1 Violência e corrupção

Em um esclarecedor estudo sobre a violência urbana, o sociólogo Álvaro

Gullo propõe algumas conclusões a respeito das articulações entre práticas

culturais e violência social (usada por esse estudioso como sinônimo de

“violência urbana”):

1. A violência é um fenômeno social inerente a qualquer tipo de sociedade; 2. A forma sob a qual se manifesta reflete o tipo de sociedade e mostra o seu significado nessa sociedade; 3. A violência depende, portanto, de estímulos provenientes da própria sociedade140

.

140

GULLO, Álvaro de Aquino e Silva. Violência urbana: um problema social. Tempo Social:

revista de sociologia da USP, São Paulo, vol. 10, n. 1, mai. 1998, p. 106.

67

No que se refere especialmente ao terceiro aspecto, é possível

considerar que, entre tantos estímulos à violência alimentados pela sociedade,

a corrupção é um dos fatores mais efetivos. Para Houaiss, a corrupção é

definida como “ato ou efeito de subornar uma ou mais pessoas em causa

própria ou alheia, geralmente com oferecimento de dinheiro” ou “disposição

apresentada por funcionário público de agir em interesse próprio ou de outrem,

não cumprindo com suas funções”141.

No Brasil, os escândalos envolvendo casos de corrupção são divulgados

quase diariamente, e seus protagonistas são empresários bem sucedidos ou

agentes do estado (políticos, magistrados, policiais, administradores públicos,

pequenos funcionários etc.), mas também cidadãos comuns. Desde o ano de

1995, quando foi divulgado o seu primeiro relatório, a ONG Transparência,

Consciência e Cidadania (TCC-Brasil)142 vem divulgando anualmente os

índices de percepção de corrupção no Brasil. Numa escala de zero a dez – em

que dez indica que os servidores são percebidos pela população como pouco

corruptos e zero corresponde à percepção de corrupção disseminada – os

índices de 1995 a 1999 foram os seguintes: 2,7 (1995), 2,96 (1996), 3,56

(1997), 4 (1998) e 4,1 (1999). Apesar de esses números mostrarem uma

evolução positiva, a percepção de corrupção no Brasil permanece em nível por

demais preocupante143.

As pesquisas divulgadas nos anos subsequentes mostram que a

primeira década de 2000 segue pelo mesmo caminho. O relatório da ONG

Transparência Internacional, divulgado em outubro de 2010, indica que nesse

ano o Brasil obteve a 69ª posição no ranking de percepção de corrupção. A

pontuação dada ao país no relatório permaneceu a mesma de 2009: 3,7144.

Os brasileiros têm assistido, perplexos, a imagens e a notícias de

policiais envolvidos em atividades criminosas, tais como formação de quadrilha,

141 HOUAISS, Antônio. Grande dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008, p. 848. 142 Transparência, Consciência & Cidadania – TCC-Brasil é uma entidade não governamental, apartidária, independente, sem fins lucrativos, fundada em fevereiro de 1996 e sediada em Brasília. Está afiliada à Transparency Internacional (Berlim, Alemanha). 143GASPAR, Malu. China lidera o ranking de “corruptores”. Folha de São Paulo, São Paulo, 27 out. 1999, p. 12. 144 IDOETA, Paula Adamo. Brasil ocupa a 69ª posição em ranking de percepção de corrupção da Transparência Internacional. Out. 2010. Disponível em:<http://noticias. uol. com.br/bbc/2010/10/26/brasil-ocupa-a-69-posicao-em-ranking-de-percepcao-de-corrupcao-da-transparencia-internacional. jhtm>.

68

associação ao tráfico (drogas e armas), extorsão e corrupção sistemática.

Segundo James Carvalho, diretor da ONG Justiça Global e professor da

Universidade de Harvard, o primeiro passo para baixar o índice de

criminalidade no Brasil é o combate à corrupção policial, que facilita outras

práticas criminosas e é tão nociva quanto a corrupção política, uma vez que

impede o ataque frontal à criminalidade145.

O romance O matador denuncia essa realidade. Sua obra adaptada – o

filme O homem do ano – mantém o mesmo eixo narrativo do texto literário: a

ascensão (e decadência) de um jovem de periferia por meio do crime. A

narrativa começa quando Máiquel, para pagar uma aposta que havia perdido,

pinta o cabelo de loiro e não mais reconhece o perdedor que enxergava no

espelho polido, sente-se agora outra pessoa, superior a si mesmo: “Aquela

tinta tingiu alguma coisa muito profunda dentro de mim. Tingiu a minha

autoconfiança, o meu amor-próprio. Foi a primeira vez em vinte e dois anos,

que olhei no espelho e não tive vontade de quebrá-lo comum murro”146.

A partir de então, ao sabor do acaso e desconhecendo os porquês,

Máiquel acaba se envolvendo em uma série de acontecimentos que o levarão a

cometer crimes dos mais violentos. Após propor o duelo com Suel, por

exemplo, Máiquel sente-se arrependido e amedrontado: “No dia seguinte,

acordei com dor de dente e não fui trabalhar. Estava arrependido de ter

proposto o duelo [...] Senti medo, eu nunca tinha pego numa arma”147. Portanto,

o simples pagamento da aposta perdida para Suel é o estopim para atos que

nem ele próprio compreende.

Livro e filme denunciam a degradação da malha social no Brasil: ao

assassinar Suel, Máiquel obtém respeito e admiração das pessoas humildes da

comunidade em que vive, assim como daquelas de classes mais abastadas.

Suel era conhecido assaltante, elemento nocivo para a comunidade; por isso,

ao eliminá-lo, Máiquel é recompensado com presentes de natureza diversa,

estranhando essa situação num primeiro momento, mas logo se habituando

com a ideia de ser admirado. Assim, a fragilidade do sistema judiciário no Brasil

145 Informação retirada da notícia intitulada Fim da corrupção é o primeiro passo, diz o diretor da Justiça Global, divulgada no site do programa Brasil Urgente, da emissora de televisão SBT, em 9 jul. 2008. Disponível em: <http://brasilurgente. multiply. com/journal>. 146MELO, Patrícia. O matador. 2. ed. São Paulo: Companhia da Letras, 2005, p. 11. 147Id. Ibid., p. 14.

69

e a distribuição assimétrica de justiça fazem com que a comunidade aceite e

incentive o surgimento de justiceiros privados, instituição que se transforma em

grupos de extermínio no plano da realidade nacional, grupos conhecidos como

“esquadrão da morte”. Esse é o contexto em que o livro e o filme denunciam a

decomposição social em nosso país.

No entanto, Máiquel só se torna um reconhecido matador profissional

porque é incentivado a tanto por pessoas que o motivam a escolher o crime

como meio de facilmente obter dinheiro e prestígio social. O doutor Carvalho e

o delegado Santana são seus principais instigadores. O primeiro, ao constatar

que Máiquel necessita realizar um tratamento dentário, aproveita o fato de o

jovem não possuir recursos financeiros para tal e propõe-lhe um acordo: ele

terá dentes bons em troca da prestação de serviços ao dentista – matar o

possível estuprador de sua filha. O delegado usa de suas atribuições oficiais e

de sua rede de influências para ocultar os atos criminosos de Máiquel, numa

clara referência à corrupção policial que vigora no país.

Vale destacar que o protagonista da história, mesmo contra sua própria

vontade e sentindo-se desconfortável diante da situação, aceita realizar o

serviço por sentir dores e por ter vergonha do mau estado de seus dentes:

“Não achava nada boa a ideia de ter que matar outro cara. Mas meu dente doía

pra caralho”148; “Fiquei com vergonha de abrir minha boca, meus dentes todos

fodidos”149 (essa frase é retomada em voz off no filme). Aos poucos, graças ao

crime, “o mundo do consumo [...] aparecerá ao indivíduo [Máiquel] como um

mundo de liberdade, espaço real e imaginário no qual ele se sentirá

reumanizado”150.

No entanto, para sentir-se incluído socialmente, para alcançar seus

objetivos, o protagonista deixa de ser sujeito da ação (como no início do livro,

quando mata Suel) para tornar-se parte de uma engrenagem social, de uma

rede de contatos que financia e sustenta a criminalidade, que lucra com atos

ilícitos. Assim, Máiquel torna-se sócio da empresa de fachada criada pelo

148Id. Ibid., p. 33. 149Id. Ibid., p. 30. 150 NOGUEIRA, Silas, 1998, p. 40-41 apud FIRMIANO, Frederico Daia. Da atomização do indivíduo aos movimentos sociais contemporâneos: notas sobre o complexo midiático, a política e a formação cultural. In: OLIVEIRA, Dinis de; NOGUEIRA, Silas (Org.). Mídia, cultura e violência: leituras do real e da representação na sociedade midiatizada. São Paulo: Cellac, 2009, p. 225.

70

doutor Carvalho e pelo delegado Santana para prestar serviços a empresários

e autoridades públicas (mas também para extorqui-los). As execuções são

realizadas por Máiquel juntamente com seus comparsas – Marcão, Inoque,

Robson, Pereba, Zé Galinha, entre outros.

A violência, sob a forma de assassinatos encobertos por autoridades, é

apresentada como mercadoria, como negócio lucrativo, sustentado por uma

extensa rede de corrupção que alcança a esfera dos poderes executivo,

legislativo e judiciário. Por esse viés, ao denunciar a corrupção policial no

Brasil, Patrícia Melo também enfatiza a participação da classe média em

práticas criminosas. Para muitos espectadores (principalmente os que não

conhecem o texto literário), o grande mérito da adaptação fílmica talvez seja o

de inverter a ordem de se perceber a realidade em que vivemos, transpondo a

classe média do seu habitual papel de vítima ao papel de algoz de si mesma.

Assim, O matador e O homem do ano aproximam-se e dialogam por meio de

um único e mesmo viés: a violência, a corrupção e o crime permeiam todas as

camadas da sociedade.

