jung mo sung - competencia e sensiblidade solidária

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1 HUGO ASSMANN JUNG MO SUNG COMPETÊNCIA E SENSIBILIDADE SOLIDÁRIA Educar para a esperança Piracicaba, 2000

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Page 1: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

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HUGO ASSMANN JUNG MO SUNG

COMPETÊNCIA E

SENSIBILIDADE SOLIDÁRIA

Educar para a esperança

Piracicaba, 2000

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Sumário

Prólogo.

LIMIAR: A sadia maluquice de interferir no futuro

Você não precisa carregar o mundo

Evite a Síndrome de Atlas

O possível é elástico e nossos sonhos o ampliam

Desmistificar a questão do egoísmo humano

Parte I.: INTERFACES SÓCIO-FILOSÓFICAS

Cap. 1 Solidariedade: uma teia de campos semânticos variados

Consciência solidária universal não é coisa comum (Kohlberg)

É preciso unir Justiça e Solidariedade (Habermas)

Liberal já detesta crueldade e miséria? (O neo- pragmatismo de R. Rorty)

Solidariedade mecânica - solidariedade orgânica (Émile Durkheim)

Desafio da inclusão e solidariedade (Banco Mundial e FMI)

Intimações à Solidariedade (Clube de Roma, Igrejas, ONGs, Economia Solidária)

O vasto e contraditório leque de referências à solidariedade

Buscando a ponte com a educação

Cap. 2. Interdependência e sensibilidade solidária

Dois sentidos da palavra solidariedade

Interdependência como um fato

O desconhecimento da interdependência como um fato

A insuficiência do desenvolvimentismo

Exclusão social

Sensibilidade solidária com os/as excluídos/as

Empatia e o medo

Esperança humana

Cap. 3. Dignidade humana: acesso a capacidades básicas

A crise atual do conceito de dignidade humana

Os limites oscilantes da questão da dignidade humana

A tese da dignidade humana ontológica - alcances e fragilidade

Peculiaridades da onto-teologia católica da dignidade humana

Um novo patamar para discutir a dignidade humana

Quem de fato acredita numa dignidade humana igual para todos?

Dignidade humana: oportunidade social para competências sociais

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Cap. 4. Sensibilidade solidária e princípios organizativos

Sensibilidade solidária e esperança

Solidariedade como princípio organizativo da sociedade?

Princípios de organização social

Sensibilidade solidária e complexidade social

Complexidade, ética e educação

Cap. 5. O alcance social do desejo.

Subjetividade e conhecimento

Adam Smith e o “homem econômico” competidor

O reconhecimento do/pelo outro em Hegel

Fukuyama: o desejo de reconhecimento e a luta econômica

Desejo e consumo

A economia e a manipulação histórica dos desejos

Amizade e inveja: uma crônica do cotidiano

A ambivalência e o desejo da ordem na modernidade

O cinismo e o desejo de cuidar

O amor e a humanização

Desejo de solidariedade como necessidade vital

Parte II: EDUCAR PARA A ESPERANÇA SOLIDÁRIA

Cap. 6. Competência e solidariedade:

renovação do discurso pedagógico

Novas interfaces entre competência e solidariedade

Competência humana

Competências sociais

Aprendizagem social

Inteligência social

Cap. 7. O papel cognitivo e social da sensibilidade

Sensibilidade e socialidade humana

O mapeamento do genoma humano e o conceito de corporeidade viva

Razões para falar abertamente da sensibilidade social

Na miséria extrema nem "solidariedade mecânica" funciona

Nossa espécie continua lenta em adquirir sensibilidade "humana"

Cresce a ênfase nos temas "sensibilidade" e "razão sensível"

Fragmentos de meditação sobre sensibilidade social

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Cap. 8. Epistemologia solidária

A perfectibilidade e educabilidade humana

Educar é uma aposta "enactante"

Aprendizagem à luz de novos estudos sobre o cérebro/mente

Plasticidade do cérebro e elasticidade dos mundos do sentido

O papel do desejo na emergência do sentido

Aprender é abrir-se ao mundo e aos outros

Aprender é transformar-se

Por uma epistemologia intrinsecamente solidária

Conhecimento como aposta ética transdisciplinar

Acostumar-se ao pluralismo teórico em tudo

Aprender requer uma chispa lúdica

Conhecimento e esperança

Manter viva a curiosidade

Compreender a sociedade ampla e complexa

Cap. 9. O impacto sócio-cognitivo das novas tecnologias

Tecnologias versáteis facilitam aprendizagens complexas e cooperativas

Hipertextualidade: a chance do estudo criativo

A passagem a um paradigma cooperativo do conhecimento

O agenciamento cooperativo dos campos do sentido

A experiência da superação da escassez

Parcerias epistemológicas de alto nível

Perspectivas acerca do "homem simbiótico"

Cap. 10. Mínima Paedagógica

Desejo e conhecimento

Elementos para um quadro de valores educacionais solidários

HORIZONTES: Recontruir nossos campos do sentido

Estamos numa virada civilizatória

Um cenário futurológico

O mal-estar da civilização está dentro de nós

A Neotenia Humana

A "Segunda Neotenia": da Hominização à Humanização

A dimensão profunda dos nossos desejos

Vivenciar a esperança

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PRÓLOGO

O assunto de fundo deste livro é a inclusão da sensibilidade solidária na dinâmica

do desejo das pessoas. Isso tem um pressuposto sumamente exigente e diretamente ligado à

educação, encarregada de "saber cuidar" carinhosamente das formas do aprender e do

conhecimento. Portanto, este é um livro impregnado de esperança.

Na renovação das linguagens pedagógicas e sócio-políticas, que está em curso um

pouco por toda parte, parece persistir a necessidade de superar o desencontro entre as

linguagens que se referem a competências profissionais e técnicas e as que aludem a temas

ético-políticos relacionados com a solidariedade.

Este livro nasceu da vontade de perceber, de forma panorâmica, algumas das

questões implicadas nesse desafio. Não se trata propriamente de um ensaio, e muito menos

de um tratado. É apenas uma tentativa modesta de problematizar o assunto como quem

move um caleidoscópio. Em alguns momentos nos arriscamos a sugerir pistas para

fecundar a reflexão.

Trata-se de um texto produzido na forma de co-autoria, num lapso de tempo muito

curto. Sem os recursos da Internet e do correio eletrônico, o intenso companheirismo de

dois velhos amigos, que não moram na mesma cidade, não se teria concretizado nessa

forma.

O livro tenta aproximar-se da versatilidade das múltiplas entradas, que são

características do hipertexto. Por isso ele pode ser lido a partir de preferências pessoais. Os

ingressos, os links e a mixagem podem emergir do gosto criativo individual ou grupal.

Nossa idéia foi propiciar que a experiência de ler se aproxime da liberdade e criatividade do

escrever.

De certa forma, nossas reflexões nasceram brincando entre si e só fazem sentido se

continuarem brincando entre si na própria leitura, abrindo a roda para que novas idéias

entrem nesse entrejogo criativo. O uso versátil de diversos estilos, formas de expressão e

níveis de reflexão contribuiu para aumentar nosso divertimento.

Os autores saborearam intensamente o diálogo entre duas gerações e gostariam de

testemunhar publicamente a riqueza dessa experiência.

Esse diálogo se deu sob a forma de um pós-doutoramento de Jung Mo Sung, no

Programa de Pós-graduação em Educação, da Faculdade de Educação da UNIMEP

(Universidade Metodista de Piracicaba), sendo Hugo Assmann o orientador.

Os co-autores agradecem o clima propício que a referida universidade, seus colegas

e familiares lhes proporcionaram.

Os co-autores

Piracicaba/São Paulo, julho de 2000.

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LIMIAR

A SADIA MALUQUICE DE INTERFERIR NO FUTURO

Você não precisa carregar o mundo

Só alguns estão satisfeitos com o mundo assim como ele é.

Só alguns poucos acreditam que eles possam transformar este mundo.

O primeiro grupo é feliz mas deve ser meio maluco.

O segundo só pode ser mesmo maluco. Hans TenDam

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Vivemos num mundo ao mesmo tempo fascinante e estarrecedor. Tudo parece estar em

efervescência e aceleração. As chances e os desafios alcançaram extremos para os quais a

experiência cotidiana de boa parte da espécie humana não os preparou. Não é exagerado

dizer que muitos acontecimentos do mundo atual nos agarram de surpresa. Não poucos se

sentem empurrados para dentro de vórtices de mudanças, que provocam neles verdadeiros

pesadelos ou, no mínimo, uma estranha mescla de susto e deslumbramento.

O trabalho humano passou a ser constantemente reconceituado. Em estreita parceria

com aceleradas inovações tecnológicas nos mais variados campos, ele atingiu um potencial

produtivo jamais visto. Mas bem no cerne dessa visão mutante do trabalho humano se

instalou uma cobrança crescente de novas habilidades e novos conhecimentos. No futuro só

vai continuar trabalhando quem estiver aprendendo intensamente por toda a vida. Portanto,

o tema incontornável da exclusão adquiriu hoje uma faceta antes menos evidente: a

exclusão social já não é solucionável sem tomar em conta seu forte ingrediente novo ligado

à exigência de um aprender incessante para continuar qualificado como empregável.

Já se tornou previsível que o trabalho diretamente produtivo representará uma

porcentagem rapidamente decrescente no conjunto das atividades humanas do mundo de

amanhã. E que farão os que nunca mais encontrarão emprego produtivo? Pois, no futuro, as

bases de referência para as fontes de remuneração evidentemente terão que ampliar-se e

diversificar-se enormemente. Mas uma coisa é certa, todo esse amplo leque de atividades,

as mais diversas, exigirá uma constante renovação da capacidade adaptativa das pessoas.

Todo mundo terá que estar aprendendo por toda a vida. Será necessário gostar de inventar e

inovar para fazer algo que seja apreciado pelos demais e, como tal, objeto de demanda. E

mesmo para poder desfrutar da multiplicidade de lazeres, bens culturais e serviços

inovadores que estão surgindo, numa velocidade nunca vista. A sociedade precisará criar

ainda muitas novas formas de atividade para poder acabar com todas as formas de exclusão.

As experiências de aprendizagem passaram a ser um ingrediente imprescindível da luta

contra a exclusão. A educação se transformou na tarefa social emancipatória mais

significativa. Mas, evidentemente, não qualquer tipo de educação. Este livro é uma espécie

de brinquedo de armar idéias, que possam ser de alguma forma úteis para crescermos na

capacidade de inovar formas e maneira de educar, saibam juntar as competências sociais requeridas pelas atividades profissionais mais variadas e as novas atividades que

1 TENDAM, Hans, Politics, Civilization & Humanity. (Versão para a Internet, 1999, Prefácio).

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inventarmos com a sensibilidade social necessária para a construção de um mundo, no qual

caibam todos. Vamos estar refletindo juntos sobre o sonho de unir formação de

profissionais competentes com a sensibilidade ética de seres solidários. Por um lado,

empreendedores capazes de tomar iniciativas inovadoras; e, pelo outro, seres humanos que

entendam que a felicidade dos outros faz parte da sua própria felicidade.

Que significa educar quando a educação já não pode nem reduzir-se à transmissão de

saberes prontos, nem limitar-se à formação para funções predeterminadas? Que

características deve ter a educação quando, além de encaminhar as pessoas para um mundo

de atividades em constante metamorfose, se exige dela que também não descuide os valores

de uma sociedade participativa e solidária?

Tamanha tarefa não deve ser proposta como um peso que ninguém consegue carregar. É

sabido que, quando jogamos nas "costas" da nossa consciência uma tarefa impossível,

existe o perigo de cair numa fossa de desânimo e impotência e de não saber mais como sair

dela. Nossa reflexão deverá encaminhar-se, com o máximo de serenidade, por veredas e

caminhos que despertem entusiasmo e um certo otimismo pedagógico. Por isso precisamos

falar de coisas que já "estão no ar", de cenários que - por mais assustadores que possam ser

em alguns aspectos - contenham uma boa dose de motivações alentadoras. Não sempre será

fácil combinar a ousadia de sonhar com a realidade concreta, o terra-a-terra dos passos de

factibilidade concreta.

Comecemos com um toque de sinceridade: ninguém de nós agüenta mais a cobrança

excessiva de nos considerarmos salvadores do mundo no curto lapso de nossa vida. Nesse

sentido de pressão ética levada ao extremo do sufoco, é saudável perguntar, às vezes: existe

alguém que saiba definir e dar-nos a receita compeltadessa ficção? Também nisso, o sonho

do ótimo pode ser inimigo do bom.

O importante é enxergar muitas esperanças gostosas do nosso dia-a-dia, e acreditar que

elas são factíveis, relevantes, geradoras de alegria, embora nunca plenamente satisfatórias.

A gente não consegue escapar da pergunta se essas esperanças tópicas valem realmente a

pena ou não. Depois de todo esforço de estudo, análise e serena ponderação, ninguém

consegue eliminar um certo plano de imponderáveis incertezas, em meio às quais a gente

tem que apostar de coração inteiro, acreditando que vale a pena amar a felicidade própria,

que não chegará a ser gostosa se não estiver ligada à felicidade dos outros.

Em 1992, o pensador francês Michel Serres estava dando um curso sobre "Pronomes

Pessoais" na Universidade de Stanford. Hospedados juntos na casa do nosso amigo comum

René Girard, surgiu a chance de saborear, seus divertidos comentários acerca do curso, que

estava dando, sobre o alcance antropológico e filosófico dos "pronomes pessoais".

- No mundo de hoje - dizia ele - muita gente não sente mais o sabor a mistério dos

pronomes eu, tu, você, ele/a, nós, vocês, eles/elas; e o que é mais grave ainda, já quase

ninguém mais se lembra que esses pronomes só funcionam quando entendemos que todos

se banham juntos no mesmo rio dos verbos, porque viver é conjugar verbos, essa fluência

incessante de processos que não dá para fixar de jeito nenhum. Criança não é substantivo, é

verbo: um processo de ser criança. Mulher, é claro, também é verbo. Foi a cultura patriarcal

que nos meteu na cabeça essa coisa terrível de que as palavras e os conceitos são como

pedras ou balas que a gente lança contra outros. Linguagens são ondas. Comunicar-se é

imergir-se em ondas.

Muitas pessoas ainda experimentam sua vida como caminhada sobre uma planície. E

muitas vezes se trata de um imaginário reduzido a um minúsculo retângulo ou círculo. Há

muitos anos atrás, um professor da zona rural do interior comentava: - Por aqui os homens

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sentem seu mundo como de aproximadamente 30 km ao redor; a maioria das mulheres não

se consegue imaginar quase nada para além de uns 10 a 15 km.

Essa metáfora espacial cruel, com sua referência a uma espécie de achatada planície, é

tão diferente da metáfora do rio de Heráclito, dentro do qual todos estaríamos jogados

numa correnteza solidária comum. O que Michel Serres intentava no seu curso era

ressuscitar de novo os pronomes pessoais no acelerado rio heraclidiano da história de hoje.

Um mundo como o nosso requer um imaginário afeito a fluxos e interfluxos.

Robert Musil (em Um Homem sem Qualidades) agigantou ainda mais a metáfora do

grande rio da história: trata-se na realidade de um rio evolutivo que - como, aliás, o fizeram

todos os rios, só que nos esquecemos disso - além de fluir sem parar, vai criando as suas

próprias margens. É coisa muito saudável que os giros da terra e os fluxos (e refluxos) do

mar e dos rios da história invadam, aos poucos, as nossas linguagens cotidianas sobre a

nossa própria vida.

É pena que muitos ainda se assustem com isso. Será que preferem um mundo feito de

encaixes, engrenagens e pontos fixos? Num mundo no qual as máquinas, há muito, se

mexem e ajudam as coisas a se mexerem, será que nós podemos continuar parados? O pior

parado é o que parou "por dentro", desativando parte de seus próprios neurônios. Suicídio

neuronal, não. apartheid neuronal, também não.

Um início da experiência cotidiana de que vivemos num planeta, no qual tudo está cada

vez mais interligado, já é acessível, de alguma forma, a qualquer telespectador. É bem

menor o número de pessoas que já se deram conta das implicações psicológicas e

filosóficas da possibilidade, que temos hoje, de sensoriar o planeta inteiro a partir de

satélites. Hoje até os mais corriqueiros boletins meteorológicos prolongam a experiência da

visão do planeta Terra vista desde o espaço.

As primeiras fotos da Terra vista desde a lua representaram uma reviravolta imperiosa

na auto-concepção do ser humano, porque lhe mostraram uma responsabilidade pela Terra

"Mátria" que não podia perceber tão intensamente antes. Existe uma terceira percepção da

realidade planetária que só se torna sensível quando nossa experiência cotidiana começa a

dar-se conta de como funcionam os microprocessos da vida (no âmbito das moléculas e das

células), e de como esses níveis micro se entrelaçam com os níveis macro de Gaia, a Terra

entendida como um entrelaçamento complexo da unidade entre processos vitais e processos

de conhecimento. Tudo isso nos enreda em gostosas vertigens.

Evite a Síndrome de Atlas

O negócio é dormir sem medo do outro dia que vai chegar

que pra passar a noite na cocheira tem que ter

o mesmo cheiro do cavalo pra não incomodar.

Raul SEIXAS. O negócio é.

Era sem dúvida bem menos complexo o campo de referências experienciais da

mitologia grega, quando ela inventou os Titãs. Mesmo assim foi um salto ético

impressionante, pois esse mito se refere à elasticidade da liberdade possível sob a forma de

uma revolta de semideuses contra a arbitrariedade dos deuses definidores do destino. Mas é

sobretudo a figura de um dos Titãs, de nome Atlas (de quem herdamos o nome aplicado ao

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globo terrestre e aos planisférios), que revela a consciência aguda dos gregos de que seus

mitos estavam mexendo com vários problemas.

Por um lado, o mito alude à crucial responsabilidade humana, e não de deuses

arbitrários, por aquilo que acontece neste mundo. Mas, por outro lado, fica a impressão de

que, sob um certo ponto de vista, a ousadia era prematura, porque o peso do globo nos

ombros de Atlas era aparentemente quase insuportável. Mediante o símbolo de um castigo

divino mantém-se a suspeita de que, enquanto persistir a arbitrariedade neste mundo, o peso

dela se incorpora, de certo modo, ao próprio peso da terra.

Também aqui, como em tantos outros mitos, o castigo se refere, antes de tudo, a uma

lição ainda não inteiramente aprendida (e não necessariamente a um destino inarredável).

Atlas, como sabemos, foi castigado por Zeus e obrigado a carregar o mundo às costas.

Quem não se lembra de alguma imagem relacionada com essa figura ereta, com um pé no

chão e outro tateante, acabrunhada pelo peso?

A releitura desse antigo mito nas circunstâncias de hoje nos obriga a dar um passo além

do dilema entre destino ou liberdade, que o mito equaciona. A "nervura do real" (para usar

a rica expressão de Marilena Chauí) está tecida por equações mais complexas, muitas delas

recursivas. O panorama dos desafios éticos se transforma substancialmente quando se

abandonam os esquemas simplistas de supostas causalidades lineares, e se começa a

visualizar o papel - porventura mais modesto, mas nem por isso menos relevante - da

liberdade individual e coletiva em meio a processos histórico-sociais, nos quais a auto-

organização e a emergência do imprevisto, em todos os níveis do vivo, incluído o social,

cumprem um papel fundamental, mas, ao mesmo tempo, muito diferente do clássico

imaginário acerca do destino.

Fonte : Encyclopedia Mythica,

verbete Atlas - Internet

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Não é saudável meter-se a profeta de sonhos exagerados. Não é possível identificar-se

com todas as situações socialmente desafiadoras. Nem é preciso. Para fazer algum bem

neste mundo, e sentir-se parceiro da construção de um mundo mais solidário, basta alentar,

com fruição profunda, sonhos modestos que ao menos algumas outras pessoas possam

compartir conosco.

Ninguém de nós deveria sentir-se individualmente responsável por carregar todo o peso

do mundo. Seria um "castigo" totalmente injusto, uma dívida não cobrável, uma

responsabilidade impossível de ser assumida. Por outro lado, porém, não cabe dúvida de

que - a esta altura da evolução da nossa espécie, com todo o avanço da ciência e da

tecnologia, suas promessas reais e seus riscos evidentes - o "nós" coletivo da humanidade já

não pode querer eximir-se da responsabilidade, que lhe toca assumir, por aquilo que

acontecerá com a evolução da vida nesse planeta daqui para diante?

Neste livro vamos estar tratando das várias pontas dessa problemática e de uma série de

assuntos relacionados com a tensão entre os deveres da humanidade como um todo e os

deveres e responsabilidades de cada um de nós. Mas parece oportuno puxar o assunto pelo

lado do perigo de cairmos, enquanto indivíduos, numa espécie de Síndrome de Atlas, ou

seja, de sentirmos nas próprias costas o peso do mundo inteiro.

