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ISSN1807-6211[Julho.2020]Nº3438

JUNTOSINEVITAVELMENTE“NATERRAQUENOSTORNATÃOFEROZES”(DANTE)NOTEMPODOCOVID198

INEVITABLYTOGETHER“ONTHELANDTHATMAKESUSSOFIERCI”

(DANTE)INTHETIMEOFCOVID19

AugustoPonzio9

MarySellani10traduçãodeMarisolBarenco11

RevisãodatraduçãoCecíliaMaculanAdum12

ResumoOpresente texto trata-sedeumaentrevista, inéditana Itália, concedidapeloprofessorAugusto Ponzio à professoraMary Sellani, jornalista italiana.Na entrevista, o professorPonziorefletesobreasquestõesatuaiscomasquaisahumanidadesedefronta,incluindoa problemática da pandemia do Covid 19, revelando a atualidade do pensamento deEmmanuel Levinas e sua compreensão da necessidade de criticarmos as ideias deidentidade,demedodooutroefechamentoemtotalidadesidentitárias.Aocontrário,nosconvidaavoltarmosnossaatençãoparaasideiasepráticasqueprivilegiamasnoçõesdealteridade,deresponsabilidadesemálibipelooutroedenãoindiferençaàhumanidade.Uma ética de transformação do mundo, sob os valores do estarmos juntos,inevitavelmente.Palavras-chave:EmmanuelLevinas.Alteridade.Juntos.AbstractThistextisaninterview-unprecedentedinItaly-givenbyAugustoPonziototheItalianresearcherMarySellani.Inthisinterview,Ponzioreflectsonthecurrentissuesthehumanityisfacing,includingtheCovidpandemic19’sproblem,revealingtherelevanceofEmmanuelLevinas'thinkingandhisunderstandingabouttheneedtocriticizetheidentity’ideas,thefear of others and the closure in identity totalities. Instead, he invites us to turn ourattentiontotheideasandpracticesthatprivilegetheotherness’snotionandresponsibilitywithout alibi for the other and non-indifference to the humanity. A world’s ethicstransformation,underthevaluesofbeingtogether,inevitably.

8EntrevistaaAugustoPonzioporMarySellani,inéditanaItália.9AugustoPonzioéprofessorordináriodeFilosofiaeTeoriadeilinguaggieProfessoremérito,ensinouFilosofiada Linguagem e Linguística geral na Università di Bari “Aldo Moro”. Estuda e publica sobre Filosofia daLinguagem, Semiótica e Tradução, dentre outros temas, dedicando-se à filosofia de Emmanuel Levinas,MikhailBakhtin,RolandBarthes,dentreoutros.E-mail:[email protected]:+393701387991ORCIDhttps://orcid.org/0000-0001-8073-7675.10 Jornalista e colaboradora de periódicos como l’Avanti!, Il Mattino, La Gazzetta del Mozzogiorno.Atualmente colabora con as revistas “EspressoSud”, deNocolaApollonio, com “Contrappunti”, de FrancoChiecoecom“Nelmese”deAlessioRega.11MarisolBarencoéprofessoraassociadanaFaculdadedeEducaçãodaUniversidadeFederalFluminense.CoordenaoGrupoAtosUFF,onderealizacoletivamenteestudosepesquisasapartirdafilosofiadalinguagemdo Círculo de Bakhtin. E-mail: [email protected] Telefone: +552126292664 ORCID:https://orcid.org/0000-0002-9341-0230.12CecíliaMaculanAdum.

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Keywords:EmmanuelLevinas.Otherness.Together.Introdução

Umpossível pontodepartida para reconstruir, nesta entrevista, o percurso de

pesquisadeAugustoPonzio–ProfessoreméritodeFilosofiaeTeoriadasLinguagensna

UniversitàdegliStudidiBarieDocentedeLinguísticageralnaCarloBodiBari,de2017/18

–podeseroseumaisrecentelivro,ConEmmanuelLevinas.AlteritàeIdentità(Mimesis,

338 páginas), publicado em outubro de 2019, e no qual ele revisita o pensamento de

Emmanuel Levinas (Kaunas, 1906 – Paris, 1995). Seu itinerário de estudo iniciou-se

justamentepelaleituradeumaobrafundamentaldeLevinas,Totalitéetinfini[Totalidade

eInfinito](1961),quando,apartirdaprimeirametadedosanos1960,começouatrabalhar

em sua tese de graduação em Filosofia (graduou-se em 1966), intitulada La relazione

interpersonale,orientadopeloprofessorGiuseppeSemerari(1922-1996),entãoprofessor

ordinário de Filosofia teórica e encarregado de Filosofia moral na Facoltà di Lettere e

Filosofiadell’UniversitàdegliStudidiBari.