Vejamos como José Henrique Fonseca traduz para a linguagem

cinematográfica alguns episódios do livro que tratam da corrupção.

Comecemos pelo episódio em que Máiquel chega ao bar do Gonzaga e lá se

encontra com policiais que o cumprimentam pelo fato de ele ter assassinado o

bandido Suel, ao invés de detê-lo por homicídio (o personagem pensa

inicialmente ser vítima de uma emboscada). No livro, o acontecimento é assim

narrado:

Eram quatro horas da madrugada, eu estava deixando São Paulo. Ficaria um mês, dois meses, o tempo necessário para que as coisas se acalmassem. [...] pensei em parar no Gonzaga para tomar um café. De lá, eu pegaria a estrada. [...] Uma viatura parou diante do bar [...]. Senti meu corpo se transformar em um iceberg. Uma emboscada, eu pensei, O PM caminhava na minha direção [...] e Gozaga falou bem alto, olhando para o policial, foi ele, foi ele mesmo quem matou Suel. Fiquei cego, por um instante, esse Gonzaga é um filho da puta, um imbecil completo e minha pernas não respondiam, e antes dessas frases se formarem na minha cabeça, [...] o PM já estava dando um tapinha nas minhas costas e dizendo que admirava os homens corajosos. Ele falou isso e alguma coisa se quebrou dentro de mim. Iceberg. O policial pegou empadas e Cocas em latas e saiu [...] avançando e entrando na viatura onde outros cinco policiais esperavam, todos me acenando as mãos, sem de fato acenar, acenando com os olhos, um jeito que tradicionalmente os

71

homens usam para se cumprimentarem quando não se conhecem e se admiram. Eu também comi empadas e bebi Coca-Cola, tudo de graça. Entrei no carro e disse para mim mesmo: eu sou forte. Eu sou bom. Eu sou inocente. Não tenho motivos para fugir. 151

Ao traduzir em imagens esse conjunto de frases, o roteirista Rubem

Fonseca e o realizador José Herique Fonseca introduzem algumas mudanças

que vão incindir sobre o modo de o telespectador apropriar-se das

informações. Enquanto no livro o encontro com os policiais ocorre no período

da madrugada, o filme faz tudo acontecer durante o dia, e o próprio policial

enuncia sua sentença emblemática: “Valeu aí, ajudou a tirar o lixo da rua”. O

que tais mudanças implicam, qual seria o efeito da alteração?

Certamente, ao mostrar um policial cumprimentando amistosamente

(dando um “tapinha” nas costas) um assassino em plena luz do dia, o filme

intensifica ou reforça a expressão estética da corrupção que permeia todas as

camadas da sociedade no Brasil. No livro, o fato poderia ter sido testemunhado

por poucas pessoas, pois a frequentação de bares populares é maior durante o

dia. Transcriar esse episódio do livro e optar por situar a cena durante o dia

possibilita apresentar ao espectador a ideia de que a corrupção faz parte do dia

a dia das pessoas, realiza-se sem necessidade de ocultamento. No filme, por

esse mesmo viés, a frase proferida pelo policial resulta em maior impacto sobre

o espectador, uma vez que retoma e exterioriza a posição intolerante de muitas

pessoas com relação ao falho sistema judiciário brasileiro, no que tange à

punição de bandidos ou criminosos.

No entanto, é importante atentar para o fato de que o verbo “admirar”,

presente na frase proferida pelo policial no texto original, é traduzido por meio

de gestos e imagens na cena fílmica: na cordialidade do “tapinha” às costas e

na expressão facial do dono do bar ao dizer para os policiais que Máiquel é o

assassino de Suel. É nítido o orgulho e admiração do comerciante pela

coragem de Máiquel, que terminou por executar friamente um bandido que há

tempos ameaçava a tranquilidade e a segurança do seu bairro e de seu

estabelecimento comercial.

No texto literário, as frases curtas concatenadas por vírgulas expressam

a tensão emocional que marca o personagem naquele momento. O efeito é

151MELO, Patrícia. O matador. 2. ed. São Paulo: Companhia da Letras, 2005, p. 20.

72

reforçado por palavras que expressam valores negativos, tais como “deixando”,

“parar”, “viatura”, “emboscada”, “iceberg”, “filho da puta”, “imbecil”, “matou”,

“cego” e “não”, utilizadas pela autora para descrever o episódio até o momento

em que os policiais chegam ao bar. Depois que o policial lança sua sentença

redentora, o texto passa a construir-se com palavras que expressam valores

positivos, tais como “admirava”, “corajosos”, “avançando”, “entrando”,

“acenado”, “cumprimentarem”, “comi”, “bebi”, “graça”, “forte”, “bom” e

“inocente”. O eficaz artifício linguístico tem a função de expressar o

atenuamento do medo e da tensão do jovem matador, condição para sua

decisão de não mais fugir.

No filme, essa ambiência emocional é traduzida ao espectador pela

expressão facial do protagonista, detalhada pela proximidade da câmera com

relação ao rosto de Máiquel. O enquadramento da imagem, em primeiro plano,

facilita o registo de detalhes importantes que expressam a situação de

inferiorioridade em que se encontra o personagem, até que os cumprimentos

recebidos do policial invertam sua posição. A voz baixa de Máiquel (“vou tomar

só uma coca-cola sem gelo”) e seu gesto de baixar a cabeça (como se

quisesse esconder-se) traduzem a preocupação do jovem com a possibilidade

de ser preso. O som incidental do “tapinha” nas costas e a expressão de

Máiquel ao olhar para os policiais traduzem a surpresa do rapaz ao ser

cumprimentado por eliminar o “lixo da rua”.

Nesse episódio, ainda que apenas implícita, a violência é apresentada

como decorrência da corrupção e de outros aspectos sociais que contribuem

diretamente para sua reprodução no tecido da sociedade. A violência é

estetizada por tanger questões que afetam diretamente a vida dos

telespectadores e dos leitores.

Por outro lado, é preciso analisar o envolvimento de Máiquel com o

corrupto delegado Santana, personagem dissimulado e inescrupuloso, que

procura por Máiquel para propor-lhe sociedade numa empresa de segurança e

vigilânica patrimonial – em verdade, um conluio para praticar a extorsão e o

achaque em meio à população local:

Daríamos segurança para o bairro: desde os favelados, faça as contas, se cada barraco pagar cinco dólares, ele disse, o preço tem que ser em dólar, verdade seja dita, o dólar é a nossa moeda, se

73

cada barraco pagar cinco dólares, quinhentos barracos, dois mil e quinhentos dólares, isso não é nada, é merreca, porque tem os pequenos comerciantes, os grandes comerciantes, os industriais, as multinacionais, os milionários, [...] os deputados, os inimigos dos deputados [...] tem tudo isso e todo mundo vai querer o nosso serviço, ele disse [...]. Santana entraria com o escritório, as secretárias, o telefone, a placa da firma, o advogado, e, claro, ele disse, com o poder, as influências, a cobertura. Eu entraria comigo mesmo, com a minha equipe, com o que eu sabia fazer, ele disse. O meu nome não vai aparecer no contrato social, ele disse, você sabe, eu sou delegado152.

Como se percebe, o crime é apresentado como um negócio lucrativo,

como uma mercadoria facilmente vendável no âmbito da cultura brasileira.

Essa evidência claramente exposta no livro é mantida na produção fílmica. Nos

primeiros instantes do encontro do delegado com Máiquel, a expressão facial

mostra a tensão do jovem, ao mesmo tempo em que o delegado mostra-se

sério e arrogante, demonstrando o poder que lhe advém de seu círculo de

contatos. Dentro do carro, tranquiliza gradativamente Máiquel, e diz: “Quem me

deu seu endereço foi o doutor Carvalho, eu tenho acompanhado aí o teu

serviço, o pessoal aqui do bairro está todo do seu lado, até os comerciantes te

respeitam. Eu tenho uma proposta para te fazer”. 153

Nota-se que o filme traduziu em imagens certas frases essenciais para a

construção da ideia de que a polícia corrupta, ao invés de combater a

criminalidade, contribui para reproduzi-la. O espectador fica sabendo da

proposta do delegado a Máiquel por meio da voz off, que corresponde à

narração em primeira pessoa do livro. No texto, enquanto propõe sociedade ao

jovem assassino, o delegado recebe um prato de carne mal passada

especialmente preparada a seu pedido. Máiquel compara tais hábitos

alimentares com os do dentista Carvalho: “[...] o dr. Carvalho também era

assim, carne todo dia, carne para mim, dizia o dr. Carvalho, carne para mim

tem que ser sangrando, [...] a carne do delegado também sangrava, ficava uma

poça de sangue no prato”154.

No filme, o delegado explica o funcionamento da empresa de segurança

enquanto saboreia seu prato de carne mal passada. Aqui, a enfase é dada ao

gesto, à forma como o delegado saboreia o alimento: com ganas e rapidez de

152Id. Ibid., p. 123. 153

FONSECA, Rubem. O homem do ano (Roteiro). p. 59. Disponível em: <http://www. roteirodecinema. com.br/roteiros/longas. htm#fghi>. 154

MELO, Patrícia. O matador. 2. ed. São Paulo: Companhia da Letras, 2005, p. 123.

74

quem está com muita fome. Essa atitude leva o telespectador a refletir: como

uma pessoa pode realizar uma refeição com tanta naturalidade, propondo um

négocio em que o lucro se baseia na eliminação de vidas? Talvez a resposta

esteja nas conclusões de Eric Hobsbawm sobre uma das grandes lições do

século XX: os seres humanos aprenderem que podem “viver nas condições

mais brutalizadas e teoricamente intoleráveis”155. No filme, a imagem de

Santana alimentando-se de carne é intensamente expressiva e violenta no que

tange ao descaso para com a vida humana, no que se refere às articulações

entre o crime e o derramamento de sangue expostos no livro. No contexto da

narrativa literária, percebe-se um clima emocional negativo a partir da palavra

“sangue”, que se intensifica pela associação a outras expressões, tais como,

“carne”, “todo dia”, “sangrando” e “poça de sangue”; esses elementos

linguísticos induzem o leitor a imaginar situações também negativas, tais como

“crime”, “ilegalidade”, “corrupção”, “agressão” e “morte”, fatores que serão

materializados por meio do funcionamento da empresa de segurança.

