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O Garoto, educação e nacionalismo em A Revista Evelyn Morgan Monteiro Paiva Resumo O Garoto foi um periódico direcionado ao público infantil publicado por A Revista e que circulou em Niterói, capital do estado do Rio de Janeiro à época, entre abril de 1920 e abril de 1921. Essa revista servia ao projeto dos intelectuais do estado do Rio de criar uma identidade fluminense ainda na infância. Isso porque, para esses intelectuais, o exercício da identidade e do nacionalismo deveria começar pela educação das crianças. Palavras-chave: nacionalismo, identidade, educação, infância. Abstract O Garoto, education and nationalism in A Revista Professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro (IFRJ) e doutoranda pelo Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil, da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC/FGV). PAIVA, Evelyn. Anais do SEMINARIO DE POS-GRADUANDOS EM HISTÓRIA "Estudos de Imprensa no Brasil", out. 2010 - UFF- Niterói- RJ

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O Garoto, educação e nacionalismo em A Revista

Evelyn Morgan Monteiro Paiva

Resumo

O Garoto foi um periódico direcionado ao público infantil publicado por A Revista e

que circulou em Niterói, capital do estado do Rio de Janeiro à época, entre abril de

1920 e abril de 1921. Essa revista servia ao projeto dos intelectuais do estado do Rio

de criar uma identidade fluminense ainda na infância. Isso porque, para esses

intelectuais, o exercício da identidade e do nacionalismo deveria começar pela

educação das crianças.

Palavras-chave: nacionalismo, identidade, educação, infância.

Abstract

O Garoto, education and nationalism in A Revista

O Garoto was a journal directed to children and published by A Revista, which

circulated in Niterói, capital of the State of Rio de Janeiro at the time, between April

1920 and April 1921. This magazine served the project of intellectuals from Rio State

to create a fluminense identity still in childhood. Therefore, for these intellectuals, the

exercise of the identity and nationalism should begin by educating children.

Keywords: nationalism, identity, education, childhood.

Professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro (IFRJ) e doutoranda pelo Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil, da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC/FGV).

PAIVA, Evelyn. Anais do SEMINARIO DE POS-GRADUANDOS EM HISTÓRIA "Estudos de Imprensa no Brasil", out. 2010 - UFF- Niterói- RJ

O estado do Rio de Janeiro procuraria na educação a cura para suas mazelas. O ensino

foi um tema constante nas páginas dos periódicos fluminenses produzidos nos anos

iniciais da República. A busca da autêntica nacionalidade e da identidade fluminense

encontrava seu par na educação, que, afinal, poderia livrar o país do analfabetismo e

preparar os cidadãos para a nova sociedade que se desejava construir. O projeto de

educação e nacionalismo de A Revista atingiu diversos tipos de leitores e chegaria ao

público miúdo com a criação de O Garoto.

A Revista surgiu no início do século XX, tendo circulado entre 1919 e 1923

como uma revista ilustrada, literária, que se pretendia fluminense, pois, apesar de ser

publicada em Niterói, tratava de todo o território do estado do Rio. Seus editores eram

intelectuais locais, também oriundos das diversas partes do interior fluminense, mas

exerciam em Niterói suas redes de sociabilidades.

No número comemorativo pelo primeiro ano de aniversário de A Revista, em

abril de 1920, foi lançado, em suas páginas, um mensário dedicado às crianças, O

Garoto. Fato curioso, uma vez que significava uma revista dentro da outra; além de ser

uma inovação, por se tratar de um periódico direcionado ao público infantil. O Garoto

estava ligado à ideia de educação proposta por A Revista, daí sua criação: um

informativo específico àqueles que se queria educar, as crianças.

As questões levantadas neste artigo evidenciam como periodismo fluminense,

produzido no início do século XX, pode ser uma importante fonte para a História do

estado do Rio de Janeiro. A Revista e O Garoto fornecem indícios sobre os temas que

fizeram parte do discurso dos intelectuais fluminenses na década de 1920.