Esseseulivrode2019,ConEmmanuelLevinas.AlteritàeIdentità,éoatualponto

de chegadadeum caminhoque, partindode Levinas, leva a Levinas; um caminhoque,

porém, não tem a forma de um círculo, e sim de uma espiral, já que não se trata de

repetição,masdeumrecomeçar,sempredenovo,deumare-escritura;umaespécie,em

suma, de eterno retorno de uma paixão intelectual sempre viva e reatualizada por

contínuas reflexões sobre essa importante figura da filosofia do século XX, à luz dos

acontecimentosquesesucederamatéaatualconfiguraçãodomundo,apósachamada

“globalização”.Umareflexãonãointerrompida,aindaqueessanãotenhaexcluídoaescuta

de outras palavras, como as de Bakhtin, Kiekegaard, Peirce, Marx, Blanchot, Bataille,

Barthes, Kristeva, Rossi Landi, Schaff, Sebeok... e de seu próprio professor, Giuseppe

Semerari.

O itinerário especulativo de Levinas começa pelo pensamento de Husserl e de

Heidegger,pelaBíbliaepeloTalmud,pelafilosofiadaGréciaantigaepelagrandeliteratura

russa,paracolocaremdiscussãoasprópriascategoriasdopensamentoocidental(sujeito,

identidade,pertença, consciência intencional, ser isso, seraquilo:a “tumescênciadoeu

sou”),nãosónoâmbitoespecíficodapesquisafilosóficacontemporânea,mastambémna

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pesquisadeumsentidodavidanãoreduzívelaooferecidopeloMundo,pelaHistória,pela

Economia,epelaPolítica,assimcomoseconfiguramnanossaépoca.

Figura1-AugustoPonzio,ConEmmanuelLevinas.Alteritàeidentità,2019.

Fonte:Copyrightdoautor.

Mary Sellani: Professor Ponzio, para retomar, então, o fio da reflexão, iniciemos pelo

deslocamento do discurso filosófico tradicional operado por Levinas na dimensão da

alteridadecontraa ideologiadominanteda identidade.Cadavezmais, vemoscomo,no

nossomundoglobalizado,oschamadosdireitoshumanossãosubstancialmenteosdireitos

da identidade, como mostra Levinas em um ensaio de 1985, com o particularmente

eloquentetítuloLesdroitsde l’hommeet lesdroitsd’autrui [Osdireitosdohomemeos

direitosdosoutros],posteriormentepublicadonolivroHorsSujet(1987,tr.it.deF.P.Ciglia,

FuoridalSoggetto,Marietti,1992),noqualmostraque,doschamadosdireitoshumanos

(enquanto,defato,direitosdaIdentidade,doEu,doMesmo,daPertença,daComunidade),

ficam de fora os direitos dos outros. A questão da identidade é central na reflexão de

Levinas:identidadecontrapostaaalteridade,identidadeque,cadavezmaisentrincheirada

nasuadefesa,cadavezmaisdesconheceeviolaosdireitosdosoutros.Devemosdizerque,

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portanto,paraqueosdireitosdosoutrossejamreconhecidoserespeitados,éprecisouma

novaconcepçãodohumanismo?

AugustoPonzio:Sim,éverdade,aquestãodaidentidadedeveserlevadaseriamenteem

consideração.Dedicamosaessaquestãotambém,eueSusanPetrilli,olivropublicadoem

dezembrode2019nacoleção“Athanor.Semiotica,filosofiaarte,letteratura”,coordenada

pormim(Mimesis), intitulada justamente IdentitàeAlterità [IdentidadeeAlteridade],e

tambémaquitomaareflexãolevinasianacomomarcodirecionadorDoensaiodeLevinas

quevocêrecordou,Lesdroitsdel’hommeetlesdroitsd’autrui,retomamosotítulo,nolivro

sucessivodamesmacoleção(Mimesis,2020),Dirittiumaniedirittialtrui[Direitoshumanos

edireitosdosoutros]:umvolumequefoiumacoletânea,organizadoporSusanPetrilli,do

qual participam também os professores de Ciências Políticas e de Direito Gaetano

Dammacco,NicoPerrone,PaoloStefanì,BrunoVenezianieUgoVillani,daUniversitàdiBari,

eoProf.MarioRicca,daUniversitàdiParma.Hátambémumensaiodo,muitoqueridopor

todos nós, Vitilio Masiello (professor emérito de Literatura italiana), publicado

originariamenteem2008,sobreodireitodotrabalhonaliteraturaentreosséculosXVIIIe

XX.