Observa-se que a adaptação preserva frases essenciais da obra literária

e, através dos gestos e expressões facias dos personagens, procura manter a

matéria narrada na obra literária. Toda a cena do diálogo entre o delegado e

Máiquel foi enquadrada utilizando o primeiro plano, ideal para aproximar o

espectador dos fatos narrados. Destaca-se a imagem em que os dois

personagens estão conversando dentro do carro. A câmera projeta a imagem,

de tal forma, que o espectador sente-se participante da ação, como se

estivesse no banco de trás do carro, como caroneiro, cúmplice da conversa.

Enquadrando a imagem em primeiro plano, destacam-se alguns

detalhes que chamam a atenção do espectador e que traduzem a ambiência

emocional do texto literário. Na cena em que os personagens estão no

restaurante, o enquadramento no rosto do delegado valoriza o ato de saborear

o alimento. A carne, neste momento, é claramente colocada em evidência.

Além disso, a claridade refletida pelas luzes do abajur que está sobre a mesa,

assim como de outros dispostos pelo ambiente, sobrepõe-se à cor escura, num

jogo de claro-escuro, evidenciando os pensamentos do protagonista que

155

HOBSBAWM, Eric (1995, p. 22), apud ALMEIDA, Suely Souza de. Violência urbana e constituição de sujeitos políticos. In: PEREIRA, Carlos Alberto et al. Linguagens da violência. Rio de Janeiro: Rocco, 2000p. 98.

75

precisa decidir se vai assumir ou renunciar a uma vida criminosa. Dessa forma,

novamente, temos uma cena em que o jogo de luzes é muito expressivo, pois a

tonalidade clara e escura do ambiente traduz a escolha de Máiquel: o escuro

estaria relacionada à aceitação da proposta, isto é, tornar-se matador

profissional, algo negativo; o claro, relacionado a fatores positivos, remete à

eventual vida correta que Máiquel poderia escolher trilhar.

Para reforçar ainda mais a ideia de que a corrupção policial contribui

para a proliferação da violência ou para a disseminação da ideia de que o

crime pode ser lucrativo, um meio fácil de ascensão social, o filme apresenta

uma cena muito interessante cortada pela seguinte declaração de Máiquel

(idêntica ao livro), em voz off: “Até matar o primeiro cara a gente pensa que

existe essa história de aprender a matar. Aprender a matar é igual a aprender a

morrer, uma dia a gente morre e pronto, acaba, se você tem uma arma na mão,

é isso, você já sabe tudo”156.

Durante essa fala e com fundo sonoro musical (a música intitulada

Matador, interpretada pelo grupo musical argentino Los Fabulosos Cadillacs),

aparecem cenas superpostas de Máiquel e sua “equipe” cometendo

assassinatos e assaltando empresas, a fim de forçá-las a contratarem os

serviços da empresa de segurança. Logo, surge a imagem do jovem

comprando roupas, carro e casa, agora feliz e deslumbrado com sua nova

condição social. A música, neste caso, torna-se elemento indispensável, pois

cria uma espécie de energia muscular para a imagem filmada obter vida.

Observa-se que “a música não é um elemento subordinado à imagem, mas

forma com ela um todo integrado, proporcionando-lhe uma dimensão vital”157. O

estilo rock latino158 empregado pela música contribui para transmitir o clima

emocional descrito no livro, mimetiza a euforia, a alegria, o entusiamo de

Máiquel por usufruir de bens materiais que jamais pensava obter tão

156MELO, Patrícia. O matador. 2. ed. São Paulo: Companhia da Letras, 2005, p. 93. 157 DIAS, Claudia Rodrigues. Análise intersemiótica: cinema e literatura. Academos – Revista Eletrônica da FIA. São Paulo, v. III, n. 3, jul./dez. 2007, p. 6. 158O rock latino é o termo utilizado para referir-se a um gênero musical de alcance internacional, característico da América Latina, das Caraíbas e das comunidades latino-americanas e caribenhas dos Estados Unidos, que se distingue usualmente pela fusão da música rock com os ritmos latino-americanos e caribenhos (como o merengue, a salsa, o chá-chá-chá, a cumbia) e pelo uso de idiomas e dialetos correspondentes a essas regiões e comunidades. Fez grande sucesso nos anos de 1990. Os principais representantes encontram-se no México, Chile, Argentina e Colômbia. Disponível em: <http://pt. encydia. com/es/Rock_latino>.

76

rapidamente. As imagens abaixo, que fazem parte de toda essa cena,

traduzem uma das críticas sociais que o livro O matador busca denunciar, por

meio de palavras:

FIGURA 5 – Corrupção e classe médio-alta financiam o crime e a violência

Constata-se que uma imagem ou uma cena numa sequência bem

organizada pode resumir o que, no livro, foi preciso páginas para descrever.

Isso exemplifica uma das diferenças entre linguagem literária e cinematográfica

desenvolvidas na primeira parte deste estudo: o que é extenso em um livro

pode ser condensado em um filme, e vice-versa.

Com a imagem de arma de um lado e dinheiro de outro, o telespectador

percebe, talvez, o grande mérito do filme: revelar a hipocrisia que existe na

sociedade brasileira. Ao mesmo tempo em que O matador e O homem do

ano mostram os comerciantes, donos de empresas, médicos, executivos, ou

seja, a classe médio-alta, o topo social – representada no personagem doutor

Carvalho e sua rede de relações – condenando os pobres, os favelados, os

mulatos, perpetuando a ideia de que estes são os grandes culpados pela

violência descontrolada que se enraizou na sociedade, também a apresenta

como produtora, financiadora da violência. Por outro lado, não se pode deixar

de analisar, conforme alerta a pesquisadora e estudiosa Maria Luiza Belloni,

que “a corrupção, a cooptação e a violência sempre foram armas usadas pelas

77

elites na manutenção do sistema de dominação”159. Ao mesmo tempo em que

lucram com o crime, a elite e os policiais corruptos mantêm a ordem e o

controle do bairro em que vivem e trabalham, conforme são representados nas

duas obras. Sem dúvida é uma acusativa visão da classe médio-alta brasileira,

pouco explorada pelas artes até então.

3.2 Violência e exclusão social

Para Anthony Pahnke, no cinema brasileiro contemporâneo, “o sujeito da

narração é „democratizado‟ no sentido que o poder de narrar agora está nas

mãos do sujeito que experimenta a violência. O sujeito não precisa de uma

elite, ou de alguém fora, para relatar sua experiência”160. Essa mudança da

narração, com sua ênfase contemporânea na primeira pessoa, valoriza,

segundo o autor, a perspectiva do lado dos sujeitos que vêm do mesmo lugar

onde tem origem a violência. Dessa forma, o personagem que relata sua

história nos reapresenta a realidade através de seus olhos. “O que é chave é

que o narrador nesses filmes não é onipotente, mas um participante no

mundo”161.

Assim como para o cinema, essa consideração vale também para a

literatura brasileira contemporânea que, desde a década 70, com influência de

Rubem Fonseca, tem dado voz aos marginalizados, mais especificamente, aos

assassinos e delinquentes. Patrícia Melo, com a mesma veia crítica do mestre,

tem se destacado no cenário nacional como escritora pela capacidade de

desvendar a mente de criminosos. No caso do livro em estudo – O matador –,

o discurso do narrador-personagem Máiquel está dentro da perspectiva da

consciência e da confissão. “É um narrador que envolve o leitor, que faz com

159BELLONI, Maria Luiza. Estética da violência. Comunicação & Educação, São Paulo, vol. 4, n. 12, mai./ago. 1998, p. 47. 160 PAHNKE, Anthony. A representação da violência autoritária no cinema brasileiro. Literatura e Autoritarismo. Dossiê “Cultura brasileira Moderna e Contemporânea”, dez. 2009, s/p. 161 Id. Ibid.

78

que este último acabe tomando partido de seus atos, absolvendo-o ou

condenando-o e, por fim, entendendo-o”162.

No filme, percebe-se que essas características permanecem, matendo a

essência do personagem. Através da voz off emprestada a Máiquel (uma das

características marcantes do cinema da Retomada e contemporâneo), o

roteirista e realizador conseguem transpor para a linguagem cinematográfica o

narrador em primeira pessoa do livro. Assim, buscam um maior envolvimento

do telespectador com as confissões, os pensamentos e atitudes do

personagem – preservando uma característica marcante da escritora Patrícia

Melo e da sua ficção.

Máiquel representa as pessoas que fazem parte da parcela pobre da

população brasileira que, devido a sua condição social, são excluídas

socialmente. Segundo estudos do professor e doutor em Ciênias Sociais José

Rogério Lopes, a exclusão social se caracteriza:

por um conjunto de fenômenos que se configuram no campo alargado das relações sociais contemporâneas: o desemprego estrutural, a precarização do trabalho, a desqualificação social, a desagregação identitária, a desumanização do outro, a anulação da alteridade, a população de rua, a fome, a violência, a falta de acesso a bens e serviços, à segurança, à justiça e à cidadania, entre outras. 163

Embora muitos fatores estejam associados à exclusão social,

geralmente é à pobreza e à desigualdade econômica que ela converge. Entre

os fatores citados por Lopes, muitos estão presentes na constituição da

personalidade criminal de Máiquel. O desemprego, a falta de acesso a bens e a

serviços, como escola e saúde, marcam a sua vida e influenciam no seu modo

de ser e pensar.

No entanto, nem sempre exclusão social gera violência. “A hipótese de

que a pobreza e a desigualdade aumentam a violência se fundamenta em

teorias que se referem basicamente aos autores de crimes, não às vítimas”.