Para calibrar mais tranqüilamente nossas chances de irradiar esperança, e de fazer

deveras alguma coisa que preste para nós e nossos semelhantes, é preciso desfazer-se do

peso imaginário de tarefas impossíveis. Não pode fazer o bem aos outros quem não está de

bem com a própria vida; não pode melhorar o mundo quem não sabe como começar a amá-

lo assim como ele é.

Como já foi dito acima, queremos abrir, de um jeito solto e desinibido, um amplo leque

de questões relacionadas com a sensibilidade social solidária. Queremos motivar um certo

otimismo pedagógico quanto às possibilidades de criar as competências sociais que devem

dar suporte prático a essa sensibilidade ética.

Como veremos, existem muitas palavras que se referem a esse assunto. Umas estão

impregnadas por uma espécie de pulsão esperançadora. Por exemplo: conciência planetária,

mundo humano, empatia, solidariedade. Outros termos, porém, carregam consigo um tom

amargo. Por exemplo: ter pena, compaixão, misericórdia. Precisamos de linguagens

versáteis capazes de transitar tanto pela ênfase na crítica e na denúncia como pelos

momentos em que se trabalha mais diretamente com motivações esperançadoras.

Uns mais, outros menos, temos conhecimento, ou até experiência pessoal do que

significa uma percepção do mundo, na qual predomina a falta de perspectivas de melhoria

social. Precisamos de referências amplas, com as quais possamos afinar, de modo mais ou

menos consciente, o nosso projeto de vida. Seria lamentável se nos refugiássemos num

mundinho estreito e egoísta.

A situação atual do mundo pode levar-nos facilmente à sensação de que não há

alternativas promissoras à vista. Analisemos pois, alguns dos riscos que semelhante

situação pode induzir na vida precisamente daquelas pessoas que mais fortemente anelam

um mundo mais justo e solidário.

Após décadas de um certo desalento no panorama educativo da América Latina e

também, especificamente, do Brasil, devido em parte ao predomínio da ênfase crítica e

denunciatória em muitas expressões do pensamento educacional, chegamos hoje a uma fase

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de revalorização motivadora em relação à relevância social do empenho de educar. O

entusiasmo está voltando novamente às escolas. No entanto, não poucas pessoas se sentem

sugadas para dentro de responsabilidades cujo peso se revela demasiado para suas limitadas

energias.

É admirável que haja um número crescente de professores/as que se sentem

responsáveis por ideais gigantescos. Em si não há nada de mal em sentir uma

responsabilidade grande, uma urgência de relacionar-se com tarefas amplas. Mas que passa

quando não as podemos transformar em práticas significativas? Pode-se acumular, nesse

caso, a sensação de um peso insuportável, no qual, a responsabilidade se confronta com a

impotência, sem sabermos como balancear os dois elementos. Da sensação de impotência

pode surgir um aumento de instabilidade emocional e aos poucos, de irritabilidade quase

constante.

Quem chega nesse ponto começa a perceber confusamente uma espécie de

bifurcação de caminhos. Por um lado, a preocupação com a falta de possibilidades reais

pode conduzir, pouco a pouco, à acomodação e à indiferença. Pelo outro lado, a

exacerbação das linguagens relacionadas com o compromisso social pode levar a extremos

morbidamente apocalípticos. É facilmente perceptível que as duas saídas conduzem, por

caminhos diferentes, à incapacidade de visualizar esperanças viáveis. Tanto o afundamento

na depressão quanto a exaltação mórbida na indignação conduzem a paralisias no campo

das ações significativas.

Os bebês não têm esse tipo de aflição porque só percebem desafios aos quais podem

responder. Em nosso cotidiano, cada tanto nos faz bem reinventar essa simplicidade à qual

se refere o mito do Puer Aeternus2 (a eterna criança). O permanente direito a recomeçar faz

parte da dinâmica da evolução. Tudo indica que, o processo evolutivo da vida inventou mil

formas de não enxergar e, muitas vezes de não tomar conhecimento de desafios

incontornáveis. É um jeito de enfrentá-los com mais sabedoria e serenidade, como quem

está eternamente situado ao nível das meras tentativas exploratórias. Não há dúvida de que

se trata de um jeito bastante eficaz de evitar pesos insuportáveis. É claro que a gente se

lembra logo de que há algo de ridículo na autodefesa do avestruz, quando enfia, a cabeça na

areia. Mas pelo menos ele evita ficar neurótico.

O aumento de consciência das responsabilidades surgiu com a capacidade evolutiva

da nossa espécie de inventar mundos imaginários. Não é o momento de entrar nas

complexas questões epistemológicas que esse fato implica. Em síntese, enquanto seres

simbolizadores, todos os nossos mundos são mundos construídos mediante linguagens. Já

que a evolução nos proveu com essa característica, não temos outra saída a não ser elaborar

estratégias para intervir nesses mundos sem sobrecarregar nossas energias.

É interessante verificar até que ponto entraram em nossas linguagens cotidianas

certas metáforas relacionadas com essa complexa dialética de balancear responsabilidades e

possibilidades de ação. A própria imagem de Atlas parece estar por trás de expressões

como : "encostar o ombro", "carregar nos ombros", "peso demais para meus ombros"... A

imagem do avestruz parece estar evocada em expressões como "esfriar a cabeça", "cabeça

fria", "não esquente a cabeça", "é um cabeça quente"...

Podemos imaginar-nos meias-respostas, que funcionam como estranhos atratores,

quando lidamos com a dúvida atroz sobre se podemos fazer algo de realmente importante

diante dos graves problemas que nos rodeiam. Parece até que o próprio instinto de

2 FRANZ, M.L.von. Puer aeternus. SP, Edições Paulinas, 1992

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sobrevivência nos sugere certas possíveis crenças como as três seguintes: 1. O mundo está

fora de controle e eu nada posso fazer diante disso. 2. Eu realmente não sei como resolver

problemas tão gigantescos. 3. Os problemas são tão grandes que qualquer coisa que eu fizer

não tem a menor importância.

David Gershon, um apreciado guru ecológico (organizador da The First Earth Run)

disse que ainda não percebemos qual é a ameaça maior no mundo de hoje. Por mais

terríveis que sejam a devastação ambiental, a fome, a superpopulação e a ameaça nuclear,

ele acha que existe algo mais terrível: a nossa dúvida de que possamos fazer algo para

enfrentar esses e outros problemas. Ele suspeita que o a avanço da insensibilidade e da

indiferença no mundo de hoje tem muito a ver com esse jogo de meias respostas, que no

fundo são válvulas de escape ou mecanismos de catarse de pessoas eticamente pouco

maduras.

Em outras palavras, temos que estar atentos ao fato de que a simples sobrevivência e

uma pequena soma de prazeres legítimos, podem estar desativando em nós praticamente

toda a sensibilidade social. Por isso, se por um lado é preciso evitar a Síndrome de Atlas,

pelo outro devemos evitar a petrificação de nossos corações. A esperança deixa de ser

esperança, até em nossas vidas pessoais, quando a enquadramos num esquema minimalista.

Mas ela dificilmente se sustenta dentro de sufocos e cobranças maximalistas.

Por vezes tem-se a impressão de que nosso cotidiano se torna estressante também

por causa de um certo excesso de linguagens vagas e totalizantes acerca do mundo

desejável e das vias de acesso a ele. Poderíamos encher páginas com esse tipo de

linguagens generalistas, às quais muitos continuam atribuindo um potencial comunicativo e

motivador, que elas efetivamente não têm, porque lhes falta vigor analítico e conteúdo

estratégico para isso. Vamos a alguns exemplos: uma sociedade justa e fraterna, respeito à

dignidade humana, justiça e solidariedade, comunhão e solidariedade, etc.

Quanto a seu efeito sócio-afetivo, este talvez não seja muito diferente do resultado

(des)mobilizador das linguagens denunciatórias iracundas e apocalípticas, que costumam

ter como pano de fundo o pressuposto de um "grande inimigo", cuja eliminação - por um

imprevisível lance revolucionário ou por alguma fantasiosa intervenção divina - recolocaria

todas as coisas em seu devido lugar. É um engano atribuir um potencial esperançador a esse

tipo de linguagens iracundas. No entanto, muita gente pensa que o tem.

Essas linguagens funcionam, até certo ponto, como amortecedores semânticos ou

como faixa intermédia de significações simuladas. Enquanto tais, podem efetivamente

evitar que as pessoas se afundem na fossa da Síndrome de Atlas (hipersensibilidade social)

ou se alienem na insensibilidade e na indiferença. O problema é que muitos que empregam

esse tipo de linguagem generalista ou de denúncia exacerbada - ou ambas, porque se casam

perfeitamente - acreditam estar propondo soluções, e não estão. Estão apenas construindo

simulações muito parecidas à conhecida propaganda dos detergentes: cada um deles lava

mais branco do que o outro. Parece incrível, mas o nosso enfeitiçamento por palavras e

estatísticas pode chegar ao ponto de supormos que, pela simples enunciação de festejos de

palavras, os problemas reais ficarão espantados e sumirão do mapa.

Dada a abundância, e até mesmo uma certa prevalência desse tipo de linguagens

generalistas e/ou iracundamente denunciatórias, seria pouco recomendável desprezá-las ou

querer descartá-las como se não fossem de nenhuma serventia. Elas podem cumprir uma

função de ampliação genérica de campos semânticos difusos, cujos atratores precisam ser

melhor caracterizados e detalhados em referência a cada situação específica. Talvez

necessitemos de uma teoria mais complexa acerca do funcionamento social das linguagens

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humanas para avaliar tanto o potencial positivo, quanto os limites analíticos e estratégicos

dessas linguagens generalistas e/ou denunciatórias, que giram sobre si mesmas e se tornam,

aos poucos, plenamente auto-referenciais..

Numa alusão muito rápida a esse tema amplo, pode-se afirmar que, no uso

cotidiano, as linguagens humanas flutuam entre os níveis conotativos genéricos, amplos e

complexos (para os quais talvez se aplique a metáfora da piscina, do nado e da imersão) e

os níveis denotativos, nos quais a relação com referenciais de análise e estratégia de ação

passam a predominar. As linguagens altissonantes, mas semanticamente flutuantes e

difusas, podem provocar uma estranha sensação de que, uma vez aceitas e proferidas, a

nossa fome de sentido para a vida humana concreta e para os desafios que temos pela

frente, ficou praticamente atendida e satisfeita.

O fato de que muitas instâncias políticas, eclesiásticas e até pretendidamente

acadêmicas e científicas, se dão por satisfeitas com o abundante manejo de semelhantes

linguagens mostra até onde pode chegar o auto-engano coletivo. Ou será que o estranho

fenômeno da pomposa vivência dessas linguagens não nos está a indicar que, os sentidos

concretos e determinados da reflexão e da ação humanas nem poderiam existir sem esse

amparo contextual amplo dos níveis míticos e das utopias?3

Mais adiante, neste livro, faremos um levantamento panorâmico das linguagens

acerca da solidariedade. Ali tentaremos mostrar de que maneira, e através de que tipo de

"coágulos verbais" (expressões, binômios, etc.) certas linguagens sobre a solidariedade se

enquistaram (e, por vezes, auto-esvaziaram) em documentos de instâncias como o FMI, o

Banco Mundial, programas e proclamas políticos, encíclicas papais, documentos das

Igrejas, etc. Como baixar campos-do-sentido dessas nuvens ou simulações semânticas para

os terrenos concretos, que demandam iniciativas e encaminhamentos que façam sentido

para a experiêcia das pessoas? Para recuperar esse faro do exigível na prática e do

(elasticamente) possível é bom não esquecer que a vida é feita de uma complexa teia de

articulações tópicas da energia e do sentido da vida.

Algumas verdades concretas são tão simples que corremos o perigo de esquecê-las e

nem mencioná-las mais em nossos discursos mais pretensiosos. Alguns exemplos:

a morte de uma pessoa amiga de repente nos lembra que as pessoas acabam morrendo e que a morte não deve ser tratada como um fantasma espantável;

a experiência concreta de uma poluição sufocante, de repente nos faz lembrar que a

gente precisa respirar;

o convívio mais íntimo com uma pessoa deficiente física de repente nos lembra que boa parte de nossos semelhantes, ou talvez nós mesmos, tenhamos aptidões limitadas;

o diálogo com negros ou indígenas, de repente nos devolve a consciência de que não somos um país de brancos, nem um país plenamente mestiçado e que existem

diferenças físicas e culturais que as palavras bonitas não conseguem abolir.

Em síntese, nenhuma de nossas linguagens generosas acerca da melhoria das condições

sociais que nos envolvem consegue ter uma articulação significativa, do ponto de vista

analítico e estratégico, se não for mergulhada em contextos concretos e possibilidades

concretas. Nós precisamos mudar muita coisa neste mundo, mas para poder fazê-lo

precisamos saber viver neste mundo, gostar deste mundo - ao menos até o ponto requerido

3 Sobre as várias facetas, individuais e coletivas, do auto-engano, ver a excelente obra do economista:

GIANNETTI, Eduardo, Auto-egano.São Paulo: Companhia das Letras, 1997

Page 14: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

14

pela alegria de viver -, e suportá-lo em suas condições concretas, enquanto não

conseguimos transformá-lo.

O possível é elástico e nossos sonhos o ampliam

O limite de cada um/a está no tamanho do sonho que carrega. TV GLOBO, Jornal Nacional, 26.05.1997

A idéia de uma sociedade melhor não é óbvia. Antes da modernidade, a maioria dos

seres humanos nem sequer experimentou pessoalmente o ideal de possíveis mudanças

profundas no todo social. O mundo era uma espécie de realidade dada, um ordenamento

estabelecido e inquestionável, um cosmos (ordem). Alguns economistas relembram esse

passado relativamente estático para criar, a partir dele, uma espécie de ideologia da

acomodação.

Antes das revoluções científica, industrial e democrática dos últimos quatro séculos,

dificilmente podería ocorrer às vítimas de qualquer ordem social que as sociedades

humanas pudessem tomar forma diferente4.

Não é correto dizer que todo mundo era fatalista. A aceitação do ordenamento social

existente, como algo praticamente inquestionável, dava às pessoas um mínimo de

segurança. Sobre a base dessa segurança era perfeitamente possível distinguir o maléfico do

benéfico, o feio do belo, o saudável do pernicioso. Tudo até certo ponto, é claro, como

continua acontecendo conosco hoje: todas as nossas percepções vão apenas "até certo

ponto". No entanto, um aspecto básico do mundo de hoje é a aceleração da sua dinâmica de

mudanças. Aconteceu uma perda quase completa de todo tipo de chão estável.

Não vamos voltar a contar aqui a complexa e fascinante história do abandono dos

mundos relativamente estáveis da era pré-moderna, dos saltos para dentro de imaginários

utópicos fantásticos, das ideologias do progresso ilimitado embutidas na ciência, na política

e nas teorias econômicas da modernidade. Nossa situação de hoje é a de uma difícil mas

inevitável e imperiosa despedida das assim chamadas "grandes narrativas" (Lyotard).

Persistem, ao mesmo tempo, no contexto da pós-modernidade, não poucas tentações

de abranger a solução de todos os problemas básicos da humanidade em fórmulas e

propostas extremamente simplistas e profundamente autoritárias. É o caso do "pensamento

único" de corte neoliberal, que pretende embalar-nos na ilusão de que as forças do

mercado, tangidas pelo propósito predominante do crescimento econômico, resolverão

todos os problemas cruciais da humanidade através de uma espécie de misteriosa tendência

congênita geradora do bem comum da humanidade. Quando essa promessa ilusória vem

acompanhada de um cerceamento de quaisquer buscas de alternativas significativamente

diferentes, o ideal de uma sociedade melhor é praticamente riscado do horizonte do futuro.

O "fim da história", embora ridículo demais enquanto proposta teórica e sócio-

analítica, implanta-se por vias de fato como projeto político e econômico com

características planetárias. Já que realmente não se percebe alternativa abrangente a essa

mundialização do mercado, o tema da melhoria da sociedade em termos amplos passou a

4 MOORE, Barrington. Reflexões sobre as causas da miséria humana e sobre certos propósitos de eliminá-la.

Rio de Janeiro: Zahar, 1974, p. 30.

Page 15: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

15

afunilar-se, mais e mais, sobre a grande mentira de que o mercado como tal, onde quer que

seja, carregaria sempre consigo a garantia de doses crescentes de inclusão junto a doses

decrescentes de exclusão residual. Essa teoria leva um nome bastante cínico: o suposto

trickle down, o efeito gota-a-gota ou gotejamento lento dos benefícios para todos, mesmo

com crescente concentração da riqueza.

Não se pode negar que, nos redutos geograficamente limitados das nações altamente

industrializadas, a inclusão social se manifesta como tendência forte, mas não dissociada do

seu contrário, a persistência da exclusão. Mas certamente não é isso o que está ocorrendo

nos países periféricos desse centro, e nem sequer nos assim chamados mercados

emergentes. Nesses últimos, muitos governos apostam em superar, dentro da obsessão pelo

crescimento econômico como fórmula mágica para a ampliação da inclusão, as nítidas

tendências de predomínio da exclusão.

Em meio a esse panorama, não é de estranhar que muitas pessoas se tenham fechado

no seu cotidiano de garantias mínimas de sobrevivência, sua e dos "seus", e se tenham

blindado numa indiferença e insensibilidade em relação a desafios sociais mais amplos.

Encontramos - sobretudo no diálogo com setores médios, mas não é coisa rara até em

setores populares, que vivem entre a exclusão real e baixos níveis de consumo básico - uma

filosofia de vida prática que pode ser resumida em algumas sensações quase impulsivas.

Primeiramente, existe um pressuposto bastante geral de que não se pode fazer grande coisa para mudar essa sociedade; a natureza humana é imperfeita e nunca vai mudar

muito.

Em segundo lugar, muitos supõem que os esforços para reformar ou até revolucionar as

sociedades têm custado mais sofrimentos do que conseqüências socialmente benéficas.

Valeram a pena tantos sacrifícios e tantas mortes?

Em terceiro lugar, muitos estão ainda presos a uma espécie de crença atávica num progresso real lento, embora pouco perceptível, sob o comando de indecifráveis

providências e "mãos ocultas", embutidas de alguma forma na própria evolução da

história.

As três atitudes mencionadas levam, a primeira, a uma acomodação quase fatalista; a

segunda, a uma profunda descrença em relação a projetos alternativos; a terceira pré-dispõe

para o "confiar", que - sem estranheza alguma para quem sabe olfatear camuflagens

ideológicas - é precisamente o primeiro mandamento do novo catálogo de receitas pseudo-

sociais e pseudo-éticas da era da mundialização do mercado, sob a égide do capital

financeiro5.

Às vezes é saudável perguntar-se até que ponto se mantém viva em nós a coragem de

sonhar um mundo solidário. Se não o sonhamos, com toda a força dos nossos desejos, ele

realmente nunca se tornará possível. Nós somos seres criadores de mundos possíveis. E

esses nossos mundos possíveis não são mundos de geometria euclidiana, como se nossos

sonhos e nossos potenciais fossem cubos, engrenagens e peças mecânicas previstas para

encaixes perfeitos. A dinâmica da vida é essencialmente processual, e suas metáforas-guia

não podem ser emprestadas da mecânica, porque precisam provir de processos vivos.

Todos os sistemas vivos são sistemas aprendentes e desejantes. Por isso nossos

mundos possíveis devem ser concebidos como mundos elásticos, capazes de expansão e

retração. O possível não está submetido unicamente aos planos e às previsões, que todo

pensamento estratégico precisa ponderar Para nós, desejantes humanos, o possível é um

5 FUKUYAMA, F. Confiança, as virtudes sociais e a criação da prosperidade. Rio de Janeiro: Rocco, 1996.

Page 16: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

16

conjunto de parâmetros ou padrões de plausibilidade. Por isso convém ativar

constantemente nosso imaginário com intuições inovadoras e algo parecido às

possibilidades estatísticas, das quais fala a física quântica.

A elasticidade do possível não existe apenas porque existem condicionantes

externos que são imprevisíveis em seus detalhes. Essa elasticidade se deve sobretudo à

interferência de nossas em-ações (enactions, para usar a linguagem de Francisco Varela) na

própria projetação desses mundos possíveis. E quando os mundos possíveis estão

entramados vivencialmente com os nossos mundos de desejo, eles podem constituir - em

nossas vivências subjetivas - um campo do sentido no qual se juntem, aos poucos,

necessidades e desejos.