Aidentidadeéacategoriadominantedarazãoocidental.Elaseregeeseafirma

combasenaindiferençaemrelaçãoaooutro,comodiverso,comonãopertencente.Se

levarmosemconsideraçãonossasrelaçõesenquantosereshumanos,todospodemosser

incluídosnograndeconjuntodogênerohumano(e,todavia,tambémarespeitodisso,há

sempre“outros”quesãoexcluídosenquanto“desumanos”–oque justificatomadasde

posições,remédioseintervenções,aícompreendidasas“guerrashumanitárias”),mas,ao

mesmotempo,somosdistintosemoutrosconjuntos,comoosdogênerossexuais(gender),

daidade,danação,dacomunidade,dalíngua,dareligião,daetnia,dacordapeleetc.

Masérealmenteverdadequeaquiloquenoscaracterizacomovivoséapertença

a um conjunto, a um coletivo, a um grupo?A respeito da unidade, da comunidade, da

pertença,daidentidade,asquais,apesardaincomparabilidade,daunicidadedecadaum,

nostornamintercambiáveisenosreúnememummesmoconjunto,paraLevinasháum

outromododeverascoisas.Nolugardapluralidade(“Cidadesplurais”:opluralésempre

o representar-se do mesmo), deve ser reconhecida a multiplicidade e, com essa, a

diversidade;aoinvésdareferênciaaoindivíduo–que,comotal,semprefazpartedeum

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conjunto – o reconhecimento da singularidade, da unicidade de cada um, da

irrepetibilidade, insubstituibilidade, não-acomunalidade, isto é, o próprio ser fora do

gênero,suigeneris.

Mas cuidado: a singularidade, a insubstituibilidade, a unicidade não é uma

propriedadedo sujeitoemsimesmo (comosustentavaMaxStirneremL’unicoe la sua

proprietà[Oúnicoeasuapropriedade]),masaconsequênciadeumaresponsabilidadenão

delegáveldecadaumemrelaçãoaooutronasuaalteridadedeoutro.Porisso,aoinvésde

proximidadeidentitária,deproximidadecomovizinhança,Levinasfaladeumaproximidade

semdefesa, sem limites,proximidadeentrediversos,entredistantes.Aproximidadeao

outroéresponsabilidadepelooutro.Proximidadesignificaaminharesponsabilidadenão

delegável. É essaaminhaunicidade,omeu serúnico,oúnicoparaooutro:omeu ser

suporteparaapesadacargadaalteridade.

Aalteridadenaexposiçãofaceaface,istoé,foradosescafandrosidentitários,das

casacas e dos processos de pertença, não émais a alteridade relativa dos papéis, das

funções,dastarefas,dasdiversasformasdeexercíciodopoder,dasrepresentações,dos

álibis,nãoéalteridaderelativa,masalteridadeabsoluta.

Apazpreventiva (essaéumaexpressãode Levinas), a liberaçãodomundoem

relação à guerra, que não é alcançável fazendo guerra à guerra através da “guerra

preventiva”, é o reconhecimento da proximidade inevitável ao outro como

responsabilidadeinevitávelpelooutro.Outroautorquemeémuitocaro,MikhailBakhtin,

de quem publiquei uma coletânea de textos junto aos textos do seu chamado Círculo

(Michail Bachtin e il Suo Circolo, Opere 1919-1930, Bompiani, 2014), dizia: “Se

interpretamosanossavidainteiracomorepresentação,nostornamosimpostores”.

Mary Sellani: Por que o sistema da comunicação global e da produção mundializada,

segundoLevinas,nãopodeincluiramigração?