Retomando Monteiro e Zaluar, Sérgio Adorno esclarece:

162 MESSA, Fabio. O gozo estético do crime: dicção homicida na ficção contemporânea.

Tubarão: Unisul, 2008, p. 17. 163 LOPES, José Rogério. “Exclusão social” e controle social: estratégias contemporâneas de redução da sujeiticidade. Psicologia &Sociedade, vol. 18, n. 2, mai./ago. 2006, p. 01.

79

Monteiro e Zaluar (1998), observando estimativas de mortalidade indireta, a partir de dados do censo de 1991, concluíram que o risco de ser vítima de violência letal entre crianças e adolescentes de 5 a 20 anos dobra quando a mãe pertence a uma família cuja renda per capita é inferior a um salário mínimo. O risco é também maior para mães que vivem em favelas, comparativamente ao resto da

população164. Ou seja, a maioria das vítimas da violência e homicídios não são os

ricos, mas os pobres e excluídos. Os privilegiados economicamente podem

contratar seguranças particulares, encerrar-se em condomínios de luxo,

protegidos das vicissitudes por eles próprios alimentadas.

Em O matador e O homem do ano, as impressões do leitor e

espectador a respeito de Máiquel podem variar entre a “condenação” e a

“absolvição”. O fato é que o jovem protagonista tem muitos motivos para tornar-

se criminoso, motivos provocados pela própria sociedade ao negar o acesso a

direitos essenciais e a uma vida digna. Máiquel representa os grupos de

pessoas que atacam, roubam e matam, caracterizando “um tipo de

marginalidade que reflete uma forma de resposta às contradições da sociedade

urbana”165.

É pelas marcas textuais e pelas descrições dos ambientes frequentados

pelo personagem que o leitor do livro é informado da condição social em que

transcorre a ação. No filme, essa informação é dada pelo aspecto visual, ou

seja, pelas roupas que o protagonista usa, pelos móveis de sua casa, pelo

modo de ele se expressar. Quando Máiquel caminha pela rua, cujos muros,

paredes e outdoors trazem anúncios publicitários, o espectador pode

contextualizar o espaço de ação do personagem (subúrbio e favela).

164 ZALUAR, Alba; MONTEIRO, Mario (1998) apud ADORNO, Sérgio. Exclusão socioeconômica e violência urbana. Sociologias, Porto Alegre, ano 4, n. 8, jul./dez. 2002, p. 27. 165 GULLO, Álvaro de Aquino e Silva. Violência urbana: um problema social. Tempo Social: revista de sociologia da USP, São Paulo, vol. 10, n. 1, mai. 1998, p. 108.

80

Figuras 6-7-8 – O cenário retrata a classe social de Máiquel: o subúrbio, a favela.

No livro, Patrícia Melo cria uma simbologia bem peculiar para

demonstrar a classe social a qual pertence o personagem: os sapatos e os

dentes. Na parte inicial da narrativa é dada grande ênfase à dor de dente

sentida pelo protagonista. De certa forma, esse fator foi decisivo para Máiquel

aceitar a oferta do dentista Carvalho: matar Ezequiel em troca de um

tratamento odontológico.

Por meio de algumas estratégias cinematográficas, a adaptação fílmica

intensifica a expressão da dor sentida por Máiquel: uma delas é mostrar o

protagonista automedicando-se, em plano de detalhe a câmera enquadra a

imagem do medicamento pingando no copo. A imagem projetada em ângulo de

contra-plongée (o medicamento é focalizada de baixo para cima) intensifica a

impressão de dor. Associada a essa imagem, escuta-se, em off, a voz de

Máiquel, o que contribui para claramente expressar a tensão emocional do

jovem – naquele momento ele confessa estar arrependido por ter proposto o

duelo com Suel.

Na cena em que está dançando com Cledir, a dor de dente impede que

ambos se beijem e Máiquel é aconselhado a procurar um dentista. Ambos

dançam ao som de uma música cuja letra espelha o que se passa na vida do

personagem naquele momento166. As “dores do mundo” de que trata a letra da

música remetem à “dor de dente” e à “dor de estar no mundo” que corresponde

aos múltiplos problemas da existência humana, sobretudo quando são

acentuados pela condição de pertencer às camadas socialmente excluídas. A

autoestima é intensamente afetada pela privação de dinheiro, estudos formais,

família, saúde, cultura, lazer, emprego, entre outros. O ritmo lento da canção é

166 A música tocada chama-se “As dores do mundo”, do cantor, violinista e compositor baiano do gênero soul music, Hyldon de Souza e Silva.

81

perfeito para mimetizar a ambiência emocional do momento, pois o romantismo

do casal é pontilhado pela “dor de dente” e “pelas dores do mundo”.

Para acentuar a força expressiva do refrão da música (“eu quero

esquecer de tudo, das dores do mundo”), a cena subsequente do filme mostra

Máiquel no consultório do dentista Carvalho, local em que o futuro assassino

de aluguel encontra a possibilidade de eliminar uma dessas “dores” – a do

dente. Na sequência, seduzido pela proposta do dentista e do delegado

Santana, o jovem tem a oportunidade de ilusoriamente eliminar as dores

restantes, principalmente aquelas que decorrem da privação de bens materiais.

No primeiro encontro com o dentista Carvalho, é pela voz off que

Máiquel expressa o sentimento de vergonha provocado pelo estado de seus

dentes. Nesse contexto, em panorama circular do consultório, a câmera

registra e detalha a decoração e o ambiente, como se os olhos de Máiquel

assimilassem as imagens estampadas nos cartazes: dentes sadios, sorrisos

perfeitos, um universo inacessível. As imagens traduzem as frases do livro que

expressam os desejos e o desconforto do jovem naquele ambiente estranho,

impenetrável, incomum ao universo cotidiano dos excluídos. Gradativamente, a

história contada e visualizada envolve o espectador e anuncia a dura decisão

que o jovem precisará tomar.

Os sapatos gastos consistem na demonstração mais evidente da

vergonha que o protagonista experimenta por seu estado de pobreza material e

de exclusão social. No romance, há muitas passagens que fazem dos sapatos

um índice da condição social de Máiquel, que se sente humilhado e

constrangido por trazer sapatos em tão pífio estado:

A mulher do dr. Carvalho foi mais fria, mas também agradeceu. Experimente esse cigarro americano. Percebi que ela notou o meu sapato todo fodido [...]. Meus sapatos eram feios para caralho. [...] Os meus sapatos sobre o tapete cor de creme ficaram mais fodidos ainda, a fofura do tapete realçava a feiura do meu sapato. Enfiei meus pés embaixo da mesa de centro, não deu certo, eu atrapalharia o caminho e não tive opção, fiquei com eles à mostra, de vez em quando o dr. Carvalho e o dr. Sílvio olhavam, mas o que eu podia fazer?167

167MELO, Patrícia. O matador. 2. ed. São Paulo: Companhia da Letras, 2005, p. 61-62.

82

Na adaptação fílmica, constata-se a ausência de qualquer menção aos

sapatos (peça do vestuário que se encontra até mesmo na capa do livro, haja

vista sua importância na caracterização do personagem). Uma vez que a dor

de dentes encontra-se no mesmo nível de associação simbólica que os

sapatos de Máiquel – indicam sua classe social –, é possível que, por uma

questão de escolha e interpretação do roteirista e do realizador, e também em

razão da duração da versão final do filme, optou-se por não traduzir a relação

do protagonista com os seus sapatos. Para alguns críticos, como Marcelo

Hessel168, essa opção pode ter prejudicado a tradução da construção da

personalidade do protagonista por meio de ícones e índices textuais. No

entanto, outros elementos imagéticos expressivos são acrescentados ao que

se lê no texto literário e, no filme, marcam a condição material e social de

Máiquel, tais como sua vestimenta, as ruas do bairro onde mora, os móveis e

utensílios de sua casa, as cores das paredes e muros, a música de sua

preferência, suas refeições.

Segundo o crítico de cinema Pablo Villaça, no filme, a voz do

protagonista (interpretado por Murilo Benício) é de “tom baixo e rouco, fazendo

com que Máiquel soe „apagado‟ diante dos demais personagens – uma opção

perigosa (já que ele é o centro da história), mas que acaba funcionando”169.

Funciona porque essa voz, “rouca e baixa”, traduz a condição social do

personagem que não vê perspectiva de ascensão social. Além disso, traduz a

vida medíocre de Máiquel, um desconhecido no seu próprio bairro, alguém sem

importância, sem brilho próprio – até o episódio em que assassina Suel. No

livro, o personagem declara: “sou um homem cinza”170. No filme, a voz “rouca e

baixa” do jovem, suas vestimentas, sua “cara de coitado”171, sua dor de dente,

sua residência precária, entre outros fatores, traduzem ou transcriam em

imagens o texto literário.

168HESSEL, Marcelo. O homem do ano. (Crítica). Disponível em: <http://www. omelete. com.br/cinema/io-homem-do-anoi/>. 169VILLAÇA, Pablo. O homem do ano. (Crítica). Disponível em: <http://www. cinemaemcena. com.br/Ficha_filme. aspx?id_critica=6311&id_filme=2484&aba=critica>. 170MELO, Patrícia. O matador. 2. ed. São Paulo: Companhia da Letras, 2005, p. 79. 171 Expressão usada pelo diretor José Henrique Fonseca, ao se referir à escolha do ator Murilo Benício como protagonista da história, em entrevista cedida ao jornalista Renato Silveira, na pré-estréia do filme, em Belo Horizonte. Disponível em: <http//www. cinemaemcena. com.br/Entrevista_Detalhe. aspx?ID_ENTREVISTA=18>.

