lingua e estilo de elomar

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Darcilia Simes (org.) Luiz Karol & Any Cristina Salomo

Lngua e Estilo de Elomar

Colaborao de Fernanda Piccinini (bolsista de IC-UERJ)

2006

FICHA CATALOGRFICA

S469.791 Lngua e Estilo de Elomar / Darcilia Simes (org.); Luiz Karol & Any Cristina Salomo Rio de Janeiro: Dialogarts, 2006. p. 150 Publicaes Dialogarts Bibliografia. ISBN 85.86837-22-9 1. Lngua portuguesa. 2. Variedades do portugus. 3. Ensino. 4. Elomar Figueira Mello. 5. Semitica. I. Simes, Darcilia III Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Departamento de Extenso. IV. Ttulo. CDD.869.1 CDD. 412

Correspondncias para: UERJ/IL - a/c Darcilia Simes R. So Francisco Xavier, 524 sala 11.139-F Maracan - Rio de Janeiro: CEP 20 569-900 Contatos: [email protected] [email protected]

Copyrigth @ 2005 Darcilia Simes Publicaes Dialogarts (http://www.darcilia.simoes.com)

Coordenadora/autora do volume: Darcilia Simes [email protected] Co-coordenador do projeto: Flavio Garca [email protected] Coordenador de divulgao: Cludio Cezar Henriques: [email protected] Diagramao: Luiz Karol e Any Cristina Salomo Reviso: Luiz Karol e Any Cristina Salomo Logotipo: Rogrio Coutinho

Centro de Educao e Humanidades Faculdade de Formao de Professores DELE Instituto de Letras LIPO UERJ- DEPEXT SR3 - Publicaes Dialogarts 2006

Esta obra s se tornou possvel com a colaborao dos pesquisadores Luiz Karol e Any Cristina Salomo, ambos mestres em Letras pela UERJ e profundos admiradores da obra de Elomar. A eles apresentamos nossos sinceros agradecimentos. Tambm agradeo o trabalho da bolsista de Iniciao Cientfica PIBIC UERJ 2003/2005 Fernanda Piccinini.

LNGUA E ESTILO DE ELOMARApresentao .................................................................................................................. 7 Prefcio........................................................................................................................... 8 Relaes entre linguagem e cultura.............................................................................. 10 0. Reflexo inicial.................................................................................................... 10 1. Novos caminhos para uma antiga meta ............................................................... 13 2. Ensino da lngua e da cultura............................................................................... 14 3. Algumas palavras sobre folclore ......................................................................... 16 4. Sobre vocabulrio e informaes culturais.......................................................... 22 5. Referncias bibliogrficas (ou fontes de consulta):............................................. 26 Trovador, cantador e muito mais: Elomar.................................................................... 28 Da Cantiga popular pera .......................................................................................... 41 A pera em lngua portuguesa...................................................................................... 46 A pera brasileira de Elomar........................................................................................ 48 A Lngua de Elomar: apresentao do Corpus Elomarianum ...................................... 59 0. Algumas consideraes filolgicas ..................................................................... 59 1. Critrios de seleo do corpus............................................................................. 62

1.1 1.22. 3.

Segundo a natureza dos textos.......................................................... 62 Segundo os estilos lingsticos utilizados ........................................ 62

Critrios de assentamento do texto...................................................................... 62 Estabilizao do texto - edies utilizadas .......................................................... 63

3.1 3.24.

Fontes Discogrficas......................................................................... 63 Fontes digitais:.................................................................................. 66 Trechos em norma padro ................................................................ 67 Trechos dialetais ............................................................................... 67 A Donzela Tiadora..................................................................... 70 Funo........................................................................................ 71 A nica Esperana (In rias Sertnicas) .................................. 72 A Leitura (In rias Sertnicas) Faixa 7 ..................................... 73 A Meu Deus um Canto Novo .................................................... 75 A Pergunta (do O Tropeiro Gonsalin).................................... 76 Acalanto ..................................................................................... 78 Agora eu sou feliz ...................................................................... 79 ria do apartamento (In rias Sertnicas) ................................ 81 Arrumao ............................................................................... 82 Bespa (do Auto da Catingueira) ........................................... 83 Campo Branco ......................................................................... 85 Cano da catingueira.............................................................. 86 Cantada .................................................................................... 87 Cantiga de Amigo .................................................................... 88

Critrios de edio e etiquetagem........................................................................ 66

4.1 4.25.

Letras Comentadas .............................................................................................. 70

16.1.1. 16.1.2. 16.1.3. 16.1.4. 16.1.5. 16.1.6. 16.1.7. 16.1.8. 16.1.9. 16.1.10. 16.1.11. 16.1.12. 16.1.13. 16.1.14. 16.1.15.

16.1.16. 16.1.17.

Cantiga do Estradar.................................................................. 89 Canto de Guerreiro Mongoi................................................... 91

16.1.18. Cantoria Pastoral...................................................................... 92 16.1.19. 16.1.20. 16.1.21. 16.1.22. 16.1.23. 16.1.24. 16.1.25. 16.1.26. 16.1.27. 16.1.28. 16.1.29. 16.1.30. 16.1.31. 16.1.32. 16.1.33. Carta de arrematao (In rias Sertnicas) Faixa 9 ................ 93 Cavaleiro do So Joaquim ....................................................... 96 Contradana (In Fantasia leiga...) Faixa 4 ............................... 97 Chula no Terreiro..................................................................... 98 Clari (do Auto da Catingueira)......................................... 100 Corban.................................................................................... 101 Curvas do Rio ........................................................................ 102 Dana da fogueira (In rias Sertnicas) Faixa 2 ................... 104 Dassanta (do Auto da Catingueira) .................................... 105 O Pidido (do Auto da Catingueira) .................................... 106 Desafio do Auto da Catingueira............................................. 108 Deserana............................................................................... 110 Estrela Maga dos Ciganos...................................................... 111 Faviela (in Cartas Catingueiras) ............................................ 112 Gabriela.................................................................................. 114

16.1.34. Incelena pra terra que o sol matou ....................................... 115 16.1.35. 16.1.36. 16.1.37. 16.1.38. 16.1.39. 16.1.40. 16.1.41. 16.1.42. 16.1.43. Joana Fl das Alagoa ............................................................. 117 Louvao................................................................................ 118 Na Quadrada das guas Perdidas.......................................... 118 Parcelada (do Auto da Catingueira) ................................... 120 Patra va do serto (in rias Sertnicas) Faixa 3 .................. 121 Recitativo (in Auto da Catingueira)....................................... 122 To tarde e nem sinal (in rias Sertnicas) Faixa 6 .............. 126 Tirana da Pastora (in Auto da Catingueira) ........................... 127 Zefinha ................................................................................... 128

Estudos semiticos dos signos verbais nas letras. ...................................................... 130 Era uma vez................................................................................................................ 150

ApresentaoO presente livro resultado do projeto de pesquisa homnimo Lngua e Estilo de Elomar contemplado com uma bolsa de Iniciao Cientfica UERJ no perodo de 2003 a 2005. A bolsista de graduao Fernanda Piccinini atuou no estabelecimento do corpus e no levantamento e anlise de dados, com os quais os pesquisadores operaram na produo desta obra. Esperamos com isso estimular a participao dos graduandos na pesquisa cientfica, assim como, ao dar a conhecer a obra do compositor baiano, encorajar outros estudiosos a desbravarem a cultura brasileira ainda virgem, sobretudo quanto explorao lingstica, para que os estudantes tomem conhecimento de nossa riqueza para alm dos bens materiais apregoados e ambicionados pelos povos estrangeiros. preciso que nos conheamos melhor, para que nos respeitemos e nos imponhamos no panorama contemporneo da globalizao. E para iniciar esse processo de conhecimento, trago algumas palavras de Vincius de Morais (o poetinha) sobre Elomar Figueira Mello:A mim me parece um disparate que exista mar em seu nome, porque um nada tem a ver com o outro. No dia em que o serto virar mar, como na cantiga, minha impresso que Elomar vai juntar seus bodes, de que tem uma grande criao em sua fazenda Duas Passagens, entre as serras da Suuarana e da Prata, em plena caatinga baiana, e os ir tangendo at encontrar novas terras ridas, onde sobrevivam apenas os bichos e as plantas que, como ele, no precisam de umidade para viver; e ali fincar novos marcos e ficar em paz entre suas amigas as cascavis e as tarntulas, compondo ao violo suas lindas baladas e mirando sua plantao particular de estrelas que, no ar enxuto e rigoroso, vo se desdobrando medida que o olhar se acomoda ao cu, at penetrar novas fazendas celestes alm, sempre alm, no infinito latifndio. Pois assim Elomar Figueira de Melo: um prncipe da caatinga, que o mantm desidratado como um couro bem curtido, em seus trinta e quatro anos de vida e muitos sculos de cultura musical, nisso que suas composies so uma sbia mistura do romanceiro medieval, tal como era praticado pelos reis-cavaleiros e menestris errantes e que culminou na poca de Elizabeth, da Inglaterra; e do cancioneiro do Nordeste, com suas toadas e teras plangentes e suas canes de cordel, que trazem logo mente os brancos e planos caminhos desolados do serto, no fim extremo dos quais reponta de repente um cego cantador com os olhos comidos pelo glaucoma e guiado por um menino-anjo,a cantar faanhas de antigos cangaceiros ou causosescabrosos de paixes esprias sob o sol assassino do agreste. (...) Vincius de Moraes1, abril de 1973.