Augusto Ponzio: Eu diria, ao contrário, que não se pode excluí-la. A migração é um

problemadonossotempo,inerenteàglobalização.Antes,falava-sedeimigração,queera

o deslocamento de um certo número (concordado) de pessoas de umpaís a outro. Ao

contrário, a migração de hoje é incontrolável, como é incontrolável a migração das

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andorinhas,deoutrosanimais,dos“vírus”(adifusãodoCoronavírusatestaoenvolvimento

mundial–devidoàglobalização–emrelaçãoaoproblemadacovid-19).

Danão-indiferençapelooutroàdiferençaeàrelativaindiferença:esseéopercurso

atravésdoqualaidentidadeseconstituiesedelineia.Porconsequência,aquiloquenosdiz

respeitoéprogressivamentereduzidoàquiloquedizrespeitoaosinteressesdaidentidade,

etalreduçãoencontraa justificaçãonacondiçãodaresponsabilidade limitadagarantida

porálibi.Mas,quantomaisnosliberamosdacondiçãodemedopelooutro,maisaumenta,

atéaexasperação,omedodooutro.Hoje,omedodooutroestánoaugedoparoxismo.

Assim, a defesa da identidade diante do inevitável fenômeno da migração dá lugar às

diversasmanifestaçõesderacismo.

UmbertoEcohaviaprevisto issodesdeas suas “BustinediMinerva” (queeram

artigos semanais publicados no jornal “Espresso”) de 01-04-1990 e de 15-04-1990 (e,

depois,porsuagentilconcessão,novolume4,de1993,Migrazioni,danossasérieanual

“Athanor.Semiótica,filosofia,arte,letteratura”),ondepelaprimeiravez,queeusaiba,foi

estabelecida a distinção entre “imigração” e “migração”. EmMigrazioni e intolleranza

[Migrações e intolerância], uma coletânea de seus escritos recentemente publicada (La

nave di Teseo, 2019), encontramos essa enunciação que é oportuno recordar aqui:

“Eliminar o racismonãoquer dizermostrar ou convencer-se de que osOutros não são

diversosdenós,mascompreendereaceitarasuadiversidade”.

A comunidade não pode ser uma comunidade fechada. Deveria ser dito

comunanza [comunalidade], onde o final proveniente de antia ou de entia, indica

movimento,abertura,edeveriasernaturalentenderoextra,em“extracomunitário”(de

modo a reter essa qualificação), como aquilo que plenamente, maximamente torna a

comunidadeumviverjuntos.

MarySellani:EmquesentidoafilosofiadeLevinasseabreaumanovavisãodafilosofiada

linguagem,comosevêdemodoevidenteapartirdesuaobramais famosa,Totalitéed

infini,naqualtodaatradiçãofilosóficaocidentalécolocadaemdiscussão,pondonocentro

dareflexãooprimadodaética?

Augusto Ponzio: O primeiromovimento do eu é que esse sempre tem necessidade de

justificar-se diante do outro. E a identidade – mais precisamente a pertença a uma

identidade–éomeioprevalentede justificaçãodoeu.Oprimeirocasodoeu,observa

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Levinas,nãoéonomitativo,masoacusativo.Averdadeiraquestão,elediz,nãoéacolocada

porMartinHeidegger,“Porqueoser,enãoonada?”,masaperguntacolocadapelooutro

ao eu: “Por que você está lá, naquela situação, naquele lugar, naquelas condições

favoráveis, e eu não?” O recurso à identidade permite que eu me justifique, permite

encontrarumaexplicação,encontrarasmotivaçõesquedemonstramodireitoàsminhas

vantagens.Aidentidadeé,portanto,ummeioparasecolocaraconsciênciaempaz,para

secolocardentrodeuma totalidade (comoaComunidadeEuropeia,a italianidade)que

sirvadegarantiaedistingaquemtemdireitoafazerpartedelaequemnão.Masooutroé

aqueleque,apesardetodososesforçosparaencontrarjustificaçõeserejeiçõesporparte

doeu,nãoestá,porsuavez,dentrodealgumadastotalidades(quaisquerquesejam)às

quaisoeugostariaderelegá-lo.Ooutronãosedeixaagarrar,classificar,etiquetar,prender,

elefogeinevitavelmente.

Aprincipalmodalidadedeperceberooutro,apartirdaqualnasceanecessidade

da justificação, é a “má consciência”. Através do expediente do recurso à identidade

diferente, aos diferentes direitos em relação ao outro, o eu consegue passar da difícil

condiçãode“máconsciência”àquelada“boaconsciência”,dasituaçãodeenvolvimentoe

nãoindiferençaàdaindiferença.Maséumengano,parasimesmo,antesdetudo.