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A educação como instrumento: o modernismo fluminense de A Revista

No irradiar dos primeiros anos republicanos, cujas reflexões acerca da realidade

brasileira estavam difusas, derivadas em movimentos de cunho nacionalista, o impacto

da Primeira Guerra Mundial provocava questionamentos. E seriam os intelectuais ─ e

os fluminenses faziam parte desse grupo ─ que se autocontemplariam com a tarefa

pedagógica de traçar possíveis caminhos para a construção de nossa nacionalidade.

Colocar-se-iam a refletir sobre o país, a propor soluções para uma nação que precisava

de uma identidade. O tema do nacionalismo estava nas fileiras do momento, pois a

palavra de ordem era criar a nação.1

Para criar a nação, A Revista desejava recuperar a atuação fluminense na nação.

Os intelectuais responsáveis por tal publicação se preocupavam em construir uma

identidade para o estado pelo caminho do moderno, do progresso. Os temas das seções

da revista eram variados, mas grande parte deles versava sobre reformas urbanas,

literatura, política, história e, principalmente, a relação entre nacionalismo e educação.

É importante ressaltar que o modelo de educação proposto estaria ligado às

questões que se faziam urgentes na década de 1920. Ora, se os intelectuais estavam

pensando a nação, era necessário formar uma consciência nacional. Portanto, a

educação era antes uma educação cívica.

Assim a literatura brasileira deve deixar de ser apenas um “templo da arte” para se transformar

em “escola de civismo”. Para levar a efeito tal princípio, o artista precisa abandonar sua “torre

de marfim” e pôr os pés na terra, que é onde se decidem os destinos humanos. Porque dotados

de dons divinatórios, os intelectuais são eleitos os “legítimos depositários da civilização”, 1 OLIVEIRA, Lúcia Lippi. A questão nacional na Primeira República. São Paulo: Brasiliense, 1990.Ver também SÜSSEKIND, Flora. “Cenas de fundação”, in FABRIS, Anateresa (org.). Modernidade e modernismo no Brasil. Campinas: Mercado das Letras, 1994.

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tornando-se, portanto, os mais indicados para ensinar o amor pela pátria. Nesta perspectiva,

eles devem se transformar em educadores, exercendo uma função eminentemente pedagógica

na sociedade.2 (Grifo do original.)

A educação tinha, nesse momento, dupla função: uma progressista, de erradicar

o analfabetismo, e outra cívica, ao cultivar a nacionalidade.

O contexto do pós-guerra causou impacto entre os intelectuais brasileiros,

representando, portanto, um campo fértil para projetos que priorizavam soluções para

os grandes problemas nacionais.3 A educação tornou-se peça fundamental para superar

os entraves para o progresso do país e do estado do Rio de Janeiro, “arrancando do

analfabetismo milhares de crianças que se preparam para o maior orgulho do torrão

fluminense”.4

O nacionalismo supervalorizou o papel da educação. A instrução tinha como

fim uma reforma moral e intelectual do brasileiro. Dessa forma, o ensino se tornou um

instrumento precioso na política de regeneração do país, que auxiliaria na definição da

identidade nacional.5

“(...) a escolarização era concebida como a mais eficaz alavanca da História

brasileira.”6 Essa frase se aplica não só à nação, mas também aos seus membros. A

Constituição de 1891 atribuía aos estados da federação a responsabilidade pelo ensino

primário no Brasil. Nesse contexto, em que se queria redefinir a identidade brasileira, 2 VELLOSO, Mônica. “A brasilidade verde-amarela: nacionalismo e regionalismo paulista”, in Estudos Históricos. Rio de Janeiro: 1993, n. 11. P. 90. Nesse trecho, a autora apropria-se de algumas palavras pronunciadas por Olavo Bilac em seu discurso ao desembarcar da Europa em 1916.3Cf. BOMENY, Helena. “Novos talentos, vícios antigos: os renovadores e a política educacional”, in Estudos Históricos. Rio de Janeiro: vol.6, n. 11, 1993.4 “Diretoria geral da instrução do estado do Rio de Janeiro”. A Revista. Ano II, n. 12, 1921. P. 58.5 GOMES, Ângela. “A escola republicana: entre luzes e sombras”, in ALBERTI, Verena et al. A república no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, CPDOC, 2002.6 NAGLE, Jorge. Educação e sociedade na Primeira República. São Paulo/Rio de Janeiro: EPU/Fundação Nacional de Material Escolar, 1974/1976, p. 101.