Darcilia Simes Ps-doutoranda em Comunicao e Semitica sob a superviso de Lcia Santaella (PUC_SP) Doutora em Letras Vernculas (UFRJ) Coordenadora do Curso de Especializao em Lngua Portuguesa (UERJ)1

Apresentao no disco Elomar nas barrancas do Rio Gavio. CDB PHONOGRAM

PrefcioNo princpio, era o canto. O canto se fez em poesia. E a unio de ambos gerou a obra elomariana. Estud-la sempre foi um desafio para a Academia e, ao enfrent-lo, Darcilia Simes (organizadora), Luiz Karol e Any Cristina Salomo mostraram competncia filolgica e sensibilidade lingstica na anlise das letras das canes de Elomar, o Trovador do Serto. Importante ressaltar a participao da bolsista de Iniciao Cientfica (UERJ), Fernanda Piccinini, que atuou no levantamento e classificao dos dados do corpus. O preconceito acadmico em relao a corpus no-literrio sempre esteve presente em parte do meio universitrio, principalmente no que respeita abordagem de letras de msica. Nos anos 70, Anazildo Vasconcelos da Silva abriu as portas da Universidade ao analisar, em sua Dissertao de Mestrado, a poesia de Chico Buarque. Desde ento, passou-se a distinguir poesia literria e poesia musical para fins de anlise acadmica. Com o caminho aberto, realizaram-se novas pesquisas sobre letras musicais, como os estudos das obras de Aldir Blanc (Dissertao de Mestrado) e de Antnio Nbrega (Tese de Doutorado). A integrao entre msica e literatura foi reforada, entre outros, por Caetano Veloso, Chico Buarque e Renato Russo, que musicaram versos de Gregrio de Matos, Drummond e Cames. No se pode esquecer, ainda, que no Medievalismo a poesia era para ser cantada, como atestam as Cantigas de Amor, de Amigo, de Escrnio e Maldizer. Tudo isso est, em certa medida, presente nas canes de Elomar, autor que transita entre o erudito e o popular quando registra, musical e poeticamente, nossa cultura interiorana. Os autores de Lngua e Estilo de Elomar do, em texto impecavelmente elaborado, importantssima contribuio aos estudos lingsticos. Dissecam, com maestria, a obra do poeta trovador e mostram-nos arcasmos, regionalismos e neologismos que enriquecem as canes de Elomar. Destacam-se formas arcaicas como lijera (ligeira), li (lhe), u'a (uma), oro (ouro); formas regionais como adonde (aonde), derna (cruzamento de desde que + na), ami (amanh), ful (flor), int (at), via (velha); formas neolgicas como mincena (=manhecena, para o processo de

amanhecer), cavandante (cavaleiro +andante), improibi (anttese de proibir), deserana (des + herana). Darcilia, Luiz e Any comentam o termo zagaia, do africanismo azagaia, que significa lana, mas usado como metfora do ataque repentino e fulminante da ona. Apontam a peculiaridade da expresso par sem quer, que significa dar luz antes do tempo. Exploram a recorrncia da reduo do ditongo a uma vogal (monotongao) nos versos elomarianos: rai (raiou), percis (precisou), paxon (apaixonou), sdade (saudade), fra (feira), frigidra (frigideira). Constatam a presena do latinismo in em lugar da preposio "em" e do regionalismo c por "voc". Recorde-se que o uso da monotongao recurso expressivo que fora utilizado por Noel Rosa ao rimar beijo e desejo em "Nunca mais quero seu beijo/mas meu ltimo desejo" e ao rimar popa e ropa "Eu j corri de vento em popa/mas agora com que roupa". Caetano Veloso tambm fez uso dele ao rimar abaixo e acho em "ladeira abaixo/acho/que a chuva ajuda a gente a se ver". Os trs autores revelam erudio quando tratam de literatura medieval, de valores opersticos e de aspectos filolgicos. Na abordagem semitica dos signos verbais, fazem raro e meticuloso estudo, destacando no s o estranhamento lexical, mas tambm a iconicidade lexical quanto ao cenrio medieval, sertanejo e religioso. So exemplos de estranhamento lexical capa de cangaia va (=restos de animal morto) e forro ramiado (=cu que anuncia chuva); de estranhamento lexical quanto ao cenrio medieval, so exemplos catre (leito tosco e pobre) e intonce (ento); quanto ao cenrio sertanejo, incheno (enchendo) e adispois (depois); quanto ao cenrio religioso, clemena (clemncia) e no seclo do pai (nos tempos bblicos). Comprovam, finalmente, que a obra de um artista da grandeza de Elomar merece maior divulgao dentro e fora da Academia. E o fazem com um estilo to prazeroso quanto o do Trovador do Serto. Andr Crim Valente Doutor em Letras Vernculas (UFRJ) Vice-coordenador do Mestrado em Lngua Portuguesa (UERJ)

Relaes entre linguagem e culturaOs trs campos da cultura humana a cincia, a arte e a vida s adquirem unidade no indivduo que os incorpora a sua prpria unidade (Bakhtin, 2003: XXXIII)

0. Reflexo inicialO momento histrico de profundas reflexes e mudanas nos trs campos citados na epgrafe. E a afirmao de Bakhtin leva-nos a pensar sobre os movimentos de interao cultural atuais, sobretudo os promovidos pela escola. Redirecionamentos curriculares so propostos, reorganizao de disciplinas e contedos realizada; no entanto, a produo escolar tem-se mostrado cada dia mais discutvel. H um desinteresse cada vez mais visvel, por parte dos estudantes, acerca da aprendizagem da lngua nacional; por conseguinte, o trabalho com a literatura brasileira acaba sendo substitudo por leituras mnimas de resumos disponveis na Internet, de livros ditos paradidticos (cujo perfil no ficou claro ainda) ou mesmo de adaptaes de textos nem sempre preparadas por especialistas, portanto de valor questionvel. Se esta fala transpira algum tipo de sectarismo, o leitor fique sabendo que no seno uma excessiva preocupao com os rumos de nossa escola e, muito particularmente, com os rumos do ensino das letras nacionais. Ao reunir cincia, arte e vida, Bahktin provoca uma reflexo sobre as relaes entre cincia e arte como integrantes da vida. Todavia, a experincia histrica da escola, documentada em seu prprio discurso, faz com que a vida seja vista como elemento exterior dinmica escolar , isto , o que se faz na escola prepara para a vida. Logo: escola e vida so duas coisas distintas e separadas. Entretanto, a verdadeira educao para a vida plenamente possvel, desde que se ressignifique a escola como parte da vida. Para tanto, pode-se iniciar pela re-observao das linguagens que envolvem as experincias vivenciadas. No apenas a lngua, mas todo os cdigos que atravessam nosso cotidiano devem ser objeto de estudo nas prticas escolares, como tticas de discusso das experincias scio-culturais. No mbito da lngua, impe-se uma reviso da proposta da escola, no sentido de revigorar seu compromisso com o ensino da norma padro (to afetado com as ondas tcnico-tericas subjacentes s sucessivas mudanas curriculares desde a Lei

5692/71). Contudo, este compromisso com o uso padro no pode sufocar as demais variedades que se manifestam no dia-a-dia do ecltico alunado da escola contempornea. As crises poltico-econmicas reuniram nas salas de aula um novo tipo de grupamento discente. Originalmente, a escola foi criada para as elites. A partir da Reforma Passarinho (Lei 5692/71), abriram-se as vagas da escola pblica para as classes menos privilegiadas, e o alunado miscigenou-se. Oriundos de classes sociais diferentes, com prticas de vida distintas, sobretudo no que tange fala, os novos alunos no mais tm a mesma facilidade de trato com a norma padro. Seu ncleo familiar e de relaes no usa este modelo de lngua. Logo, a fala da escola tornou-se estrangeira para uma grande maioria. Discusses se desencadearam no mbito dos gestores do ensino, em busca de sadas para a nova problemtica: como ensinar a esse novo modelo de aluno? Como resolver a barreira da lngua? Psicologia, Pedagogia, Psicopedagogia, Lingstica, entre outras cincias, foram chamadas cena das discusses, com o objetivo de encontrar sadas tcnicopedaggicas adequadas problemtica fundamental de ento: a comunicao docente e discente aps a abertura da escola pblica s classes populares. Muitos projetos foram construdos, contudo, o resultado mais visvel foi a perda do rumo na conduo do processo de ensino-aprendizagem como um todo. E a questo lingstica foi fundamental nesta crise. Uma discusso poltico-pedaggica relacionada necessidade de respeitar-se a origem social dos educandos no novo modelo de escola deflagrou um sem-nmero de desentendimentos e descompassos. De um lado, docentes se sentiam obrigados a promover incontinnti o milagre da aquisio da norma padro; de outro, uma faco docente, que supunha ser respeito ao aluno confinar-lhe variante lingstica de origem, resolvia deixar o aluno expressar-se como quisesse, desde que conseguisse comunicar-se com relativa eficincia. O produto disto foi a triste constatao hodierna de que os alunos esto chegando ao terceiro grau sem fluncia na norma padro. E mais: a falta de domnio do uso padro resulta em baixo rendimento em todas as disciplinas, pois todas (inclusive as lnguas estrangeiras modernas) so ministradas em

lngua nacional e, em princpio, no uso padro. Todo este prembulo tem por meta principal levantar a questo do ensino da lngua como uma das formas de integrar as prticas escolares s prticas vivenciais comuns. A lngua nacional precisa ser conhecida pelo indivduo para que ele atinja o estatuto de cidado e possa exercer suas funes poltico-participativas. tambm por meio do conhecimento consistente de sua lngua (incluindo as variedades no-padro) que ser possvel, ao sujeito, conhecer com mais abrangncia a cultura de seu povo, o perfil de sua gente, de sua nao. Para tanto, a escola precisa conscientizar-se da necessidade de maior ateno tcnico-didtica para com a lngua nacional, com vistas a no s concretizar o ensino do uso padro oral e escrito (responsabilidade exclusiva da escola), mas tambm propiciar o contato com as demais variedades da lngua que caracterizam sua evoluo histrica (variao diacrnica), os tipos regionais (variao diatpica), as classes sociais (variao distratica), as tribos urbanas, as profisses e ofcios, etc. (variao diafsica). Retomando Bakhtin, veja-se que cincia e arte so duas faces da vida: na cincia exercita-se o raciocnio, a lgica, avana-se intelectualmente; na arte, exercitase a sensibilidade, apura-se o senso esttico, refina-se o esprito. Portanto, o trabalho escolar em torno da lngua precisa ter tons de cincia e de arte, observando o objetolngua como instrumento da expresso humana por meio do qual se constroem a cincia e a arte, resguardadas as diferenas dos sujeitos que ali operam. Assim, a lngua precisa ser descrita cientificamente, observando-se as nuanas relativas sua distribuio entre os seus falantes, da mesma forma que deve ser apreciada como objeto artstico que manifesta, representa vises diferenciadas de mundo, coloridas com as referncias emergentes de cada contexto de produo. Nesta linha de raciocnio, o Projeto Elomar, lngua e estilo do portugus do Brasil (que deu origem a este livro) teria duas tarefas importantes a cumprir: em primeiro lugar, trazer ao conhecimento pblico mais amplo o cancioneiro elomariano, que ainda privilgio de poucos; em segundo lugar, demonstrar a importncia de domnio da lngua em sua variedade, por parte do autor, na versatilidade de sua produo e, por parte do leitor, na compreenso da obra e de suas informaes culturais. Esperamos, com isto, incentivar o desbravamento da cultura interiorana

brasileira e a promoo de um ensino de lngua multidialetal.

1. Novos caminhos para uma antiga meta(...) a formao dos indivduos tambm se transforma, molda-se s novas exigncias, e os processos de instruo, mormente o escolar, impem reformulao de paradigma e redimensionamento do enfoque do objeto rotulado como contedos escolares, principalmente. (Simes, Rei e Martins, 2003, 71).

