juntos inevitavelmente “na terra que nos torna …

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ISSN 1807-6211 [Julho.2020] Nº 34 38 JUNTOS INEVITAVELMENTE “NA TERRA QUE NOS TORNA TÃO FEROZES” (DANTE) NO TEMPO DO COVID 19 8 INEVITABLY TOGETHER “ON THE LAND THAT MAKES US SO FIERCI” (DANTE) IN THE TIME OF COVID 19 Augusto Ponzio 9 Mary Sellani 10 tradução de Marisol Barenco 11 Revisão da tradução Cecília Maculan Adum 12 Resumo O presente texto trata-se de uma entrevista, inédita na Itália, concedida pelo professor Augusto Ponzio à professora Mary Sellani, jornalista italiana. Na entrevista, o professor Ponzio reflete sobre as questões atuais com as quais a humanidade se defronta, incluindo a problemática da pandemia do Covid 19, revelando a atualidade do pensamento de Emmanuel Levinas e sua compreensão da necessidade de criticarmos as ideias de identidade, de medo do outro e fechamento em totalidades identitárias. Ao contrário, nos convida a voltarmos nossa atenção para as ideias e práticas que privilegiam as noções de alteridade, de responsabilidade sem álibi pelo outro e de não indiferença à humanidade. Uma ética de transformação do mundo, sob os valores do estarmos juntos, inevitavelmente. Palavras-chave: Emmanuel Levinas. Alteridade. Juntos. Abstract This text is an interview - unprecedented in Italy - given by Augusto Ponzio to the Italian researcher Mary Sellani. In this interview, Ponzio reflects on the current issues the humanity is facing, including the Covid pandemic 19’s problem, revealing the relevance of Emmanuel Levinas' thinking and his understanding about the need to criticize the identity’ ideas, the fear of others and the closure in identity totalities. Instead, he invites us to turn our attention to the ideas and practices that privilege the otherness’s notion and responsibility without alibi for the other and non-indifference to the humanity. A world’s ethics transformation, under the values of being together, inevitably. 8 Entrevista a Augusto Ponzio por Mary Sellani, inédita na Itália. 9 Augusto Ponzio é professor ordinário de Filosofia e Teoria dei linguaggi e Professor emérito, ensinou Filosofia da Linguagem e Linguística geral na Università di Bari “Aldo Moro”. Estuda e publica sobre Filosofia da Linguagem, Semiótica e Tradução, dentre outros temas, dedicando-se à filosofia de Emmanuel Levinas, Mikhail Bakhtin, Roland Barthes, dentre outros. E-mail: [email protected] Telefone: +393701387991 ORCID https://orcid.org/0000-0001-8073-7675. 10 Jornalista e colaboradora de periódicos como l’Avanti!, Il Mattino, La Gazzetta del Mozzogiorno. Atualmente colabora con as revistas “EspressoSud”, de Nocola Apollonio, com “Contrappunti”, de Franco Chieco e com “Nelmese” de Alessio Rega. 11 Marisol Barenco é professora associada na Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense. Coordena o Grupo Atos UFF, onde realiza coletivamente estudos e pesquisas a partir da filosofia da linguagem do Círculo de Bakhtin. E-mail: [email protected] Telefone: +552126292664 ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9341-0230. 12 Cecília Maculan Adum.

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ISSN1807-6211[Julho.2020]Nº3438

JUNTOSINEVITAVELMENTE“NATERRAQUENOSTORNATÃOFEROZES”(DANTE)NOTEMPODOCOVID198

INEVITABLYTOGETHER“ONTHELANDTHATMAKESUSSOFIERCI”