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buscar-se-ia, também, um novo formato para o estado fluminense. Por meio da

educação seria possível fazer uma releitura da tradição, ou seja, uma releitura da

interpretação histórica, ao retirar os fluminenses de um estado de segunda grandeza e

alçá-lo a um espaço de destaque na federação.

A centralidade do tema da educação é patente no próprio expediente da revista.

Entre os seus colaboradores estavam homens e mulheres ligados à instrução.7

Dessa forma, as matérias que versavam sobre educação estavam distribuídas

pelo periódico em notas ou artigos destinados ao tema. No editorial 30 dias, por

exemplo, que tratava dos assuntos mais relevantes de cada mês, era comum observar

elogios e críticas à educação no estado, onde “o ensino decresce. O saber decresce: só

uma coisa cresce desassombradamente: a ignorância”.8 Havia cobranças aos políticos,

mas, quando se vislumbravam melhorias educacionais, louros eram jogados aos

mesmos. Apesar disso, porém, não existia uma seção específica para o tema; em vez

disso, a questão da educação estava diluída ao longo das páginas. Os artigos, em sua

maioria, traçavam uma perspectiva otimista para a educação como forma de alavancar

o estado do Rio a um exemplo para a federação.

Era o Dr. Armando Gonçalves quem escrevia mais intensamente sobre tais

temáticas. Em seus artigos, observamos um elogio constante à estrutura educacional

do Rio de Janeiro, o que, segundo ele, seria um indício da grandeza do estado, da

identidade de seu povo. Eram publicadas notas sobre a educação primária, secundária,

7 Podemos citar vários redatores e colaboradores de A Revista que eram ligados à educação como Senna Campos, diretor da sucursal feminina do Colégio Brasil e membro da Academia Fluminense de Letras (AFL); Lilita de Gouvêa Gonçalves, diretora do Externato Santo Antônio; Mario Chaves Campos e José Bernardes Cardoso, ambos professores e inspetores de escolas estaduais do Rio de Janeiro; Horácio Campos, diretor da Escola Normal e membro da AFL; Helena Nogueira, professora no Distrito Federal ─ e muitos outros que contribuíam nos números de A Revista. Além do mais, devemos salientar que o Dr. Armando Gonçalves, redator-chefe do periódico, era sócio do Grêmio Literário Fluminense e diretor da Escola Normal.8 Gioconda Dolores descreve os exames finais nas escolas e critica os “diplomados por decreto”, que se formavam sem a cultura necessária. Gioconda Dolores. “Editorial”. A Revista. Ano I, n. 7, p. 3.

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técnica e superior. Todavia, seriam o ensino primário – representado pelos grupos

escolares – e a educação secundária – a Escola Normal9 – os dois assuntos que mais

apareceriam nas páginas do periódico.

A avaliação do ensino fluminense também era feita a partir da situação dos

grupos escolares de cada município. Armando Gonçalves realizou diversas incursões

ao interior fluminense, que ocasionaram uma série de publicações e artigos em A

Revista – especialmente em seu segundo ano (1920) – cujo fim era montar um

panorama sobre a educação no estado.10

A Revista fugiria ao ponto primordial de seu programa se não destinasse uma de suas páginas

a instrução popular.

Iniciamos animados pelos sensíveis progressos que, atualmente, se evidenciam, quer

no ensino primário, quer no secundário do nosso Estado.

As Escolas complementares, regidas por educadoras de reconhecido mérito e as

elementares, sob os cuidados dos verdadeiros apóstolos da instrução, vão espalhando as almas

ávidas de saber o ensino, que lhes proporciona o único meio de se tornarem úteis a pátria.