Conforme nossa reflexo de abertura, cremos ter deixado claro que h urgncia de reformulao do modelo escolar praticado. Como conseqncia, cumpre repensarem-se os contedos escolares, no sentido de otimizar os currculos, articulando-os com as atuais necessidades de vida do homem do terceiro milnio. A complexidade do mundo contemporneo exige uma ressignificao dos valores socioculturais. O prprio entendimento do individual, do coletivo e de suas relaes carece de nova leitura. Com Morin - o pai da teoria da complexidade - (1995), entendemos que h algo mais a compreender que a simples singularidade ou que as diferenas individuais, ou seja, compreender que o indivduo um sujeito. E o mesmo estudioso quem propaga a urgncia da religao dos saberes em prol de uma reformulao dos rumos da cultura planetria. Para tal religao, diz Morin (2002: 494), preciso debruar-se sobre certo nmero de caractersticas comuns a sistemas complexos, diferentes uns dos outros. Observe-se que termos como individual, coletivo, singularidades, diferenas individuais, sistemas complexos, religao, induzem-nos a pensar processos de discusso e reformulao das formas de leitura do mundo. Assim sendo, no mbito do projeto curricular e, especialmente, do planejamento do ensino lingstico, fundamental redirecionar o trabalho para uma dimenso plural, multidimensional, multicultural. Uma lngua identidade de um povo que, por sua vez, atualiza essa lngua de formas diferenciadas, em decorrncia de sua distribuio no tempo, no espao e na organizao social. Logo, num pas com as dimenses do Brasil, a variante do portugus aqui praticada sofre influncias das mais diversas, gerando, assim, um leque de concretizaes lingsticas que precisam ser conhecidas, sobretudo pelo povo brasileiro.

A tradio escolar, arraigada a uma prtica lingstica pautada na gramtica, considerada como a arte do bem falar e do bem escrever, resultou num abismo entre a fala escolar e a fala real do povo. Este distanciamento, no corrigido apesar de muitos projetos poltico-pedaggicos construdos, promove hoje uma verdadeira babel no pas. H momentos em que os interlocutores, apesar de compatriotas, sentem-se estrangeiros em sua prpria terra, diante de falas ininteligveis, dada a velocidade da mutao lingstica gerada pelos meios de comunicao de massa, em especial. Como mudar esse estado de coisas? Cremos que imprescindvel retomar a busca de novos caminhos para uma antiga meta: uma escola de qualidade que, em primeiro lugar, promova a fluncia lingstica dos indivduos com vistas a conferirlhes real direito cidadania.

2. Ensino da lngua e da culturaApropriamos-nos de palavras de Geraldi (2002: 28), que declara que o estudo e o ensino de uma lngua no podem deixar de considerar as diferentes instncias sociais, uma vez que os atos de fala se realizam no mago das mltiplas e complexas instituies de uma dada formao social. Nessa esteira de raciocnio, insisto na necessidade de trazerem-se para as salas de aula textos que representem a multiplicidade da cultura nacional e que a lngua seja observada (com mtodo cientfico) como expresso dessa variedade e, por isso, merecedora de acurada ateno. A despeito da indispensabilidade do domnio do uso padro (requerido pelas instncias pblicas de comunicao), cumpre, no mnimo, aprender a identificar as variedades, vinculando-as aos seus tempos-espaos de realizao, com vistas a enriquecer a viso acerca dos traos que caracterizam a rica cultura nacional brasileira. preciso romper com a tradio historicamente construda da supremacia da cultura litornea e adentrar as terras brasileiras em busca de suas marcas mais originais, ainda no to afetadas pelas mdias. Um dos caminhos possveis voltar a ateno para o cancioneiro do interior. Desde Catulo da Paixo a Dominguinhos, temos um quase virgem manancial a explorar. Buscando perseguir um estilo sertanejo, no mencionei nomes como Chico Csar, Zeca Baleiro, Fagner, entre outros compositores nordestinos que nos brindam com verdadeiras maravilhas. No entanto, ao eleger um sertanejo para, de sua obra, extrair o corpus de trabalho, encontrei algo

muito especial. Como a pedra fundamental deste projeto a perspectiva multidialetal para o ensino da lngua nacional, o canto de Elomar, seresteiro do serto, vem prestar um grande servio ao objetivo didtico-pedaggico de tornar o falante um poliglota em sua prpria lngua (cf. Bechara, 1991), uma vez que o temrio explorado no Cancioneiro de Elomar apresenta duas tendncias distintas: a) a retomada de temas religiosos e medievalizantes; b) a preocupao com retratar o serto, sua paisagem scio-histrica e sua gente. Na primeira, v-se um uso cuidadoso do estilo formal (uso padro) aliado a formas antigas da lngua; na segunda, a fala local, interiorana, espontnea, que se manifesta num gnero substancialmente dramtico, a espelho da vida no serto brasileiro (cf. Simes, 2003: 18).

Nossa proposta se apia em vises tcnicas como a de Silvio Romero (1977) que entende que no h uma lngua mais correta do que outra, porque no h uma lngua tpica. No seu desenvolvimento, uma lngua pode ser mais ou menos opulenta, porm, nunca mais ou menos correta. Ainda que se referisse a questes relativas lngua de Portugal e do Brasil, verifica-se, em sua afirmao, uma verdade perene no que diz respeito s lnguas em geral.

Na tradio da cultura popular, a lngua possui relevantes manifestaes nas conhecidas cantorias. Trata-se de uma tradio oral que remonta Idade Mdia europia. Desde as Cruzadas, trovadores, menestris e jograis iam de reino em reino cantando seus longos poemas. No Brasil, a cantoria se faz da mesma forma: poetas ambulantes vo de feira em feira divertindo, informando o povo com suas histrias, cantadas numa melodia, via de regra, montona, por no ser mais que uma base para as letras.

A cantoria atravessa o Brasil de Norte a Sul, porm as mais conhecidas so a nordestina e a gacha. H, ainda, a msica caipira, originria de cantorias de cururu (de forte herana indgena) e que se manifesta nos estados de So Paulo, Mato Grosso, Minas Gerais e Paran (Luyten, 1988).

Veja-se o excerto:A literatura popular existe em outros pases, mas nenhuma to relevante quanto a do Nordeste () Aqui, no Nordeste, ela resiste e se transforma cada vez mais. (Cantel, 1993: 16)

A cantoria firmou suas razes no Estado da Paraba, de onde saram os mais famosos cantadores brasileiros; e uma das formas mais interessantes de cantoria o repentismo. O termo deriva do fato de os versos brotarem instantaneamente, de repente. geralmente apresentado por duplas de cantadores e pode manifestar-se em forma de desafio ou peleja, em que o par trava uma discusso potica, cujo vencedor ser o que conseguir versejar por mais tempo sobre o tema combinado. A obra de Elomar inclui cantorias e delas que se partiu para este estudo.

3. Algumas palavras sobre folcloreSegundo Barroso (1949), Paul de Saint-Victor disse que a alma duma raa se resume em suas trovas. Assim, as manifestaes folclricas renem o esprito, os usos e costumes de um povo. H, ainda, quem diga que as tradies populares inscritas no folclore subsidiam o conhecimento da origem e formao de um povo, atravs dos tempos. Portanto, para conhecer a vida e a alma dos sertes do Brasil, sobretudo os do nordeste, to aoitados pelas misrias das secas, preciso, indiscutivelmente, estudar o seu folclore, analisar suas fontes e procurar suas analogias, pois ali est contido o carter do povo mestio (principalmente de portugus, ndio e negro) que vem h anos lutando pela preservao de sua riqueza, de sua vida. Mal sabendo ler ou mesmo no o sabendo de todo, esse povo criou canes que, para minimizar o problema da no-leitura, possuam formas de fcil memorizao, embaladas por um tipo meldico montono e repetitivo. Desde o incio, executadas nas cordas das violas, foi mais tarde acompanhada pelos violes e, posteriormente, pelas sanfonas (p-de-bode). Todo o folclore do serto mostra a formao perfeita das almas que habitam aquela regio de sol ardente. No entanto, os folclores so todos muito semelhantes, apesar de serem mimticos e sofrerem a influncia do meio em que se manifestam. As tradies apresentam-se no serto nordestino com o aspecto e o sabor da terra e da

gente que a repete, e que dia a dia vo-se tornando mais caractersticos. Um dos traos mais relevantes desta produo cultural o individualismo, resultante do prprio estado de insulamento medieval do viver sertanejo. Assim, o mesmo fato cantado por Gerome do Junqueiro, Romano da Me dgua ou Incio da Catingueira, clebres trovadores locais, assume feio diversa em cada forma sob que se apresente. A poesia sertaneja pode ser dividida em dois grandes ramos: o tradicional e o repentista. Ainda que ambos sejam de alta tipicidade, o primeiro o mais importante. Nascido nas chamadas ribeiras (vales dos rios, onde se foi derramando a colonizao), embebidos nos fatos ali ocorridos, relata apaixonadamente os acontecimentos, ainda que pintados com as cores fortes das paixes e da imaginao, que prodigiosa na gente do interior. Suas produes poticas trazem certas obscuridades de linguagem, expresses rudes, hiprboles, repeties enfadonhas e metforas de pssimo gosto, tudo, porm, obviado por admirvel simplicidade de processos literrios quase pueris, o que lhe confere a maior beleza. Os exageros seriam um recurso de forar a memorizao dos relatos com vistas a sua perpetuao. Essa atitude repete os feitos dos rapsodos, vates, bardos, escaldes ou menestris. E dessa maneira, o sertanejo tem documentado tudo quanto ocorreu no serto, desde que para ali vieram seus ancestrais dalm-mar. Domando a selvtica terra povoada de perigos e feras, destruindo o ndio a trabuco ou diluindo-o na mestiagem, e obrigando o negro arrancado da frica aos pesados servios do eito. O ramo repentista, mais sutil, lembra os chamados desafios, os tensos provenais e as disputas dos folies romanos. Nesses estilos, o cantador de p de viola, embora mais humilde e mais rude, quase se iguala aos troveiros e trovadores da Idade Mdia europia. Com o mesmo esprito a dominar, nas emboladas e quadras, recorda, s vezes, as antigas trovas de amor e de amigo, assim como as antigas cantigas de bem e mal dizer. So manifestaes poticas, ora garridas ora plangentes, ora sentimentais ora ferinamente satricas. indiscutvel, no entanto, a influncia de indivduos de certa cultura nas produes tradicionais sertanejas. No mais das vezes, so substratos da cultura jesutica, alm de interferncias diretas de pessoas mais ou menos cultas na produo de versos e relatos em prosa. Isto no quebra o carter popular das

produes, at porque grande parte do acervo folclrico provm de fontes cultas, e, posteriormente, se populariza. Segundo Silvio Romero, os folclores de todas as raas tm uma base de tradies comuns a toda a humanidade (Barroso, op.cit.). Silvio Romero muito lutou em prol da valorizao da cultura nacional. Segundo ele, um esforo de caracterizar o esprito nacional, valorizando a integrao das diferenas regionais num conjunto coeso superior e independente dos ditames da capital (Matos, 1994). Para ele, a capital do Imprio representava no apenas a centralizao poltica, mas sobretudo cultural, o que submetia conscincias e obras dos homens de letras a seu poder homogeneizador. Infelizmente, parece no ter havido muitas mudanas. Hoje, a mdia se incumbe de difundir um padro construdo pela metrpole e, assim, vai destruindo tudo o que remete s origens, por parecer atrasado, ruim, sem prestgio. Elomar um brasileiro muito especial que, por isso, merece a ateno dos estudiosos, principalmente se considerado o seu compromisso com a difuso de traos culturais nacionais que no tiveram, ainda, um tratamento altura de seu real valor. Dentre os objetos culturais eleitos por Elomar, destaca-se o idioma nacional, pelo qual nutre profundo amor e respeito e com o qual mantm uma relao da mais alta responsabilidade, a ponto de propor sua msica como meio documentador e propagador da exuberncia da lngua portuguesa, em especial a praticada nos sertes, para os quais quase sempre resta apenas o rtulo de problema brasileiro, sintetizado na palavra seca. Elomar faz jorrar a cultura do nordeste. Assim como Villa-Lobos, Elomar, o cavandante (neologismo literrio, In Cavaleiro de So Joaquim), no se reprime e mostra a realidade roaliana (sic) como algo exuberante. Mesmo quando canta a desventura do sertanejo, o faz majestosamente em louvor grandeza de nossa paisagem. Sua obra parece fazer eco do compositor carioca:Sim, sou brasileiro e bem brasileiro. Na minha msica eu deixo cantar os rios e os mares deste grande Brasil. Eu no ponho mordaa na exuberncia tropical de nossas florestas e dos nossos cus, que eu transponho instintivamente para tudo que escrevo (Heitor Villa-Lobos).