As necessidades sociais podem tornar-se objeto de desejos coletivos, coesionados a

partir de experiências da esperança no cotidiano das pessoas. Sem esse suporte

experiencial, geralmente sobram apenas propostas centralistas, amparadas em algum mito

do Estado ideal, ou ilusões ideológicas sem nexo com o cotidiano das pessoas. Onde há

vivenciamentos concretos da esperança, por limitados que eles sejam, surge um suporte

para sonhos maiores. E essa dinâmica desejante é capaz de gerar tanta energia, em nossas

identidades pessoais e nas convergências de cooperação coletiva, que aquilo que parecia

impensável e impossível se torna projetável e factível.

Um ponto forte, neste sentido, é a questão do sábio uso das energias humanas

disponíveis. É preciso dar-se conta de que, as culturas em geral, ritualizam em gestos e

delimitam mediante linguagens os assuntos que se podem abordar livremente e os que

ficam geralmente escamoteados. Os assuntos escamoteados, ou até mesmo transformados

em tabu, geralmente tem a ver com aspectos delicados da intimidade pessoal e interpessoal

e com riscos-limite da existência humana. Talvez seja importante reconstruir nossas

referências à elasticidade do possível a partir de modestas sinceridades Para um sábio uso

da energia humana socialmente disponível são questões fundamentais.

As pessoas têm variações quase diárias, ou até várias vezes por dia, do seu estado de

ânimo. As pessoas adoecem e morrem. Precisam de ar, definham e até morrem lentamente

quando não podem respirar bem. Ar bom é realidade não apenas bioquímica, mas sócio-

ambiental e de clima interpessoal. Quem não sabe que a expressão "neste ambiente não se

respira" tem imediatamente múltiplos sentidos? Embora vivamos a era da aceleração

crescente em muitos aspectos da tecnologia e da vida, as pessoas têm seus ritmos próprios e

limites na aceleração possível. Hoje muitas pessoas acabam se ilhando, isolando e

confinando em sua identidade, que por vezes não se anima a ir além de um incipiente pré-

projeto de vida.

Supor que todas as pessoas vivam plenamente um projeto de vida é cair numa

grande ilusão. Apesar da incrível conectividade da era das redes (canais abundantes de TV,

telefonia móvel, Internet...), e apesar do fim da escassez, até certo ponto, da informação, a

carência maior de muitas pessoas se refere a escassez de contatos humanos. Muitas formas

tradicionais e, talvez excessivamente ritualizadas, de confluência multitudinária já não

cumprem o papel de fazer que as pessoas vivam a experiência pessoal do pertencimento ao

mundo plural de seres humanos associados.

Esta talvez seja uma das razões pelas quais essa experiência de sentir-se alguém no

meio de muitos outros/as, com os quais esse algém comparte vivências mais ou menos

profundas, encontre hoje acolhida, explosividade diversificada e formas variadas de catarse

nos vastos conglomerados massivos dos estádios, dos megashows, e nesses estranhos novos

espaços cognitivos que são as intermináveis galerias do consumo dos shopping centers.

Page 17: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

17

Para não cair em visões fatalistas precisamos sentir, de alguma forma - como

verdade perceptível em nossa própria vida e em acontecimentos, com os quais temos

alguma interface vivencial - que há coisas que podem ser de fato melhoradas em nossa vida

e em volta de nós. Esta parece ser a base mínima para acreditar que vale a pena cultivar

comportamentos pró-sociais. Certamente não se precisa de uma perspectiva de esperanças

tão amplas que demandem níveis de crença e experiência dificilmente acessíveis à maioria

das pessoas.

Fica assim colocada uma nítida distinção entre o plano das esperanças sociais

tópicas, ao alcance do cotidiano de um grande número de pessoas (não necessariamente de

todos, muito menos de forma coincidente) e o nível dos projetos estratégicos de amplitude

tal, que sua efetivação ultrapassa a experiência humana comum, individual e de grupos.

Parece importante trabalhar, hoje, com essa distinção entre esperanças tópicas

realmente vivenciáveis e a Esperança (com inicial maiúscula), projetada para proporções

espacialmente muito amplas e temporalmente previstas para agendas improváveis. Não se

pretende afirmar, de modo algum, que não se deva trabalhar também com visões globais,

ou seja, com pensamento estratégico.

Mas para evitar a desgastante sensação de frustrações, que podem arrasar o ânimo

das pessoas pelo resto da vida, convém que a experiência humana seja vista e analisada em

tempos-espaços "vivos". A aprendizagem da esperança precisa poder acontecer com

intensidade psíquica, em seqüenciamentos de experiências localizáveis, com enredos de

espacialidades e temporalidades que não violentem o potencial das energias humanas

disponíveis.

Não basta sentir que as coisas não andam bem e que não deveriam continuar

eternamente como são. É preciso ter também alguns pontos de apoio para acreditar que algo

pode mudar. É preciso sentir pessoalmente que vale a pena acreditar que alguns aspectos

relevantes deste mundo não só precisam, mas de fato podem mudar, se acreditarmos nisso e

juntarmos nossas forças para que isso aconteça.

Desmistificar a questão do egoísmo humano

Somos uma espécie animal predisposta para o convívio solidário? Com a erosão de

valores tradicionais de coesão social, totalmente insuficientes para o contexto de sociedades

amplas e complexas e para os desafios atuais a escala planetária, vivemos numa espécie de

vácuo de valores solidários. Em vão olhamos à volta, buscando condensações simples da

sabedoria necessária. Essas sínteses provavelmente nunca mais existirão. Entramos

definitivamente num mundo de pluralismo teórico acerca de praticamente todas as questões

fundamentais para a vida individual e social.

Chegou a hora de fazermos as pazes com as limitações dos nossos pendores sociais

e imaginar, apesar disso, formas de convivência social cada vez mais favoráveis ao bem-

estar e à felicidade de todos os membros da nossa espécie. Só que, para isso, devemos

desistir de idealizações, mais ou menos idílicas, acerca de nós mesmos e acerca daquilo que

é historicamente realizável em contextos concretos.

Para que não haja mal-entendidos imediatos voltamos a frisar nossa concepção

acerca da elasticidade do possível. Quando falamos das limitações do historicamente

realizável não nos referimos a recortes do horizonte utópico. Mas o tamanho do sonho, que

deve sempre tender a ser maior do que o imediatamente factível, ficaria esvaziado de

Page 18: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

18

sentido histórico se não conseguisse construir interfaces com projetos estratégicos

transformados em programas concretos.

Não somos animais naturalmente solidários para além de um circuito bastante

limitado de relacionamentos, no qual conseguimos perceber a relevância da sociabilidade

para as nossas próprias vidas. Para percebermos a conveniência, até para a nossa própria

felicidade, da solidariedade como elemento da sociedade ampla e do planeta Terra,

precisamos de um salto ético que não costuma suceder espontaneamente. Ele necessita ser

alavancado com argumentos, vivências, testemunhos e até mesmo a sensação de riscos e

ameaças, que não formam parte do senso comum do nosso cotidiano. Para tornar-nos

solidários num sentido mais abrangente precisamos ascender a um estágio de consciência e

opção, que implica numa conversão a valores, que não são óbvios em nossa experiência

cotidiana.

A necessidade dessa conversão sempre já foi tema das éticas e das religiões. A

busca de elevação moral e a adesão a valores "superiores" não são assunto novo. No

entanto, para muitos ainda é chocante a visão do ser humano que se manifesta nas seguintes

afirmações do já citado documento do Clube de Roma de Roma, A Primeira Revolução

Global, que tenta levar-nos a uma visão honesta do Human Malaise (do mal-estar humano)

da atualidade.

O egoísmo, do qual o egocentrismo é uma das manifestações, ou a 'energia vital'

como alguns a chamaram na primeira onda do darwinismo, é uma propriedade de

todos as espécies vivas, que lhes garante o ímpeto primevo para sobreviver, para

reproduzir-se, para prosperar e sobressair. Ele é a força-motriz da inovação e do

progresso. Mas ele se manifesta também constantemente no comportamento

egocêntrico, ganancioso e anti-social, na brutalidade, no gosto pelo poder (por

mesquinho que seja), na exploração e domínio sobre outros.

O conflito entre os aspectos positivos e negativos do egoísmo é o eterno drama

faustiano que todos representamos. Chegar a um equilíbrio dinâmico entre esses

dois aspectos opostos do egoísmo é o objetivo central, raras vezes admitido, da

política social. Alargar demais o espaço ao exercício da tendência egoísta pode

produzir uma sociedade dinâmica, mas pode levar à exploração, ausência de

justiça social, corrupção e opressão.

Nossa herança genética nos persegue. Custa-nos admitir, mesmo para nós mesmos,

que os lados negativos de nossa natureza - tais como a cobiça, a vaidade, a raiva, o

medo e o ódio, que são manifestações da brutalidade de nosso egoísmo - foram

úteis à nossa espécie durante o longo processo da evolução de nosso organismo...

(...)

Agora, ao havermos alcançado nosso presente estado de consciência, sabendo da

nossa mortalidade e capacitados para encarar o futuro como uma seqüência

generacional da vida, os aspectos negativos do egoísmo se tornaram menos úteis

para a luta daqui para a frente. Eles, no entanto, existem e precisam ser tomados

em conta no comportamento pessoal e coletivo. (...)

...é preciso quebrar honestamente os tabus e reconhecer sinceramentee a existência

e o poder dos aspectos positivos e negativos (do egoísmo) no comportamento

individual e coletivo, para chegar a adotar uma visão baseada no interesse próprio

iluminado e compartido de todos os habitantes deste pequeno planeta afim de

Page 19: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

19

assegurar ambientes físicos e sociais sustentáveis para nós mesmos e nossos

descendentes6.

6KING, A. & SCHNEIDER, B. The First Global Revolution - A report by the Council of the Club of Rome -.

New York: Pantheon Books, 1991, p. 234-236.

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20

PARTE I

INTERFACES

SÓCIO-FILOSÓFICAS

Page 21: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

21

Capítulo 1

SOLIDARIEDADE:

UMA TEIA DE CAMPOS SEMÂNTICOS VARIADOS

Este capítulo é uma espécie de bandeja de aperitivos. Contém amostras do uso

variado da linguagem sobre a solidariedade, com destaque a alguns poucos pensadores e

umas quantas "comunidades discursivas" (FMI, Banco Mundial, Igrejas, ONGs, outros

grupos). Nosso propósito é deixar patente que se trata de uma linguagem multirreferencial e

que, apesar de uma aparente coincidência dos termos e mesmo, até certo ponto, das

expressões nas quais se associam diversas palavras, os campos semânticos são bastante

diferentes. Muito mais ainda o são os campos do sentido, isto é, as visões do ser humano e

as concepções de história, que impregnam essas linguagens.

Este mini-panorama fenomenológico dos discursos sobre a solidariedade não passa

de simples amostragem. Mesmo assim ele já revela que lidamos com um discurso que

flutua por diversos campos do sentido. Ao longo desse mapeamento incompleto também já

acresentaremos algumas dicas sobre onde garimpar questões de fundo que possam integrar,

posteriormente, uma problematização da relação entre o tema solidariedade e o da

educação7.

A metáfora da teia nos pareceu sugestiva para sinalizar que esses usos diferenciados

do discurso sobre a solidariedade constituem, em seu conjunto, um fenômeno sintomático.

Ele parece estar mostrando que há indícios convergentes de uma consciência cada vez mais

explícita de uma profunda crise de civilização. Não se trata apenas de problemas

localizados. Há um mal-estar generalizado que revela que há algo de profundamente

equivocado nos rumos gerais da humanidade.

As linguagens sobre a solidariedade se reportam a urgências solidárias diferentes,

fazendo vibrar sensibilidades solidárias diferenciadas, e criando pontos de irradiação e

nexos convergentes e divergentes. Já que se trata de uma teia complexa, é de prever que

ela tenha vários pontos de amarre, nós de aglutinação e, neste caso, muitas pontas soltas.

O fenômeno está longe de ser um campo unificado do sentido. Há ainda

espalhamento de campos semânticos parcialmente desconexos, e até contrapostos, que

operam com níveis e referenciais dificilmente unificáveis. Por isso a teia das linguagens

sobre a solidariedade difere bastante daquelas gigantescas teias com vários centros,

articulados num grande conjunto unificado, que aqueles fascinantes animais solidários, as

"aranhas sociais" (que existem no Equador e por outros lados), sabem fazer emergir,

cooperativamente, desde a iniciativa empreendedora de muitas aranhas em grupo.

Para compactar muita informação e lançar instigações para um pensamento

complexo acerca da solidariedade, usaremos um estilo de amostragem comparável a um

caleidoscópio. Cada leitor/a poderá girá-lo para que seu olhar construa recomposições

imprevistas. Nossa intenção vai além da colagem, entendida como síntese de elementos

pré-fixados. A idéia é introjetar na experiência de ler algo da criatividade do escrever.

7 Uma instigante supervisão da problemática da solidariedade, incluindo aspectos históricos do conceito,

debate filosófico e ressonâncias éticas, encontra-se na obra coletiva: BAYERTZ, Kurt (Ed.). Solidarity.

(Philosophical studies in contemporary culture 5). Dordrecht (Holanda), Kluwer Academic Publishers, 1999. -

Para conhecer o sumário dessa obra, vide a bibliografia ao final deste livro.

Page 22: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

22

Como nos hipertextos da Internet: cada navegador escolhe as suas entradas e cria o seu

texto, sobre a base de múltiplos percursos possíveis.

Consciência solidária universal não é coisa comum (Kohlberg)

O tema solidariedade supõe coragem para sustos e esperanças. Exige ânimo e frieza

para acrobacias da mente e do coração. As perguntas são radicais: até que ponto somos

animais solidários? Temos de fato um cérebro social, como nos diz o autor de O Direito à

Ternura, o médico colombiano Luís Carlos Restrepo?8 Antes que os dilemas falsos nos

envenenem o imaginário convém prevenir-nos. Qual seria, nesse caso, um dilema falso?

Por exemplo, o de querer obrigar-nos a optar entre pessimismo e otimismo antropológico,

entre visão inexoravelmente pessimista e visão ingenuamente otimista acerca do potencial

solidário dos seres humanos. Os dilemas são geralmente falsos porque neles as partes

contrapostas têm razão demais. Tem tanta razão que não sobra razão alguma para a posição

oposta. Ou seja, o excesso de razão sempre se afunda na desrazão.

O filósofo e pedagogo contemporâneo Lawrence Kohlberg ficou conhecido por sua

dura tese de que pouca gente alcança a maturidade ética exigida por uma consciência

solidária universal. Mas ele não formulou a sua teoria para colocar-nos diante do dilema de

ou acreditar cegamente no ser humano ou desesperar de sua perfectibilidade. Ao contrário,

como ele mesmo se explicou fartamente, sua teoria visava incutir-nos a urgência

pedagógica de superar, a todo custo, as limitações éticas a que muita gente é condicionada

por seu contexto cultural e social. Não pretendeu apregoar uma espécie de tese ontológica

pessimista acerca de uma suposta natureza anti-solidária dos seres humanos. Se trazemos

aqui este fragmento de seu pensamento é, precisamente, porque se presta como instigação

para refletir seriamente sobre os alcances da tarefa educacional que nos desafia. Sem nos

determos em maiores comentários, cremos que vale a pena dar a conhecer sumariamente o

esquema básico da TEORIA DO DESENVOLVIMENTO MORAL DE KOHLBERG9:

Observação prévia: a Teoria de Kohlberg distingue 3 níveis, cada qual com dois sub-níveis, no

desenvolvimento moral do ser humano. A noção de convencional refere-se a convenções estabelecidas

consensualmente entre os seres humanos, ou seja, à normatividade social, expressada em leis ou não, mas que

conta com razoáveis consensos.

Nível A - Nível Pré-Convencional (a maioria das crianças com menos de 9 anos)

Nível Definição Frase que exemplifica

Sub-nível 1 - O nível

heterônomo

Agir bem é obedecer cegamente

às prescrições e às autoridades,

para evitar punições e

sofrimentos corporais

"Faça isso direito!"

(Uma das máximas atribuídas

aos nazistas)

Sub-nível 2 - O nível do

individualismo, do pensamento

fim-meios e da troca

Agir bem é servir às

necessidades próprias e alheias

e comportar-se no sentido da

troca recíproca concreta.

"Uma mão lava a outra!"

(sabedoria popular)

8 RESTREPO, L. C. O direito à ternura. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998.

9 KOHLBERG, Lawrence. Essays on Moral Development. Cambridge (Mass.): Cambridge University Press,

vol. 1-2, 1981, 1984; KOHLBERG, Lawrence & COLBY, Ane. The Measurement of Moral Judgment.

Cambridge (Mass.): Cambridge University Press, 1987.

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23

Nível B - Nível Convencional (a maioria dos jovens e adultos)

Sub-nível 3 - O nível das

expectativas, relações e

conformidade mútua

interpessoal

Agir bem significa fazer um

papel bonito, preocupar-se com

os outros, comportar-se de

maneira leal e confiável com os

companheiros e estar disposto a

cumprir regras e corresponder a

expectativas

"O que não queres que se faça a

ti, também não o faças a

nenhum outro!"

(A regra de ouro, ver Evangelho

de Lucas, 6,31)

Sub-nível 4 - O nível do sistema

social e da ausência de

consciência

Agir bem significa cumprir seus

deveres na sociedade, manter a

ordem social e preocupar-se

com o bem-estar da sociedade.

"Tranqüilidade é o primeiro

dever do cidadão!" [ou seja,

Segurança antes de tudo]

(de uma pixação em muros de

Berlim)

Nível C - Nível Pós-Convencional (alguns adultos com mais de 20 anos)

Sub-nível 5 - O nível do

contrato social ou da utilidade

para todos e dos direitos do

indivíduo

Agir bem significa defender os

direitos fundamentais assim

como os valores básicos e os

contratos na sociedade, mesmo

quando entram em choque com

regras e leis concretas de um

sub-sistema social.

"Ser proprietário é ter

obrigações, o uso da

propriedade deve servir ao

mesmo tempo ao bem comum"

(algo semelhante consta da

maioria das Constituições)

Sub-nível 6 - O nível dos

princípios éticos universais

[solidariedade social]

Agir bem significa considerar

como básicos os princípios

éticos que toda a humanidade

deve seguir

"Age de modo tal que tua

máxima possa valer sempre

como princípio de uma

Legislação Universal!". ( O

imperativo categórico de Kant)

É preciso unir Justiça e Solidariedade (Habermas)

A teoria de desenvolvimento moral de Lawrence Kohlberg teve bastante

repercussão entre os teóricos da ética na década de 80 do século vinte. Jürgen Habermas e

Karl-Otto Apel, os dois principais autores alemães da Diskursethik (Ética do Discurso ou,

melhor, da discursividade ou negociação discursiva) dedicaram longos comentários de

apreciação e crítica à teoria dos níveis de consciência moral elaborada por Kohlberg. Não é

por acaso que Habermas tenha tomado o famoso Nível 6 de Kohlberg (a adesão consciente

a princípios de solidariedade universal) como ponto de referência central de seu estudo

"Justiça e Solidariedade. Sobre a discussão acerca do Nível 6"10

.

Não vamos, por isso, analisar o pensamento de Habermas sobre a solidariedade em

termos amplos. Seria tarefa para um estudo longo e fecundo. O que mais nos interessa

mencionar aqui é o interesse de Habermas por criar um patamar de reflexão sobre a

solidariedade que nos leve um passo adiante da dura tese de Kohlberg acerca da escassa

sensibilidade solidária da maioria dos seres humanos. Habermas instaura a sua reflexão

sobre a solidariedade levando a sério as ponderações de Kohlberg, mas tentando mostrar,

10

O texto foi retomado em várias publicações em alemão e inglês, por exemplo: HABERMAS, J.

Erläuterungen zur Diskursethik. Frankfurt: Suhrkamp, 1991, 49-76.

Page 24: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

24

ao mesmo tempo. por onde avançar numa análise acerca da viabilidade social de

perspectivas solidárias.

Segundo Kohlberg, o nível de percepção ética requerido para aderir

conscientemente a valores solidários de caráter universal seria atingido, na verdade, por

relativamente poucos adultos. Os argumentos que Kohlberg utiliza para chegar a seu

esquema acentuadamente pessimista tem tudo a ver com sua teoria da consciência, que

muitos criticam como excessivamente racionalista. Mas Kohlberg apresenta também

reflexões de índole histórica, que revelam a persistência da insensibilidade social na

história evolutiva da nossa espécie.