83

Dessa forma, a adaptação fílmica suprime algumas informações do livro,

mas, por meio de recursos cinematográficos, representa expressivamente a

estreita relação existente entre a exclusão social e a violência. Mais expostos à

violência, os deserdados e desesperançosos (como no caso de Máiquel)

acabam encontrando nas atividades ilícitas uma oportunidade para a realização

de seus desejos materiais. Em O homem do ano e em O matador, percebe-se

que “a violência só existe quando há uma práxis corrente de negação da

alteridade, principalmente, na negação do direito da sua existência enquanto

possibilidade de humano”172.

3.3 Violência e fatalismo

Para o realizador José Henrique Fonseca, o que chamou mais a atenção

no livro O matador foi a força dos acontecimentos que levaram Máiquel ao

mundo do crime, conforme aponta: “o que me fascinou foi a ideia de fazer um

filme que mostrasse um homem comum fadado pelo destino. Em sua

ingenuidade, ele não consegue ver que é influenciado pelo ambiente que o

cerca”173. E completa: “O filme tenta compreender o porquê desse cara

[Máiquel] ter virado um matador. Por isso, deixei a violência um pouco de lado”.

Essas declarações do cineasta justificam a amenização da violência presente

na adaptação, obtida pela omissão de trechos detalhadamente descritivos

apresentados na obra literária.

Além de caracterizar muito bem o ambiente social do qual Máiquel faz

parte – o subúrbio, a favela – e a sua fragilidade para o crime (pois está mais

exposto à violência do que as pessoas de classe médio-alta), Fonseca deixa

transparecer a questão do destino na vida do personagem. Percebem-se na

adaptação fílmica detalhes que marcam muito bem a crença do protagonista no

fatalismo, presente no texto original.

172

OLIVEIRA, Dennis de; NOGUEIRA, Silas (Org.). Mídia, cultura e violência: leituras do real

e da representação na sociedade midiatizada. São Paulo: Cellac, 2009, p. 25. 173FONSECA, José Henrique. O homem do ano. 25 jul. 2003. Entrevista concedida a Renato Silveira. Disponível em: <http://www. cinemaemcena. com.br/Entrevista_Detalhe. aspx?ID_ENTREVISTA=18>.

84

O dicionário Houaiss define o fatalismo como “doutrina segundo a qual

os acontecimentos são fixados com antecedência pelo destino. Atitude moral

ou intelectual segundo a qual tudo acontece porque tem que acontecer, sem

que nada possa modificar o rumo dos acontecimentos”174.

A cultura brasileira é marcada pelo fatalismo, que interfere nas formas

de agir e pensar da população. Em função dos problemas sociais, econômicos

e culturais que afetam nosso país, muitas pessoas buscam explicação para os

fatos e para sua existência na crença de que há um destino que rege suas

vidas. As diferentes religiões praticadas no Brasil consolidam a ideia de que

existe um agente sobrenatural, responsável por causas e significados para a

vida e o universo, um agente sobrenatural capaz de controlar o destino das

pessoas.

Num país com nível elevado de criminalidade como é o Brasil, é comum

as pessoas buscarem explicações numa pretensa fatalidade que conduziria o

destino coletivo e individual. Se uma pessoa sai ilesa de um assalto ou

sequestro, por exemplo, é corriqueiro ouvirmos a expressão: “escapou dessa

porque não era a sua hora” (como se “alguém, talvez Deus”, como afirma

Máiquel, determinasse a hora e as condições da morte que nos aguarda a

todos). Por outro lado, quando se vê notícias de jovens que cometem crimes, é

comum a conclusão fatalista: “sabendo de onde ele (criminoso) vem, só

poderia dar nisso!”. Provérbios populares, muito arraigados na cultura popular

brasileira, como “filho de peixe, peixinho é” e “a fruta nunca cai longe do pé”,

também representam o fatalismo e o determinismo com que se buscam

justificar fatos de natureza aleatória ou episódica. Assim, nas páginas iniciais

de O matador, o leitor é informado sobre as crenças de Máiquel:

Antes da gente nascer, alguém, sei lá quem, talvez Deus, Deus define direitinho como é que vai foder com a sua vida. É isso. Era a minha teoria. Deus só pensa no homem quando tem que decidir como é que vai destruí-lo. Quando não tem tempo, faz uma guerra, um furacão e mata um monte, sem ter que pensar em nada. Em mim ele pensou175.

174HOUAISS, Antônio. Grande dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2008, p. 1312. 175MELO, Patrícia. O matador. 2. ed. São Paulo: Companhia da Letras, 2005, p. 15.

85

O filme preserva, com pouquíssimas alterações, essa confissão do

protagonista que é proferida em voz off, enquanto o jovem observa-se no

espelho. No final do filme, essa imagem inicial (Máiquel com os cabelos ainda

pretos) é retomada no momento em que o personagem tinge os cabelos para

fugir da polícia, após ter matado o dentista Carvalho e o delegado Santana. A

cor dos cabelos indica o retorno à condição social inicial e sugere a inexistência

de perspectivas para os excluídos: o destino é inevitável, têm mesmo razão os

fatalistas.

Numa análise comparativa, por vezes, o filme rompe com a sequência

narrativa do livro, e os acontecimentos seguem distintos ordenamentos em

ambas as obras. Por exemplo, o final do filme apresenta a fuga de Máiquel:

nesse momento, o personagem expressa um pensamento que é apresentado

na primeira parte do livro. Certamente, essa quebra da sequência literária em

relação à fílmica ocorreu devido a impossibilidade da linguagem

cinematográfica traduzir todos os trechos descritos no texto original. Além

disso, o filme se tornaria repetitivo e por vezes cansativo se procurasse atender

com a mesma proporcionalidade do texto literário os aspectos relacionados à

mente confusa de Máiquel, detalhadamente descritos no livro. Ao optar por

uma sequência linear dos fatos, a equipe de produção do filme aproxima o

enredo da história ao gosto do público e facilita a venda do produto.

É preciso considerar que a tradução intersemiótica “determina escolhas

dentro de um sistema de signos que é estranho ao sistema original”176. Tal é o

que se verifica na adaptação, por meio de recursos como a justaposição de

imagens, a voz off, o flashback, a posição das câmeras focalizando diferentes

planos, o close para marcar detalhes, a música espelhando a tensão dramática

ou emocional do episódio. A equipe de produção do filme refaz habilmente a

história apresentada no romance.

Segundo Fábio Messa, Máiquel é parecido com o típico herói

fonsequiano, pois “imerso num mundo de fantasias e equívocos, um azarado

que ao tentar livrar sua cara das irregularidades, consegue entrar ainda mais

pelo cano”. E, para justificar ou consolar-se diante dos fatos ele se apega na

crença de que é Deus quem quis assim. Nos momentos iniciais da narrativa

176PLAZA, Julio. Tradução Intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 2001, p. 30.

86

literária, o jovem confessa ao ver no espelho o resultado da tintura que o

deixou com nova aparência (loiro): “Havia uma luz na minha face, e não era

uma luz artificial de refletores. Era aquela luz que a gente vê em imagens

religiosas, luz de quem é iluminado por Deus. Foi assim que eu me senti,

próximo de Deus”177.

Esse pensamento de Máiquel está relacionado ao episódio em que ele

está no consultório do doutor Carvalho e ouve o dentista justificar a violência

usando como argumento um fato bíblico:

Pilatos, quando estava interrogando Cristo, irritado porque Cristo não respondia suas perguntas, disse: sabes que teu destino está em minhas mãos? A resposta de Cristo foi: Deus te deu esse poder. Ou seja, Cristo, o próprio Cristo admitia que não só Deus, mas o homem também, sob o comando de Deus, o homem poderia matar. Pilatos tinha esse poder, Cristo admitiu [...]. Portanto, essa história de não matarás vale até a página 3. O próprio Tomás de Aquino diz isso, matarás, se necessário, matarás em nome da lei. [...] O que ele quer dizer é que quem mata em nome da justiça não é um criminoso porque isso não é crime, deu para entender?

178

Diante dos argumentos do dentista e acreditando que o seu destino era

comandado por Deus, Máiquel deixa-se, aos poucos, ser tragado por um

mundo de fantasias e equívocos. Ilude-se com a ideia de que o seu trabalho é

higiênico, pois ajuda atirar o “lixo da rua”. No texto literário, essa ideia é

reforçada a partir da sequência dada por Patrícia Melo às palavras “destino”,

“Deus”, “poder”, “matar”, “lei”, “justiça”. Essas palavras facilitam o entendimento

da relação existente entre violência e fatalismo, uma vez que é pela

ingenuidade e propensão de Máiquel para o crime, que o dentista vai

convencê-lo a tornar-se um matador de aluguel.

Essa marca do destino, da fatalidade como resposta aos descaminhos

do protagonista pela vida criminal, está presente de forma bastante expressiva

na adaptação fílmica. O recurso da voz off é utilizado duas vezes para registrar

claramente a crença de Máiquel no destino: no início e no final do filme. No

entanto, muitas imagens relacionadas à religião e em extensão a Deus ou a

Jesus Cristo aparecem durante a narrativa fílmica. O que chama a atenção é

que essas imagens estão, na maioria das vezes, presentes no ambiente de

177Id. Ibid., p. 10. 178Id. Ibid., p. 31.

87

grande tensão dramática, sempre associadas aos crimes protagonizados por

Máiquel.

Antes mesmo de iniciar a narrativa fílmica, durante a apresentação dos

participantes da produção fílmica e do nome do filme, constata-se que uma

imagem inicialmente nebulosa e desfigurada vai se transformando na figura de

Máiquel (representado pelo ator Murilo Benício). Esse artifício muito

criativamente utilizado, representa a mente do protagonista que assim como no

livro, mostra-se confuso, sem identidade definida, deixando-se levar “como um

rio”179. Chama a atenção a palavra “Deus” que aparece escrita na testa do

jovem matador repetidas vezes:

FIGURA 9 – Imagem desfigurada do protagonista

Nas cenas em que Máiquel está esperando Suel, no duelo, percebemos

ao fundo da imagem a presença da Igreja:

179

Id. Ibid., p. 65.