(DANTE)INTHETIMEOFCOVID19

AugustoPonzio9

MarySellani10traduçãodeMarisolBarenco11

RevisãodatraduçãoCecíliaMaculanAdum12

ResumoOpresente texto trata-sedeumaentrevista, inéditana Itália, concedidapeloprofessorAugusto Ponzio à professoraMary Sellani, jornalista italiana.Na entrevista, o professorPonziorefletesobreasquestõesatuaiscomasquaisahumanidadesedefronta,incluindoa problemática da pandemia do Covid 19, revelando a atualidade do pensamento deEmmanuel Levinas e sua compreensão da necessidade de criticarmos as ideias deidentidade,demedodooutroefechamentoemtotalidadesidentitárias.Aocontrário,nosconvidaavoltarmosnossaatençãoparaasideiasepráticasqueprivilegiamasnoçõesdealteridade,deresponsabilidadesemálibipelooutroedenãoindiferençaàhumanidade.Uma ética de transformação do mundo, sob os valores do estarmos juntos,inevitavelmente.Palavras-chave:EmmanuelLevinas.Alteridade.Juntos.AbstractThistextisaninterview-unprecedentedinItaly-givenbyAugustoPonziototheItalianresearcherMarySellani.Inthisinterview,Ponzioreflectsonthecurrentissuesthehumanityisfacing,includingtheCovidpandemic19’sproblem,revealingtherelevanceofEmmanuelLevinas'thinkingandhisunderstandingabouttheneedtocriticizetheidentity’ideas,thefear of others and the closure in identity totalities. Instead, he invites us to turn ourattentiontotheideasandpracticesthatprivilegetheotherness’snotionandresponsibilitywithout alibi for the other and non-indifference to the humanity. A world’s ethicstransformation,underthevaluesofbeingtogether,inevitably.

8EntrevistaaAugustoPonzioporMarySellani,inéditanaItália.9AugustoPonzioéprofessorordináriodeFilosofiaeTeoriadeilinguaggieProfessoremérito,ensinouFilosofiada Linguagem e Linguística geral na Università di Bari “Aldo Moro”. Estuda e publica sobre Filosofia daLinguagem, Semiótica e Tradução, dentre outros temas, dedicando-se à filosofia de Emmanuel Levinas,MikhailBakhtin,RolandBarthes,dentreoutros.E-mail:[email protected]:+393701387991ORCIDhttps://orcid.org/0000-0001-8073-7675.10 Jornalista e colaboradora de periódicos como l’Avanti!, Il Mattino, La Gazzetta del Mozzogiorno.Atualmente colabora con as revistas “EspressoSud”, deNocolaApollonio, com “Contrappunti”, de FrancoChiecoecom“Nelmese”deAlessioRega.11MarisolBarencoéprofessoraassociadanaFaculdadedeEducaçãodaUniversidadeFederalFluminense.CoordenaoGrupoAtosUFF,onderealizacoletivamenteestudosepesquisasapartirdafilosofiadalinguagemdo Círculo de Bakhtin. E-mail: [email protected] Telefone: +552126292664 ORCID:https://orcid.org/0000-0002-9341-0230.12CecíliaMaculanAdum.

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ISSN1807-6211[Julho.2020]Nº3439

Keywords:EmmanuelLevinas.Otherness.Together.Introdução

Umpossível pontodepartida para reconstruir, nesta entrevista, o percurso de

pesquisadeAugustoPonzio–ProfessoreméritodeFilosofiaeTeoriadasLinguagensna

UniversitàdegliStudidiBarieDocentedeLinguísticageralnaCarloBodiBari,de2017/18

–podeseroseumaisrecentelivro,ConEmmanuelLevinas.AlteritàeIdentità(Mimesis,

338 páginas), publicado em outubro de 2019, e no qual ele revisita o pensamento de

Emmanuel Levinas (Kaunas, 1906 – Paris, 1995). Seu itinerário de estudo iniciou-se

justamentepelaleituradeumaobrafundamentaldeLevinas,Totalitéetinfini[Totalidade

eInfinito](1961),quando,apartirdaprimeirametadedosanos1960,começouatrabalhar

em sua tese de graduação em Filosofia (graduou-se em 1966), intitulada La relazione

interpersonale,orientadopeloprofessorGiuseppeSemerari(1922-1996),entãoprofessor

ordinário de Filosofia teórica e encarregado de Filosofia moral na Facoltà di Lettere e

Filosofiadell’UniversitàdegliStudidiBari.