Kohlberg, no entanto, não parece haver-se dado conta de que um modelo

racionalista da conscientização ética é pouco adequado para criar sensibilidade social, já

que leva a propor aos seres humanos um tipo ideal de "consciência de si" que os seres

humanos comprovadamente têm dificuldades em atingir. Seria lógico, então, preferir

trabalhar com abordagens menos cobradoras de "consciência racional" quanto ao agir

humano comum e cotidiano. Em síntese. a teoria da linguagem e da ação comunicativa de

Habermas - os seres humanos somos "negociadores" de linguagens em busca de

coincidências comunicativas - permite visualizar saídas, que não aparecem em Kohlberg.

Em outras palavras, os modelos racionalistas de conscientização ética simplesmente

não funcionam como os racionalistas desejariam. Sendo assim, é preferível optar por

abordagens menos exigentes - mas talvez humanamente mais comunicativas e mais

compreensíveis - tanto na análise dos motivos pelos quais os humanos costumam agir de

determinadas maneiras e não de outras, como no trabalho educativo de sensibilização

efetiva para valores solidários.

Na vasta obra do mais respeitado filósofo social alemão da atualidade, Jürgen

Habermas, se encontram inúmeras referências ao tema da solidariedade. O que nos

interessa destacar aqui é particularmente um aspecto: a repetida ênfase de Habermas na

necessidade de pensarmos conjuntamente as formas de enunciação verbal dos argumentos

em favor de um princípio universal da solidariedade e a construção democrática de

consensos coletivos nessa direção, que possam projetar-se em normas jurídicas e princípios

de organização da sociedade, socialmente desejados e juridicamente exigíveis pelos

cidadãos. O pensamento de Habermas se enriqueceu evolutivamente em três etapas

significativas:

Houve, primeiramente, uma sequência de aprofundamentos em relação a uma série de lacunas do Teoria Crítica da primeira geração da Escola de Frankfurt (especialmente de

Adorno e Horkheimer). Nessa fase, Habermas tentou avançar teoricamente nos

seguintes temas: relação entre conhecimento, desejo e interesse; a reconciliação

positiva, mas não ingênua, do pensamento crítico com a ciência e a tecnologia; uma

desconstrução e reconstrução dos resíduos do materialismo histórico marxista; e,

sobretudo, a adesão convicta à "virada lingüística" na filosofia.

Veio, a seguir, a profunda elaboração da Teoria da Ação Comunicativa, que representa

o cerne da Ética do Discurso de Habermas. Eis uma simples alusão ao desafio central:

doravante toda argumentação ética secular deve ser entendida como negociação de

linguagens e consensos possíveis, sem pressupostos prévios de índole metafísica ou

religiosa (embora levando em conta que a maioria dos dialogantes traz consigo heranças

valóricas dessa proveniência); todos os contextos coletivos de debate e deliberação

acerca de valores (academias, congressos, parlamentos, níveis governamentais, ONGs,

organizações internacionais) deveriam ater-se ao pressuposto básico de que o simples

Page 25: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

25

fato da interlocução ou diálogo discursivo pressupõe o desejo honesto de entender-se,

negociar linguagens possíveis e aspirar ao estabelecimentos de consensos expressáveis

de forma normativa (acordos e leis).

Nas duas últimas décadas, Habermas se concentrou em explicitar, sob variadas formas,

as implicações de uma concepção radical dos procedimentos democráticos, voltando

sua atenção maior aos graves obstáculos que representa a ausência de mecanismos

jurídicos, nacionais e supra-nacionais, para avançar mais rapidamente em direção à

efetivação de ideais solidários na economia de mercado. Por diversas vezes expressou a

sua perplexidade diante da indiferença com a qual as normas e instituições efetivamente

existentes - especialmente no plano da economia - se revelam resistentes e praticamente impermeáveis mesmo àquelas formas de ideais solidários, às quais alude o conceito de

"mercado social". É, portanto, sintomática a preocupação de Habermas com o

entrelaçamento entre liberdades democráticas, mercado social, instituições jurídicas

novas e solidariedade. Deve-se, ao menos em parte, à influência do pensamento

habermasiano o fato de que hoje se tenha tornado tão freqüente o binômio "Justiça e

Solidariedade"11

. Essa vinculação não nos remete apenas às implicações histórico-

institucionais e jurídico-normativas do tema da solidariedade. Para Habermas, no cerne

desse binômio deve ser colocado um dos seus temas mais fortes, e que é antropológico

e ético, e não apenas normativo-jurídico, a saber: "a inclusão do outro"12

.

Liberal já detesta crueldade e miséria? (O neo-pragmatismo de R. Rorty)

Um dos maiores filósofos norte-americanos da atualidade, o neo-pragmatista

Richard Rorty, sustenta uma tese chocante: segundo ele, para falar significativamente da

solidariedade é melhor partir de sensibilidades empiricamente comprováveis, abandonar -

como recurso argumentativo inicial - a invocação de obrigações éticas universais e

acreditar que é possível expandir aos poucos o campo de responsabilidade moral das

pessoas. Rorty é apenas um exacerbador irônico ou, se quiserem um provocador explícito

que, no fundo, não defende nada muito diferente daquilo que muitos filósofos morais

anglo-americanos vêm propondo há bastante tempo. Cada qual a sua maneira (Wilfrid

Sellars, Annette Baier, Alasdair MacIntyre e muitos outros) questiona a força eticamente

motivadora, nas circunstâncias do mundo de hoje, do recurso a primeiros princípios (por

exemplo, a dignidade humana universal), ao universalismo ético secular kantiano (com seu

pressuposto básico do imperativo categórico), ou aos conhecidos apelos generalistas à

solidariedade tão comuns no discurso religioso.

Rorty e os demais pragmatistas geralmente não se interessam muito por polemizar

contra os que acham que devem partir sempre de primeiros princípios éticos e, portanto, de

uma visão universalista dos valores humanos básicos. Simplesmente desconfiam que esse

ponto de partida já não tem impacto motivador em grande parte de nossos contemporâneos.

E isso por vários motivos: primeiro, pela extrema dificuldade de provar a aceitabilidade

universal de semelhantes princípios, como patrimônio de pressupostos tornados óbvios para

todos, e isso em linguagem secular e sem recurso a argumentos metafísicos ou religiosos,

hoje sabidamente de baixa cotação no mundo científico. Em segundo lugar, porque os neo-

pragmatistas, como Rorty, têm um conceito peculiar de universalismo ético, ou seja, o

11

Que o documento da Igrejas alemãs de 1997, ao qual se alude mais adiante, sintomaticamente retoma. 12

HABERMAS, J. Die Einbeziehung des Anderen. Frankfurt a. M: Suhrkamp, 1997.

Page 26: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

26

único universalismo de valores que eles admitem é o que corresponde a uma tendência de

aceitação crescente de determinados valores, a partir da expansão de confianças

pragmáticas em determinados valores historicamente testados como benfazejos

(universalismo tendencial, e não de pressupostos prévios). O terceiro motivo se liga àquilo

que caracteriza propriamente a posição filosófica neo-pragmática: o esforço de estabelecer

pontos de partida para a argumentação ética desde o interior das experiências históricas

amplamente compartidas e normativamente institucionalizadas; dito em outras palavras, o

abandono da mania de querer fundamentar a ética a partir de "algo que se encontre para lá

da história e das instituições".

Este é um ponto relevante na tramação argumentativa dos neo-pragmáticos. Por isso

nos parece oportuno deter-nos um pouco mais nisso para entender melhor a forma - um

tanto paradoxal para muitos - como Rorty cria a sua ponte peculiar com o tema da

solidariedade. Para isso precisamos invocar diversas citações. Rorty começa desmontando,

com laivos de ironia, a argumentação essencialista e ontológica daqueles que inventam um

caminho fácil para poder desprezar os que se comportam de maneira "desumana", dando

por suposto que se trata de pessoas que deixaram de ser humanamente "normais". Supõe-se

- falsamente, segundo Rorty - que ao público do Coliseu, que aplaudia a matança recíproca

de gladiadores, aos guardas de Auschwitz, aos belgas e tantos outros que colaboraram com

a Gestapo, etc "faltava um componente essencial dos seres integralmente humanos...".

Rorty acha que essa é uma saída fácil demais.Todos sabemos que os seres humanos

- especialmente em conjuntos coletivos, mas também como indivíduos que estão imersos

em campos do sentido consensualmente coletivizados (nazismo, frentes de guerra, regimes

ditatoriais, sectarismos religiosos e ideológicos, hooligans, vandalismo, linchamentos, etc)

- são capazes de comportar-se com suma agressividade e crueldade. Deixam, por isso, de

ser "gente normal"? Não é melhor procurar entender por que os seres humanos chegam a

esse ponto enquanto "gente normal"?

A maneira filosófica tradicional de explicar aquilo que entendemos por

"solidariedade humana" consiste em dizer que existe algo dentro de cada um de nós

- a nossa humanidade essencial - que ressoa com a presença dessa mesma coisa

em outros seres humanos 13

.

Rorty nega que haja tal componente comum a todos os seres humanos. E o faz para

que não andemos por aí desqualificando, a todo momento, a muitas pessoas como

"desumanas", já que seu comportamento se inscreve geralmente de maneira "normal"

dentro dos seus respectivos contextos "da história e das instituições".

A nossa insistência na contingência e a nossa conseqüente oposição a idéias tais

como as de 'essência', 'natureza' e 'fundamento' tornam impossível retermos a

noção de que algumas ações e atitudes são naturalmente 'desumanas'. É que esta

insistência implica que aquilo que conta como sendo um ser humano decente seja

relativo às circunstâncias históricas, seja uma questão de consenso passageiro

quanto a saber que atitudes são normais e que práticas são justas e injustas. (...)

13

RORTY, R. Contingência, ironia e solidariedade. Lisboa: Editorial Presença, 1994. p. 235.

Page 27: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

27

A minha posição implica que os sentimentos de solidariedade dependem

necessariamente das semelhanças e das diferenças que nos surgem com destaque e

que tal destaque é função de um vocabulário final historicamente contingente. (...)

Na perspectiva que estou a apresentar, o progresso moral existe e esse progresso

vai efetivamente na direção de uma maior solidariedade humana. Mas tal

solidariedade não é pensada como sendo o reconhecimento de um eu central da

essência humana em todos os seres humanos. É antes pensada como sendo a

capacidade de ver cada vez mais diferenças tradicionais (de tribo, religião, raça,

costumes, etc.) como não importantes, em comparação com semelhanças no que

respeita à dor e à humilhação - a capacidade de pensar em pessoas muito

diferentes de nós como estando incluídas na esfera do 'nós'.

Como se percebe, Rorty aposta numa espécie de emergência lenta e gradual das

sensibilidades solidárias, cada vez mais universais, desde o interior das experiências

empíricas tornadas possíveis pelas instituições democráticas. Acredita que será por essa via

que surgirá "uma consciência política cosmopolita", e não - como supunha Kant - pela

obrigação moral do imperativo categórico, generalizado na consciência de todos pela

simples força de argumentos racionalmente admitidos. Destaquemos, aqui, a arguta

distinção: a ampliação das sensibilidades solidárias emergirá, segundo Rorty, no interior

"da história e das instituições", como fruto de experiências empíricas dos seres humanos, e

não por motivações racionais alheias ao "meramente empírico".

Como era de esperar, esse esvaziamento radical dos argumentos ontológicos e

universalistas - tão comuns ainda devido a heranças metafísicas e religiosas - recebeu

agudas críticas da mais distinta proveniência. Não poucos consideram Rorty um crente

ingênuo que projeta, sem dar-se conta, virtudes e potenciais universalizantes sobre as

instituições democráticas, até na forma frágil alcançada por elas até o presente. Além disso,

aprofunda muito pouco as supostas relações intrínsecas entre mercado e democracia. Como

poderíamos ignorar que essa vinculação se revelou historicamente mutante, frágil e, hoje

mais do que nunca, sujeita às inevitáveis questões sobre os famosos limites de ambos - os

limites do mercado excludente, os limites da democracia tutelada -, limites que exigem ser

problematizados precisamente desde o interior da própria vinculação, supostamente

espontânea, entre mercado e democracia?

Precisamos trazer aqui uma citação um tanto longa para mostrar, de forma sintética,

qual é mesmo a posição de Rorty ao polemizar contra as fundamentações universalizantes

no que diz respeito à solidariedade:

Um bom exemplo de perspectiva que o 'sistema de moralidade' faz parecer

indecente é a perspectiva traçada na primeira parte do presente livro (do de Rorty):

a perspectiva segundo a qual a idéia de uma componente humana central e

universal chamada 'razão', faculdade que seria fonte das nossas obrigações morais,

embora tenha sido muito útil na criação das sociedades democráticas modernas, é

agora uma idéia que podemos dispensar - e que se deveria dispensar, para ajudar a

concretizar a utopia liberal do terceiro capítulo. Tenho vindo a defender que as

democracias se encontram hoje em posição de afastar algumas das escadas usadas

para a sua própria construção. Outra tese central do presente livro, que parecerá

igualmente indecente àqueles que são atraídos pela pureza da moralidade, é a de

que as nossas responsabilidades para com os outros constituem apenas o lado

Page 28: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

28

público da nossa vida, lado que se encontra em concorrência com as nossas

afecções privadas e com as nossas tentativas privadas de autocriação e que não tem

nenhuma prioridade automática sobre esses motivos privados. Se tem ou não

prioridade em casos determinados é questão de deliberação, processo que

geralmente não será facilitado por se recorrer a 'primeiros princípios clássicos'. A

obrigação moral, nesta perspectiva, deve ser juntada a muitas outras

considerações, em vez de automaticamente triunfar sobre elas.

Não se deveria querer reduzir a posição de Rorty e outros neo-pragmatistas a um

relativismo pertinaz, esvaziador de valores éticos universais. Não é este o propósito deles.

Ao contrário, o que pretendem é fazer-nos ver a solidariedade como algo que se constrói e

não como algo que se encontra pronto, como predisposição supostamente natural do ser

humano. Concebem a expansão da solidariedade como algo produzido no decurso da

história, mediante consensos, normas, e instituições, e não reconhecida como fato a-

histórico. É preciso entender que, apesar de sérias discrepâncias entre Rorty e Habermas -

manifestadas inclusive em debates públicos entre eles -, existe um terreno comum, isto é, a

proposta de que os consensos em direção à solidariedade levem em conta a maneira como

os campos do sentidos se constituem historicamente.

A visão peculiar da historicidade dos processos sociais, proposta pelos neo-

pragmatistas, difere, obviamente, bastante da concepção daqueles (como as esquerdas em

geral e muitos cristãos), que pensam a historicidade como produto derivado da aguda

consciência histórica de sujeitos ético-políticos. Para estes fica sempre a difícil tarefa de

buscar onde se encontram e quem são esses sujeitos. Como é sabido, alguns os concentram

primordialmente nas vanguardas, outros os vêem emergir por todo lado desde as minorias,

e outros ainda os vislumbram em constructos bastante abstratos como "classes populares",

"sociedade civil" (alguns poucos persistem no mito do "proletariado").

Rorty destaca um ponto de partida desagradável para muitos e o denomina "ironia

liberal", ou seja, ele acha que tem relevância histórica indiscutível, para a evolução futura

das instituições democráticas e da economia de mercado, o fato de que a ética liberal se

tenha tornado, aos poucos, agudamente sensível contra a prática da crueldade (tortura,

maus tratos a crianças e mulheres, formas cruéis de exclusão, etc.). Entenda-se bem: ele não

está ironizando nada, nem diz que os liberais têm comportamento irônico (ou cínico).

Simplesmente quer nos fazer entender que estamos presenciando uma ironia da história,

que consistiria no fato de que os seres humanos melhoram eticamente, não tanto por força

de princípios éticos racionais e abstratos, mas em virtude de uma lenta e efetiva

transformação das sensibilidades humanas.

Em resumo, depois de milênios de crueldades e brutalidades humanas de todo tipo,

hoje os liberais já teriam adquirido um nojo visceral e somatizado em relação a algumas

formas de crueldade e violência, e isso deveria ser apreciado como um progresso ético

historicamente promissor em direção ao aumento da solidariedade no mundo, podendo

inclusive servir de suporte articulador para estratégias solidárias cada vez mais eficientes e

universais. É isso, no fundo, que Rorty nos quer incutir com a sua insistência na

contingência histórica dos comportamentos humanos, cuja melhoria não se apoia em

primeiro lugar, segundo ele, em "algo que se encontre para lá da história e das

instituições". Dito isso, talvez adquira sabor especial a seguinte citação:

Page 29: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

29

... a minha posição não é incompatível com defender que tentemos alargar o nosso

sentido do 'nós' a pessoas em que anteriormente pensávamos como sendo 'eles'.

Esta posição, característica dos liberais, pessoas que têm mais medo de ser cruéis

do que qualquer outra coisa, não assenta em nada de mais profundo que as

contingências históricas a que me referi no final do quarto capítulo. Trata-se das

contingências que deram origem ao desenvolvimento de vocabulários morais e

políticos típicos das sociedades democráticas secularizadas do Ocidente. À medida

que esse vocabulário foi gradualmente tornado não teológico e não filosófico, a

'solidariedade humana' emergiu como recurso retórico poderoso. Não é meu desejo

diminuir o seu poder, mas apenas separá-lo daquilo que muitas vezes se pensou

serem os seus 'pressupostos filosóficos' 14

'.

Solidariedade mecânica - solidariedade orgânica (Émile Durkheim)

Mais que embaralhar os tempos, é os conceitos que nos interessa evocar e

desembaralhar. Afinal, os tempos de Émile Durkheim (1858-1917) foram outros que os

nossos. Pensador francês, um dos pais fundadores da sociologia, fortemente influenciado

pelo positivismo de Comte e pelo organicismo social de Spencer, enfim, que aspecto do seu

pensamento vale a pena recordar justamente aqui? Para ir diretamente ao ponto que nos

interessa, cremos que há algo nas elucubrações durkheimianas sobre as diversas formas da

solidariedade - especialmente sua nota a distinção entre solidariedade mecânica e

solidariedade orgânica - que ainda hoje pode servir de instigação para discernir

acontecimentos atuais.

Não se trata de assumir e transpor, sem mais, para hoje os seus conceitos, eivados

de excessivas marcas do seu positivismo e suas crenças e entusiasmos peculiares.

Durkheim, assim como os positivistas de antanho em geral, nutria a convicção de que o

avanço da ciência, a modernização do Direito e a crescente industrialização seriam os

vetores confiáveis e seguros do progresso. Distinguiu-se, no entanto, do positivismo

comteano por sua visão peculiar dos ingredientes da coesão social. Conferiu importância

especial às convicções éticas e inclusive ao fator religioso na integração da sociedade. Para

entendê-lo melhor, é preciso situar seu pensamento no contexto de uma França de final do

século XIX, que tentava recuperar seu atraso na industrialização.

Durkheim projetou verdadeiro entusiasmo sobre o que ele via como fonte de uma

dinâmica coesionadora: a empresa industrial. Não a via primeiramente como divisora de

classes sociais antagônicas. Ele a comparava com organismos integradores. Os marxistas

nunca lhe perdoaram que, em lugar da divisão social do trabalho capitalista, ele invertesse o

eixo desse conceito, na sua obra famosa Da Divisão do Trabalho Social (1893)15

. Sem esse

mínimo de contextualização não faria muito sentido relembrar aqui suas famosas distinções

acerca da solidariedade. Auguste Comte (1798-1857), o pai do positivismo, já havia usado

o termo solidariedade. Durkheim o transforma em noção básica da sua teoria da coesão

social.

14

As várias citações acima se encontram, na ordem em que são apresentadas, em RORTY, R. op cit., páginas:

235, 238, 239, 241 e 239. 15

DURKHEIM, Émile. Da divisão do trabalho social. São Paulo: Martins Fontes, 2ª ed., 1999.

Page 30: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

30

Via o conjunto da sociedade e cada um de seus setores parcialmente autônomos (a

economia, a política e a cultura) como vetores convergentes de solidariedade. Isso explica

por que criou um conceito - o de solidariedade mecânica - para descrever e criticar os

processos de excessiva autonomização no todo social, e outro conceito - o de solidariedade

orgânica - para exaltar as dinâmicas de convergência nesse todo. Essa concepção tem,

evidentemente, a marca de um organicismo quase mecanicista, e até de darwinismo social.

Por outro lado, porém, o pensamento Durkheim teve a virtude de antecipar reflexões, que

rebrotam no esforço atual de chegar a uma visão integrada de todas as ciências da vida - as

biológicas e as humanas e sociais. Isso de fato está acontecendo sob nossos olhos, com a

teoria da complexidade e a migração transdisciplinar de conceitos como auto-organização,

autopoiése e níveis emergentes. Para comprovar essa persistência de uma herança teórica

durkheimiana valha a seguinte citação:

Estimulados pelos descobrimentos recentes das Ciências Cognitivas -

especialmente pelos modelos de processamento paralelo amplamente distribuído e

pelos modelos de redes neurais - muitos antropólogos estão retomando antigas

questões de Durkheim e Saussure em relação à, natureza, origem e persistência de

representações coletivas, isto é, formas culturais e estandardizadas de

conhecimento e compreensão. Voltou-se a reexaminar a maneira como o

conhecimento cultural e lingüístico é aprendido, organizado e compartido, sem que

seja explicitamente ensinado. A atenção se volta para os processos mediante os

quais semelhante conhecimento coletivo é criado de forma coletiva - uma espécie

de divisão do trabalho intelectual à maneira durkheimiana...