A clareza do projeto lingstico do compositor na criao de suas letras, a temtica sertnica e a opo multidialetal so caractersticas que orientaram a escolha

desse corpus - o cancioneiro elomariano - como objeto de anlise. Sua proposta artstica assemelha-se de Guimares Rosa, no que concerne ao trato da lngua portuguesa. Ambos dedicam-se produo de textos escritos que possam funcionar a um s tempo como registro da variedade idiomtica nacional e documento histricoantropolgico da cultura brasileira. Sobre a narrativa de G. Rosa, assim se expressou Maria Luiza de Castro da Silva (2000), em excerto que reitera a dimenso histrico-cultural de obras como as que inspiram o presente projeto: Para a escritura rosiana, falar do serto implica a catalogao e o exerccio de pesquisa das formas discursivas com que o homem simples lida com questes existenciais complexas. Como construo de linguagem, o serto rosiano passa a ser o espao possvel de afirmao das falas dos loucos, dos desajustados, dos simplrios, dos que vivem margem de um sistema ordenado pelas leis lgico-cientficas. Ao reafirmar essas falas como potencialidades de novos sentidos, Guimares Rosa acaba por exercer o papel de um maravilhoso etngrafo do mundo sertanejo. Elomar, consciente de sua proposta artstica, apropria-se do material lingstico disponvel no Portugus do Brasil e, ao lado do recolho de amostras de falas de brasileiros representantes dos mais esquecidos rinces, renova a lngua com construes neolgicas, em que aproveita at material pertencente s lnguas aborgines que teimam em sobreviver no territrio brasileiro, a despeito de aes modernizantes comprometedoras de nossa cultura. Veja-se o que diz o poeta:(...) em face da dificuldade da compreenso das nossas estrofes, nossos versos, uma vez que eu canto em linguagem dialetal sertaneza, toda vez que eu vou cantar uma cano assim de pouco conhecimento pblico, eu costumo fazer uma ligeira preleo para dar assim uma chave melhor para penetrar na histria que a gente t propondo. (Prlogo apresentao da ria Faviela do IV Canto da pera de mesmo nome que integra o CD Cantoria 3 Elomar canto e solo. Kuarup Discos gravao ao vivo no Teatro Castro Alves, BA 1984) [grifo nosso]

Esta opo evidencia domnio do sistema lingstico e acentua a definio dos critrios de seleo lexical inscritos em sua composio. O autor trata a lngua nacional com tica e declara-se engajado na difuso da variante sertaneza (sic), com vistas a dar ao serto o tratamento que lhe devido, assim como o fizera o saudoso Patativa do

Assar, sobre quem cabe lembrar: Vindo de um mundo diferente da maioria dos poetas brasileiros, Patativa do Assar se destacou pelo fato de cantar em seus versos, assuntos como a dureza da vida no serto, os polticos que s chegam nesses lugares quando precisam de votos, a morte causada pela pura falta de alimento ou de atendimento, em meio a tanta misria, a diferena de vida entre a sua classe, pobre, e as outras. Mas alm disso, Patativa tambm soube cantar as boas coisas de sua terra, as festinhas, os costumes, a natureza (Pgina virtual em homenagem ao poeta: http://www.geocities.com/Athens/Oracle/7103/patativa.htm). Vejamos um de seus poemas: Aos poetas clssicos (Patativa do Assar)1 estrofe: Poetas niversitrio, / Poetas de Cademia, / De rico vocabularo / Cheio de mitologia; / Se a gente canta o que penso, / Eu quero pedir licena, / Pois mesmo sem portugus / Neste livrinho apresento / O praz e o sofrimento /De um poeta campons. 2 estrofe: Eu nasci aqui no mato, / Vivi sempre a trabai, / Neste meu pobre recato, / Eu no pude estud. / No verd de minha idade, / S tive a felicidade / De d um pequeno insaio / In dois livro do iscrit, / O famoso profess / Filisberto de Carvaio. 3 estrofe: No premro livro havia / Belas figuras na capa, / no comeo se lia: / A p O dedo do Papa, / Papa, pia, dedo, dado, / Pua, o pote de melado, / D-me o dado, a fera m / E tantas coisa bonita, / Qui o meu corao parpita / Quando eu pego a rescord. 4a estrofe: Foi os livro de val / Mais mai que vi no mundo, / Apenas daquele aut / Li o premro e o segundo; ? / Mas, porm, esta leitura, / Me tir da treva escura, / Mostrando o caminho certo, / Bastante me protegeu;/ Eu juro que Jesus deu / Sarvao a Filisberto. 5a estrofe: Depois que os dois livro eu li, / Fiquei me sintindo bem, E tras coisinha aprendi / Sem t lio de ningum. / Na minha pobre linguage, / A minha lira servage / Canto o que minha arma sente / E o meu corao incerra,/ As coisa de minha terra / E a vida de minha gente. 6 estrofe: Poeta niversitaro, / Poeta de cademia, / De rico vocabularo / Cheio de mitologia, Tarvez este meu livrinho / No v receb carinho, / Nem lugio e nem istima, / Mas garanto s fi / E no istru pap / Com poesia sem rima. 7 estrofe: Cheio de rima e sintindo / Quero iscrev meu volume, / Pra no fic parecido / Com a ful sem perfume; / A poesia sem rima, / Bastante me disanima / E alegria no me d; / No tem sab a leitura, / Parece uma noite iscura / Sem istrela e sem lu. 8 estrofe: Se um dot me pergunt / Se o verso sem rima presta, / Calado

eu no vou fic, / A minha resposta esta: / Sem a rima, a poesia / Perde arguma simpatia / E uma parte do prim; / No merece munta parma, / como o corpo sem arma / E o corao sem am. 9 estrofe: Meu caro amigo poeta, / Qui faz poesia branca, / No me chame de pateta / Por esta opinio franca. / Nasci entre a natureza, / Sempre adorando as beleza / Das obra do Criad, / Uvindo o vento na serva / E vendo no campo a reva / Pintadinha de ful. 10 estrofe: Sou um caboco rocro, / Sem letra e sem istruo; / O meu verso tem o chro / Da pora do serto; /Vivo nesta solidade / Bem destante da cidade / Onde a ciena guverna. / Tudo meu natur,/ No sou capaz de gost / Da poesia moderna. 11 estrofe: Dste jeito Deus me quis / assim eu me sinto bem; / Me considero feliz / Sem nunca invej quem tem / Profundo conhecimento. / Ou ligro como o vento / Ou divag como a lsma, / Tudo sofre a mesma prova, / Vai bat na fria cova; / Esta vida sempre a mesma.

Ainda que se trate de texto longo, cumpre observar que a temtica e o uso da lngua correspondem s pginas sertanejas de Elomar, como o leitor poder apreciar no captulo dedicado apresentao do corpus. Mantivemos a grafia publicada na pgina digital indicada, para demonstrar que o trabalho que realizamos em relao ao assentamento dos textos de Elomar no simples tarefa, mas demanda muito critrio para que no se mutilem marcas importantes, inscritas nas formas usadas pelos poetas e compositores. Vale lembrar que se manifesta em seus escritos a conscincia valorativa acerca do uso da lngua. As aluses a Poeta niversitaro, / Poeta de cademia, / De rico vocabularo / Cheio de mitologia, Tarvez este meu livrinho / No v receb carinho, / Nem lugio e nem istima (6 estrofe) comprovam essa clara viso sobre um separatismo cultural, marcado pelo uso da lngua. No entanto, esta a fala do povo nordestino em sua maioria. No contexto nordestino, a poesia popular inscreve-se na sua tradio oral. Um de seus principais agentes, o cantador, proveniente do meio rural, em geral analfabeto, improvisa ou narra, graas sua memria prodigiosa, a histria dos homens famosos da regio, os acontecimentos maiores, as aventuras de caadas e de derrubas de touros, enfrentando os adversrios nos desafios que duram horas e noites inteiras, numa exibio assombrosa de imaginao, brilho e singularidade na cultura tradicional (Cascudo, 1954: 237). A versificao utilizada, em geral a sextilha hexassilbica ou a dcima heptassilbica de rimas contnuas (Cantel, 1993: 49 e 97), parece ser a expresso de uma tcnica de memorizao, em vez de manifestao de uma forma potica erudita, a servio da transmisso de um saber simblico: cincia, cultura

popular, tradio (Cavignac, 1990: 57). Da, a escanso dos poemas propriamente ser, muitas vezes, surpreendente pela sua falta de preocupao expressiva: Nenhuma preocupao de desenho meldico, de msica bonita. Monotonia. Pobreza. Ingenuidade. Primitivismo. Uniformidade, enfim, singeleza. No se guarda a msica de colcheias, martelos e ligeiras. A nica obrigao respeitar o ritmo do verso (Cascudo, 1954: 237). acontecimentos. Retornando a Elomar, vale dizer que a escolha dos textos foi norteada pelo desejo de documentar a importncia do conhecimento da lngua caipira nacional (para ns, o termo caipira engloba toda a variedade interiorana da fala brasileira) como base de uma viso quase que paleontolgica de nosso idioma, conforme atestam as palavras de Amadeu Amaral no seguinte trecho de O dialeto caipira:So em grande nmero, relativamente extenso do vocabulrio dialetal, as formas esquecidas ou desusadas na lngua. Lendo-se certos documentos vernculos dos fins do sculo XV e de princpios e meados do sculo XVI, fica-se impressionado pelo ar de semelhana da respectiva linguagem com a dos nossos roceiros e com a linguagem tradicional dos paulistas de boa famlia, que no seno o mesmo dialeto um pouco mais polido. (Amaral, 1982 Elementos do portugus do sculo XVI)

A declamao se atm ao essencial: a narrativa dos

O que diz o ilustre estudioso de nosso folclore lingstico ajustvel nossa crena em relao pertinncia de explorao de um corpus extravagante, mas que oferece oportunidade de contato com um uso lingstico que no morreu e que documenta parte valiosa de nossa cultura.