O Estado do Rio está em [sic] o número dos que não se podem queixar pela

deficiência de Escolas; o analfabetismo vai tendo felizmente um combate seguro e proveitoso.

(...)

Quanto ao ensino secundário dispõe o Estado do Rio de Escolas Normais e Liceus,

que possuem corporação docente capaz de desenvolver com precisão os seus programas

complexos.

9 Notamos a recorrência não só de artigos como de fotos, notas e comentários sobre a Escola Normal, que, afinal, era um espaço de sociabilidade dos intelectuais à frente de A Revista. Seus colaboradores e seu redator-chefe circulavam por aquele ambiente, fazendo dele um lócus privilegiado de diálogo com A Revista.10 No número 12, de abril de 1920, “Barra de São João”; “Rio Bonito, o Friburgo dos pobres”, n. 13, de 1920; “Itaboraí” no n. 15, 1920; “Capivari”, n. 16, 1920; “Angra dos Reis” no n. 34, 1922; todos de autoria de Armando Gonçalves; “Imposto sobre o ensino”, de Bittencourt Silva, no n. 25, 1921; neste último é relatado como a criação de um novo imposto sobre a educação iria permitir a criação de colégios no interior do estado.

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O ensino particular é distinguido por um número bem avultado de colégios, que

atendem perfeitamente as exigências dos cursos preparatórios.

O ensino profissional, que se inicia, já é uma promessa com a qual devemos contar em

proveito da índole de nosso povo igualmente empreendedor e laborioso.

A Escola Profissional Visdende[sic] de Morais é o exemplo do quanto pode fazer o

ensino profissional em nosso meio.

O próprio ensino superior já vai sentindo: possuímos faculdades de Direito, Farmácia

e Odontologia regularmente freqüentadas.

É portanto com imenso júbilo que registramos, nas páginas da A Revista, esse

momento salutar em prol do nosso engrandecimento.11 (Grifos meus.)

O fragmento demonstra a importância da educação na releitura da História

fluminense. Os intelectuais de A Revista mostravam um estado do Rio de Janeiro

modernizado, comprovado pela educação, que descortinava o homem da ignorância e

delineava sua identidade a partir do desenvolvimento de um “processo civilizatório”,12

por meio do patriotismo.

A modernização de A Revista era empírica, traduzida em fotografias, e suas

páginas, preenchidas de instantâneos que versavam sobre o ensino. Não bastava relatar

os avanços da educação fluminense: o anseio desses intelectuais era decantar em seus

leitores essa ideia. Para tal exercício, usavam fotografias como provas da modernidade

conquistada pelo estado, por meio da educação, e vivida por aquela sociedade que

mudava, acompanhando as novas tecnologias. Esse era um recurso amplamente

utilizado para propagandear a educação e as melhorias do estado do Rio de Janeiro:

11 “Instrução”. A Revista. Ano I, n. 5, 1919, p. 26.12 Cf. ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990.

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(...)prosseguindo em nossa

propaganda em prol do ensino

público, no Estado do Rio Janeiro,

damos hoje uma página ilustrada do

Grupo Escolar Ayadano de

Almeida, um dos melhores do

Município de Niterói (...) A Revista

espera prosseguir na reportagem

fotográfica e, para isso, apela para a

boa vontade dos Srs. Diretores de

‘Grupos Escolares’ que, certamente,

se prontificarão a fornecer os dados necessários.13

Apesar de ter sido um periódico de variedades e tratar de temas diversos, como

arte, política, comércio, ciência, cotidiano e poesia, observamos que a educação

tangencia muito desses assuntos. O que estava em pauta não era somente a

escolarização, mas antes a formação do indivíduo, o tracejar de uma identidade para os

fluminenses. Educação é antes socialização. E, para tal tarefa, muito mais do que

alfabetizar, era preciso:

Alfabetizar não é só fazer conhecer as letras do alfabeto, ler corrido, escrever e contar, mas

converter um ignorante em um cidadão consciente, apto a ganhar honestamente a vida, e

concorrer para o desenvolvimento do país. Para ter um objetivo, uma finalidade social e

13 “Grupo escolar Aydano de Almeida”. A Revista. Ano II, n. 13, 1920, p. 6. Também podemos ver fotografias de funcionários da instrução no estado no número 54, 1923; de meninas normalistas no número 4, 1919; de docentes da Escola Normal no número 8, 1919; do prédio e do diretor da Escola Normal no número 2, 1919; das meninas do Colégio Brasil no número 34, 1922, dentre outros.

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econômica a instrução primária tem que ir mais além: fazer homens prestáveis a Família, a

Sociedade e a Pátria, homens morais e fisicamente fortes.14

Nesse sentido, educar vai muito além das fronteiras do analfabetismo. E parece

ser a receita perfeita para o país que quer se remodelar. No programa do nosso

periódico, a educação é polifônica, e dialoga com a música, a arte, a ciência, enfim,

com a modernização. Todas fazem parte de um desenho de identidade que é proposto

em A Revista. E essa educação começa cedo, ainda quando criança.

O Garoto: nacionalismo para gente miúda

Como citamos anteriormente, O Garoto foi um periódico direcionado às crianças. Seu

lançamento aconteceu em abril de 1920, dentro do número especial de primeiro

aniversário de A Revista. Com essa estratégia, A Revista aumentava o seu público

leitor e suas possibilidades de venda. Ao se comunicar com esses pequenos leitores os

intelectuais fluminenses reproduziam a pauta de identidade e educação que compunha

A Revista.

A imagem da criança, em O Garoto, não era de um adulto em menores

proporções, mas de leitores particulares, com um universo próprio. Isso fica claro no

apelo visual e no texto, que priorizava o lúdico. O Garoto, na verdade, acompanhava

uma tendência, ainda que lenta, daquele início do século XX, de um novo olhar sobre

os infantes. Esse movimento, que caminhava junto com as reflexões pedagógicas,

procurava particularizar a infância, ao negar o trabalho infantil, ao valorizar as

14 CATRAMBY, Guilherme. “O analfabetismo”. Ano III, n. 31, 1921, p. 29. O autor desse artigo era o então chefe da instrução do estado do Rio; abaixo do título estava o destaque “Especial para A Revista”. A cultura também era um indício de educação.

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brincadeiras e linguagens específicas como parte do desenvolvimento da criança, ao

produzir uma literatura dedicada aos pequenos.15

Monteiro Lobato foi pioneiro nesse sentido. No final do século XIX, a literatura

brasileira destinada à infância era totalmente dependente da europeia. As histórias e

fábulas eram traduzidas, como as de La Fontaine. Lobato lançou em 1920 A menina do

nariz arrebitado, e manifestava sua preocupação com as leituras do pequeno público.

Elaborou um modo diferente de levar a fantasia às crianças, mudando decisivamente o

pensamento literário da época.16

O Garoto estava afinado

com esse movimento das

letras infantis17 e buscava aliar

a diversão com a educação.

Mas em seu caso a educação

estava voltada para a

construção de uma

nacionalidade, pautada no civismo. Circulou por um ano – de abril de 1920 a abril de

15Cf. DEL PRIORE, Mary. História das crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 1999; e FREITAS, Marcos Cezar de. História social da infância no Brasil. São Paulo: Cortez Editora, 2006.16 Cf. CADERMATORI, Lígia. “Literatura infantil brasileira em formação”, in ZILBERMAN, Regina (org.). Literatura infantil: autoritarismo e emancipação. São Paulo: Ática, 1982; e FILIPOUSKI, Ana Maria. “Monteiro Lobato e a literatura infantil brasileira contemporânea”, in ZILBERMAN, Zilberman (org.). Atualidade de Monteiro Lobato: uma revisão crítica. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1983.17 Nesse início do século XX, outros periódicos, cariocas e fluminenses, também estavam sendo publicados e pensados a partir do público infantil. Vejamos alguns exemplos encontrados no acervo da Biblioteca Nacional: Almanak da Revista Infantil (1924), Rio de Janeiro; Beija-flor: revista infantil ilustrada (1915), Petrópolis; O Infantil (1912-1916), mensário que se tornou quinzenal e circulava na cidade do Rio de Janeiro; Chantecler: semanário para grandes e pequenos (1910); Revista Infantil (1921 e depois 1933); O Tici-tico: mensário infantil (1905-1962); além do homônimo O Garoto (1915-1918), publicado na capital Rio de Janeiro.