[O avanço das ciências cognitivas e seu enlace com as biociências permite analisar, hoje,

esses fenômenos sócio-culturais, aos quais Pierre Lévy gosta de aplicar o conceito de

"inteligência coletiva", com os novos conceitos de emergência e auto-organização, -

Comentário nosso.]

A natureza particular da sociabilidade humana - o sentido peculiar no qual

os humanos podem ser caracterizados como animais sociais -, entrelaçando

disposições inatas e capacidades adquiridas, são a base para os processos de

flexibilidade cultural e organizacional. (...) Cresce a preocupação dos antropólogos

com novas maneiras de analisar as representações coletivas enquanto propriedadas

emergentes. A cultura é um sistema complexo que está constantemente mudando e

evoluindo como resposta às mudanças do seu meio ambiente social e material. (...)

...os humanos foram criando, de forma auto-consciente, sistemas referenciais

complexos que funcionam como campos de metalinguagem e estruturação do

sentido das linguagens e dos gestos cotidianos.(...) ...continua em aberto a pesquisa

de relevantes questões biológicas, que precisam ser aprofundadas para entender

melhor a capacidade da nossa espécie para criar e usar tais sistemas de

conhecimento coletivo culturalmente distribuídos e individualmente apropriáveis,

por via, muitas vezes dos simples hábitos cotidianos e não sempre de maneira

consciente...16

16

Culture as Distributed Cognition. American Anthropological Association Meetings, 1996. Destaque nosso.

Resumimos o texto disponível na Internet, junho/2000.

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31

Das distinções durkheimianas acerca da solidariedade (das quais faremos uma mini

síntese logo a seguir)17

talvez valesse a pena reter ao menos dois elementos: primeiro, que a

solidariedade básica de qualquer sociedade deve expressar-se numa normatividade

socialmente confiável (aspecto que, aliás, também é fundamental no pensamento de

Habermas e Rorty); e, segundo, que continua útil um conceito como o de solidariedade

mecânica, para avaliar e, quando conveniente, criticar resistências corporativistas à

transformação da sociedade, mostrando que são anti-solidárias na perspectiva do todo

social. Os dois aspectos nos parecem extremamente atuais para a conjuntura do Brasil de

hoje.

Solidariedade Mecânica

A cooperação automática, rígida, funcional entre

semelhantes. A metáfora-guia é a da máquina.

Émile Durkheim aplica esse conceito ao

funcionamento de organizações sociais regidas

por programas, regras, doutrinas e

comportamentos relativamente rígidos. Utiliza o

conceito de forma crítica para referir-se a

organizações excessivamente burocratizadas e

emperradas. Utiliza-o também para analisar

tendências para a rigidez doutrinária e

comportamental em partidos, sindicatos, grupos

étnicos, frentes de luta organizada, movimentos,

etc. Confere a este conceito uma forte

característica jurídica enormativa. A ruptura das

normas de comportamento e o abandono de

convicções e acordos grupais são vistos pelo

grupo como ruptura da solidariedade, mesmo

quando esteja em jogo alguma vantagem ou

desvantagem dos indivíduos. O limite referencial

é a figura do crime: a ruptura da solidariedade

mecânica constitui um crime em relação aos

comportamentos anteriormente consensuais. Um

exemplo de solidariedade mecânica é o que hoje

denominamos corporativismo. Muitas

organizações profissionais ou de classe se regem

fundamentalmente por regras de consenso que

representam um conjunto de mecanismos de

defesa de interesses do grupo em referência. A

solidariedade mecânica é um fato social

fundamentalmente positivo, integrado no

princípio de subsidiariedade, que se refere às

autonomias relativas dos grupos sociais dentro

do todo social. Mas quando a solidariedade

mecânica se exacerba sob a forma de

corporativismos grupais, que se opõe a interesses

Solidariedade Orgânica A cooperação viva e dinâmica entre diferentes;

já que não é automática, ela nunca está feita e

pronta, mas sempre está sendo construída e

depende de negociações e entendimentos. A

metáfora para esse conceito é a do organismo

vivo. É o conceito que Émile Durkheim

elaborou para referir-se aos mais variados

entrelaçamentos cooperativos na coesão social.

Nele se incluem também os aspectos jurídicos e

os consensos ancorados em normas

publicamente estabelecidas. A referência básica

da solidariedade orgânica é a coesão social, que

deve ser, segundo Durkheim - uma dinâmica de

convergências. Esta se ancora fundamentalmente

em fenômenos sócio-culturais. Os fatores de

coesão social se alimentam de um espírito de

cooperação a cujo serviço estão os poderes

públicos e os diversos níveis do sistema jurídico.

A solidariedade orgânica precisa das regras e

poderes da sociedade para superar os conflitos.

Mas ela se alimenta e orienta basicamente não

por essas regras, que apenas lhe servem para

vigiar seus limites. Orienta-se e se nutre de um

conjunto de crenças e consensos em relação a

um projeto solidário da sociedade como um

todo. Um dos aspectos mais freqüentemente

criticados no conceito durkheimiano de

solidariedade orgânica, é seu organicismo. Trata-

se de uma determinada concepção dinâmica da

normatividade social e do jogo de

representatividades, que implica numa filosofia

do direito e numa concepção da democracia

bastante exigentes e radicais. Muitos enxergam

dois aspectos críticos no conceito durkheimiano

de solidariedade orgânica: primeiro, os laivos

17

Para uma exposição mais detalhada ver: CACCIA-BAVA Jr., A lógica e o estilo em Da divisão do

trabalho social de Émile Durkheim. Texto disponível na Internet (Estudos de Sociologia nº 1).

Page 32: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

32

de outros grupos sociais ou do conjunto da

sociedade, ele se transforma em fator conflitivo e

virtualmente anti-solidário. Foi Durkheim quem

analisou mais detalhadamente o potencial

positivo e negativo das formas de solidariedade

mecânica. Muitos dos exemplos que ele dá se

referem a tipos de organização social presentes

nas sociedades européias na virada para o século

XX. A ênfase durkheimiana nos aspectos

nocivos e nas insuficiências da solidariedade

mecânica se deve, em boa medida, à necessidade

de contrapor teoricamente o conceito de

solidariedade mecânica ao de solidariedade

orgânica que constitui um elemento central da

visão de coesão social que Durkheim defende.

Como se percebe, trata-se da contraposição de

duas metáforas, a da rigidez da máquina contra a

dinâmica dos processos vivos.

utópicos desse conceito; segundo, a limitação

dos exemplos de normas jurídicas e de

ingredientes da dinâmica social, que ele

apresenta. O mundo e as sociedades se tornaram

efetivamente muito mais complexos ao longo do

século XX, no qual duas guerras mundiais,

diversas formas de fascismo, graves crises

econômicas e a fragilidade da democracia nos

foram mostrando que é difícil conceber uma

visão unificada dos conjuntos sociais mediante a

metáfora excessivamente simplista de um

organismo cooperativo. Os que retomam hoje o

conceito durkheimiano de solidariedade orgânica

apontam seus limites, buscando inseri-lo numa

visão de complexidades múltiplas e entrelaçadas.

Cabe investigar até que ponto o conceito

durkheimiano de solidariedade orgânica é ainda

condizente com uma teoria de sistemas

complexos e adaptativos. Enquanto conceito

crítico, que denuncia os limites da solidariedade

mecânica, ele parece conservar alguma serventia

analítica.

Desafio da inclusão e solidariedade (Banco Mundial e FMI)

O tema da solidariedade e da inclusão social não é mais uma exclusividade dos

intelectuais ou dos organismos ou militantes sociais, mas também já faz parte do discurso

oficial do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional. No final de setembro de

1999, jornais de todo mundo anunciaram atônitos que o diretor-geral do FMI., na

assembléia geral da instituição, conclamara os países membros e à sua direção a ouvirem e

a responderem aos “clamores dos pobres” (um tema que foi muito trabalhado pelos

teólogos da libertação na América Latina). Para Camdessus, apesar do aumento de índices

sociais em países nos quais o FMI havia apoiado programas educacionais e na área de

saúde, “as vozes dos pobres espalhados pelo mundo estão nos dizendo em termos claros

que não é suficiente”.18

No dia seguinte, diante de uma interpretação tendendo a social-democracia do seu

discurso, ele lembrou aos jornalistas que esta preocupação social não significava o

abandono dos programas de ajustes econômicos dos países em desenvolvimento ou pobres.

Ele relembrou o que já havia dito no seu discurso:

Nós sabemos os ingredientes [para o crescimento econômico com desenvolvimento

social]: condições macroeconômicas estáveis, uma economia de mercado aberta e

eficiente, uma estrutura que incentive os investimentos privados, e, sim,

18

Address by Michel Camdessus, to the Board of Governors of the Fund. Washington, D.C., September 28,

1999. Disponível na Internet, junho/2000.

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33

transaparência, estabilidade no setor financeiro, instituições econômicas

robustas.19

.

Contudo, apesar de um certo desencanto dos jornalistas e daqueles que acreditavam

que finalmente que o FMI iria começar a se preocupar seriamente com questões sociais, o

tema dos problemas sociais foi introduzido na pauta de discussão da alta esfera do FMI.

Camdessus já havia tocado neste tema alguns anos antes, em um encontro não

oficial. Convidado a dar uma palestra no Congresso Nacional CFPC (Associação Francesa

de Dirigentes Cristãos de Empresas), em março de 1992, ele disse o seguinte:

Vocês são membros de mercado e de empresa, em busca de eficácia para a

solidariedade. O Fundo Monetário Internacional foi criado para pôr a

solidariedade internacional ao serviço dos países em crise que se esforçam por

tornar suas economias mas eficazes. A busca da eficácia em e pelo mercado, e

vocês sabem, como eu, quão relacionadas estão eficácia e solidariedade: estamos

no mesmo terreno.20

Não cabe, neste momento, fazer comentários críticos a estes textos. Mas queremos

só destacar como a solidariedade social está reduzida à questão da eficácia econômica. Isto

é, o FMI continua acreditando que a solidariedade só é possível através dos mecanismos de

livre mercado e identifica a solidariedade com a eficiência no e do mercado Em todo caso,

é importante notar que esse tema da solidariedade, que só tinha aparecido no discurso de

Camdessus em conferências “privadas”, isto é, quando não falava como o diretor-geral do

FMI para a própria instituição ou para instituições e governos parceiros, começa a fazer

parte do vocabulário dessa instituição multilateral nos últimos tempos. Na conferência feita

na Assembléia de 1999, a palavra solidariedade ainda não aparece. Mas, já no mês seguinte,

em outubro de 1999, falando à Junta Confederativa da Confederação Mundial do Trabalho,

em Washington, ele diz:

[...] os valores que permitem humanizar um mundo que está em busca de sua

unidade e que permitirão por sua vez o reencontro de todos os homens. Destes

valores mencionarei três, muito relacionados entre si: responsabilidade,

solidariedade e espírito cívico. [...] Solidariedade porque indubitavelmente o

avanço na luta contra a pobreza exige um esforço internacional de grande

envergadura, empreendido com espírito solidário.21

Logo depois, dirigindo-se ao Instituto de Estudos Superiores da Empresa (IESE), da

Espanha, o diretor-geral do FMI faz uma afirmação ainda mais categórica:

A tarefa é decididamente monumental. Somos a primeira geração na história

chamada a organizar e administrar o mundo, não desde uma posição de força como

19

Idem, loc. cit. 20

Documents Episcopat: Bolletin du Secrétariat de la Conférence des Évêques de France, n. 12, jul-

ago/1992, p. 1.

21 CAMDESSUS, M. Cómo reforzar el vínculo entre lo económico y lo social en el marco de una economía

globalizada. Washington, 26/10/1999. Disponível na internet, junho/2000.

Page 34: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

34

a de Alexandre, o César ou os aliados ao término da Segunda Guerra Mundial,

senão através do reconhecimento das responsabilidades universais de todos os

povos, da igualdade de direitos ao desenvolvimento social e do dever universal de

solidariedade.22

Além desse conceito de solidariedade, que começou a aparecer mais recentemente,

o FMI utiliza mais freqüentemente a expressão “igualdade social” ou congêneres no seu

discurso em favor da superação da pobreza no mundo.

O Banco Mundial, por sua vez, quase não utiliza o termo solidariedade, preferindo a

expressão “justiça social” e o termo “inclusão”. Na verdade, o Banco Mundial começou a

tratar desse tema de modo mais explícito antes do FMI. Já em setembro de 1997, no seu

discurso à Assembléia dos Governadores, o presidente do Banco Mundial, James

Wolfensohn, disse:

Quando descia aquele morro, voltando daquela favela, percebi que este é o desafio

do desenvolvimento - inclusão. Trazer as pessoas para uma sociedade da qual elas

nunca fizeram parte até agora. É para isto que o Grupo do Banco Mundial existe. É

para isto que todos nós estamos aqui hoje. Para ajudar que isto aconteça para o

povo. [...]

Este - o desafio da inclusão - é o principal desafio do desenvolvimento em nossa

era. [...]

Quero ser muito claro neste aspecto. Não estou advogando uma teoria darwiniana

de desenvolvimento, mediante a qual se abandonam os menos capazes pelo

caminho. Muito pelo contrário. A nossa meta é apoiar os capacitados e ajudar os

incapacitados a se capacitarem. Tudo isso tem a ver com a inclusão.23

No ano seguinte, na Cúpula das Américas, em Chile, ele propunha o fim do assim

chamado “Consenso de Washington” e a sua substituição pelo “Consenso de Chile”,

Este novo consenso é baseado no reconhecimento da suprema importância do que

eu chamei alguns meses atrás, em Hong-Kong, ―O desafio da inclusão‖ – o desafio

de garantir que progresso econômico possa tornar-se uma realidade na vida de

todo o povo desta região, especialmente dezenas de milhões que ainda até agora

foram deixados para trás.24

Trabalhando em sintonia com o Banco Mundial, o Banco Interamericano de

Desenvolvimento (BID) tem defendido uma tese que vale a pena citar aqui. Nancy Birdsall,

a vice-presidenta da BID, diz que a desigualdade latino-americana tornou-se uma

desigualdade destrutiva. Ela, baseando-se estudos apoiados pelo BID e pelo BM, distingue

dois tipos de desigualdade de renda: a construtiva e a destrutiva. A construtiva seria uma

22

Idem, De las crisis de los años noventa al próximo milenio. Madri, 27/11/99. Disponível na Internet,

junho/00. 23

WOLFENSOHN, James D.. Discurso à Assembléia de Governadores. Hong-Kong, 23/09/97. Disponível

na Internet, jun/00. 24

Idem, The Santiago Consensus — From Vision to Reality. Speech to the Summit of the Americas. Santiago,

19/04/98. Disponível na Internet, junho/00.

Page 35: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

35

desigualdade que levaria ao aumento da eficiência econômica por refletir um conjunto de

incentivos que encoraja inovação e trabalho duro. Enquanto que a desigualdade destrutiva,

como a que existe na América Latina, não levaria ao crescimento econômico porque produz

incentivos perversos: os pobres são excluídos enquanto os ricos se beneficiam de

privilégios e da renda.25

A diminuição da desigualdade social e a integração social dos/as atualmente

excluídos/as passou a ser considerado pelo BID e por outros organismos como uma

exigência para o crescimento econômico sustentado e para a manutenção do tecido social.

O que antes era considerado uma mera exigência ética, começa a ser visto agora como uma

exigência sistêmica, isto é, necessária para uma reprodução e desenvolvimento do próprio

sistema.

Esta nova mentalidade também está chegando no meio dos empresários. Para não

alongarmos demasiadamente esta seção, vamos somente citar um trecho de uma coluna da

revista Exame:

Essas simplificações históricas servem para mostrar o tamanho do desafio que

ainda existe na sociedade e no mercado: 500 anos de exclusão. [...] a consciência

mais avançada hoje, em parcelas significativas do empresariado e da população em

geral, de que a exclusão social é gerada por problemas na estrutura do país, e não

por culpas individuais ou étnicas, está dando origem a ações que visam dar

igualdade de oportunidades a mais pessoas. Do ponto de vista empresarial, é a

chamada ‗responsabilidade social‘, que passa gradualmente a ser exigida pelos

próprios consumidores. Recentemente, a manchete de um jornal econômico

indicava que ações sociais das empresas têm reflexo positivo na aceitação de seus

produtos.26

É claro que esses discursos não expressam necessariamente uma verdadeira intenção

solidária. Contudo, já é uma amostra de que o nível de tolerância da sociedade frente aos

problemas sociais dos setores mais pobres diminuiu e os problemas aumentaram a tal ponto

que nem essas instituições multilaterais pouco afeitas a esses temas, especialmente o FMI, e

setores do empresariado podem deixar de falar em solidariedade ou justiça social.

Intimações à Solidariedade (Clube de Roma, igrejas, ONGs, Economia Solidária)

1. O Clube de Roma

Logo após o colapso dos socialismos "reais", o renomado Clube de Roma divulgou

mais um de seus documentos preocupados com a crise mundial e as alternativas plausíveis:

A Primeira Revolução Global (1991)27

. Vale a pena recordar o enorme impacto que tiveram

alguns dos anteriores posicionamentos do Clube de Roma, como o sobre os Limites do

Crescimento (1972) e o relacionado com a necessidade de uma profunda redefinição do

25

BIRDSALL, N. Remarks On Equity Issues in a Globalizing World. IMF Conference On Economic Policy and

Equity, Washington, D.C., June 8th, 1998. Disponível na internet, junho/00. 26

FRANCO, Simon. “Combata o preconceito”. Exame. São Paulo, 28/06/00, p. 131. 27

KING, A. & SCHNEIDER, B. The First Global Revolution - a report by the Council of the Club of Rome -.

New York: Pantheon Books, 1991.

Page 36: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

36

papel da educação no mundo de hoje, Aprender Sem Limites (1979) 28

. Nesse se antecipam,

em mais de 20 anos, as posições finalmente assumidas pela UNESCO e pelas reformas

educacionais em muitos países, inclusive o Brasil (cf. PCNs, etc).

Intimações à solidariedade é o título contundente do capítulo 6 desse documento. A

percepção da situação do mundo, por esse prestigiado grupo de espertos, incluía, entre seus

vários elementos, os seguintes, a grande tentação - cada vez mais explícita nas tendências

neoliberais - de jogar todo o peso ideológico sobre o mito redentor do crescimento

econômico; a presença de um Vacuum, ou seja, o fosso geralmente silenciado nos mais

solenes documentos econômicos e políticos, e que se evidenciava como um abismo cada

vez maior entre ricos e pobres, tanto no plano das nações como no plano dos indivíduos;

uma sensação crescente de Human Malaise, isto é, um mal-estar e uma sensação

generalizada de que há algo de profundamente equivocado no modo como se estão

enfrentando os desafios maiores do planeta.

É no centro desse cenário que o Clube de Roma situou a sua linguagem insistente

acerca da solidariedade. Trata-se portanto, de um princípio ou fonte de critérios vistos

como elemento decisivo para o futuro da humanidade. O contexto mundial se

evidenciava como inédito.

"...algo inteiramente novo... algo para além de tudo que se pudesse haver

imaginado uma década atrás". "... o futuro da humanidade continua promissor se

ela tiver a sabedoria de enfrentar os problemas...ainda acreditamos nisso, mas o

tempo está ficando curto".

Parafraseando frases de Harrison Brown, o documento sintetiza da seguinte forma

as três possibilidades que a humanidade tinha pela frente: 1) uma autodestruição desvairada

através de enfrentamentos bélicos, incluindo uma eventual guerra nuclear; 2) a

multiplicação e a convergência de milhares de iniciativas inovadoras e alternativas em

relação às tendências preponderantes na economia mundial e 3) a grande omissão - o mais

provável -, ou seja, deixar as coisas acontecerem em direção a uma deterioração crescente,

na qual "os pobres 'herdarão' a terra e viverão em miséria para sempre".

Na tentativa de reunir elementos para não desesperar, o Clube de Roma tenta

preencher sua noção de solidariedade de elementos esperançadores:

É previsível que, aos poucos, se entenda que o crescimento econômico precisa ser submetido a critérios de efetiva universalização do acesso aos bens e serviços.