4. Sobre vocabulrio e informaes culturais.Impe-se uma definio dos termos caipira e sertanejo. Segundo o dicionrio [Aurlio, s.u.], caipira pode traduzir-se como substantivo em: habitante do campo ou da roa, particularmente os de pouca instruo e de convvio e modos rsticos e canhestros; e como adjetivo de dois gneros, como: biriba ou biriva, matuto, sertanejo; pertencente ou relativo a, ou prprio de caipira; biriba ou biriva, jeca, matuto, roceiro, sertanejo; indivduo sem traquejo social; cafona, casca-grossa. Quanto a sertanejo, o dicionrio [Aurlio, s.u.] diz: habitante do serto;

rstico, agreste, rude; caipira. caipira.

Como substantivo, significa: indivduo sertanejo;

Como fcil de perceber, os dois termos acabam por serem sinnimos. Ainda que alguns tericos insistam numa distino acerca do emprego de um e outro termos, em nosso estudo, estamos utilizando caipira e sertanejo (ou sertnico, ou roaliano, ou sertanez) como equivalentes. No pretendemos discutir a classificao de Amadeu Amaral, por exemplo; contudo, estendemos o uso do adjetivo caipira como determinante de tudo aquilo que diz respeito a indivduos, usos e costumes relativos ao campo ou roa, ao serto, caracterizados pela pouca instruo e pelo convvio em modos rsticos e canhestros. Achamos por bem repetir trecho do poema citado de Patativa do Assar, por endossar, em versos, nossa definio de caipira ou sertanejo:9 estrofe: Meu caro amigo poeta, / Qui faz poesia branca, / No me chame de pateta / Por esta opinio franca. / Nasci entre a natureza, / Sempre adorando as beleza / Das obra do Criad, / Uvindo o vento na serva / E vendo no campo a reva / Pintadinha de ful. 10 estrofe: Sou um caboco rocro, / Sem letra e sem istruo; / O meu verso tem o chro / Da pora do serto; /Vivo nesta solidade / Bem destante da cidade / Onde a ciena guverna. / Tudo meu natur,/ No sou capaz de gost / Da poesia moderna. Trecho de Aos poetas clssicos (Patativa do Assar)

Observe-se que as palavras do poeta do serto descrevem exatamente a natureza rstica e simples do indivduo da roa. O cantador se apresenta como sem letra, sem instruo, habitante de lugar distante da cidade e apreciador das belezas do campo, da relva, da selva, enfim, da natureza. Assim, se apresenta numa condio de estado puro, no contaminado pelas coisas da cidade, onde a ciena guverna. O vocabulrio do dialeto sertanejo ou caipira , naturalmente, bastante restrito, em consonncia com a simplicidade de vida e de esprito, e, portanto, com as exguas necessidades de expresso dos que o falam. Sua formao apresenta: a) elementos oriundos do portugus usado pelo primitivo colonizador, muitos dos quais se arcaizaram na lngua culta; b) prprio seio do dialeto. termos provenientes das lnguas indgenas; c) vocbulos importados de outras lnguas, por via indireta; d) vocbulos formados no

Nesta perspectiva, possvel verificar-se uma constituio linguageira muito especial, j que ela se distingue da fala citadina, urbana, e traz, em seu interior, todo um conjunto de dados socioculturais que descrevem um outro cenrio, diferente do eleito pela mdia como modelo ideal de vida; refere-se a uma existncia e a uma cosmoviso muito particulares que, se conhecidas em profundidade, poderiam ajudar e muito na construo de um pas mais prximo da justia social. H um sentimento de inferioridade, motivado pelo descompasso histrico com os modelos prestigiados, que reforado pela idia do meio e da raa adversos, incorporada imagem negativa que se reflete no espelho oferecido pela mdia. S bom e bonito o que vem da cidade, da capital. Isto tem de ser modificado. A poesia popular e sua funo evocativa j foi assim definida: A poesia velha s inocncia(Grimm, (In carta a Arnim, 1811 Apud Menndez Pidal, 1968). Segundo os folcloristas, a diferena representada pela cultura popular rural amorvel, significativa, na exata medida de uma inofensiva inocncia que, de certa maneira, santifica tal produo potica, tornando-a um cone da pureza original das gentes. H, inclusive, quem aplique produo artstica popular a premissa do mito do bom selvagem: a poesia popular nasce boa e pura, a sociedade histrica a corrompe e destri. (Matos, op. cit.). Vejamos o que dizem Rousseau e Rouanet acerca do bom selvagem:Cometeram-se mais assassinatos num s dia de combate e mais horrores na tomada de uma nica cidade do que se cometera, no estado de natureza, em toda a face da terra, durante os sculos inteiros. (Rousseau apud Dreher, 2002))

No Brasil, a adeso a esse mito significa uma atitude de aviltamento da cultura alheia e de exaltao da prpria cultura. uma euforia agressiva, narcsica, semelhante excitao manaca que ocorre entre dois acessos de melancolia. A expresso ideolgica da primeira doena, a europia, o exotismo. A da segunda, a brasileira, o nacionalismo. Ser nacionalista devorar o exotismo do europeu. o que fazemos quando nos apropriamos da ideologia do bom selvagem. (Rouanet, 1998) Conforme o otimismo de Rousseau (1988), o protagonista do estado de natureza no o canibal, mas o bom selvagem, que vive sua vida em harmonia com a natureza, mais inclinado para a piedade natural que para a ira.

No adotamos posio extremada acerca de valoraes culturais. Mas admitimos certa validade da extenso dessa posio nacionalista em relao s produes culturais rurais no Brasil, uma vez que a obra artstica divulgada hoje como sertaneja, por exemplo, retrata um modelo importado da cultura country norteamericana, o que se estende do ritmo e dana ao modo de vestir dos intrpretes. E quanto temtica dessa produo dita sertaneja (sobretudo das duplas caipiras), os amores mal vividos e mal resolvidos substituem os causos, os desafios, as histrias de assombrao, anjos e demnios que povoam o imaginrio do povo caipira, sertanejo de fato. Em funo desses desvios de rota poltico-cultural e de nosso compromisso com a lngua nacional na condio de documento de nossa cultura, fizemos a opo de investigar a obra de um cantador nordestino que teima em manter-se infenso interveno miditica e retratar o que h de mais puro no cenrio rural de nossa caipiragem. Entendemos, portanto, que a partir do levantamento do vocabulrio das letras do cancioneiro elomariano, possvel demonstrar as preferncias temticas do autor, documentar a atualizao de formas regionais, de formas eruditas, de formas arcaicas preservadas e integradas no uso regional. Ao lado disso, apontar, pelas vias da associao semntica, um perfil dos tipos humanos representados pelos personagens que povoam a obra do trovador baiano. Ainda no rastro de estudiosos de nossa cultura, trazemos ao texto palavras de Oliveira & Isquerdo (2001: 91) sobre a noo de que o sistema lingstico, sobretudo no nvel lexical, armazena e acumula as aquisies culturais representativas de uma sociedade. Segundo Isquerdo (In Vocabulrio do seringueiro: campo lxico da seringa, op. cit.), o estudo de um lxico regional pode fornecer dados que documentam a histria, o sistema de vida, a viso de mundo de um determinado grupo. Portanto, quando se estuda o lxico regional, a descrio no se atm lngua, mas tambm ao fato cultural que ali se encontra inscrito. Partindo-se do princpio de que o lxico de uma lngua se compe de um conjunto de vocbulos que representam a herana cultural de uma comunidade, verifica-se a condio testemunhal do lxico em relao histria dessa comunidade e

de suas normas sociais. Na formao de uma lngua, as influncias e interferncias advm da experincia social, uma vez que o contato entre lngua e realidade resultar numa linguagem. Esse contato tambm produzir uma imagem de mundo que ento se traduz em linguagem e opera sobre a lngua modificando-a, atualizando-a. Essas alteraes no interferem no processo da comunicao e resultam de variveis histricas, geogrficas e socioculturais. E o plano da lngua que melhor demonstra esta mutao o lxico. Na obra de Elomar, o lxico foi estudado sob a seguinte diviso didtica: arcasmos preservados na fala sertnica; eruditismos e regionalismos. A presena de componentes do uso padro e do uso popular no sero objeto de descrio pormenorizada.

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Trovador, cantador e muito mais: Elomar.1. Para comear a conversa...Pois assim Elomar Figueira de Melo: um prncipe da caatinga, que o mantm desidratado como um couro bem curtido, em seus trinta e quatro anos de vida e muitos sculos de cultura musical, nisso que suas composies so uma sbia mistura do romanceiro medieval, tal como era praticado pelos reis-cavaleiros e menestris errantes e que culminou na poca de Elizabeth, da Inglaterra; e do cancioneiro do Nordeste, com suas toadas e teras plangentes e suas canes de cordel, que trazem logo mente os brancos e planos caminhos desolados do serto, no fim extremo dos quais reponta de repente um cego cantador com os olhos comidos pelo glaucoma e guiado por um menino-anjo, a cantar faanhas de antigos cangaceiros ou causos escabrosos de paixes esprias sob o sol assassino do agreste. (...) E... quem sabe no vai ser l, no barato das galxias e da msica de Elomar, que eu vou acabar amarrando um bode definitivo e ficar curtindo uma de pastor de estrelas... (Vincius de Moraes, abril de 1973 - Apresentao no disco Biografia Discografia. Elomar... das Barrancas do Rio Gavio - 1973 - Philips).

Ainda que seja um tanto extenso para uma epgrafe, o trecho o compacto de uma fala do ilustre poeta-compositor carioca sobre Elomar. Naquela apresentao, Vincius refere-se a Elomar como uma figura rara. Ainda que no nos agrade operar com muitas transcries, o texto do autor de Garota de Ipanema no pode ser parafraseado. A imagem construda do baiano extravagante s pode ser dita pelas palavras originais de Vincius, que inicia seu texto questionando o prprio nome de Elomar:A mim me parece um disparate que exista mar em seu nome, porque um nada tem a ver com o outro. No dia em que o serto virar mar, como na cantiga, minha impresso que Elomar vai juntar seus bodes, de que tem uma grande criao em sua fazenda Duas Passagens, entre as serras da Suuarana e da Prata, em plena caatinga baiana, e os ir tangendo at encontrar novas terras ridas, onde sobrevivam apenas os bichos e as plantas que, como ele, no precisam de umidade para viver; e ali fincar novos marcos e ficar em paz entre suas amigas as cascavis e as tarntulas, compondo ao violo suas lindas baladas e mirando sua plantao particular de estrelas que, no ar enxuto e rigoroso, vo se desdobrando medida que o olhar se acomoda ao cu, at penetrar novas fazendas celestes alm, sempre alm, no infinito latifndio.