Esseseulivrode2019,ConEmmanuelLevinas.AlteritàeIdentità,éoatualponto

de chegadadeum caminhoque, partindode Levinas, leva a Levinas; um caminhoque,

porém, não tem a forma de um círculo, e sim de uma espiral, já que não se trata de

repetição,masdeumrecomeçar,sempredenovo,deumare-escritura;umaespécie,em

suma, de eterno retorno de uma paixão intelectual sempre viva e reatualizada por

contínuas reflexões sobre essa importante figura da filosofia do século XX, à luz dos

acontecimentosquesesucederamatéaatualconfiguraçãodomundo,apósachamada

“globalização”.Umareflexãonãointerrompida,aindaqueessanãotenhaexcluídoaescuta

de outras palavras, como as de Bakhtin, Kiekegaard, Peirce, Marx, Blanchot, Bataille,

Barthes, Kristeva, Rossi Landi, Schaff, Sebeok... e de seu próprio professor, Giuseppe

Semerari.

O itinerário especulativo de Levinas começa pelo pensamento de Husserl e de

Heidegger,pelaBíbliaepeloTalmud,pelafilosofiadaGréciaantigaepelagrandeliteratura

russa,paracolocaremdiscussãoasprópriascategoriasdopensamentoocidental(sujeito,

identidade,pertença, consciência intencional, ser isso, seraquilo:a “tumescênciadoeu

sou”),nãosónoâmbitoespecíficodapesquisafilosóficacontemporânea,mastambémna

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pesquisadeumsentidodavidanãoreduzívelaooferecidopeloMundo,pelaHistória,pela

Economia,epelaPolítica,assimcomoseconfiguramnanossaépoca.

Figura1-AugustoPonzio,ConEmmanuelLevinas.Alteritàeidentità,2019.

Fonte:Copyrightdoautor.

Mary Sellani: Professor Ponzio, para retomar, então, o fio da reflexão, iniciemos pelo

deslocamento do discurso filosófico tradicional operado por Levinas na dimensão da

alteridadecontraa ideologiadominanteda identidade.Cadavezmais, vemoscomo,no

nossomundoglobalizado,oschamadosdireitoshumanossãosubstancialmenteosdireitos

da identidade, como mostra Levinas em um ensaio de 1985, com o particularmente

eloquentetítuloLesdroitsde l’hommeet lesdroitsd’autrui [Osdireitosdohomemeos

direitosdosoutros],posteriormentepublicadonolivroHorsSujet(1987,tr.it.deF.P.Ciglia,

FuoridalSoggetto,Marietti,1992),noqualmostraque,doschamadosdireitoshumanos

(enquanto,defato,direitosdaIdentidade,doEu,doMesmo,daPertença,daComunidade),

ficam de fora os direitos dos outros. A questão da identidade é central na reflexão de

Levinas:identidadecontrapostaaalteridade,identidadeque,cadavezmaisentrincheirada

nasuadefesa,cadavezmaisdesconheceeviolaosdireitosdosoutros.Devemosdizerque,

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portanto,paraqueosdireitosdosoutrossejamreconhecidoserespeitados,éprecisouma

novaconcepçãodohumanismo?

AugustoPonzio:Sim,éverdade,aquestãodaidentidadedeveserlevadaseriamenteem

consideração.Dedicamosaessaquestãotambém,eueSusanPetrilli,olivropublicadoem

dezembrode2019nacoleção“Athanor.Semiotica,filosofiaarte,letteratura”,coordenada

pormim(Mimesis), intitulada justamente IdentitàeAlterità [IdentidadeeAlteridade],e

tambémaquitomaareflexãolevinasianacomomarcodirecionadorDoensaiodeLevinas

quevocêrecordou,Lesdroitsdel’hommeetlesdroitsd’autrui,retomamosotítulo,nolivro

sucessivodamesmacoleção(Mimesis,2020),Dirittiumaniedirittialtrui[Direitoshumanos

edireitosdosoutros]:umvolumequefoiumacoletânea,organizadoporSusanPetrilli,do

qual participam também os professores de Ciências Políticas e de Direito Gaetano

Dammacco,NicoPerrone,PaoloStefanì,BrunoVenezianieUgoVillani,daUniversitàdiBari,

eoProf.MarioRicca,daUniversitàdiParma.Hátambémumensaiodo,muitoqueridopor

todos nós, Vitilio Masiello (professor emérito de Literatura italiana), publicado

originariamenteem2008,sobreodireitodotrabalhonaliteraturaentreosséculosXVIIIe

XX.