Expandem-se mundo afora as iniciativas que de fato operam com novos critérios

solidários (ONGs, iniciativas comunitárias, retorno à demanda explícita de políticas

públicas relativas à sustentabilidade social do desenvolvimento).

Lento decréscimo de alguns indicadores negativos como taxas de mortalidade infantil, analfabetismo, explosão demográfica, desnutrição extrema (com a exceção de vários

bolsões persistentes).

Algum progresso no que se refere à opressão da mulher, embora continue predominando o chovinismo masculino.

28

O Clube de Roma é uma entidade internacional independente de cunho transdisciplinar, composta por

intelectuais de renome, com vínculos não oficiais com líderes social-democratas da Europa e do mundo.

Criado no final da década de 1960, tornou-se famoso por seus pronunciamentos sobre problemas de alcance

mundial.

Page 37: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

37

A importância decisiva da mulher e dos jovens, como referencial de critérios e

articulação de iniciativas, na perspectiva de uma solidariedade planetária.

Gostaríamos de expressar não apenas nossa convicção de que este último tópico é de

extrema relevância, mas de pedir excusas por não tratarmos extensamente deste assunto

neste livro. Dado o curto lapso da pesquisa para este escrito, e dado o nosso despreparo

para aprofundar essa temática, preferimos deixá-la insinuada como referencial de fundo em

dois momentos: na discussão sobre a dimensão não-competitiva do desejo, onde

sublinhamos o valor paradigmático da relação mãe-criança, e no destaque dado ao papel da

mulher no conceito de Neotenia e na metáfora de uma Segunda Neotenia, no final deste livro.

2. Igrejas

A linguagem sobre a solidariedade é sumamente freqüente também nos documentos

da Igreja Católica, do Conselho Mundial de Igrejas e especialmente dos bispos latino-

americanos. Não é nossa intenção analisar mais detidamente as características peculiares

que o discurso sobre a solidariedade adquire nessas instâncias eclesiásticas. Como é sabido,

a repercussão de documentos desse gênero é bastante limitada na mídia secular em geral. O

que mais nos interessa destacar neste livro, que busca voltar-se prioritariamente para

linguagens pedagogicamente relevantes acerca da sensibilidade solidária, é a maneira como

as áreas de igreja estabelecem interrelações temáticas, a forma na qual criam binômios ou

trinômios de termos juntados em formulações bastante peculiares e, sobretudo os saltos ou

curtos-circuitos que operam nessas linguagens.

Os entrelaçamentos temáticos e a aproximação de vários termos numa única

expressão não são exclusividade dessas instâncias religiosas.Trata-se de um fenômeno

bastante usual também na retórica secular, sobretudo de documentos de alcance

internacional. Mas as áreas religiosas parecem particularmente proclives a fazer esse tipo

de junções. Um tema de fundo - que exigirá posteriores retomadas, quando falarmos da

relação entre princípios organizativos e princípios éticos - é o do potencial prático e

operacional desse tipo de linguagens generalizantes. Tem-se a impressão de que aqueles

que as elaboram e utilizam talvez suponham - equivocadamente - que essas linguagens

contenham sugestões diretamente ligáveis aos níveis operacionais da economia, da política

e da educação, como se já fossem, em si mesmas, princípios organizativos da dinâmica

social. Quanto a isso, nos parece de suma importância prevenir que os apelos éticos só

adquirem potencial estruturante de ações e processos sociais na medida em que são

introduzidos vitalmente em formas de pensamento estratégico e operacional.

EXEMPLO (I)

Doc. da Campanha da Fraternidade/1999 - Desempregados, Parte II - Julgar29

Expressões típicas

sociedade justa e solidária

Frases-amostra - A solidariedade se assenta sobre a dignidade da

pessoa, seja ou não produtora.

- A solidariedade com os pobres é o centro e pedra de

29

Texto ainda disponível na Internet, junho/2000.

Page 38: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

38

justiça e solidariedade

globalização e solidariedade

cultura da solidariedade

cultura da solidariedade, da sobriedade e da

subsidiariedade

uma nova sensibilidade

dignidade da pessoa e solidariedade

modelo da sociedade sem exclusão

toque fundamental de toda cultura.

- É urgente enfrentar esta cultura de egoísmo e

consumismo com uma outra cultura. Estamos falando

da cultura da solidariedade, da sobriedade e da

subsidiariedade. Ela é a favor da vida e da dignidade

humana, de uma sociedade justa e solidária, e a favor

do meio ambiente preservado. Torna possível um

projeto político democrático e solidário. Coloca em

primeiro lugar a pessoa humana em suas relações

fraternas, e coloca a economia e o mercado a serviço

da superação da pobreza.

- Pequenas organizações solidárias vão nascendo e

se somando, se articulando, construindo laços de

fraternidade e de cooperação. Dando importância a

valores éticos, elas vão forçando o Estado e as

empresas a se humanizarem. (...) globalizar a justiça,

a solidariedade, a subsidiariedade, as iniciativas e os

sonhos que concretizam a caminhada rumo a esta

nova sociedade.

Critérios para uma sociedade justa e solidária

- Jesus Cristo, modelo da sociedade sem exclusão

- As lições bíblicas do sétimo dia e do Jubileu

- Os critérios do Reino de Deus para a nova

sociedade

- O critério da misericórdia libertadora

- O critério da "opção preferencial pelos pobres" - O critério da conversão

Nosso comentário Tem-se a impressão de que os autores desse tipo de

linguagem supõem que é possível dar um salto direto

da linguagem ética para o plano operacional. Se não

fosse assim, não apelariam para uma suposta ponte

direta entre seus critérios e o tipo de sociedade que

propõem. Os critérios éticos, e o próprio Jesus Cristo,

são colocados em conexão direta, supostamente

operacionável de forma imediata e sem outras

mediações. Por isso, também supostamente, poderiam

ser cobrados diretamente às consciências.

EXEMPLO (II)

Bispos do Brasil, Brasil – 500 anos - Diálogo e Esperança30

Expressões típicas

uma globalização da solidariedade

comunhão e solidariedade

fraternidade e solidariedade

solidariedade e zelo missionário

solidariedade irrestrita com todos os que

amam nossa Pátria

Frase-amostra A tecnologia oferece-nos, hoje, uma nova e

extraordinária possibilidade de solidariedade

humana. Há, todavia, na globalização o perigo de se

perder a identidade e soberania do País. É necessário

distinguir...entre uma globalização econômica

dirigida só pela lei do mercado, aplicada conforme a

conveniência dos mais poderosos, e uma

globalização da solidariedade, que deve ser

incentivada (n. 24).

EXEMPLO (III)

BISPOS do México: Del Encuentro con Jesucristo a la Solidaridad con Todos31

30

Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, Brasil – 500 anos - Diálogo e Esperança - Carta à sociedade

brasileira e às nossas comunidades. (38ª Assembléia Geral. Porto Seguro - BA, 26 de abril a 03 de maio de

2000).

Page 39: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

39

Expressões típicas Crear modelos económicos solidarios

neoliberalismo: un sistema insolidario

la solidaridad como respuesta a los desafíos

de nuestra Nación.

"cultura globalizada de la solidaridad"32

solidaridad en situaciones de emergencia.

la solidaridad y la misión

la construcción de una cultura globalizada de

la solidaridad.

la permanente solidaridad con todos,

especialmente con los más pobre

incremento de la cultura de la solidaridad.

Una Iglesia que afirma la comunión y la

solidaridad

Una Iglesia solidaria que sirve a todos

la solidaridad con todos los hombres

Frases-amostra

...reconocer y vivir la solidaridad que une a todos los

seres humanos en una misma condición, origen y

destino, en la única redención de Cristo y en la

comunión de los santos, la solidaridad como respuesta

a los desafíos que presentan la nueva evangelización

y la globalización.

...cuando la solidaridad se establece como un modo

habitual de acción que dinamiza las relaciones

sociales, podemos hablar de que la cultura de la

solidaridad ha surgido. La solidaridad tiene que

trascender las iniciativas meramente momentáneas

para que funja realmente como sostén de la sociedad

como sujeto. Este es el camino para que una cultura y

una civilización basadas en el amor sean posibles

dentro de la historia.

El propósito central ...consiste en mostrar cómo la

solidaridad cristiana es cimiento para la

construcción de la ―subjetividad social‖

Outros destaques desse documento

El desarrollo integral que necesita un pueblo no se puede ni debe reducir al puro desarrollo económico

aunque lo incluya33

. Sostener esto sería caer en un “ingenuo optimismo mecanicista” propio de filosofías

“de tipo iluminista”34

.

Las políticas económicas llamadas neoliberales atribuyen un papel central y casi redentor a la dinámica

del mercado. Desde el punto de vista de las exigencias de la dignidad humana un modelo económico así

es del todo inadecuado. La Doctrina Social de la Iglesia no reprueba la economía de mercado, pero

exige el respeto a la persona humana, a su dignidad y libertad, al destino universal de los bienes, al

legítimo derecho a la propiedad, a la sana competencia y a la solidaridad. Excluye, por tanto, el

consumo indiscriminado y la falta de respeto al medio ambiente.

Las economías centralmente planificadas fracasaron estrepitosamente tanto por su falta de efectividad

como por su deficiente antropología35

. Por ello, es necesario también evitar estos dos errores en las

nuevas economías de mercado que, colocando como criterio fundamental la lógica del intercambio,

vulneran gravemente dimensiones de la persona humana que se encuentran regidas por otro tipo de

criterios entre los cuales se hallan los relacionados con la solidaridad y la gratuidad para con los más

débiles.

...democracia: un entramado institucional y cultural fundado en valores y principios basados en la

dignidad humana.

Juan Pablo II afirma que “la economía globalizada debe ser analizada a la luz de los principios de la

justicia social, respetando la opción preferencial por los pobres”:36

31

BISPOS do México, CARTA PASTORAL: Del Encuentro con Jesucristo a la Solidaridad con Todos.

México, D. F., 25 de marzo de 2000 - Disponível na Internet, jun/00. Este documento é sócio-politicamente

significativo tendo em vista a crise que assola esse país e a do PRI. 32

Juan Pablo II, Ecclesia in America, n. 55 33

“Si el desarrollo tiene una necesaria dimensión económica, puesto que debe procurar al mayor número

posible de habitantes del mundo la disponibilidad de bienes indispensables para «ser», sin embargo, no se

agota con esta dimensión.” Juan Pablo II, Sollicitudo Rei Socialis, n. 28. 34

Juan Pablo II, Sollicitudo Rei Socialis, n. 27. 35

Cf. Juan Pablo II, Centesimus Annus, n.n. 13, 23 y 24. 36

Juan Pablo II, Ecclesia in America, n. 55.

Page 40: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

40

EXEMPLO (IV)

Conselho da Igreja Evangélica da Alemanha e a Conferência Episcopal Alemã

Por um Futuro com Solidariedade e Justiça37

Expressão-guia

Solidariedade e Justiça (mais de uma dezena de vezes)

A Solidariedade e a Justiça...devem ser

entendidas em dimensões mundiais.

Frases-amostra - As igrejas assumem a posição de que a

solidariedade e a justiça, enquanto critérios para

uma política econômica e social viável e sustentável,

tem uma validez permanente. (...) Mas a

solidariedade e a justiça não são hoje valores

aceitos sem questionamento. - As igrejas pedem que seja reconhecida a validade

da solidariedade e da justiça como regras decisivas

de uma política econômica e social com capacidade

de futuro e durável

- A solidariedade e a justiça constituem de fato o

coração de toda ética bíblica e cristã"

- Esperar que uma economia de mercado sem tais

obrigações, uma economia de mercado até certo

ponto sem adjetivo, uma pura economia de mercado

possa cumprir melhor essas exigências, é uma crença

falsa (uma heresia: Irrglaube).

3. As ONGs

Não vamos deter-nos longamente sobre a vasta rede de iniciativas solidárias das

ONGs. Sobre isso existe farta literatura. Apesar de alguns radicalismos estreitos, elas

merecem destaque como frentes significativas de iniciativas solidárias relacionadas com

urgências globais, regionais ou locais de diversa índole. Ao nível mundial, organizações

como Greenpeace, Anistia Internacional, Worldwatch e similares não representam apenas

uma impressionante coordenação de intervenções práticas em problemas evidentes de

ecologia, direitos humanos e outras emergências, mas põem a nu questões cruciais para a

viabilidade de um futuro para a humanidade e o planeta Terra. As ONGs incidem,

geralmente, em pontos emergenciais onde a lógica sistêmica imperante se revela não

apenas omissa, mas irracional.

Além disso, as ONGs foram criando aos poucos uma impressionante rede de idéias

e sensibilidades solidárias convergentes, concretizada sob a forma de redes comunicativas

que interconectam múltiplas responsabilidades e engajamentos de grupos e pessoas. O já

citado documento do Clube de Roma já reconhecia, em 1991, que a ampliação e

diversificação das ONGs provavelmente cumpriria um papel relevante em relação à

superação do Vacuum - os abismos não apenas entre os acessos à riqueza, mas também os

37

IGREJAS DA ALEMANHA. Für eine Zukunft in Solidarität und Gerechtigkeit - 1997. Disponível na

Internet, jun/2000. Sintomaticamente, as Igrejas alemãs assumem, com ênfase, a linguagem "Justiça e

Solidariedade", bastante conhecida nos debates universitários e políticos daquele país e que é central no

pensamento de Jürgen Habermas. Mas note-se que eles invertem o binômio "Justiça e Solidariedade" para

"Solidariedade e Justiça". Em seu conjunto, o documento. vê na normatividade social a garaantia da

solidariedade básica da sociedade. Mas o "princípio da subsidiariedade" garantiria a decentralização e as

suplências requeridas por uma normatividade sempre inconclusa, imperfeita e em processo de reformulação.

Page 41: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

41

abismos da indiferença e da insensibilidade. Mesmo quando as análises de algumas ONGs

não nos convencem, em termos de visão abrangente das urgências mundiais, parece-nos

importante valorizar o trabalho das ONGs como uma vasta operação planetária de luta

contra a indiferença e em favor da sensibilidade solidária.

Cabe, no entanto, uma ressalva crítica quanto à avaliação - a nosso entender

profundamente equivocada - que alguns fazem em relação às ONGs, quando as

transformam num ilusório sujeito histórico com potencial para, e já em vias de criar "uma

alternativa pós-capitalista à globalização atual"38

. O pano de fundo dessa transformação das

ONGs em promessa global alternativa está constituído pelo entrelaçamento de vários

pressupostos muito peculiares e discutíveis:

O grande inimigo projetado numa imagem questionável: a crítica ao neoliberalismo é configurada de tal maneira que se transforma automaticamente em rejeição rotunda do

mercado e na incapacidade de desenvolver linguagens positivas acerca de uma

economia com mercado.

A redução dos potenciais sócio-organizativos e políticos a uma hiper-exaltação do papel

de um assim chamado "Terceiro Setor entre Estado e Mercado" (associativismo e

movimentos, campanhas, mobilizações, demandas por qualidade e quantidade, novas

atividades e novas ocupações, em suma, a ficção de um para-estado e para-mercado).

Um recorte perigoso no próprio conceito de solidariedade já que ele é fundamentalmente reduzido a um determinado tipo de "Redes de Colaboração

Solidária" (leia-se: sobretudo aquelas ONGs que explicitam sua fúria anti-mercado e

anti-capitalista).

Uma concepção fundamentalmente moralista e negativa dos direitos do cliente, enquanto direitos de acessos ao consumo, mediante uma sintomática exacerbação do

xingatório contra o consumismo, propondo ardentemente a sua substituição por um

"consumo solidário" ou "consumo crítico", com características bastante moralistas e

ascéticas. (Aqui se toca um ponto crucial, mas escorregadio: de fato não são

universalizáveis os níveis de consumo dos países ricos e das elites; é preciso lutar por

níveis de consumo realmente universalizáveis; mas isso não significa criar a miragem

ascético-moralista de um rechaço a níveis ampliáveis de consumo e ao direito e ao

prazer, que as pessoas têm de comprar e usufruir mais bens e serviços. É simplesmente

hilário querer que alguém se vista ou coma um churrasco com mentalidade de

"consumo crítico").

4. Economia Solidária

Não é função deste capítulo alongar-nos acerca dos variados usos do conceito de

Economia Solidária. O assunto retornará, numa análise mais abrangente, mais adiante. A

expressão está sendo empregada com significações bastante diferentes, que vão desde a

exaltação do assim chamado Terceiro Setor como novo sujeito histórico, passando por

variadas formas de re-conceituação de Sociedade Civil, até um conjunto de ponderações

importantes de economistas que, sobre a base da aceitação de necessários mecanismos de

mercado, se esforçam por elaborar critérios acerca das urgências de determinadas políticas

públicas com vistas à perspectiva de um "mercado social". Nisso há óbvias críticas ao

38

MANCE, E.A. A Revolução das Redes - A colaboração solidária como uma alternativa pós-capitalista à

globalização atual. Petrópolis/RJ: Vozes, 2000.

Page 42: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

42

neoliberalismo, ao mito do crescimento econômico como referência prioritária ou quase

exclusiva para critérios macroeconômicos, e um variado leque de ênfases na importância do

papel do Estado no direcionamento da economia39

.

O vasto e contraditório leque de referências à solidariedade

Esta breve seção tem um propósito preciso: mostrar que as linguagens sobre a

solidariedade estão parcialmente colonizadas e que, portanto, a noção de solidariedade não

só não é óbvia, mas sua serventia para campos do sentido abrangentes requer um

distanciamento consciente dos usos reducionistas da noção de solidariedade. Entendemos

por usos reducionistas os recortes limitantes e específicos, que se manifestam em muitos

modos de falar em "solidariedade com ...".

Embora se trate de recortes, muitos apelos para "solidariedade com..." são

necessários e não merecem nenhuma crítica. Por exemplo: solidariedade com as vítimas de

acidentes naturais, de desastres de toda índole, de situações opressivas persistentes

(excluídos, marginalizados, minorias, violência contra a mulher, etc). Muitos outros apelos

têm conotação política, por exemplo: nos anos 80 houve, mundo afora, inúmeros grupos de

solidariedade com situações nacionais específicas (Nicarágua, El Salvador, etc). Houve

também notório uso ideológico desse tipo de apelos. Enfim, é um fenômeno amplo e não

isento de contradições. Por sorte estão minguando os apelos à solidariedade com

sectarismos absurdos.

É também conhecido o fenômeno da ocupação, por vezes bastante usurpadora, da

linguagem da solidariedade por iniciativas compensatórias da ausência de políticas sociais

(Comunidade Solidária e similares), por iniciativas emergenciais (Iglesia Solidaria, no

Chile de Pinochet), por títulos de campanhas, nomes de sites na Internet, etc. Muitas ONGs

trazem em seu nome a referência explícita a algum tipo de solidariedade.

Sem intenção de estabelecer uma cronologia do recurso, mais ou menos intensivo,

ao termo solidariedade, podem-se elencar facilmente algumas hipóteses40

:

Nos anos 1970 e 1980, muitos apelos à solidariedade aparentavam uma referência global aos excluídos, mas de fato se referiam mais a determinados grupos específicos

(perseguidos políticos, refugiados, etc). Olhando para trás, hoje estamos em condições

de reconhecer que boa parte da luta por direitos humanos estava direcionada, não aos

pobres em geral, mas a determinados tipos de violação dos direitos humanos.

Como é sabido, Solidariedade foi o nome do sindicato comandado por Lech Walessa,

na Polônia, e, até certo ponto, a referência de muitas formas de oposição nos países ex-

socialistas.

Já no início dos anos 1980, o tema da solidariedade começou a ter uma certa função substitutiva relacionada com a orfandade de um projeto histórico alternativo, após o fim

das ditaduras na América Latina. O conceito de solidariedade passa a ser atraído

semanticamente pelo conceito de exclusão.

39

Como simples exemplos, cf. SINGER, P. Globalização e Desemprego - diagnóstico e Alternativas. São

Paulo: Contexto, 1998.; "Crise do Trabalho e Economia Solidária". Fundação Joaquim Nabuco. Disponível na

Internet, jun/00. Economia Solidária contra o desemprego. Folha de S. Paulo, 11-07-1996, p.1-3.;

MERCADANTE, A. "O centro e a economia solidária". Folha de S. Paulo, 19-10-97, p.2-11. 40

Conferir fontes e comprovações na Bibliografia específica sobre Solidariedade, no final do livro.

Page 43: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

43

Na Teologia da Libertação e outras formas de teologia latino-americana, a noção de

solidariedade passou a ocupar um lugar importante no atinente à perspectiva futura

dessas teologias.

A Conferência Latino-Americana dos Religiosos (CLAR) deu lugar, em suas publicações, a uma vinculação explícita entre a definição do papel específico do

religioso e a solidariedade.