88

FIGURA 10 – Máiquel à espera do duelo

No momento em que ele está no quarto, prestes a assassinar Cledir,

num súbito de raiva, o rosário na parede também reafirma a relação entre

violência e fatalismo:

FIGURA 11 – Máiquel prestes a assassinar Cledir

Outro exemplo é a imagem de Máiquel vendo Bil (o porco) servido na

bandeja, na mesma noite em que fica sabendo que seu primo Robinson fora

assassinado por Neno, um bandido que ele deveria ter matado. Na parede da

sala, visualiza-se um quadro com a imagem de Jesus Cristo:

89

FIGURA 12 – No aniversário de Máiquel, o porco é servido na bandeja

Essas imagens de símbolos religiosos reforçam a aproximação entre

violência e fatalismo, uma vez que permitem estabelecer uma relação de causa

e consequência. Ou seja, à medida que os índices de casos de homicídios,

roubos, sequestros, corrupção policial entre outros crimes crescem, as

possibilidades das pessoas justificarem os acontecimentos trágicos no

fatalismo se potencializam. Diante do estado de violência e periculosidade em

que se encontra a sociedade brasileira, as pessoas que saírem incólume aos

riscos diários oferecidos pela vida citadina sentem-se protegidas por um poder

divino ou sobrenatural, por vezes inexplicável. Por outro lado, quem se deixar

atacar pelos perigos relacionados à criminalidade, justificará que, diante das

circunstâncias e das oportunidades oferecidas pela sociedade, não há muito o

que se fazer, a não ser deixar-se levar pela engrenagem que move a

proliferação da violência. De outra forma, podemos afirmar que numa

sociedade em que

a experiência do homem se revela a cada dia de maneira intensamente violenta e o seu olhar fica fora de órbita dada a rapidez e a velocidade da circulação das informações [...] a realidade se torna incompreensível e racionalmente não explicamos o desenvolvimento

90

dos fatos cotidianos. [...] A vida nos leva simplesmente como num barco à deriva180.

Outro elemento muito bem explorado pela produção fílmica é a figura do

porco. Qual a relação desse animal com a vida de Máiquel, com sua trajetória

rumo à ascensão e depois ao declínio social? Entende-se a fatalidade como

fator de aproximação e identificação entre o jovem e o animal.

Inicialmente, Máiquel estranha ganhar de presente um porco e até irrita-

se com o animal por ele ter mastigado seu tênis. No livro, confessa achar

humilhante ter um animal como aquele: “aquilo me incomodou, mostrar o

porco, ter um porco em casa, que coisa mais humilhante”181; fato traduzido no

filme, na cena em que Cledir vai visitá-lo sem saber da existência do animal.

Os dois conversam:

Cledir: Ih, O que aconteceu com aquele tênis? Máiquel: Ah, foi o Bil! Cledir: Cachorro? Máiquel: Não, o porco. Cledir: Porco? Você arranjou um porco? Que engraçado. Cadê ele? Máiquel: Está lá no banheiro. É um leitãozinho... pra comer. Pra que você acha que eu ia ter um porco dentro de casa?

182

Quando Máiquel responde “Não, um porco”, em tom baixo, evidencia-se

claramente a vergonha e certa humilhação que sente. Para disfarçar seu

constrangimento, justifica-se declarando que o animal só está ali para ser

comido.

Ser comido. Eis o destino do porco. Eis o fator que permite Máiquel

perceber a sua condição de marginalizado na presença do animal. No livro, de

forma mais intensa, o jovem deixa transparecer uma visão fatalista das coisas,

“resquícios de consciência, pois como matara, sabe que está se encaminhando

para a própria morte, isto é, o narrador pressente que algo ruim ainda irá

acontecer”. Através do porco e das imagens religiosas anteriormente referidas,

o filme busca traduzir esse “pressentimento” do jovem e marcar que sua vida

está fadada ao fracasso, a um destino trágico, assim como o do animal. O

180 MAIA, João. O cruel: cinema e criatividade. In: DIAS, Ângela Maria; GLENADEL, Paula (Org.). Estéticas da crueldade. Rio de Janeiro: Atlântica Editora, 2004, p. 129. 181MELO, Patrícia. O matador. 2. ed. São Paulo: Companhia da Letras, 2005, p. 28. 182FONSECA, Rubem. O homem do ano. (Roteiro), p. 13. Disponível em: <http://www.

roteirodecinema. com.br/roteiros/longas. htm#fghi>.

91

porco Bil nasceu para ser comido, assim como Máiquel nasceu na favela para

ser marginalizado. E quanto a isso, nada podem fazer.

As palavras “foder”, “destruí-lo”, “guerra”, “furacão” e “mata”, presentes

no trecho literário e traduzido em voz off no filme nos momentos iniciais das

duas narrativas, relacionam o “pressentimento” do personagem com sua

crença na fatalidade dos acontecimentos. Ao mesmo tempo em que essas

palavras podem ser associadas diretamente aos crimes e assassinatos que

Máiquel viria a cometer, também expressam a negatividade, o pessimismo e a

descrença do jovem diante da vida. Para ele, é Deus quem permite que sua

vida seja fadada ao fracasso. Embora tenha tentado superar as dificuldades

socioeconômicas, não consegue livrar-se das amarras de uma sociedade que

exclui, discrimina e corrompe.

Máiquel torna-se um objeto manipulável na mão dos poderosos. Só

consegue dinheiro e fama porque se deixa corromper. Na narrativa literária,

antes de receber o “Prêmio Cidadão do Ano” (fator que, recriado, dá título ao

filme) Érica, sua amante, tenta alertá-lo sobre essa situação e convencê-lo de

que ele se tornara uma espécie de cachorro adestrado:

Você pode perguntar para qualquer policial, ela disse, desses que treinam cachorros, diga a eles, eu tenho um cãozinho inútil numa matilha e imediatamente você terá um leão. Sim, na matilha, matilha é essa merda que vai juntando, e vai crescendo, e vai quebrando vidros, e dando porrada no adversário, e arrebentando vitrines, e saqueando, e estuprando. Foi isso que aconteceu com você, ela disse, e é por isso que você vai ganhar uma medalha. Eles estão orgulhosos porque te ensinaram isso, o ódio, a lama, e você ama esse ódio, essa lama, essa porcaria toda, você ama, ama como um cãozinho medroso ama matilha, essa lama, e sabe por quê? Não é porque você é um leão, não é nada disso. É porque no ódio você se sente igual àqueles caras que vão estar lá no baile e que se deram bem na vida consertando coisas quebradas, vendendo, alugando, plantando, construindo, operando, comprando, roubando, administrando, mentindo e te contratando, e por isso você vai ganhar uma medalha, ela disse183.

Algumas frases do trecho acima são preservadas na tradução fílmica e

outras, como a questão de Máiquel ser comparado a um “cão adestrado”, são

traduzidas em forma de imagem. Observa-se que a maneira como Máiquel

cuida de Bil está muito próxima ao tratamento que as pessoas costumam dar a

animais de estimação, mais especificamente, a cachorros – o jovem dá banho

183MELO, Patrícia. O matador. 2. ed. São Paulo: Companhia da Letras, 2005, p. 165.

92

no animal, conversa com ele, lhe dá um nome, serve ração em um prato, em

alguns momentos permite que o animal circule livremente pela casa e, em

outros, o leva pela coleira para caminhar na rua. As imagens abaixo

evidenciam essa questão:

FIGURA 13-14-15 – Máiquel cuida do porco como um animal de estimação

É através da imagem do porco que o filme consegue traduzir a condição

de animal/objeto manipulável em que Máiquel se transformou nas mãos dos

poderosos. O apego do jovem ao animal, evidenciado a partir dos cuidados a

ele dedicados, comprovam que Máiquel via no porco a sua própria condição

social que é tão fatalista quanto a do animal.

Prova está no momento em que Máiquel descobre que se tornara um

“revólver”184 nas mãos dos poderosos. Apesar de ter conseguido tudo o que

sempre sonhou, não conseguiu livrar-se de sua condição “porcina”, ou seja, da

condição de ser “devorado” por uma sociedade desigual, corrupta e excludente.

O seu destino estava traçado. O tratamento afetuoso que o jovem dedica ao

animal é aquele que gostaria de receber da sociedade.

Além disso, tanto a narrativa fílmica quanto a literária deixam evidente a

progressão do ódio na vida de Máiquel. No trecho literário, Patrícia Melo utiliza

estratégicas linguísticas interessantes para representar essa questão. Observa-

se que a rede de relações pessoais de Máiquel é comparada a uma “matilha” –

o protagonista encontra-se na mesma condição daqueles cachorros que são

cercados e atacados por outros, em bando (vê-se acuado, sem saída). As

palavras “quebrando”, “porrada”, “arrebentando”, “saqueando”, e “estuprando”

são colocadas no mesmo campo semântico para marcar a destruição que a

criminalidade causou na vida do jovem matador.

184Id. Ibid., p. 195.

93

Na metade final do trecho percebe-se que a crítica social formulada por

Patrícia Melo se intensifica. Há uma associação entre crime/violência e

medalha/prêmio (Máiquel recebe um prêmio por assassinar pessoas). O

caráter contraditório dessa associação expõe com precisão a hipocrisia, a

corrupção e a impunidade presente no Brasil, materializada pelo uso de

metáforas e pela escolha lexical. O encadeamento de verbos empregados na

forma nominal do gerúndio, tais como “vendendo”, “alugando”, “plantando”,

“construindo”, “operando”, “comprando”, “roubando”, “administrando”,

“mentindo” e “contratando”, que encerram o trecho, imprimem sonoridade à

escrita e levam o leitor a perceber que a situação metaforizada por Patrícia

Melo parece incontrolável. O gerúndio indica uma ação em andamento, um

processo verbal ainda não finalizado, o que permite ao leitor perceber a

violência como um fenômeno de duração ininterrupta que, numa progressão

sem fim, atinge todas as classes sociais. Mais uma vez, ao utilizar uma

linguagem que agride o leitor, a escritora aproxima a violência narrada da

violência por ele percebida no seu universo cotidiano.