Aidentidadeéacategoriadominantedarazãoocidental.Elaseregeeseafirma

combasenaindiferençaemrelaçãoaooutro,comodiverso,comonãopertencente.Se

levarmosemconsideraçãonossasrelaçõesenquantosereshumanos,todospodemosser

incluídosnograndeconjuntodogênerohumano(e,todavia,tambémarespeitodisso,há

sempre“outros”quesãoexcluídosenquanto“desumanos”–oque justificatomadasde

posições,remédioseintervenções,aícompreendidasas“guerrashumanitárias”),mas,ao

mesmotempo,somosdistintosemoutrosconjuntos,comoosdogênerossexuais(gender),

daidade,danação,dacomunidade,dalíngua,dareligião,daetnia,dacordapeleetc.

Masérealmenteverdadequeaquiloquenoscaracterizacomovivoséapertença

a um conjunto, a um coletivo, a um grupo?A respeito da unidade, da comunidade, da

pertença,daidentidade,asquais,apesardaincomparabilidade,daunicidadedecadaum,

nostornamintercambiáveisenosreúnememummesmoconjunto,paraLevinasháum

outromododeverascoisas.Nolugardapluralidade(“Cidadesplurais”:opluralésempre

o representar-se do mesmo), deve ser reconhecida a multiplicidade e, com essa, a

diversidade;aoinvésdareferênciaaoindivíduo–que,comotal,semprefazpartedeum

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conjunto – o reconhecimento da singularidade, da unicidade de cada um, da

irrepetibilidade, insubstituibilidade, não-acomunalidade, isto é, o próprio ser fora do

gênero,suigeneris.

Mas cuidado: a singularidade, a insubstituibilidade, a unicidade não é uma

propriedadedo sujeitoemsimesmo (comosustentavaMaxStirneremL’unicoe la sua

proprietà[Oúnicoeasuapropriedade]),masaconsequênciadeumaresponsabilidadenão

delegáveldecadaumemrelaçãoaooutronasuaalteridadedeoutro.Porisso,aoinvésde

proximidadeidentitária,deproximidadecomovizinhança,Levinasfaladeumaproximidade

semdefesa, sem limites,proximidadeentrediversos,entredistantes.Aproximidadeao

outroéresponsabilidadepelooutro.Proximidadesignificaaminharesponsabilidadenão

delegável. É essaaminhaunicidade,omeu serúnico,oúnicoparaooutro:omeu ser

suporteparaapesadacargadaalteridade.

Aalteridadenaexposiçãofaceaface,istoé,foradosescafandrosidentitários,das

casacas e dos processos de pertença, não émais a alteridade relativa dos papéis, das

funções,dastarefas,dasdiversasformasdeexercíciodopoder,dasrepresentações,dos

álibis,nãoéalteridaderelativa,masalteridadeabsoluta.

Apazpreventiva (essaéumaexpressãode Levinas), a liberaçãodomundoem

relação à guerra, que não é alcançável fazendo guerra à guerra através da “guerra

preventiva”, é o reconhecimento da proximidade inevitável ao outro como

responsabilidadeinevitávelpelooutro.Outroautorquemeémuitocaro,MikhailBakhtin,

de quem publiquei uma coletânea de textos junto aos textos do seu chamado Círculo

(Michail Bachtin e il Suo Circolo, Opere 1919-1930, Bompiani, 2014), dizia: “Se

interpretamosanossavidainteiracomorepresentação,nostornamosimpostores”.

Mary Sellani: Por que o sistema da comunicação global e da produção mundializada,

segundoLevinas,nãopodeincluiramigração?

Augusto Ponzio: Eu diria, ao contrário, que não se pode excluí-la. A migração é um

problemadonossotempo,inerenteàglobalização.Antes,falava-sedeimigração,queera

o deslocamento de um certo número (concordado) de pessoas de umpaís a outro. Ao

contrário, a migração de hoje é incontrolável, como é incontrolável a migração das

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andorinhas,deoutrosanimais,dos“vírus”(adifusãodoCoronavírusatestaoenvolvimento

mundial–devidoàglobalização–emrelaçãoaoproblemadacovid-19).