Como já vimos, aos poucos as linguagens sobre a solidariedade se tornam um referencial importante em documentos oficiais das igrejas.

Buscando a ponte com a educação

A idéia deste capítulo é apresentar uma espécie de fenomenologia de cenários

variados nos quais se inclui, de maneira bastante diversificada, o sonho de uma humanidade

mais solidária e nos quais se empregam linguagens sobre a solidariedade. Seguem agora

algumas poucas ponderações que visam retomar uma visão de conjunto e estabelecer

primeiras pontes com a educação:

Solidariedade não é palavra de um só significado. Além de ter vários, não todos convergem. Não é termo unívoco, mas polisêmico e por vezes ambígüo.

A linguagem da solidariedade não é terra virgem, mas parcialmente ocupada,

loteada, colonizada, com cultivo diferenciado, mas com vastas áreas pouco

cultivadas. Mas seria ingênuo achar que é tudo terra sem dono, plenamente

disponível, propriedade coletiva.

Solidariedade se refere muitas vezes a situações emergenciais clamorosas. Quando estas são pontuais no espaço e no tempo e "são notícia" (acidentes

graves, desastres, terremotos, vitimações coletivas, etc.), a sensibilidade

solidária é mais unânime. Quando se trata de calamidades persistentes, mesmo

que brutais (exclusão social, analfabetismo, miséria extrema, conflitos

prolongados, etc.), tendem a sair do noticiário e a indiferença tende a esvaziar a

sensibilidade solidária.

As ocupações semânticas do discurso da solidariedade muitas vezes obedeceram a propósitos precisos, mas bem variados ("solidariedade com..."); outras, nem

tanto, porque serviam como novo discurso emergente, substituindo vagamente

semânticas e opções mais ou menos falidas.

Os discursos sobre a solidariedade remetem a pressupostos que muitas vezes não

ficam explícitos neles. Trata-se, em geral, de pressuposições acerca da visão que se tem do ser humano, da convivialidade humana que se acredita viável ou não,

de crenças pessimistas ou otimistas acerca do futuro possível para a organização

humana coletiva em sociedade e ao nível mundial.

Para aprofundar a reflexão sobre a solidariedade, parece aconselhável que se

distingam nitidamente, por um lado, os apelos à solidariedade que se referem a

situações emergenciais transitórias e, pelo outro, as questões da solidariedade

como ingrediente ético-político na busca de soluções estruturais e sustentáveis

para problemas amplos e de caráter persistente. As divergências e convergências

de opiniões funcionam de maneira distinta nos dois caso. Na solidariedade

emergencial as questões de princípio (não necessariamente as motivações)

geralmente não são tão cruciais, a não ser que haja a presença ostensiva de

Page 44: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

44

ideologias políticas opostas. Na solidariedade estrutural e permanente muitos

bloqueios decorrem das próprias concepções antropológicas, econômicas,

políticas, culturais e até religiosas.

A solidariedade se transformou em bandeira abrangente para enfrentar a crise

civilizacional do mundo de hoje. Isso fica sinalizado em algumas expressões das

linguagens mais insistentes e globais acerca da solidariedade. Mas convém não

esquecer que essas linguagens muitas vezes carecem de pontes mediadoras para

alcançar o plano operacional e, nesse sentido, podem continuar sendo

semantemas flutuantes e até linguagens apenas catárticas e compensatórias da

falta de estratégias solidárias.

Existe uma série de linguagens que buscam pontos de articulação do

potencialmento da sensibilidade social, que representam, de certa forma,

parâmetros preparatórios de articulação da sensibilidade solidária,

pedagogicamente unidos a anseios individuais e coletivos concretos. Disso se

tratará nos capítulos posteriores deste livro.

ANEXO: Um texto do MEC sobre Solidariedade41

41

MEC - Temas Transversais - 5ª à 8ª. Queremos deixar bem claro que este texto representa apenas uma

amostra. Após conferir mais de perto os PCNs para o Ensino Médio, que são mais recentes, nos confirmamos

na impressão de que esses documentos e a linha de atuação de várias asessorias do MEC representam um

esforço significativo em direção a um pensamento pedagógico bastante inovador. Voltaremos ao tema ao

longo do livro. destacando limitações. Só queremos registrar desde já que, a nosso modo de ver, a oposição

sistemática à linha representada pelos PCNs, da parte de alguns setores que se dizem "críticos", é um sintoma

de resistências lamentáveis ao propósito e à proposta de dar passos importantes.

Solidariedade O respeito mútuo tem sua significação ampliada no conceito de solidariedade. Talvez se possa mesmo dizer que

os gestos de solidariedade são, concretamente, expressão de respeito dos indivíduos uns pelos outros. Ser solidário é, efetivamente, além do respeito, partilhar de um sentimento de interdependência, reconhecer a pertinência a uma comunidade de interesses e afetos — tomar para si questões comuns, responsabilizar-se pessoal e coletivamente por elas.

O que se deseja aqui é aproximar as idéias de solidariedade e de doação, de ajuda desinteressada. A solidariedade não pode constituir-se em objeto de uma declaração, como os Direitos Humanos — no gesto solidário, trata-se de agir, não em função de determinado texto, de determinada lei, mas além de qualquer texto, de qualquer lei. A rigor, se todos fossem solidários nesse sentido, talvez nem se precisasse pensar em justiça: cada um daria o melhor de si para os outros.

A força da solidariedade dispensa que se demonstre sua relevância para as relações interpessoais. É importante, entretanto, estar atento para alguns equívocos, que se constatam em certas circunstâncias. A palavra solidariedade pode ser enganosa. De fato, diz-se que os membros de uma quadrilha de ladrões, por exemplo, são "solidários" quando se ajudam e se protegem mutuamente. A mesma coisa pode acontecer com os membros de uma corporação profissional: alguns podem encobrir o erro de um colega para evitar que a imagem da profissão seja comprometida. Nesses casos, a "solidariedade" só ocorre em benefício próprio: se a quadrilha ou a corporação correr perigo, cada membro em particular será afetado. Portanto, ajuda-se o outro para salvar a si próprio.

É necessário considerar, também, as diversas formas de ser solidário. Não se é solidário apenas ajudando pessoas próximas ou engajando-se em campanhas de socorro de pessoas necessitadas, como, por exemplo, depois de um terremoto ou enchente. Essas formas são genuína tradução da solidariedade humana, mas há outras. Uma delas, que vale sublinhar aqui, diretamente relacionada com o exercício da cidadania, é a da participação no espaço público, na vida política. O exercício da cidadania não se traduz apenas pela defesa dos próprios interesses e direitos, embora tal defesa seja legítima. Passa necessariamente pela solidariedade, por exemplo, pela atuação contra injustiças ou injúrias que outros estejam sofrendo. É pelo menos o que se espera para que a democracia seja um regime político humanizado e não mera máquina burocrática.

A necessidade de começar a fazer parte do mundo adulto, o desejo de agir sobre a realidade e modificá-la é marcante na adolescência e na juventude. Na escola essa energia pode ser canalizada em prol de atividades que visem o bem-estar de todos, na perspectiva do desenvolvimento de atitudes solidárias. Entretanto, para que a solidariedade seja concretizada, é necessário que o ensino contemple tanto a valorização de atitudes como o aprendizado de formas concretas de atuação. Assim, algumas observações são pontuadas a seguir. • Reconhecimento e valorização da existência de diversas formas de atuação solidária no âmbito político e comunitário.

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45

É importante que o aluno perceba que pode ser solidário tanto ao ajudar um amigo doente, que necessita momentaneamente de auxílio, como ao lutar por um ideal coletivo da sociedade. Ele precisa ter conhecimento das questões sociais mais urgentes, sensibilizar-se com elas, refletindo sobre os valores presentes nas sociedades e sobre os princípios que devem ser assumidos por todos para agir solidariamente. Um projeto pedagógico, no qual questões da realidade social que se encontram em debate sejam abordadas e discutidas, criará ocasião para que se pense em formas de colocar em prática idéias que concretizem ações solidárias. Só conhecendo, vivenciando situações e refletindo sobre elas o aluno pode construir uma postura solidária.

Organizar e participar de ações comunitárias, aprender cuidados específicos tais como primeiros socorros, responsabilizar-se pelo cuidado de bens coletivos, como uma biblioteca comunitária, ou um trabalho educativo em campanhas de saúde, ou ambientais, são formas de envolvimento dos alunos em busca de alternativas para problemas reais da comunidade ou da sociedade em geral.

Analisar as campanhas que a mídia divulga periodicamente com a intenção de alertar as pessoas para questões que envolvem a necessidade da participação de todos em busca de uma sociedade mais justa, relacionar essa análise aos problemas vivenciados na escola e na comunidade é um bom exercício de sensibilização para a ação solidária. É preciso que o aluno perceba-se considerado pela escola como alguém que tem liberdade para optar, iniciativa para agir, compromisso e responsabilidade para ser cidadão e que perceba também a importância de sua participação em ações solidárias coletivas. • Atuação compreensiva nas situações cotidianas.

Uma aprendizagem importante para o desenvolvimento da atitude de solidariedade está relacionada com a percepção das causas das dificuldades que os "outros" enfrentam.

Conhecer as condições de vida das pessoas, aprender a buscar as causas das dificuldades enfrentadas pelo outro, refletindo sobre o direito de todos a uma vida digna, contribuirá para que não sejam perpetuadas posturas equivocadas e preconceituosas e para que se modifiquem atitudes indiferentes diante de situações injustas ou egoístas, comumente aceitas como naturais: "Isso sempre foi assim, não temos nada a fazer". Levar em conta os direitos do outro, buscar razões que expliquem a ausência desses direitos em alguns contextos sociais, colocar-se no lugar do outro, significa levá-lo a sério, considerá-lo real, compreendê-lo. A atitude de compreensão indica não apenas uma apreensão racional de conceitos, mas também um envolvimento afetivo com a situação vivenciada.

Destaca-se aqui a importância de o aluno aprender a ajudar os colegas que são portadores de necessidades especiais e perceber que também podem ser ajudados por eles. E é preciso romper com tabus, com a desinformação e a ignorância, que levam a atitudes negativas em relação a essas pessoas. A informação e a preparação dos alunos para recebê-los deverá estar direcionada para a descoberta e aceitação de dificuldades, deficiências e necessidades que todo ser humano possui, e para a valorização das diferenças e da cooperação.

O professor deve estimular para que sejam resgatadas atitudes que valorizem a prática da solidariedade na sala de aula — aí convivem ritmos de aprendizagem diferenciados, são expressos desejos e emoções distintos. O respeito aos colegas e a relação de cooperação precisam ser valorizadas e assumidas por todos. Os alunos precisam sentir que podem e necessitam ajudar e ser ajudados. Todos têm alguma coisa para partilhar: a valorização do trabalho em duplas ou grupos, por exemplo, é muito importante para estimular a partilha.

Aqueles que têm mais dificuldade em aprender podem ser auxiliados pelos colegas, se forem propostas na sala de aula parcerias e estratégias de colaboração, responsabilizando a todos pela aprendizagem de todos, numa relação solidária.

Isso não significa fazer pelo colega, mas fazer com ele. A solidariedade que se busca que o aluno aprenda deve aproximar-se da idéia de generosidade, que não é caridade, atitude paternalista, mas compromisso e cidadania, caracterizando-se como oposição à qualquer forma de corporativismo que se coloque acima da busca da justiça, ou que desconheça o bem comum e como a possibilidade de um sentimento de altruísmo: uma atitude de solidariedade com aqueles que necessitam ajuda, seja nas relações cotidianas e interpessoais, seja pensando-se como parte da humanidade e, portanto, co-responsável pela solução dos problemas que afetam a todos. Essa é uma aprendizagem que requer, portanto, envolvimento de todos aqueles que fazem parte do contexto da escola. • Conhecimento de ações necessárias em situações específicas.

Ter a possibilidade de conhecer melhor o local em que mora por meio de pesquisas orientadas pela escola e aprender que a escola é uma instituição que faz parte da comunidade e precisa manter uma relação de intercâmbio com as demais instituições uma forma de implementar a proposta de integração da comunidade com a escola, pautada pela atuação solidária. Conhecer melhor a comunidade, coletando informações sobre as instituições que realizam trabalhos solidários e atendem a população, divulgar esses serviços, avaliar sua proposta de atuação na comunidade, proporciona a criação de um vínculo de co-responsabilidade entre a escola e as instituições.

Os alunos necessitam aprender como, de fato, traduzir a solidariedade em ações. Um exemplo pode ser dado no tema Saúde. Alguém está passando mal ou teve um acidente. O mínimo sentimento de solidariedade exige que se o ajude. Porém, como fazer? O que fazer? Se for o caso, a

quem chamar? Para onde transportar a pessoa? Sem esses conhecimentos básicos, a solidariedade fica apenas na intenção. Portanto, é imperativo que a escola promova tais aprendizados. Estabelecer parcerias com instituições como o Corpo de Bombeiros, Postos de Saúde e outras que possam dar informações adequadas sobre como agir corretamente em situações de emergência, contribuirá para a formação do jovem e a percepção das formas corretas de ajuda. • Repúdio a atitudes desleais, de desrespeito, violência e omissão.

Para que o jovem aprenda a repudiar atitudes violentas é preciso que saiba identificá-las. O papel da escola é o de desvelar essa situação por meio de discussões que explicitem os diferentes tipos de

violência (física, moral, simbólica) que jovens, adultos e crianças podem sofrer, auxiliando o aluno a reconhecer atitudes violentas, prevenir-se contra elas, conhecer instituições que auxiliem vítimas de violência e a possibilidade de denunciar essas atitudes.

Faz-se necessário chamar a atenção para atitudes de omissão que podem impedir a prática da solidariedade: é fundamental trazer para sala de aula discussões que envolvam atitudes de omissão nos dias de hoje e em nossa história, criando espaços para avaliação de atitudes que contribuem para que as pessoas não se mobilizem para uma ação

Page 46: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

46

solidária. Ao mesmo tempo, é importante a valorização de atitudes de solidariedade identificadas na escola e fora dela. Não se pode deixar de marcar que, ao lado de atitudes de indiferença e descrédito, tem-se assistido também a uma revalorização da solidariedade traduzida tanto em ações coletivas e de caráter político (tal como o próprio movimento pelos direitos humanos, a Anistia Internacional etc.) como em ações individuais ou de pequenos grupos que se mobilizam para o enfrentamento de problemas específicos (tais como campanhas de ajuda, atendimento a pessoas necessitadas etc.).

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47

Capítulo 2

INTERDEPENDÊNCIA E SENSIBILIDADE SOLIDÁRIA

Dois sentidos da palavra solidariedade

Cada vez mais a palavra solidariedade faz parte da nossa linguagem cotidiana.

Grupos os mais diversos usam hoje esta palavra como um conceito chave para as mais

diferentes propostas de solução dos problemas sociais e ecológicos. No campo da educação

também o conceito de solidariedade veio para ficar. Na Parte I dos Parâmetros Curriculares

Nacionais do Ensino Médio as palavras “solidariedade” e “solidário/a/as” aparecem vinte e

uma vezes. Esses conceitos aparecem fortemente ligados aos temas da sociedade de

informação e da exclusão social. Vejamos dois trechos:

A expansão da economia pautada no conhecimento caracteriza-se também

por fatos sociais que comprometem os processos de solidariedade e coesão

social, quais sejam a exclusão e a segmentação com todas as conseqüências

hoje presentes: o desemprego, a pobreza, a violência, a intolerância. [...]

Diante da violência, do desemprego e da vertiginosa substituição

tecnológica, revigoram-se as aspirações de que a escola, especialmente a

média, contribua para a aprendizagem de competências de caráter geral,

visando a constituição de pessoas mais aptas a assimilar mudanças, mais

autônomas em suas escolhas, mais solidárias, que acolham e respeitem as

diferenças, pratiquem a solidariedade e superem a segmentação social.42

O conceito de solidariedade aparece aqui em dois sentidos interligados, mas

distintos. O primeiro é a solidariedade entendida como um fato e uma necessidade de

interdependência na vida social, um conceito associado à coesão social. Neste sentido, a

exclusão social aparece como um perigo para os necessários processos de solidariedade,

isto é, para a própria coesão social. Em outras palavras, a atual forma de gerenciamento da

economia pautada no conhecimento está gerando uma exclusão social que está

comprometendo a própria capacidade da sociedade de se manter coesa e se reproduzir

como uma sociedade.

O segundo sentido de solidariedade apresentado nos PCNs é mais normativo ou

propositivo. É um chamado à superação da exclusão e da segmentação sociais através de

uma educação que contribua para a aprendizagem de competências de caráter geral e que

leve as pessoas a praticarem a solidariedade. Neste segundo aspecto, a solidariedade é vista

mais como uma atitude capaz de respeitar as diferenças e se interessar pelos problemas da

coletividade, principalmente dos que estão sofrendo mais com a situação.

Estes dois sentidos estão interligados na medida em que a solidariedade como

atitude, ou a solidariedade como uma questão ética, nasce do reconhecimento de que a

solidariedade/interdependência é um fato, uma necessidade para a vida da e na sociedade.

Essa concepção de solidariedade também está presente em outros diversos meios.

Recentemente, o jornalista Washington Novaes publicou um artigo que sintetiza bem este

duplo aspecto. Após afirmar que na natureza tudo está relacionado com tudo, escreveu que

42

A citação é da versão disponível na Internet, www.mec.gov.br, em maio/2000, p. 12 e 60.

Page 48: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

48

estamos condenados, agora em nível interplanetário, cósmico – como já descobrira

Jean Paul Sartre num campo de prisioneiros – a ser solidários; a solidariedade é

um fato, antes de poder ser um imperativo ético.43

Estes textos apresentam dois aspectos presentes nos inúmeros apelos à solidariedade

que encontramos nos dias de hoje: a solidariedade é um fato – ainda que não muito

reconhecido e compreendido pela sociedade – e deve se tornar também um imperativo

ético. Para que a solidariedade se torne um imperativo categórico aceito e vivido pela

sociedade, é preciso antes que esta mesma sociedade reconheça a interdependência e a

coesão social como um fato fundamental para a vida em geral, e a vida humana em

particular.

Em outras palavras, a palavra solidariedade é usada, muitas vezes, em dois sentidos

diferentes: o descritivo e o normativo. Sem essa explicitação fica difícil entender certas

afirmações, como, por exemplo:

Ainda que solidários, os humanos permanecem inimigos uns dos outros, e o

desencadeamento de ódios de raça, religião, ideologia conduz sempre a guerras,

massacres, torturas, ódios, desprezo.44

Como podem ser ao mesmo tempo solidários e inimigos? São solidários, enquanto

são interdependentes, e inimigos e desencadeadores de ódio enquanto posturas e ações

concretas. Apesar de que é comum o uso indistinto destas duas noções de solidariedade, e

até assumidos teoricamente por autores como Max Pensky, que diz explicitamente:

“‗Solidariedade‘ pode ser tomada tanto em um sentido descritivo quanto em um

normativo”,45

pensamos que distinguir esses dois sentidos nos ajuda na compreensão do

assunto e na comunicação.

O relatório “Educação: um tesouro a descobrir”, escrito para a UNESCO, apresenta

sinteticamente estes dois aspectos da solidariedade com uma outra formulação que nos

parece melhor: “Ajudar a transformar a interdependência real em solidariedade desejada,

corresponde a uma das tarefas essenciais da educação.”46

O uso do conceito interdependência para se referir ao aspecto descritivo e o da

solidariedade para o normativo, ético, nos parece mais útil, na medida em que mantém a

idéia sem criar confusões na comunicação. Além disso, essa distinção nos ajuda a não

cairmos no erro de querermos deduzir diretamente de um fato, do que é (a descrição da

interdependência), um dever-ser ético (solidariedade no sentido normativo). Uma tentação

que parece estar presente em muitos dos discursos que interpelam para a solidariedade.

O conhecimento da interdependência e o problema da coesão social é uma condição

de possibilidade para uma atitude pessoal e social de solidariedade, mas não conduz

43 NOVAS, Washington. A era da solidariedade. O Estado de São Paulo, São Paulo, 5/05/00. 44

MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez; Brasília: UNESCO,

2000, p.85. 45

PESKY, M. The Limits of Solidarity. Em: NASCIMENTO, Amós (ed.). A Matter of discourse. Vermont:

Ashgate, 1998, p.129. 46

DELORS, Jacques e Outros. Educação: um tesouro a descobrir. Relatório para a Unesco da Comissão

Internacional sobre Educação para o século XXI. 3a. ed., São Paulo: Cortez; Brasília: MEC-UNESCO, 1999,

p. 47.