A palavra “lama”, que aparece três vezes no texto, numa combinação

com o vocábulo “ama”, imprime um jogo de significados muito bem explorados

e recriados na narrativa fílmica. Ao mesmo tempo que a palavra “lama”

associa-se diretamente à vida criminal e desregrada optada por Máiquel, reitera

a sua identificação com o porco (animal que no seu habitat natural vive em

meio a lama). Mais uma vez, confirma-se a constatação fatalista de que

Máiquel e o porco Bil possuem condições existenciais semelhantes. Ao

transpor a palavra “lama” para o campo semântico figurado, a escritora permite

associarmos a vida de Máquel à vida de um porco. Ou seja, da mesma forma

que o animal vive em meio a sujeira e sente-se bem nessa condição, Máiquel

sente-se confortável sendo um matador profissional a partir do momento que

percebe que essa “profissão” lhe rende dinheiro e fama. No entanto, após

ambos serem bem tratados, acabam prejudicados: o porco será comido e

Máiquel “descartado”, excluído pela classe social que o impulsionou para a

criminalidade.

No entanto, Érica alerta o jovem sobre seu estado de manipulação

diante dos poderosos, o que permite uma outra possível associação: assim

como o destino do porco é viver em meio a sujeira, o destino de Máiquel

94

também o é. A sujeira, nesse caso, tem seu sentido ampliado: simboliza o

estado de degradação a que chegou o jovem a partir do momento em que se

deixa manipular e/ou condicionar. Interessante destacar que a palavra “lama” é

empregada no texto literário em um contexto semântico que compara Máiquel a

um cachorro adestrado. O filme reinterpreta essa passagem e a aglutina na

imagem do porco, especialmente ao apresentar semelhanças do

comportamento do animal ao comportamento de um cachorro (conforme já

explicitado).

Vale ressaltar que, ainda na primeira parte da narrativa, quando

Máiquel era tomado pela dúvida em aceitar ou não ser um matador de aluguel,

ele pensa:

Enquanto caminhava e olhava para os meus sapatos fodidos, eu pensava que a vida é uma coisa engraçada. Ela vai sozinha, como um rio, se você deixar. Você também pode botar um cabresto, fazer da vida o seu cavalo. A gente faz da vida o que quer. Cada um escolhe a sua sina, cavalo ou rio185.

Mais uma vez, percebe-se que a sequência narrativa é alterada na

tradução fílmica, uma vez que busca recriar o texto original adequando-o a uma

nova linguagem. Usando da criatividade e da autonomia estética, roteirista e

realizador optaram por colocar esse trecho de O matador, com pouquíssimas

alterações, nos instantes finais do filme. Na versão literária, observa-se que o

princípio motivador do pensamento ou reflexão do jovem é a associação que

faz entre a sua vida medíocre e o seu sapato. Logo, aceitar ser um matador de

aluguel poderia proporcionar-lhe uma vida melhor, com mais dignidade, neste

caso, representada por sapatos novos.

Essa passagem em que Máiquel compara a vida com um rio ou cavalo é

traduzida em voz off na narrativa fílmica. A declaração acontece logo após o

protagonista pintar o cabelo de preto, num posto de gasolina, prestes a fugir da

polícia. Esta imagem está associada à outra que havia aparecido no início do

filme, quando ele também confirmava a crença de que é Deus quem comanda

o destino das pessoas. Dessa forma, traduz a escolha de Máiquel em ser “rio”,

ou seja, acreditar que o destino está traçado – para o rio, não importa o

percurso realizado, seu destino sempre será o oceano. Embora fosse tarde

185Id. Ibid., p. 65

95

para isso, o protagonista percebe que ele pode comandar seus atos (ser

“cavalo”), pois nesse momento de sua trajetória rumo à ascensão social, já

havia percebido sua condição de “objeto”, de “animal adestrado” que fora nas

mãos dos poderosos.

No final da película, a cena de Máiquel olhando-se no espelho numa

espécie de autoavaliação retoma a imagem inicial do filme em que o

protagonista pinta o cabelo de loiro e passa a sentir-se diferente, revigorado,

com uma força que ele não sabe de onde vem. Essa cena traduz uma frase

que está nos instantes finais da narrativa literária: “queria deixar tudo para

trás”186. Ao voltar ter a aparência inicial (cabelos pretos) é como se o jovem

voltasse a ter a identidade que o insere na mediocridade e na pobreza. Elimina

de sua vida a possibilidade de sonhar com uma vida digna e confortável ao

mesmo tempo que reforça a ideia já traduzida pela imagem do porco e dos

símbolos religiosos: na condição de marginalizado, Máiquel não escapa da

fatalidade dos acontecimentos. Imerso num mundo de violência, ou tenta

através dela buscar ascensão social, ou deixa-se marginalizar ainda mais.

Assim como o oceano é o destino do “rio”, a marginalidade é o destino de

Máiquel.

186Id. Ibid., p. 204.

96

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo comparatista de O matador e O homem do ano abre

questões que exigem continuidade de estudos. A temática da violência urbana,

foco deste estudo comparativo, pode ser analisada a partir de outros tópicos,

uma vez que muitas outras estratégias podem ser exploradas e interpretadas

quando da tradução do texto literário para o fílmico.

Três caminhos foram percorridos para alcançar o objetivo proposto pela

pesquisa. O primeiro concentrou-se na compreensão da abrangência dos

estudos literários comparados, da sua relação com outras áreas do

conhecimento e outras artes. A partir do diálogo da literatura com o cinema,

surge a adaptação fílmica, entendida como tradução intersemiótica.

Em uma tradução intersemiótica, é preciso considerar as especificidades

de cada signo que está sendo analisado. Como este estudo concentra-se na

análise de signos pertencentes a diferentes sistemas sígnicos – um verbal e

outro sonoro-visual –, foi preciso investigar as características próprias da

linguagem literária e da linguagem cinematográfica, pois, na tradução entre

diferentes sistemas de signos, tornam-se relevantes as relações entre os

sentidos, meios e códigos187. Constatou-se que, embora sendo muito diferentes

na maneira de expressar ou representar as percepções do artista frente ao

mundo factual, os signos aproximam-se pela narratividade. Em outras palavras,

“existe entre romance e cinema um parentesco psicológico, sociológico e

estético, porque ambos se configuram como narrativas”188. Tanto livro quanto

filme contam histórias, representam as inquietações do ser humano diante da

vida; para isso cada signo busca estratégias específicas. Elementos como

espaço, tempo, narrador, personagens, que no texto literário são apresentados

ao leitor através de marcas linguísticas, de figuras de linguagem ou de

pontuações bem marcadas, por exemplo, no texto cinematográfico, são

apresentados por meio de recursos como voz off, o flashback, a justaposição

187PLAZA, Julio. Tradução Intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 2001, p. 45. 188

MESSA, Fabio. O gozo estético do crime: dicção homicida na ficção contemporânea. Tubarão: Unisul, 2008, p. 203.

97

de imagens, o posicionamento da câmera em planos distintos, a sonoridade, as

cores, o vestuário, entre outros recursos.

Pensar sobre a adaptação fílmica e, por conseguinte, na comparação

entre o livro e o filme, levou-nos a adentrar em questões importantes e

necessárias ao investigador comparatista. Entre elas está a fidelidade do filme

ao texto original, motivo de divergências entre críticos da literatura e do cinema.

Muitos deles entendem que todo tradutor possui liberdade criativa e que,

portanto, não precisa ser fiel ao texto original. O filme nem sempre irá

conseguir traduzir todos os elementos presentes no texto literário – cada signo

possui dinâmicas e diferenças essenciais à sua produção, conforme alerta

Randal Jonhson189. Nesse sentido, para adaptar a linguagem literária à

cinematográfica, o cineasta (e toda sua equipe de produção fílmica: como

vimos, o tradutor é coletivo) vai imprimir estilo próprio ao novo texto traduzindo

o que “considera importante dentro de um projeto criativo, aquilo que nele

suscita empatia ou simpatia como primeira qualidade de sentimento”190.

O segundo caminho em que se desdobra a pesquisa corresponde a uma

análise da produção literária e cinematográfica desenvolvida nos anos 1990-

2010, especialmente no que refere à representação da violência urbana. Em

consequência, fomos levados a investigar e compreender o contexto histórico-

social do Brasil nesse período. Diversos estudos demonstram que, na década

de 1980, o Brasil foi tomado pela violência em níveis assustadores. A década

subsequente segue testemunhando fenômenos sociais violentos como

homicídios, assaltos, sequestros e chacinas, chegando a registrar índices

elevadíssimos: entre os anos 1980 e 2004, 600 mil brasileiros foram

assassinados.

Em consequência, diversas manifestações artísticas passam a tematizar

tal fenômeno em seu universo cotidiano, e cumprem sua função social. Autores

da chamada geração de 1990, como Marçal Aquino, Fernando Bonassi, Luiz

Ruffato, André Sant‟Anna, Paulo Lins e Patrícia Melo, cada qual ao seu estilo,

buscam interpretar o universo urbano. Patrícia Melo dedica seus livros a

desvelar a mente de criminosos, retratando o universo factual em que esses

189JOHNSON, Randal. Literatura e cinema – Macunaíma: do modernismo na literatura ao cinema novo. Trad. Aparecida de Godoy Johnson. São Paulo: T. A. Queiroz, 1982. 190PLAZA, Julio. Tradução Intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 2001, p. 34.

98

sujeitos vivem – a favela. Em O matador, dá voz a um personagem

marginalizado que narra sua trajetória de ascensão e declínio social por meio

do crime. Com uma linguagem corrosiva, violenta, despudorada, a autora cria

uma narrativa que agride o leitor; as frases curtas, cadenciadas por uma

pontuação gráfica fragmentadora e por palavras que imprimem tensão e

violência narrativa, exprimem uma interpretação da violência urbana no Brasil.