Danão-indiferençapelooutroàdiferençaeàrelativaindiferença:esseéopercurso

atravésdoqualaidentidadeseconstituiesedelineia.Porconsequência,aquiloquenosdiz

respeitoéprogressivamentereduzidoàquiloquedizrespeitoaosinteressesdaidentidade,

etalreduçãoencontraa justificaçãonacondiçãodaresponsabilidade limitadagarantida

porálibi.Mas,quantomaisnosliberamosdacondiçãodemedopelooutro,maisaumenta,

atéaexasperação,omedodooutro.Hoje,omedodooutroestánoaugedoparoxismo.

Assim, a defesa da identidade diante do inevitável fenômeno da migração dá lugar às

diversasmanifestaçõesderacismo.

UmbertoEcohaviaprevisto issodesdeas suas “BustinediMinerva” (queeram

artigos semanais publicados no jornal “Espresso”) de 01-04-1990 e de 15-04-1990 (e,

depois,porsuagentilconcessão,novolume4,de1993,Migrazioni,danossasérieanual

“Athanor.Semiótica,filosofia,arte,letteratura”),ondepelaprimeiravez,queeusaiba,foi

estabelecida a distinção entre “imigração” e “migração”. EmMigrazioni e intolleranza

[Migrações e intolerância], uma coletânea de seus escritos recentemente publicada (La

nave di Teseo, 2019), encontramos essa enunciação que é oportuno recordar aqui:

“Eliminar o racismonãoquer dizermostrar ou convencer-se de que osOutros não são

diversosdenós,mascompreendereaceitarasuadiversidade”.

A comunidade não pode ser uma comunidade fechada. Deveria ser dito

comunanza [comunalidade], onde o final proveniente de antia ou de entia, indica

movimento,abertura,edeveriasernaturalentenderoextra,em“extracomunitário”(de

modo a reter essa qualificação), como aquilo que plenamente, maximamente torna a

comunidadeumviverjuntos.

MarySellani:EmquesentidoafilosofiadeLevinasseabreaumanovavisãodafilosofiada

linguagem,comosevêdemodoevidenteapartirdesuaobramais famosa,Totalitéed

infini,naqualtodaatradiçãofilosóficaocidentalécolocadaemdiscussão,pondonocentro

dareflexãooprimadodaética?

Augusto Ponzio: O primeiromovimento do eu é que esse sempre tem necessidade de

justificar-se diante do outro. E a identidade – mais precisamente a pertença a uma

identidade–éomeioprevalentede justificaçãodoeu.Oprimeirocasodoeu,observa

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Levinas,nãoéonomitativo,masoacusativo.Averdadeiraquestão,elediz,nãoéacolocada

porMartinHeidegger,“Porqueoser,enãoonada?”,masaperguntacolocadapelooutro

ao eu: “Por que você está lá, naquela situação, naquele lugar, naquelas condições

favoráveis, e eu não?” O recurso à identidade permite que eu me justifique, permite

encontrarumaexplicação,encontrarasmotivaçõesquedemonstramodireitoàsminhas

vantagens.Aidentidadeé,portanto,ummeioparasecolocaraconsciênciaempaz,para

secolocardentrodeuma totalidade (comoaComunidadeEuropeia,a italianidade)que

sirvadegarantiaedistingaquemtemdireitoafazerpartedelaequemnão.Masooutroé

aqueleque,apesardetodososesforçosparaencontrarjustificaçõeserejeiçõesporparte

doeu,nãoestá,porsuavez,dentrodealgumadastotalidades(quaisquerquesejam)às

quaisoeugostariaderelegá-lo.Ooutronãosedeixaagarrar,classificar,etiquetar,prender,

elefogeinevitavelmente.

Aprincipalmodalidadedeperceberooutro,apartirdaqualnasceanecessidade

da justificação, é a “má consciência”. Através do expediente do recurso à identidade

diferente, aos diferentes direitos em relação ao outro, o eu consegue passar da difícil

condiçãode“máconsciência”àquelada“boaconsciência”,dasituaçãodeenvolvimentoe

nãoindiferençaàdaindiferença.Maséumengano,parasimesmo,antesdetudo.