Observe-se que o texto em questo datado de 1973. No entanto, hoje Elomar ainda vive do mesmo modo. Divide seu tempo entre as fazendas do Rio Gavio e da Gameleira, onde cria seus bodes e carneiros e inspira-se para compor suas canes,

antfonas, peras, etc. Elomar no um cavaleiro andante, mas um peleador que persegue um ideal de mundo que valoriza as coisas simples, a natureza, as criaes divinas. Sua cantoria traz cena o homem rude do serto, suas agruras, sua abnegao a um destino de luta e eterno recomeo. Homens e mulheres cantam nos versos de Elomar. Pees, donzelas, matronas, capatazes, homens da lei, retirantes, crianas, professora so alguns dos personagens a quem o autor de Cavaleiro de So Joaquim d voz em suas composies. Seu estilo original fica entre o de um menestrel e um trovador, pois com seu violo em punho, Elomar acalenta e levanta platias com as letras e melodias emocionantes de seu repertrio. Veja-se mais uma apresentao externa de Elomar:Elomar concentra em si sculos de cultura que o serto soube processar a partir da tradio ibrica, e que entre ns se aclimatou, misturou, amalgamou-se para formar a face mais profunda dos sentimentos nordestinos. Quando canta sua aldeia, Elomar retrata antes de tudo a condio humana, os temas essenciais que fazem a grande arte: a vida, a morte, o amor, o sofrimento, a esperana e o incomensurvel. As paisagens sertnicas, to bem descritas em suas canes, so, antes de tudo, o palco para que as foras primordiais que regem o drama da existncia possam se manifestar em toda sua plenitude. A seca como provao, a fartura nas guas como renovao do ciclo da vida se integram, como plos diferentes, o mesmo tempo de espera e expiao. Movido pela necessidade interior de retratar com maior densidade o drama da existncia, e, especialmente, a busca constante do dilogo humano com a divindade, Elomar Figueira Mello foi se aproximando cada vez mais da cultura erudita, da msica de concerto. Porm, aqui mais uma vez se manifesta a genialidade do criador: no se trata de imitar as formas j estabelecidas por seus grandes irmos em arte como Palestrina, Bach, Mozart ou Bethoven. As suas peras, as suas cantatas, tomam novamente como matria-prima os seus prprios elementos culturais, a ptria do serto. o trnsito do sertanejo na dispora, seu sonho, suas esperanas. So os peregrinos errantes, arrancados da sua terra, em busca de paz e po. a nossa prpria tragdia cotidiana. (Czar Lisboa - In Elomar Figueira Mello: o canto mgico do serto. O autor Professor da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia - USEB)

As palavras do estudioso baiano somam-se s do poeta carioca na apresentao de um artista invulgar , na mais ampla acepo daquele adjetivo. Elomar um esteta, dotado de sensibilidade peculiarssima, que choca os crticos pela diferena e ousadia, ao mesmo tempo em que inebria os amantes da msica e da poesia, tomadas como

emblemas culturais.

Se misturar Heitor Villa Lobos, Castro Alves, Chopin, Guimares Rosa, Graciliano Ramos, Joo Cabral de Melo Neto e tudo quanto cantador de feira, mais as novenas de incelenas, puluxias, baio, xote, xaxado, e se a mistura for boa, bem mexida, ento vai se saber poucamente que Elomar. Porque ele tem um pouco de tudo isso, mas no isso. S tem um algo que se equipara a msica de Elomar hoje ele mesmo. No tem outro. E da se explica porque s vezes se carece de traduo para saber do seu saber lrico:

Levanta Umburana a manh j chego / A besta ruana na istrada sinh / A tropa incantada do patro sinh/ Pega a feijoada Imburana meu am.

Com a mdia ocupada no fugaz, no trivial, a alternativa inteligente para o Brasil um artista que seja raro, nico, criador do belo e eterno. Porque eles passaro; Elomar, passarinho, ficar. H uma angstia cercando o pas. To rico em arte, to farto em cultura, vive ilhado entre a moda e o modismo, olha para o futuro e no v. A biodiversidade nacional parece que no existe quando se liga a televiso ou a rdio modernosa. Onde foi parar o que de melhor o Brasil tem? Cad a nossa cultura to larga e volumosa? Morreu? No. Ocultaram-na. hora de descobrir o Brasil mais uma vez. preciso que o Brasil revele seus tesouros culturais. Elomar a cultura que nos cabe. Por uma questo de sobrevivncia: sem cultura no temos alma, no somos nada. hora de espalhar a alma brasileira pelos sertes, litorais e campos gerais, cerrados e praias, pampas e pantanais. (Dioclcio Luz)

Dioclcio Luz, jornalista de alta sensibilidade potica, evoca Mario Quintana em seu Poeminho do Contra, quando emprega o aposto passarinho para Elomar. Lembrana oportuna, esta do periodista baiano, pois tambm Mario Quintana escreveu na contramo da histria. Os grandes artistas acabam por tornar-se grandes emblemas de contestao, uma vez que sua produo desfoca o estabelecido, gera impacto com a novidade e desacomoda (ou incomoda) a intelligentzia consagrada.

2. Incurso no espao literrioA vida intelectual no um imprio sob outro imprio; ela est impregnada de estados afetivos que tendem a se exprimirem por si mesmos...; assim uma tendncia constante expresso.2 (In Galvo, 1967, 63) [traduo livre]

Antes de enveredar pelo espao das reflexes acerca do texto literrio, consideremos, juntamente com a epgrafe, uma fala de Barthes acerca do assujeitamento intelectual aos modelos, precipuamente lngua. Recordemos Barthes:Mas a lngua, como desempenho de toda linguagem, no nem reacionria, nem progressista; ela simplesmente fascista; pois o fascismo no impedir de dizer, obrigar a dizer. (In Aula, p. 14)

O assujeitamento lngua e aos modelos de dizer deu origem a paradigmas que regulavam o fazer literrio, de forma rgida. Ao longo dos tempos, o esprito rebelde dos artistas foi-se insurgindo em relao aos ditos modelos, e formas inusitadas surgiam. Diante do impacto da novidade, as reaes, em geral, eram de demrito. Contudo, a pertincia dos artistas foi levando a cabo um projeto de liberdade de expresso que, entre ns, eclodiu na Semana de 22, onde os irreverentes modernistas deram luz toda a sua ousadia e deflagraram, oficial e publicamente, o incio de uma nova era para as artes em geral, e para a literatura, em especial. Quanto ao Movimento Modernista, cumpre lembrar que este surgiu como conceito, associado a uma tica do progresso, da acelerao das inovaes e experincias (formais ou plsticas) conduzidas pelos movimentos de vanguarda do incio do sculo XX, em funo da ideologia do novo como valor tico e esttico, da autonomia da arte, e da recusa da realidade como modelo para esta ltima. Nessa esteira, pode-se aludir aos incmodos e polmicas provocados pelas escritas alternativas, trazidas ao cenrio literrio. Monteiro Lobato - com seu Jeca-Tatu que falava caipirs - promoveu a grande revoluo, num espao em que o paradigma das belas-letras3 exigia o culto gramtica, at ento considerada como a arte de falar

2 Texto original: La vie intellectuel nest pas un empire dans un empire; elle est impregnee detats affectifs qui tendent eux mmes sexprimer...; elle a donc une tendance constante se jouer extrieurment. Palavras de Luquet, Apud Marcel Jousse, XXIV, p. 4 citadas por Galvo, 1967, 63)

Termo freqentemente usado como sinnimo de literatura. O uso restringe, por vezes, o emprego deste termo aos escritos de ndole ligeira, ou mesmo frvola, (...) [Shaw, s.u.]

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e escrever4. Logo, s a fala culta era autorizada. Numa atitude vanguardista, o coloquialismo de Jos de Alencar foi o primeiro grande passo para a insero de formas no-autorizadas nos textos literrios. O eu romntico de Alencar deu-lhe coragem de encarnar uma nova fala, numa perspectiva de verossimilhana, no mais de exclusiva mimese (imitao ou representao do real na arte literria). E Elomar, que no escapa de ser um grande romntico, transita, sem cerimnia, por entre as variantes lingsticas nacionais (do matuto ao erudito), trazendo, ao cenrio musical brasileiro, uma obra rica tanto do ponto de vista lingstico quanto enciclopdico. Sua atitude trovadoresca, por exemplo, permite a mesclagem de vozes e saberes, possibilitando, assim, ao leitor-ouvinte o conhecimento e a apreenso de formas lingsticas e acontecimentos histricos que do relevo nossa paisagem cultural. 3. Relembrando a literatura medieval A tradio greco-romana, recolhida por filsofos e doutores da Igreja (Tertuliano, Santo Ambrsio e Santo Agostinho), preservada pelos mosteiros; floresce em cortes como a de Carlos Magno, onde surge o poema pico A cano de Rolando, narrando as lutas contra os sarracenos. So comuns os sermes, as vidas de santos, os relatos de milagres e a compilao annima das sagas de tradio oral, reunindo lendas da mitologia nrdica. A literatura corts surge na poesia provenal do sul da Frana, a partir do sculo XI, com Arnaud Daniel, Guilherme de Aquitnia, Marcabru, Peyre Cardenal ou Bernard de Ventadour. Da Frana, se irradia para toda a Europa, atravs de trovadores como o alemo Walther von der Vogelweide, ou os reis dom Afonso X, o Sbio, da Espanha, e dom Dinis, de Portugal. Sua manifestao mais importante O romance da Rosa, dos franceses Guillaume de Lorris e Jean de Meung. As cantigas de amor, de amigo ou de escrnio e mal dizer (stiras) dos trovadores, feitas para serem cantadas,

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No meu tempo de aluno, a gramtica nos ensinava a arte de escrever e de falar corretamente. uma velha definio romana. Era a definio de Carlos Pereira. Corresponde definio de Morais, no dicionrio: Arte que ensina a falar e escrever corretamente uma lngua, segundo o modo por que a falaram os melhores escritores e as pessoas mais doutas e polidas; de Joo Ribeiro, mestre dos mestres: Gramtica a coordenao das frmulas, leis ou regras da linguagem literria ou polida;(...) In Da importncia da gramtica. Alade Lisboa de Oliveira.

so recolhidas em cancioneiros: os mais famosos so os portugueses da Ajuda, da Vaticana e o Colocci-Brancuti. A mais antiga manifestao literria galego-portuguesa (lngua da produo medieval) que se tem notcia a Cantiga da Ribeirinha, tambm chamada de Cantiga da Garvaia, composta por Paio Soares de Taveirs5, provavelmente no ano de 1189 (ou 1198, pois h rasuras na datao). Por essa cantiga ser a de registro mais antigo, convm datar-se da o incio da lrica medieval galego-portuguesa. Ela se estende at o ano de 1418, quando se inicia o Quinhentismo em Portugal e, na Galiza, tm incio os chamados Sculos Escuros. Ao lado da poesia, as narrativas de aventuras guerreiras exaltam a valentia, a fidelidade ao soberano e a defesa dos fracos; celebram, tambm, uma concepo mais realista do amor do que a literatura corts. So exemplos de novelas centradas em proezas militares as lendas celtas e brets do ciclo arturiano, relatando as peripcias do rei Artur e dos cavaleiros da Tvola Redonda; os poemas ingleses Beowulf e Sir Gawain e o Cavaleiro Verde; os espanhis, Amadis de Gaula e Los cantares del mio Cid; os franceses, O romance de Alexandre e Lancelot, de Chrtien de Troyes; ou o russo, Canto da batalha de gor. As vrias verses da lenda de Tristo e Isolda, entre as quais a do alemo Gottfried von Strassburg, so uma da maiores contribuies para a novela de temtica amorosa. A assimilao das novelas de cavalaria pela Igreja, como instrumento doutrinrio, faz surgir A demanda do Santo Graal, onde se descreve a busca, pelos cavaleiros da Tvola Redonda, do clice no qual teria sido guardado o sangue de Cristo, aps a crucificao. O trovadorismo, que celebra formas idealizadas de amor, em geral platnico e inatingvel, domina o cenrio literrio europeu por dois sculos. Em Portugal, s aparece no fim do sculo XII. Poetas-cantores compem poemas, chamados de cantigas, para ser cantados e acompanhados por instrumentos. As obras classificam-se em lricas as cantigas de amor e de amigo e satricas as cantigas de escrnio e de maldizer.