Na terceira parte do presente estudo, é feita uma análise comparativa

entre o livro e o filme, no tocante às formas de estetização da violência numa

perspectiva intersemiótica. Constatou-se que o filme de José Henrique

Fonseca mantém o eixo norteador do livro O matador: a violência como meio

de ascensão social. O processo de adaptação ressignifica esteticamente a

fonte original e reforça sua crítica social. A maneira como cada artista denuncia

a corrupção e a exclusão social existente na sociedade brasileira está

relacionada com a particularidade de cada linguagem sígnica analisada.

Através de técnicas específicas, utilizando de particular maestria, Patrícia Melo

utiliza o signo linguístico para aproximar o leitor das ações narradas e da

ambiência emocional em que transcorrem as ações empreendidas por Máiquel.

Optar por um narrador em primeira pessoa, que protagoniza os fatos e que

está numa perspectiva da consciência e da confissão, possibilita um maior

envolvimento do leitor com a história contada. Além disso, a violência narrativa

do texto de Melo é traduzida através de frases curtas, encadeadas por vírgulas

e por palavras ou expressões que, pela expressividade semântico ou sonora,

incorporam um clima tenso e negativo ao que se está narrando, compatível

com situações violentas ou relacionadas à criminalidade.

Percebe-se que essa ambiência emocional presente no romance O

matador foi traduzida para o filme O homem do ano através de recursos como

a voz off, que possibilita ao cineasta manter a característica do fluxo de

consciência que é apresenta no texto literário; da focalização da câmera com

close no rosto do personagem capturando detalhes ou em ângulos plongée e

contra-plongée; da justaposição de imagens; da trilha sonora; das cores e

iluminação empregadas nas cenas. Também, tornam-se importantes a escolha

e disposição dos objetos em uma cena, como no caso dos símbolos religiosos

que, no filme, aparecem várias vezes para traduzir a crença de Máiquel no

destino ou na fatalidade dos acontecimentos.

99

Ainda, destaca-se o fato de que nem todos os elementos e episódios

presentes na fonte original precisam ser traduzidos. Exemplo são os sapatos

do protagonista, que, na obra literária obteve grande destaque para marcar a

classe social a que pertence Máiquel. Apesar de suprimir esse elemento da

narrativa fílmica, constatou-se que outros como os dentes cariados, o vestuário

e o espaço onde os fatos acontecem foram aproveitados para traduzir a

exclusão social do jovem matador.

A expressão estética da violência urbana analisada nas duas obras está

alavancada por uma crítica feroz à classe médio-alta brasileira e ao sistema

policial brasileiro, que, por ser corrupto e negligente, auxilia na manutenção ou

no agravamento da criminalidade do país.

A estética da violência se consolida na ficção de Patrícia Melo e de José

Henrique Fonseca porque, além de estabelecer uma crítica ou denúncia social,

cada artista, ao seu estilo, buscou alternativas para capturar a violência do

mundo factual e traduzi-la para o universo fictício. O filme O homem do ano

aproveita muitos elementos do texto literário e mantém o que possa vir a ser o

grande mérito do livro de Melo: inverter a ordem como percebemos os fatos,

isto é, possibilitar ao leitor/espectador compreender ou sensibilizar-se com a

vida das pessoas que são marginalizadas e entender que a violência não se

restringe a uma classe social específica. Portanto, ao serem produzidas, essas

obras assumiram um compromisso social e estético com o seu tempo.

100

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106

GLOSSÁRIO

Cenarista ou cenógrafo: é o profissional responsável pelos cenários onde são

realizadas as filmagens, trabalhando sob orientação do diretor ou realizador

(quando não acumula essas funções). É de sua responsabilidade procurar

locações adequadas, adaptá-las ou, quando necessário, criar e supervisionar a

montagem de cenários.

Contra-plongée: posição da câmera com o olhar de baixo para cima. Também

é chamada de “câmera baixa”.

Diretor e realizador: principal responsável pela execução do filme, liderando a

equipe de filmagem e transformando o roteiro em imagem. Coordena e controla

todas as etapas criativas de um filme. Sua responsabilidade vai além do que

será focado pelas câmeras, pois define o filme antes de começarem as

captações de imagens como, por exemplo, na escolha de atores e locais onde

as cenas serão desenvolvidas. Enquanto o diretor possui liberdade de escolhas

e criação artística, pois realiza uma produção independente (cinema de autor),

o realizador deve ter sempre uma preocupação constante em adequar suas

possibilidades com o orçamento e cronograma previamente estipulados pelo

produtor do filme (cinema comercial), limitando, por vezes sua liberdade de

criação.

Enquadramento: limites laterais, superior e inferior da cena filmada. É a

imagem que aparece no visor da câmara.

Figurinista: sob a orientação do diretor ou realizador é o responsável pelo

vestuário usado pelos atores. É ele quem escolhe roupas, calçados e

acessórios condizentes com a situação a ser filmada.

Focalização: segundo Jacques Aumont, esse termo óptico que significa

“concentração em um ponto” foi proposto por Genette para traduzir a

expressão americana focus of narration – que designa o “foco narrativo”, ou

seja, o ponto de onde a narrativa é relatada a cada instante (pelo narrador, por

uma personagem etc.).

107

Maquiador: é o profissional responsável pela preparação da pele dos atores

para que pareça o mais natural possível durante a filmagem. Seu trabalho pode

variar entre realizar uma maquiagem aparentemente natural e a maquiagem

caracterizadora, utilizada principalmente em efeitos especiais (embelezar ou

rejuvenescer uma pessoa, por exemplo).

Mímesis: palavra grega que significa “imitação”. Designa a ação ou faculdade

de imitar; cópia, reprodução ou representação da natureza, o que constitui, na

filosofia aristotélica, o fundamento de toda a arte. Os conceitos de mímesis e

poeisis são nucleares na filosofia de Platão, na poética de Aristóteles e no

pensamento teórico posterior sobre estética, referindo-se à criação da obra de

arte. Em artes tão autônomas e ao mesmo tempo tão próximas entre si como a

literatura, a música, o teatro e o cinema, o artista se destaca pela forma como

consegue imitar a realidade.

Mixagem: É processo de armazenamento de áudio/ sonoridade do filme; é a

atividade pela qual várias fontes sonoras são combinadas. As fontes podem ter

sido gravadas ao vivo ou em estúdio e podem ser de diferentes instrumentos,

vozes, seções de orquestra, ruídos, sons incidentais, entre outros. O dispositivo

utilizado para mixagem é conhecido como mixer, mesa de som ou console de

mixagem.

Panorâmica: câmera que se move de um lado para outro dando uma visão

geral do ambiente. Rotação da câmera em torno de um eixo fixo.

Plano: corresponde a um determinado ponto de vista em relação ao objeto

filmado (quando a relação câmera-objeto é fixa); sugere, segundo Ismail

Xavier, um segundo sentido para este termo que passa a designar a posição

particular da câmera (distância e ângulo) em relação ao objeto.

Plano Americano: trata-se de um enquadramento que realiza um corte na

altura dos joelhos ou coxa da personagem. Muito utilizados nos westerns e

bang-bangs , principalmente nas cenas de duelo, em que o elemento principal

a ser focado, quando se mostravam os dois adversários frente a frente, era o

movimento das mãos sacando a arma.

Plano de Conjunto: emprega-se esse tipo de enquadramento quando se

deseja apresentar o corpo inteiro de um indivíduo, ou mesmo um grupo,

revelando fisicamente suas características físicas, bem como as do ambiente.

108

Plano de detalhe/close: enriquece algum elemento fundamental em algum

momento da ação. São elementos vistos com detalhes, como expressões

faciais, uma lágrima escorrendo no rosto ou um determinado objeto, por

exemplo.

Plano Geral: apresenta todos os elementos que compõem a cena sem

priorizar nenhum deles (os personagens não podem ser identificados).

Normalmente se aplica esse tipo de plano quando se deseja apresentar o

ambiente no qual irá ocorrer a ação.

Plano Médio: enquadra o personagem da cintura para cima. O foco de atenção

é o personagem, eliminando quase que por completo a maior parte do cenário.

Plongée: posição da câmera com o olhar de cima para baixo. Também é

chamada de “ câmera alta”.

Primeiro Plano: utiliza-se quando se tem por objetivo principal destacar

diálogos entre personagens. O corte é realizado da metade do tórax para cima.

Trata-se de um dos planos mais comumente utilizado, pois possibilita trabalhar

com detalhes que queiram ser destacados no contexto.

Primeiríssimo plano: o rosto do personagem ocupa praticamente toda a

totalidade da tela, eliminando o ambiente. A intenção ao utilizar esse

enquadramento é intensificar a carga dramática da cena.

Produtor: é basicamente o responsável por pagar pelos custos da produção

fílmica. Normalmente espera, ao final, obter lucro financeiro ou algum outro tipo

de compensação pelo capital investido. O mais comum no Brasil são

produções realizadas por uma pessoa jurídica, muitas vezes em parceria, ou

mesmo financiando pessoas físicas de algum programa de patrocínio ou

mercado.

Roteirista: a partir de um argumento, ideia ou concepção sobre uma

possibilidade de filmagem, inicia o trabalho do roteirista. É ele quem cria o texto

que contém a sequência a ser produzida, a sequência de falas dos

personagens e/ou narrador, desenvolvida em uma linguagem específica.

Travelling: ou “carrinho”; movimento de translação da câmera ao longo de uma

direção determinada. A câmera em movimento acompanhando, por exemplo, o

andar dos atores, na mesma velocidade.

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Voz off: voz proferida por alguém que não aparece visualmente em cena.

Muito utilizada para marcar a narração em primeira pessoa ou destacar

pensamentos dos personagens.