Arelaçãoética,nosentidoemqueLevinasutilizaessaexpressão,dizrespeitoao

corpoeàpalavra.Ocorpoeoseuemaranhadoéticopressupõemqueapalavradigaantes

de tudoumcontato,umenvolvimento.Ocorpopermitequeodizer seja significativoe

independentedodito.Oaspectocorpóreodapalavra–avoz,oseutimbre,aescuta,o

contato–nãosereduzàsuafunçãoinformativa,cognitiva,pragmática,masconstitui,ao

contrário,seupressuposto,éasuacapacidadedetranscenderodito,épalavrahumana.

MarySellani:OqueLevinasquerdizerquandocriticaanossasociedadecomo“sociedade

doconhecimento”?

AugustoPonzio:Trata-sedeumacríticaantelitteram.EncontramosessaexpressãonoLibro

bianco su insegnare e apprendere [Livro branco sobre ensinar e aprender] (1995) da

Comissão Europeia, texto basilar no redesenho, na Europa, do estudo e do ensino. A

“sociedadedoconhecimento”,aknowledgesociety,baseia-senaideologiasegundoaqual

a posição de cada um no espaço do saber e da competência é decisiva, ou seja, uma

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sociedadenaqualsefazcomasrelaçõesinter-humanasdependamdosconhecimentose

dascompetênciasdecadaum–melhor“todos”,quefazbemaeliminaçãodasingularidade,

daalteridade–dacontribuição,dafuncionalidadedetodosparaascompetências,paraa

produtividade e para a competitividade global. Essemodo de entender e promover as

relaçõeséacaracterísticaconstitutivadarealidadesocialatualdacomunicação-produção.

MarySellani:Portanto,arelaçãocomooutroprecedeosaber.

AugustoPonzio:ParaLevinasecomLevinas,nãosepodereduzirarelaçãointerpessoala

uma relação de conhecimento. Na base da comunicação está o dar acolhimento ao

interlocutor, está a relação com o outro como rosto, na sua nudez de rosto, como

alteridade, comopessoa, como finalidadeem si, foradospapéis, daposição social, das

trocas,dointeresse,dolucro,daprodutividade.Arelaçãocomooutrocomoexpressãoe

comorostonãoestásubordinadaaoconhecimento,àcompetência,àfuncionalidade,não

podeserfinalizadanessesentido.

MarySellani:Noseuensaiode1935,intituladoDel’evasion,Levinasintroduzanecessidade

deescapatóriadosernocoraçãomesmodafilosofia...

Augusto Ponzio: Com a reflexão sobre a necessidade de evasão, Levinas coloca em

discussão a aceitação do ser-assim do mundo e das coisas como fato completo e a

consequenteconvicçãodaimpossibilidadeouincapacidadedesairdele.“Todacivilização”,

elediz,“queaceitaoser,odesesperotrágicoqueenvolveeoscrimesquejustifica,merece

o nome de bárbara”. Com o conceito de “evasão”, Levinas introduz a categoria de

excedência;essanecessidadeindicajustamenteapossibilidadedetranscendência(nesse

sentido, ele fala de “metafísica” – termo retomado por JacquesDerrida já no título do

ensaiodedicadoàfilosofiadeLevinas,“Violênciaemetafísica”,incluídoemLascritturaela

differenza[Aescrituraeadiferença],de1967)noquedizrespeitoàincômodaperspectiva

daidentidadedoser,docorpopregadonamáscaradaidentidade.

Noensaiode1935,Levinaspropõeumafenomenologiadanecessidadedeevasão

doser,queeleidentificaemalgunsaspectosessenciaisdaexistência:

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– noprazer,nãosendoesseumasoluçãoparaanecessidadeenãotendendoauma

finalidade(encontramosconfirmada,aqui,decertaforma,aconcepçãoleopardiana

doprazer);

– naimotivadavergonhadesi,naqualsegostariadefugirdaidentificaçãocomoser,

doencadeamentodoeuasimesmo;

– nanáusea(otextodeLevinaséanterioraoromanceAnáusea,deSartre,escritoem

1932,maspublicado,depoisdediversas revisões, em1938), enquanto sensação

revoltantedoeupregadoemsimesmo,indissoluvelmenteligadoaoprópriosere

impossibilitadodesairdessacondição.

Mary Sellani: Em1988, professor Ponzio, o senhor encontrou pessoalmente Emmanuel

LevinasnasuacasaemParis.Oquefoidito?