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No sculo XIV, em plena transio para o Renascimento, h grande produo literria, principalmente na Itlia. Elementos do cristianismo misturam-se ao humanismo nascente. Francesco Petrarca (1304-1374), no Cancioneiro, glorifica o amor e consolida a forma do soneto. Dante Alighieri (1265-1321), na Divina Comdia, faz uma alegoria do percurso da alma em busca de Deus. Em Decamero, Giovanni Boccaccio (1313-1375) mescla valores cristos a temas burlescos. Como estamos tratando de um poeta-compositor, mister falar da msica medieval, que se caracteriza pela combinao das notas em modos, ou seja, de acordo com a funo e o texto cantado, o compositor usa uma escala diferente. As principais formas musicais so as salmodias cantos de salmos ou parte de salmos da Bblia e as himnodias, cantos realizados sobre textos novos, numa nica melodia, sem acompanhamento. Com a expanso do cristianismo, no sculo VI a Igreja unifica a liturgia conforme as regras do papa So Gregrio I, o Magno (540-604). O canto gregoriano, sempre em latim, lngua oficial do catolicismo, o nico aceito nas igrejas. As composies baseiam-se na simplicidade, na austeridade e na homofonia todos os cantores entoam a mesma melodia a uma s voz. No sculo XI, o monge beneditino Guido d`Arezzo (990-1050) sistematiza a notao musical, a base para a elaborao de partituras. Os sistemas de notao impulsionam a polifonia (duas ou mais melodias independentes superpostas), que, no sculo XII, desenvolve-se com a msica dos compositores que atuam na Catedral de Notre Dame. No sculo XIII, surge a ars antiqua (arte antiga), cuja marca a independncia rtmica das melodias e a preocupao de compor uma msica sem dissonncia. As obras passam a ser assinadas, e cria-se a figura do compositor. Os principais so Petrus de Cruce e Adam de la Halle (1250-1306). No sculo XIV, desenvolve-se a ars nova (arte nova), movimento que busca romper com as regras at ento aceitas. Combinando traos da literatura e da msica medieval (quase que inseparveis na poca), Elomar compe peas que validam conferir-lhe o epteto de o trovador do serto. Trovador a denominao dada ao poeta lrico medieval que, em geral, no s compunha msica para suas poesias romnticas, como tambm as recitava, quase sempre se fazendo acompanhar de um instrumento musical. A palavra trovador

origina-se do verbo provenal trobar, que tambm significa encontrar, inventar. Assim, o trovador era algum que inventava poemas, descobrindo versos novos para sua elaborada lrica de amor. Os trovadores escreviam na lngua da Provena (langue doc ou occitana), ao contrrio dos poetas mais cultos, que compunham em latim. Os trovadores cultivaram, tambm, outros estilos e formas poticas: o planh, elegia; pastorela, dilogo entre o cavalheiro e a pastora; sirvents, stira poltica ou religiosa; alba, que cantava a separao dos amantes na madrugada; jeu parti ou debate, um dilogo entre dois poetas; e balada ou dansa, uma cano para danar, com um refro. O trobar clar (ou plan) a poesia clara, plana ou leve; o trobar clus, a poesia fechada, rica, obscura ou hermtica. Mais de duas centenas de melodias que acompanhavam as poesias foram conservadas. Ainda em relao ao trovador, vale dizer que a poesia trovadoresca foi um gnero singular, uma das mais brilhantes formas poticas j criadas. A arte dos trovadores influenciou toda a poesia lrica posterior na Europa. Num misto de romntico cuja esttica alia uma busca das fontes e origens nacionais e moderno, a obra de Elomar re-busca a paisagem cultural brasileira, cantando-a, ora com a ingenuidade por exemplo, cruzando variedades lingsticas - e a pureza do caipira sertanejo, ora com a eloqncia do poeta que conhece os clssicos da literatura universal e que se embebe das fontes mitolgicas e mticas que emolduram a religio. Veja-se a letra de Donzela Tiadora:E a donzela Tiadora // qui nas asa da aurora // vei sala do rei // infrent sete sbios // sete sbios da lei // venceu sete perguntas // e de boca-decoro // recebeu cumo prenda // mili dobra de oro // respondeu qui a noite // discanso do trabai // incobre os malfeitores // e qui do anjeric // beleza dos amores // e qui da vilhilice // vistidura de dores // na eterna mininice // foi-se num poldo bai // isso vai muito longe // foi no seclo do pai. (In Cartas Catingueiras Disco 2)

Nesta pgina de Elomar, em que o poeta-compositor tenta reconstituir a fala popular regional, v-se a retomada de um comportamento palaciano, emoldurado por contedos lendrios e mticos que tipificaram a cultura medieval, com suas aventuras e conquistas. o homem cantando, enaltecendo a donzela. Contudo, a estrutura paralelstica que identifica as Cantigas de Amigo no se apresenta em Donzela

Tiadora. A retomada do final de um verso na abertura do verso seguinte (o leixa-prem) s aparece nos versos infrent sete sbios // sete sbios da lei. Vejamos agora a Cantiga de Amigo:L na Casa dos Carneiros onde os violeiros // vo cantar louvando voc // em cantiga de amigo, cantando comigo // somente porque voc // minha amiga mulher // lua nova do cu que j no me quer. Dezessete minha conta // vem amiga e conta // uma coisa linda pra mim // conta os fios dos seus cabelos // sonhos e anelos // conta-me se o amor no tem fim // madre amiga ruim // me mentiu jurando amor que no tem fim L na Casa dos Carneiros, sete candeeiros // iluminam a sala de amor // sete violas em clamores, sete cantadores // so sete tiranas de amor, // para amiga em flor // que partiu e at hoje no voltou. Dezessete minha conta // vem amiga e conta // uma coisa linda pra mim // pois na Casa dos Carneiros, violas e violeiros // s vivem clamando assim // madre amiga ruim // me mentiu jurando amor que no tem fim. (in Elomar... Das barrancas do Rio Gavio.)

Esta letra j apresenta traos mais fortes do poeta medieval. Sobretudo na escolha lexical, Elomar recupera marcas da lrica das cantigas de amigo: cantar, cantiga de amigo, amiga, mulher, madre, cabelos, anelos, flor, clamando. Em contraponto, a temtica se mostra mais prxima das Cantigas de Amor. Um dos principais traos que distinguem a cantiga de amigo da cantiga de amor o fato de, na primeira, ser a donzela, ou namorada, quem fala, dirigindo-se a seres da natureza, me ou a amigas, num desabafo ou na narrativa breve de um episdio relacionado com o seu amigo. Em Cantiga de Amigo, Elomar o trovador que fala, dirigindo-se a sua senhora (de quem se queixa, ainda que lhe destaque algumas qualidades): em cantiga de amigo, cantando comigo // somente porque voc // minha amiga mulher // madre amiga ruim // me mentiu jurando amor que no tem fim (...) para amiga em flor // que partiu e at hoje no voltou. Na cantiga medieval, o trovador exalta sua amada, que s tem qualidades a apreciar. Na letra em pauta, o poeta j manifesta um outro sujeito, cuja fala no mais simplria. O vocabulrio transita entre o rstico e o palaciano.Veja-se esta estrofe:

Dezessete minha conta // vem amiga e conta // uma coisa linda pra mim // conta os fios dos seus cabelos // sonhos e anelos // conta-me se o amor no tem fim // madre amiga ruim // me mentiu jurando amor que no tem fim

As estruturas gramaticais so rigorosamente normativas, e a seleo vocabular traz cena o vocbulo anelos (data de 1657, [Houaiss, s.u.]), de uso pouco freqente. Em violas e violeiros // s vivem clamando assim, o uso do verbo clamar flexionado tambm um requinte lexical, tpico de usurios que dominam a lngua culta. , alm disso, um ndice lexical para o romantismo subjacente ao cancioneiro medieval. 4. Um trovador no serto Elomar voz do serto nordestino e, em suas canes, perpetua fatos da spera vida dos criadores de gado, especialmente daqueles que exercem a profisso de pastorear manadas e rebanhos, os vaqueiros. Fatos em destaque so as devastaes nas crias das guas, ovelhas, cabras e vacas, feitas pelas feras da regio, sobretudo onas negras e pintadas, maarocas e suuaranas. O trovadorismo atribudo ao cantar sertanejo tambm reflexo da cultura europia, onde se canta, em versos rememorativos, as suas proezas devastadoras, recuando, no tempo, s faanhas de Hrcules (cf. Barroso, 1949: 257). Elomar canta faanhas de cavaleiros valentes. A obra elomariana rene poemas narrativos que se enquadram no estilo medieval. Arcasmos e tiradas cavaleirescas integram a matriz medievalizante de sua obra; e esta a face de sua produo contemplada neste captulo. Todavia, a lrica trovadoresca de Elomar traz a fala cabocla para seus textos e isto nos faz lembrar que os poetas urbanos controlam suas composies tamborilando nas escrivaninhas. O poeta caboclo metrifica repinicando a viola. Pois a poesia gmea da msica. (Jangada Brasil, Abril 2001 - Ano III - n 32) no toque de viola que o poeta caboclo descobre a msica e a segue, construindo o seu cantar. Segundo os poetas violeiros caboclos, o toque da viola gera um ritmo, que o comando de sua criao potica.