Arelaçãoética,nosentidoemqueLevinasutilizaessaexpressão,dizrespeitoao

corpoeàpalavra.Ocorpoeoseuemaranhadoéticopressupõemqueapalavradigaantes

de tudoumcontato,umenvolvimento.Ocorpopermitequeodizer seja significativoe

independentedodito.Oaspectocorpóreodapalavra–avoz,oseutimbre,aescuta,o

contato–nãosereduzàsuafunçãoinformativa,cognitiva,pragmática,masconstitui,ao

contrário,seupressuposto,éasuacapacidadedetranscenderodito,épalavrahumana.

MarySellani:OqueLevinasquerdizerquandocriticaanossasociedadecomo“sociedade

doconhecimento”?

AugustoPonzio:Trata-sedeumacríticaantelitteram.EncontramosessaexpressãonoLibro

bianco su insegnare e apprendere [Livro branco sobre ensinar e aprender] (1995) da

Comissão Europeia, texto basilar no redesenho, na Europa, do estudo e do ensino. A

“sociedadedoconhecimento”,aknowledgesociety,baseia-senaideologiasegundoaqual

a posição de cada um no espaço do saber e da competência é decisiva, ou seja, uma

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sociedadenaqualsefazcomasrelaçõesinter-humanasdependamdosconhecimentose

dascompetênciasdecadaum–melhor“todos”,quefazbemaeliminaçãodasingularidade,

daalteridade–dacontribuição,dafuncionalidadedetodosparaascompetências,paraa

produtividade e para a competitividade global. Essemodo de entender e promover as

relaçõeséacaracterísticaconstitutivadarealidadesocialatualdacomunicação-produção.

MarySellani:Portanto,arelaçãocomooutroprecedeosaber.

AugustoPonzio:ParaLevinasecomLevinas,nãosepodereduzirarelaçãointerpessoala

uma relação de conhecimento. Na base da comunicação está o dar acolhimento ao

interlocutor, está a relação com o outro como rosto, na sua nudez de rosto, como

alteridade, comopessoa, como finalidadeem si, foradospapéis, daposição social, das

trocas,dointeresse,dolucro,daprodutividade.Arelaçãocomooutrocomoexpressãoe

comorostonãoestásubordinadaaoconhecimento,àcompetência,àfuncionalidade,não

podeserfinalizadanessesentido.

MarySellani:Noseuensaiode1935,intituladoDel’evasion,Levinasintroduzanecessidade

deescapatóriadosernocoraçãomesmodafilosofia...

Augusto Ponzio: Com a reflexão sobre a necessidade de evasão, Levinas coloca em

discussão a aceitação do ser-assim do mundo e das coisas como fato completo e a

consequenteconvicçãodaimpossibilidadeouincapacidadedesairdele.“Todacivilização”,

elediz,“queaceitaoser,odesesperotrágicoqueenvolveeoscrimesquejustifica,merece

o nome de bárbara”. Com o conceito de “evasão”, Levinas introduz a categoria de

excedência;essanecessidadeindicajustamenteapossibilidadedetranscendência(nesse

sentido, ele fala de “metafísica” – termo retomado por JacquesDerrida já no título do

ensaiodedicadoàfilosofiadeLevinas,“Violênciaemetafísica”,incluídoemLascritturaela

differenza[Aescrituraeadiferença],de1967)noquedizrespeitoàincômodaperspectiva

daidentidadedoser,docorpopregadonamáscaradaidentidade.

Noensaiode1935,Levinaspropõeumafenomenologiadanecessidadedeevasão

doser,queeleidentificaemalgunsaspectosessenciaisdaexistência:

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– noprazer,nãosendoesseumasoluçãoparaanecessidadeenãotendendoauma

finalidade(encontramosconfirmada,aqui,decertaforma,aconcepçãoleopardiana

doprazer);

– naimotivadavergonhadesi,naqualsegostariadefugirdaidentificaçãocomoser,

doencadeamentodoeuasimesmo;

– nanáusea(otextodeLevinaséanterioraoromanceAnáusea,deSartre,escritoem

1932,maspublicado,depoisdediversas revisões, em1938), enquanto sensação

revoltantedoeupregadoemsimesmo,indissoluvelmenteligadoaoprópriosere

impossibilitadodesairdessacondição.