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192118 ─ e era todo pensado para os

pequenos leitores, público diverso do de A

Revista. Além disso, poderia ser vendido

avulso, pelo preço de 100 réis.19

Essa não era a primeira iniciativa

de A Revista em relação aos pequenos.

Havia uma seção chamada Página

Infantil, que acompanhou os números de

A Revista durante todo o seu período de

circulação. Era também publicada com o

título de Alegria dos Lares ou Galeria

Infantil. Essa seção estava sempre

recheada de fotografias de crianças, sendo uma espécie de coluna social infantil. Filhos

de industriais, de políticos, de pessoas importantes tinham suas fotos publicadas com

legendas de consagração. Além disso, eram anunciados aniversários, nascimentos e

bailes de máscaras infantis.

Observamos que, apesar de ter as crianças como tema, esta seção era

direcionada a outro público, os adultos. Afinal, as legendas dos retratos dos infantes

falavam mais sobre seus pais, sua importância dentro da sociedade fluminense, do que

sobre as crianças em si. É nesse ponto que O Garoto é inovador. Sua linguagem, o

apelo visual, as temáticas, toda a sua forma era dedicada ao público miúdo.

18 Os motivos de seu fim não são declarados na revista. Nas edições de janeiro e fevereiro de 1922 de A Revista, O Garoto aparece, mas sem seu aspecto pedagógico, apenas como uma página ilustrativa, a exemplo da Pagina Infantil, com fotos de crianças fantasiadas por ocasião do carnaval.19 A Revista em seus primeiros anos custava 400 réis o exemplar, apesar de não sabermos sua tiragem. A partir de 1921 cada número custava 500 réis, a assinatura semestral, 15 mil e a anual, 25 mil réis. Ver “Aos Nossos Leitores”, A Revista. Ano III, n. 24, 1921, p. 18.

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O Garoto se assemelhava à Revista,

simbolizando uma forma de levar seu

programa às crianças. No tocante ao

formato, tipos de fonte, vinhetas, qualidade

do papel, tudo era similar, apenas mais

lúdico, voltado para seu público-alvo. E o

“programa” também se aproximava, pois

havia poesia, versinhos, contos com moral

da história, charges, arte e um forte apelo à

educação cívica.

Os colaboradores de O Garoto eram

os filhos dos redatores ou colaboradores de

A Revista, todos tinham sua foto estampada no periódico. O redator-chefe – Joãozinho

– era filho do proprietário, Manoel Leite Bastos. Em seu primeiro editorial, Joãozinho

narrava que a iniciativa do periódico iniciava sua trajetória pelas letras fluminenses,

seguindo os passos do “papá”.20

Além de muito divertido, O Garoto nos oferece uma imagem simbólica e

privilegiada de A Revista, no stricto sensu de ser um símbolo da educação cívica

proposta pela revista. Este “pequeno periódico” é revelador na medida em que propõe

a construção de uma identidade aliada à ideia de nacionalidade, em que o público-alvo

é a criança.

Em seu primeiro número, ganhou destaque um conto chamado “Uma festa

cívica”, de Tonico:

20 O Garoto. Ano I, n. 1, 1921, pp. 93-100.

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Vínhamos de uma festa cívica.

A mamã trazia ao colo a maninha que dormia a sono solto.