A medieval redondilha maior o verso preferido pelo caboclo, quer em suas expanses amorosas, quer nas narrativas de faanhas, de pequenos romances da sua vida pastoril, celebrando bravuras de bois e de cavalos ou fatos sociais e polticos do meio rural. Vejamos:Ouvi na viola de pastores // Bardos sonhadores que arrebanham estrelas // Que na manh do tempo // Um dia ela veio a terra // Rai nua panela de oro // Pra revel tesouros // Que os homens no tm // Falou de mundos de mil luas // Lindas deusas nuas // Monjas do astral // Que em dimenses alm do amor // Alm tambm do bem e do mal // Sobre as ondas de luz pastoram estrelas // Da casa Paternal (fragmento de Cantoria Pastoral In Na quadrada das guas perdidas)

Nessa letra, palavras como pastores, bardos, estrelas, oro (ouro), tesouros, luas, astral, deusas, monjas, funcionam como ndices-smbolos da presena mtica em sua obra. Paralelamente, o estilo lingstico manifesta, salvo alguns versos, um rebuscamento que revela a face culta ou mesmo erudita do autor. Por isso, verifica-se que h, subjacente aos seus textos, um projeto comunicativo que evoca ora a fala singela do no-letrado ora a fala elaborada do literato. O contedo religioso desenha, em textos como esse, uma nova fala: a de um poeta mstico, crente e esperanoso de uma nova era, alm do bem e do mal. Vamos ao texto:Bem de longe na grande viagem // Sobrecarregado paro a descansar // Emergi de paragens ciganas // Pelas mos de Elmana, santas como a luz // E em silncio contemplo, ento // Mais nada a revelar. (fragmento de A meu Deus um canto novo. In Na quadrada das guas perdidas.)

Observe-se que as expresses grande viagem, pelas mos de Elmana, santas como a luz, em silncio contemplo so cones-ndices da religiosidade do eu lrico. Mais um texto se impe:(...) quatro cavaleiros // de olhares cruis // prontos pra peleja // j cavalgam seus corcis //de olhos para os cus // s ispero Cristo vim eis qui chegam os maus // tempos do grande fim // treme a terra pela ltima veiz // ais lamentos // vindo o Rei dos Reis // sol nun seca meu

pranto // qui preu refresc meus pis (fragmento de Corban6. In ConSerto disco 2)

Alm de, no prprio ttulo, o autor fazer aluso a um tipo de atitude em que o crente se mostra resignado com um destino a ele reservado, narra (no trecho eleito) a passagem dos cavaleiros do apocalipse, a despeito do que, o crente permanece esperanoso e confiante no projeto divino que lhe caro. Corban seria uma abnegao, que o sacrifcio voluntrio do que h de egostico nos desejos e tendncias naturais do homem, em proveito de uma pessoa, causa ou idia. [Aurlio, s.u.]. A aluso ao corban tambm cone-ndice da erudio do autor. 5. Elomar e a literatura popular Documentando que a literatura popular do nordeste ajusta, de maneira intensa e atuante, o legado de uma tradio oral ou escrita ao cnone de uma cultura prpria, ao esquema de uma ideologia que acorda, discorda ou reabilita, segundo Ferreira (1993, 53); e enquadrando pginas da obra elomariana na rubrica literatura popular, ver-se- a fala pastoril em contraponto com uma outra fala rebelada, que discute a ao do contexto sobre o vaqueiro, sobre o criador, sobre o plantador (preferimos plantador a agricultor, considerando as nuanas socioeconmicas contidas nos semas deste vocbulo). Vamos ao texto:Fadigado e farto de clamar s pedras // De ensinar justia ao mundo pecador // Oh lua nova quem me dera // Eu me encontrar com ela // No pispei de tudo // Na quadra perdida // Na manh da estrada // E comear tudo de novo (fragmento de A meu Deus um canto novo. In Na quadrada das guas perdidas.)

Em fragmento de uma mesma letra em que destacamos traos de religiosidade, verifica-se a voz insatisfeita do eu lrico. Ainda que eivada de semas religiosos, a luta pela mudana de paradigma, ali declarada, serve de pista para a existncia de uma outra voz que lamenta, nos textos de Elomar.

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Corban um sacrifcio. Mas o que sacrifcio? Nas religies pags: a destruio da vida na adorao de dolos. No judasmo: a elevao do mineral, vegetal e animal ao espiritual. (www.chabad.org.br/interativo/FAQ/corban.html)

Vejamos:Da Carantonha mili lgua a caminha // Muito mais, inda mais, muito mais // Da Vaca Seca, Sete Vage inda pra l // Muito mais, inda mais, muito mais // Dispois dos derradero canto do serto L na quadrada das gua perdida // Reis, Me-Senhora // Beleza isquicida // Bens, a lagoa arriscosa funo O Caindo chiquera as cabra mais cedo // Aparta os cabrito, chincha Lubio, procura segredo, // esse bode malvado // travanca o chiquero te avia a cuid Alas qui as polda di Sheda rincharo ao lua // Na madrugada suada de medo pra l // Runcas levando acesas candeia inluso (fragmento de Na quadrada das guas perdidas- No disco do mesmo nome)

Observe-se que h nessa letra o mesmo esprito corbnico. O campons criador e plantador luta contra as vicissitudes do serto, mas segue tropeiro, levando acesas as candeias, smbolo de sua iluso de sucesso: a Luz que no se apaga e que o salvar.

6. Referncias bibliogrficas e notas:

BARROSO, Gustavo. Ao som da viola. (Folclore). 2 ed. corr. aum. Rio de Janeiro, 1949. BARTHES, Roland. Aula. 6a. ed. So Paulo: Cultrix, s/d. FERREIRA, Jerusa Pires. Cavalaria em cordel. O passo das guas mortas. 2a. ed. So Paulo: Hucitec. GALVO, Jesus Belo. Lngua e expresso artstica. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1967. OLIVEIRA, Jos Loureno de Da importncia da gramtica. In _____. Ao correr do tempo 2. Edio digital, 2004. http://www.letras.ufmg.br/lourenco/banco/EH05.html SHAW, Bernard. Dicionrio de termos literrios. Lisboa: Publicaes Dom Quixote, 1978.

Outras fontes: Jangada Brasil. Abril 2001. http://jangadabrasil.com.br/abril32/cn32040a.htm

Ano

III

-

n

32.

Da Cantiga popular pera0. Gnesis No princpio havia o Caos. Dizem-no todas as teogonias e os poetas clssicos. Muitos destes, inclusive, incluem em seus prlogos, marcada no texto ou no, uma idia do que seria a forma primitiva antes da criao. Essa idia de representar, no incio da obra, um estado elementar que necessita de ordenao no aparece apenas nos textos que falam especificamente da Gnese, mas tambm, mutatis mutandis, em textos de teoria potica. Dos primeiros, temos a Teogonia, de Hesodo; As Metamorfoses, de Ovdio, nos quais a desordem elementar se transmuta na harmonia da msica das esferas por obra de um demiurgo: a matria bruta confusa rudes indigestaque moles (Ov., Met. I, 7) sob o comando de uma fora criadora (Ov., Met. I, 21), transforma-se em beleza; a disparidade se converte em unidade. Essa fora, comum a diversos sistemas mticos, personificada na figura do demiurgo, e sua importncia sobrevive substituio do mithos pelo logos, no somente nas filosofias platnica e neoplatnica, mas tambm nas estticas filiadas quelas escolas. Esse pensamento dirigido procura de uma unidade transcendente passa da Filosofia para a Esttica, e Aristteles, mesmo opondo-se a Plato, clama, tambm, pela defesa da unidade da obra de arte (Poet. VI-VII, 1450b ss.). Na Arte Potica, de Horcio, encontramos um exemplo indicial da importncia dessa ordenao pelo demiurgo. Em seus cinco primeiros versos, o poeta nos sugere, em figuras estranhas:Se um pintor quisesse juntar a uma cabea humana um pescoo de cavalo e a membros de animais de toda ordem aplicar plumas variegadas, de forma que terminasse em torpe e negro peixe a uma mulher de bela face, contereis vs o riso, meus amigos, se a ver tal espetculo vos levassem? (Horcio, 1984, 49).

a disparidade elementar que o engenho no permite e, nos demais versos, incumbe-se da tarefa de mostrar o lcito e o ilcito para os demiurgos das palavras: os poetas. Para que se compreenda o nascimento da pera, necessrio que se tenha em mente algumas idias relacionadas ao neoplatonismo, ao Caos, figura do demiurgo.

1. O incioDe todas as formas de arte, a pera , provavelmente, a nica que tem certido de nascimento. Sabemos exatamente onde e quando nasceu e quem foram seus criadores (Coelho, 2000, 19).

No carnaval de 1597, com os versos de Ottavio Rinuccini e a msica de Jacopo Peri, encenou-se, em Florena, o primeiro opera per musica: uma tentativa de ordenar o caos vigente nas apresentaes do que se chamava dramma per musica. At aquela data, os tipos de dramma encenados apresentavam deficincias crnicas herdadas de suas origens: a falta de harmonia entre msica e ao, a falta de unidade musical ou a complexidade excessiva da tessitura musical, dificultando o entendimento do texto. Remontando ao final da Idade Mdia, incio do Renascimento, com a valorizao cada vez maior do teatro profano clssico, deixam-se, paulatinamente, os temas religiosos e retomam-se as peas latinas, apresentadas em lngua original ou traduzidas para o vernculo. Essas apresentaes fazem-se acompanhar de msicas, no prlogo mais tarde conhecida como abertura e nos intervalos dramticos o intermezzo, entreato ou intermdio, que designaria, genericamente, esse tipo de encenao. A princpio, msica e texto no se superpunham, se excluam. As cortes italianas, em especial a de Florena, passaram a exigir a insero de episdios cantados nessas apresentaes, e esse espetculo grandioso foi se transformando. Se, inicialmente, o canto, a dana e a msica tinham papel acessrio no intermezzo, aos poucos seu uso foi crescendo, a ponto de sua importncia relegar a ao dramtica ao segundo plano. A integrao do teatro com a msica dera o seu primeiro passo, mas restava ainda, como problema, a falta de unidade narrativa. O culto da poesia buclica clssica Ovdio, Virglio mesclado com o desenvolvimento das pastourelles medievais, cria, na pennsula itlica, a favola pastorale. A pastourelle original compunha-se de um dilogo entre uma pastora e seu amado cavalheiro. A esse gnero medieval somaram-se as poesias de gosto buclico que o transformaram em peas dialogadas, a favola. A intriga amorosa esquematizada, os personagens humanos estilizados e as divindades mitolgicas silvestres, encadeados por uma trama muito simples e at mesmo repetitiva, eram os principais ingredientes desses mimos renascentistas. Outra caracterstica principal dessa manifestao era a mtrica regular dos dilogos e narrativas. Tendo em vista sua origem camponesa, sua

simplicidade, agradava a nobres e plebeus. unidade narrativa faltava, entretanto, unir a unidade musical. Percorrendo as formas musicais populares conhecidas, chegamos comdia madrigalesca. Durante a Idade Mdia, a criao da escrita musical, por Guido DArezzo, permitiu no s o registro dos sons musicais, mas