AugustoPonzio:Relatei,nolivroAlteritàeidentità,minhaconversacomLevina,naocasião

deumavisitana suacasa,emParis,na ruaMichel-Ange,em20denovembrode1988,

atravésdotítulo“Responsabilidade,substituição,escrituraliterária”.Foramesses,defato,

ostemasfundamentaisdanossaconversa.

No que diz respeito à noção de substituição, estreitamente ligada à noção de

responsabilidade,Levinasqueriaprecisarque,nosentidoemqueessetermoérecorrente

nasuareflexão,substituir-senãoconsisteemcolocar-senolugardooutro,nãoconsisteem

“colocar-senapeledooutro”parasentiroqueelesente,emumarelaçãodeempatia,de

modoqueumsetorneooutro,e,assim,nolugardedois,haveriaapenasum.Substituir-se

élevarconforto,associando-seàfraquezaeàfinitudeessencialdosoutros,suportarseu

peso sacrificando o próprio interesse, a própria disposição-para-ser, o próprio conatus

essendi. Aquiloque Levinasdenomina substituiçãoe a consequênciada relação comos

outrosqueeleindicacomoética,determinandoqueporéticaeleentendeumarelaçãona

qual um e outro não são unidos por uma síntese conceitual, nem pela relação sujeito-

objeto,masumarelaçãonaqualumpesaeimporta,etemumvalorparaooutro,nabase

deumemaranhadoqueosabernãopoderesolvernemdesembaraçar.Essaacepçãodo

termo“ética”éaqueSusanPetrillieeu lhedemosnaexpressão“semioética”–quedá

títuloaonossolivrode2003(Semioética,Mímesis),edásubtítuloaolivromencionado,de

2019, Identità e alterità. Per uma semioética della comunicazione globale [Identidadee

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alteridade:poruma semioéticada comunicaçãoglobal] –para indicar aorientaçãoque

assumehojeasemiótica,naesteiradeCharlesS.Peirce,CharlesMorris,FerruccioRossi-

LandieThomasA.Sebeok,enquantociênciageraldossignose,portanto,davidaemtodas

assuasformas,enquantosemióticaglobal.

Arelaçãoética,nosentidonoqualLevinasempregaessaexpressão,dizrespeito,

comojádissemosantes,aocorpoeàpalavra.Ocorpoeseuemaranhadoéticopressupõem

queapalavradigaantesdetudoumcontato,umenvolvimento.Ocorpopermitequeo

dizer seja significativo independentemente do dito e que, para além da comunicação

bilateralusadaparaatrocademensagens,hajaumacomunicaçãoassimétricanaqualo

sentido,doeuaooutro,nãoéindiferenteenãoéreversível,enaqualadistânciadeum

dostermosaooutronãocoincidenecessariamentecomaqueseparaoúltimodoprimeiro.

Arelaçãoética,nessesentido,dizrespeitoàpalavratambémnoseusentidocorpóreo:a

voz, o grão da voz, a escuta, o contato, também na escritura, distinta da transcrição,

sobretudonaescrituraliterária.

Foiesse,justamente,oterceirotemadanossaconversaemnovembrode1988.A

referência era à atenção que Levinas voltou ao “ensino filosófico” dos escritores da

literatura, de Rimbaud, por exemplo, e de Baudelaire (particularmente em Levinas,

L’umanesimo dell’altro uomo [O humanismo do outro homem], 1972). Essa atenção

voltada,porpartedeLevinas,àescrituraprofanaenãosomenteàescriturasagrada,atesta

queaescrituraliterária(sejasagradaouprofana)contribuiparaapossibilidadededescobrir

a alteridade “au coeur même de l’identité” [no próprio coração da identidade], de

reencontrarooutronomesmo;deconsiderararelaçãocomooutronãomaisemtermos

dediferençarelativa,depertença,deoposiçãoededistanciamento–adistâncianecessária

paravê-lo,objetivá-lo,qualificá-lo.

Bari,7demarçode2020.

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Figura2-EmmanuelLevinaseAugustoPonzio,emParis,em20denovembrode1988.

Fonte:Acervopessoaldoautor.

Datadoenvio:07/03/2020

Datadoaceite:06/05/2020.