Eu, ainda acordado, conversava com o papá. Lembro-me que ele dizia entusiasmado,

batendo mansamente em minha cabecinha loura: Meu Filhinho. Aquele homem que falou

sobre o ‘Brasil’, que elevou os brasileiros, foi meu amigo de infância. Eu era de tua idade e ele

era como tu. Brincávamos nas Alamedas do Palácio de meu pai e sempre notei em meu amigo

uma alma nobre, um verdadeiro patriota. Que felicidade não sentiria seu pai em, amanhã

quando velhinho, ouvir alguém dizer o mesmo de ti. Ouviste as palavras do grande amigo de

nossa Pátria, sentiste o que lhe exaltou o coração? Pois bem que a tua alma se forme ao

exemplo daquele distinto brasileiro.

As palavras de papá me animaram de tal maneira que jurei prezar muito este Brasil,

que entusiasma os oradores e forma os verdadeiros patriotas.21

O texto oferece indícios de como os fluminenses estavam reunindo perspectivas

para a elaboração da nacionalidade. O periódico era relevante na medida em que

narrava o potencial do estado do Rio para a formação do conceito de pátria. A década

de 1920 é emblemática por suas iniciativas de repensar o país; os fluminenses estavam

buscando seu espaço nessas discussões, ao esquadrinhar uma identidade de um Estado

modernizado, nacionalista, em que educação fosse sinônimo de progresso.

Mônica Velloso, ao citar Alceu Amoroso Lima, reflete sobre o crescimento

dessa onda nacionalista. E observa que o impacto do pós-guerra levaria a uma “volta

às nossas raízes, (...) o que suscitou a reação modernista”.22 A visão pessimista do

nacional era subvertida pela decadência do ideal civilizatório europeu. A Revista

21 “Uma festa cívica”. Idem. P. 99, 1920. No número 3, de 1920, temos outro conto patriótico, “O desertor”; no número 4, também de 1920, “Uma palestra”, que ressaltava as qualidades do Brasil.22 VELLOSO, Mônica Pimenta. Op. cit., p. 91.

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acompanhava essa tendência modernista de valoração dos elementos nacionais e as

possibilidades assim se ofereciam para a construção da coletividade denominada

nação.

Em suas publicações – e ainda mais pedagogicamente em O Garoto –, A

Revista usou a literatura como instrumento de um ideal nacional. Seu texto articulava o

regional e o nacional, a identidade fluminense diante da nação.

(...) Tirou-nos do embaraço o papá. Devemos lembrar aos amiguinhos que, em breve, serão

reabertas as nossas aulas e que precisamos estudar bastante para que sejamos os garantidores do

futuro de nosso País.

Tiremos dos livros os ensinamentos que formarão o nosso caráter e ilustrarão o nosso espírito.

E, assim, cumpriremos o maior e mais sagrado dos deveres. O Estado do Rio de Janeiro, que

tem sido tão pródigo em homens ilustres, não pode desmentir suas gloriosas tradições.23

A educação remonta à história intelectual de uma sociedade, por isso sua

centralidade.24 Podemos observar que em A Revista essa centralidade é fundamental

pelo caráter multifacetado que a educação adquiriu ao ser símbolo de modernidade e

nacionalismo, a começar desde cedo, ainda na infância.

A Revista e O Garoto foram projetos em defesa da instrução, que contribuem

para compreendermos os anseios intelectuais na consolidação do regime republicano.

As imagens produzidas eram de uma sociedade educada e branca, nas fotos publicadas

não aparecem crianças negras ou mulatas. Indícios como esses sugerem quem eram

esses intelectuais e que nação/educação cívica queriam propagar. Esses projetos

23 O Garoto. Ano I, n. 8, 1921, p. 30.24 Ver BOMENY, Helena. Os intelectuais da educação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000.

PAIVA, Evelyn. Anais do SEMINARIO DE POS-GRADUANDOS EM HISTÓRIA "Estudos de Imprensa no Brasil", out. 2010 - UFF- Niterói- RJ

colaboram para discutir educação e nação nas primeiras décadas da República no

Brasil.

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