Mary Sellani: Em1988, professor Ponzio, o senhor encontrou pessoalmente Emmanuel

LevinasnasuacasaemParis.Oquefoidito?

AugustoPonzio:Relatei,nolivroAlteritàeidentità,minhaconversacomLevina,naocasião

deumavisitana suacasa,emParis,na ruaMichel-Ange,em20denovembrode1988,

atravésdotítulo“Responsabilidade,substituição,escrituraliterária”.Foramesses,defato,

ostemasfundamentaisdanossaconversa.

No que diz respeito à noção de substituição, estreitamente ligada à noção de

responsabilidade,Levinasqueriaprecisarque,nosentidoemqueessetermoérecorrente

nasuareflexão,substituir-senãoconsisteemcolocar-senolugardooutro,nãoconsisteem

“colocar-senapeledooutro”parasentiroqueelesente,emumarelaçãodeempatia,de

modoqueumsetorneooutro,e,assim,nolugardedois,haveriaapenasum.Substituir-se

élevarconforto,associando-seàfraquezaeàfinitudeessencialdosoutros,suportarseu

peso sacrificando o próprio interesse, a própria disposição-para-ser, o próprio conatus

essendi. Aquiloque Levinasdenomina substituiçãoe a consequênciada relação comos

outrosqueeleindicacomoética,determinandoqueporéticaeleentendeumarelaçãona

qual um e outro não são unidos por uma síntese conceitual, nem pela relação sujeito-

objeto,masumarelaçãonaqualumpesaeimporta,etemumvalorparaooutro,nabase

deumemaranhadoqueosabernãopoderesolvernemdesembaraçar.Essaacepçãodo

termo“ética”éaqueSusanPetrillieeu lhedemosnaexpressão“semioética”–quedá

títuloaonossolivrode2003(Semioética,Mímesis),edásubtítuloaolivromencionado,de

2019, Identità e alterità. Per uma semioética della comunicazione globale [Identidadee

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alteridade:poruma semioéticada comunicaçãoglobal] –para indicar aorientaçãoque

assumehojeasemiótica,naesteiradeCharlesS.Peirce,CharlesMorris,FerruccioRossi-

LandieThomasA.Sebeok,enquantociênciageraldossignose,portanto,davidaemtodas

assuasformas,enquantosemióticaglobal.

Arelaçãoética,nosentidonoqualLevinasempregaessaexpressão,dizrespeito,

comojádissemosantes,aocorpoeàpalavra.Ocorpoeseuemaranhadoéticopressupõem

queapalavradigaantesdetudoumcontato,umenvolvimento.Ocorpopermitequeo

dizer seja significativo independentemente do dito e que, para além da comunicação

bilateralusadaparaatrocademensagens,hajaumacomunicaçãoassimétricanaqualo

sentido,doeuaooutro,nãoéindiferenteenãoéreversível,enaqualadistânciadeum

dostermosaooutronãocoincidenecessariamentecomaqueseparaoúltimodoprimeiro.

Arelaçãoética,nessesentido,dizrespeitoàpalavratambémnoseusentidocorpóreo:a

voz, o grão da voz, a escuta, o contato, também na escritura, distinta da transcrição,

sobretudonaescrituraliterária.

Foiesse,justamente,oterceirotemadanossaconversaemnovembrode1988.A

referência era à atenção que Levinas voltou ao “ensino filosófico” dos escritores da

literatura, de Rimbaud, por exemplo, e de Baudelaire (particularmente em Levinas,

L’umanesimo dell’altro uomo [O humanismo do outro homem], 1972). Essa atenção

voltada,porpartedeLevinas,àescrituraprofanaenãosomenteàescriturasagrada,atesta

queaescrituraliterária(sejasagradaouprofana)contribuiparaapossibilidadededescobrir

a alteridade “au coeur même de l’identité” [no próprio coração da identidade], de

reencontrarooutronomesmo;deconsiderararelaçãocomooutronãomaisemtermos

dediferençarelativa,depertença,deoposiçãoededistanciamento–adistâncianecessária

paravê-lo,objetivá-lo,qualificá-lo.

Bari,7demarçode2020.

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Figura2-EmmanuelLevinaseAugustoPonzio,emParis,em20denovembrode1988.

Fonte:Acervopessoaldoautor.

Datadoenvio:07/03/2020

Datadoaceite:06/05/2020.


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