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49

necessariamente a essa atitude. Pois, entre o conhecimento e a nova atitude há desejos e

interesses.

Interdependência como um fato

Para muitos é estranha a idéia de que a interdependência é um fato. A forma como a

nossa vida transcorre no dia a dia nos leva a pensarmos que somos indivíduos ou grupos

sociais autônomos e independentes. O que passa com os/as outros/as não nos atinge e nem

tem a ver conosco. E o que nós fazemos não tem nada a ver com a vida das outras pessoas.

Isto é, a própria noção de interdependência de todas as pessoas na sociedade não faz parte

do cotidiano de uma boa parte da população.

Tomemos como exemplos, duas notícias veiculadas em um noticiário em rede

nacional.47

O mês de junho é um tempo especial para os que se divertem soltando

papagaios ou pipas, pandorgas. Entre eles, é comum a prática de passar cola com vidro

moído na linha para cortar a linha das pipas de outros. Com isso, é comum acontecer

acidentes, alguns fatais. Nesse dia um motoqueiro foi morto quando passou por uma dessas

linhas cortantes e se feriu mortalmente no pescoço. Na mesma região uma pequena garota

de sete anos também foi ferida no rosto. Perguntado pela repórter se não era perigoso soltar

pipas com cortantes, um rapaz respondeu que sim, mas que ele tinha que soltar assim

mesmo. Quando a repórter perguntou, espantada com a resposta, porque ele tinha que soltar

pipas com cortantes, ele respondeu que a graça da brincadeira estava exatamente nesses

cortantes e nas disputas com outros soltadores de pipa.

Logo após esta notícia, o jornal mostrou o caso de uma senhora que teve o seu rosto

desfigurado pelas mordidas de um cão pitbull, que estava passeando sem focinheira e

coleira. Após mostrar essa senhora, a reportagem mostrou diversos cães considerados

perigosos passeando livremente nas praças, sem coleiras e sem focinheiras, como manda a

lei da cidade onde estava sendo feita a reportagem. Uma moça, aparentando ser de classe

média ou alta, perguntada sobre se o seu cão pitbull sem focinheira e sem coleira não

oferecia perigo aos transeuntes, respondeu tranqüilamente dizendo que não.

As respostas dessas duas pessoas nos dão um exemplo de como a sensibilidade

social não é algo que predomina nas nossas ruas. Mesmo correndo risco de causarem

acidentes graves às outras pessoas e de serem processadas criminalmente, elas parecem

preferir viver como se não houvesse pessoas em sua volta, como se suas ações não fossem

interferir na vida de outras pessoas.

Uma das razões para este tipo de cegueira é que as relações de interdependência de

todos os seres vivos ou não-vivos na natureza e das pessoas na sociedade não são visíveis

aos olhos. Não somente porque essas relações de interdependência não são objetos físicos

visíveis aos olhos, mas fundamentalmente porque os nossos olhos e nem as nossas mentes

foram treinados ou preparados para ver as relações de interdependência.

Nas nossas escolas fomos ou somos preparados para conhecer “pedaços”

independentes da realidade. As disciplinas funcionam quase sempre como segmentos

autônomos, que recortam um aspecto ou uma parte da realidade, e estabelecem pouca ou

quase nenhuma relação com outras disciplinas do curso. E no interior da disciplina

aprendemos analisar, isto é, dividir a parte que coube à ciência em questão em pedaços

ainda menores, sempre em busca de verdades que se confundem com certezas. A realidade

47

Jornal Hoje. Rede Globo de Televisão, 19/06/00.

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50

é aprendida como algo constituído por partes que se justapõem, cada um exercendo uma

função dentro do todo. Em suma, não aprendemos ver as relações de interdependência. E

como sabemos, ver é uma questão de aprendizagem.

Essa nossa dificuldade não nasce e nem é reforçada somente nas nossas escolas. As

nossas escolas reproduzem os traços fundamentais da nossa cultura. Edgar Morin,

analisando a relação entre a cultura e conhecimento nos diz que

se a cultura abrange um conhecimento coletivo, acumulado na memória

social, se implica princípios, modelos, esquemas do conhecimento, se ela gera

ideologia (filosofia), se a linguagem e o mito são elementos constituintes da cultura,

então a cultura não contém somente uma dimensão cognitiva; ela é um

instrumento cognitivo, cuja prática é de natureza cognitiva.

E completa o raciocínio afirmando que

uma cultura abre e fecha as possibilidades bioantropológicas do conhecimento. Ela

as abre e atualiza à medida que põe à disposição dos indivíduos o seu

conhecimento acumulado, sua linguagem, seus paradigmas, sua lógica, seus

esquemas, seus métodos de aprendizado, de pesquisa, de verificação e assim por

diante; simultaneamente entretanto ela fecha e dificulta essas possibilidades

através das suas normas, regras, proibições, tabus, seu etnocentrismo, sua auto-

estilização, seu não-conhecimento de que nada sabe. Também nesse caso, aquilo

que o conhecimento possibilita é ao mesmo tempo aquilo que o inibe.48

Em outras palavras, a cultura na qual nós vivemos nos abre e fecha as “janelas”

pelas quais vemos o mundo. Ela nos leva a vermos certos aspectos da realidade e a não

vermos outros; mais ainda, leva-nos a não perceber que não vemos esses outros aspectos.

Como não temos consciência de que não vemos um determinado aspecto ou parte da

realidade, cremos que o que vemos é toda a realidade ou toda a verdade.

Se essa idéia tem um fundo de verdade, podemos deduzir que a nossa cultura com

a sua visão fragmentada da realidade, com um individualismo exacerbado, incentivo

unilateral à concorrência, diminuição da importância da identidade nacional e do

compromisso com a construção de um futuro melhor, entre outras características , dificulta o conhecimento e o reconhecimento da importância da interdependência e da

coesão social.

Assim, os problemas dos indivíduos e dos grupos sociais são compreendidos como

problemas isolados que dizem respeito somente aos interessados e que devem ser

solucionados por estes, sem nenhuma responsabilidade por parte do resto da sociedade.

Entre estes problemas estão, é claro, o desemprego, a violência, a degradação do meio

ambiente.

Contudo, como diz F. Capra,

48

MORIN, Edgar. “Cultura conhecimento”. em: WATZLAWIK, Paul & KRIEG, Peter (org). O olhar do

observador. Contribuições para uma teoria do conhecimento construtivista. São Paulo: Psy II, 1995, pp.71-

80. Citado das pp. 72-73.

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51

quanto mais estudamos os principais problemas de nossa época, mais somos

levados a perceber que eles não podem ser entendidos isoladamente. São

problemas sistêmicos, o que significa que estão interligados e são interdependentes.

Por exemplo, somente será possível estabilizar a população quando a pobreza for

reduzida em âmbito mundial. (...) Em última análise, esses problemas precisam ser

vistos, exatamente, como diferentes facetas de uma única crise, que é, em grande

medida, uma crise de percepção.49

Quando falamos da crise de percepção, estamos indo muito além de uma simples

discussão sobre uma maneira de ver o mundo. A forma como conhecemos a realidade tem

muito a ver com a forma como vivemos e construímos o nosso mundo. Este é um tema

central das novas teorias científicas que levamos a sério neste nosso trabalho. O viver está

intimamente conectado como o conhecer, a tal ponto de se afirmar que “viver é conhecer,

conhecer é viver”. A forma como se conhece determina o modo de se viver. Assim sendo,

uma crise de percepção é mais do que uma simples crise de conhecimento, é uma crise na

forma de viver e de organizar a vida humana e social.

O grande impacto provocado pelas novas teorias científicas no século XX foi a

percepção de que os sistemas, incluindo aqui os sistemas sociais, não podem ser entendidas

pelo modo clássico da divisão das partes, a análise de cada uma das partes e a reconstrução

da totalidade pela junção dos estudos das partes. As novas teorias de sistema mostraram

que as propriedades essenciais de um organismo ou um sistema vivo são propriedades do

todo, isto é, nenhuma das partes possui e nem é resultado da soma das propriedades das

partes. Estas propriedades essenciais surgem das interações e das relações entre as partes e

são destruídas quando o sistema é dividido, física ou teoricamente, em partes isolados. O

fato de que podemos estudar partes individuais em qualquer sistema não significa que elas

sejam isoladas, nem que o todo seja uma mera soma das partes. O todo de um sistema é

sempre diferente da mera soma das partes.

Tomemos como um exemplo um sistema humano pequeno e simples, a família. A

família é muito mais do que a soma das partes, isto é, dos indivíduos que a compõem. Uma

pessoa é filho só na medida em que tem uma família, que tem pai e/ou mãe. Ele não é filho

se tomado isoladamente, sem nenhuma relação com outras pessoas que compõe a família.

A sua identidade de filho desaparece quando morrem todos os membros da família, isto é,

quando desaparece o sistema familiar. O pai e a mãe se tornam pai e mãe na medida em que

têm filho/a, e não antes disso. É o estabelecimento da relação que dá identidade aos

indivíduos que compõe o grupo.

Por isso se diz que as propriedades das partes são ou podem ser entendidas a partir

da lógica organizativa do todo. Neste tipo de abordagem sistêmica, o estudo se concentra

em princípios organizativos básicos, e não em blocos ou pedaços de construções básicos. O

método analítico consiste em isolar as partes a fim de compreendê-las, enquanto que o

pensamento sistêmico significa coloca-las num contexto mais amplo para entender as

relações entre o todo e as partes.

Quando as pessoas têm uma visão sistêmica da realidade social conseguem perceber

que elas são o que são porque fazem parte de um todo social e que elas não existiriam sem

a existência de outras pessoas e do sistema social. Elas conseguem perceber que o que afeta

49 CAPRA, Fritjof. A teia da vida. Uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. São Paulo: Cultrix,

1997, p. 23

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uma pessoa ou grupos sociais ou à natureza, que é o meio onde o sistema social reproduz a

sua vida, afeta a si próprio e ao seu grupo. Porque nós todos estamos interligados.

O reconhecimento da interdependência entre todas as pessoas do mundo, entre todos

os seres vivos e não vivos do planeta Terra e entre todos corpos celestiais do universo nos

faz ver que há uma interdependência objetiva, isto é independente do nosso reconhecimento

ou aceitação. É a interdependência como um fato. Todos nós sofremos os efeitos positivos

ou negativos do que acontece no sistema em que vivemos.

Em termos ecológicos, o sistema em referência é o planeta Terra e em última

instância é o cosmos. Em termos sociais é o mundo. Após o processo de globalização, as

pessoas e grupos sociais estão ligados a todos os/as outros/as do mundo inteiro. Se não

pelos fatos sociais ou econômicos imediatos, pelo menos pelos efeitos a longo prazo no

campo econômico-social e no meio ambiente. E o funcionamento do sistema ecológico não

está limitado pelas fronteiras nacionais, muito menos por barreiras dos condomínios

fechados ou algo assim.

O desconhecimento da interdependência como um fato

O reconhecimento de que estamos de fato interligados é o primeiro passo para uma

atitude de solidariedade ativa. Mas, será que o conhecimento teórico é suficiente para levar

as pessoas a uma atitude solidária? Em outras palavras, o conhecimento teórico determina

a postura ética ou há algo a mais entre o conhecimento e opção ética?

Antes de respondermos estas questões, precisamos encontrar algumas pistas para

uma pergunta anterior: por que a maioria das pessoas das sociedades não conhecem esse

fato da interdependência? Ou por que há casos em que mesmo conhecendo teoricamente

não o reconhece, isto é, não admite que tem conhecimento deste fato e faz dele um aspecto

significativo nas suas vidas?

Uma primeira pista já apareceu no tópico anterior ao falarmos do tipo de educação

dominante nas nossas escolas e na nossa cultura: a visão fragmentária e mecanicista do

mundo.

As novas propostas educacionais em torno de temas transversais ou de abordagens

transdisciplinares mostram como o nosso sistema educacional estava e ainda está, na

maioria dos lugares, baseada em uma concepção segmentada do conhecimento e das

disciplinas.

A fragmentação do ensino em matérias entendidas como autônomas e

independentes não passa do reflexo do parcelamento ocorrido no campo das ciências. Este

parcelamento foi fruto, em certo sentido inevitável, do aumento de especialização frente à

complexidade da realidade. O problema não está na especialização, mas na crença

subjacente de que esta especialização levaria às verdades definitivas pelo refinamento cada

vez maior das ciências. Por trás desta crença está a cosmovisão que concebe o todo como

sendo composto de partes independentes. E estas partes teriam as suas verdades definitivas

reveladas pelas ciências especializadas.

Em uma cosmovisão assim, a educação é concebida fundamentalmente como

instrução, isto é, como formação de profissionais capazes de dominar o conhecimento e as

técnicas necessárias para um funcionamento eficaz das partes do todo que lhes cabem.

Educação como um reordenamento que faz emergir um relacionamento com o todo, com a

realidade da interdependência, não tem lugar.

Page 53: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

53

Além desta segmentação da realidade, temos também a problemática crença de que

é possível obter verdades definitivas e que as escolas são meios de transmitir estas verdades

acumuladas aos/às alunos/as. Certezas levam a intolerâncias e à dificuldade de reconhecer

os/as diferentes. Um tema fundamental para a solidariedade como atitude ética, tema ao

qual voltaremos mais à frente.

A superação desta visão fragmentada da realidade não se dará somente com a

introdução de temas transversais. Pois a solidariedade não é um problema pontual que pode

ser resolvido com alguma matéria específica. Tem a ver com a própria forma de ver o

mundo e a vida. Aliás, os propositores de temas transversais têm plena consciência disso.

Por isso, é fundamental que modifiquemos também a maneira de compreender e ensinar

ciências/disciplinas que compõe o currículo escolar. Os PCNs, por exemplo, apresentam

uma proposta de abordagem transdisciplinar bastante interessante. Tomemos como

exemplo a proposta apresentada na parte sobre Ciências da Natureza, Matemática e suas

Tecnologias (Parte III).

O documento mostra como o princípio físico da conservação da energia, essencial

na interpretação de fenômenos naturais e tecnológicos, pode ser verificado também no

campo da biologia e o da química, ao mesmo tempo em que processos deste tipo são

essenciais na compreensão da apropriação humana dos ciclos materiais e energéticos, como

o uso das hidroeletricidades e biomassas. O que os associa ao campo da economia e da

organização social. E diz:

Assim, a consciência desse caráter interdisciplinar ou transdisciplinar,

numa visão sistêmica, sem cancelar o caráter necessariamente disciplinar

do conhecimento científico mas completando-o, estimula a percepção da

inter-relação entre os fenômenos, essencial para boa parte das tecnologias,

para a compreensão da problemática ambiental e para o desenvolvimento

de uma visão articulada do ser humano em seu meio natural, como

construtor e transformador deste meio. Por isso tudo, o aprendizado deve

ser planejado desde uma perspectiva a um só tempo multidisciplinar e

interdisciplinar, ou seja, os assuntos devem ser propostos e tratados desde

uma compreensão global, articulando as competências que serão

desenvolvidas em cada disciplina e no conjunto de disciplinas, em cada área

e no conjunto das áreas. Mesmo dentro de cada disciplina, uma perspectiva

mais abrangente pode transbordar os limites disciplinares.50

No fundo, o que estamos observando atualmente não são apenas mudanças nos

conteúdos das diferentes disciplinas, mas no próprio conceito de ciência e, portanto, da

educação. Sem essa profunda transformação epistemológica teremos muita dificuldade em

reconhecer a interdependência como um fato, em perceber a necessidade da coesão social e

de atitudes solidárias.

Como diz E. Morin,

as mentes formadas pelas disciplinas perdem suas aptidões naturais para

contextualizar os saberes, do mesmo modo que para integrá-los em seus conjuntos

naturais. O enfraquecimento da percepção do global conduz ao enfraquecimento da

50

PCNs, Ensino Médio, Parte III, p. 9.

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54

responsabilidade (cada qual tende a ser responsável apenas por sua tarefa

especializada), assim como ao enfraquecimento da solidariedade (cada qual não

mais sente os vínculos com seus concidadãos).51

Não podemos, contudo, pensar que há só uma causa para este problema complexo

do não reconhecimento da interdependência como um fato. Fenômenos sociais complexos

não possuem somente uma única causa.

Um outro aspecto que deve ser levado em conta é o fato de que, em sistemas sociais

extensos, os efeitos, benéficos ou perversos, das ações e omissões levam muito tempo para

retornar à sua origem. Talvez a imagem de bumerangue possa nos ajudar nessa idéia. Em

uma comunidade pequena, qualquer ação produz efeitos que são fácil e rapidamente

notadas. É como se uma onda fosse emitida e ela batesse rapidamente nos limites do

sistema e voltasse para os seus emissores. Além da rapidez da percepção dos efeitos, as

mudanças no sistema seriam também mais fácil e rapidamente visíveis.

Mas, na medida em que o sistema cresce em extensão e complexidade, os efeitos

são cada vez mais difíceis de serem captados e as modificações, intencionais ou não, no

sistema são menos perceptíveis. É como se as ondas levassem muito tempo para percorrer

todo o espaço do sistema e bater nos limites para voltar. Além da demora, estas ondas vão

afetando e sendo afetados por outras ondas emitidas por outras pessoas e grupos, ao mesmo

tempo em que a força destas ondas vão se perdendo ao longo do trajeto. Este processo de

dissipação das ações intencionais e dos efeitos intencionais e os não-intencionais e a

retroalimentação dos subsistemas dentro do seu meio gera mecanismos auto-organizadores

que vão fazer emergir o que chamamos de estrutura sociais.

Nas palavras de Pablo Navarro,

Não é a intencionalidade da consciência humana, diretamente, a que produz o

cenário social ―objetivo‖ – os ―mapas sociais extramentais‖ – no qual essa

consciência deve atuar. O que produz este cenário ―objetivo‖- aquilo ao que se

costuma referir a teoria sociológica quando fala da ―estrutura social‖

independente da vontade dos atores individuais‖ – é algo diferente: é justamente o

jogo que necessariamente se produz entre a intencionalidade consciente desses

atores e os inevitáveis efeitos de dissipação dessa intencionalidade que suas

mesmas ações originam.52

A dificuldade na percepção deste processo cria a impressão de que não estamos num

mesmo sistema, em relação de interdependência com todas outras partes do sistema. Surge

assim a ilusão de que somos uma parte independente, de que não precisamos nos preocupar

nem com os efeitos das nossas ações sobre outras pessoas ou sobre o próprio meio

ambiente, muito menos nos preocuparmos com problemas e sofrimentos das outras pessoas

ou do meio ambiente. Vivemos a ilusão de que estes problemas não tem a ver conosco e

que nunca nos atingirão.

Esta é uma das razões porque é mais fácil percebermos a solidariedade como um

fato em pequenos grupos sociais, principalmente se estamos vivendo em um meio hostil ou

se estamos enfrentando um perigo comum. Por isso, a própria noção de solidariedade pode

51

MORIN, E. Os sete saberes...op. cit., p. 40-41. 52

NAVARRO, Pablo. El fenomeno de la complejidad social humana. Disponível na Internet, junho/2000.

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55

ser distorcida e pervertida. Há solidariedade também em uma gangue e em organizações

criminais, onde a lealdade ao grupo é exigida até ao extremo e há disciplina e sentimento de

que o bem do grupo é o bem do indivíduo.

Restringir o campo da interdependência ao pequeno grupo é um caminho mais fácil

para perceber e se viver a prática de solidariedade. Mas, na medida em que este grupo se

fecha ao sistema mais amplo dentro do qual vive e age, considerando-se como uma parte

autônoma e independente, perverte as noções de interdependência e de solidariedade, o

reconhecimento de que vivemos todos em relações de interdependência e que o presente e o

futuro de cada um/a está ligado/a ao presente e o futuro da coletividade.

Um terceiro aspecto tem a ver com esta última idéia. Os efeitos benéficos e

maléficos do interior de um sistema não são distribuídos eqüitativamente. Tomemos como

exemplo o problema do efeito estufa. O aumento da temperatura vai elevar o nível do mar

em todo planeta e todos nós seremos afetados por isso. Mas, isto não significa que todos

nós seremos afetados da mesma maneira. Os habitantes das pequenas ilhas do Oceano

Pacífico serão um dos primeiros grupos a serem afetados porque vivem ao nível do mar e

não há lugares altos nas suas ilhas para toda a população. Depois serão afetados os que

vivem no litoral em todos os lugares. Mas os moradores dos planaltos não sofrerão

imediatamente estes efeitos. Alguns até esperam ganhar dinheiro com a valorização das

suas terras em lugares altos.

Aliás, há um economista norte-americano, Thomas G. Moore, membro do Instituto

Hoover, que defende a tese que o aquecimento global é um bom negócio. Os países

nórdicos, Estados Unidos, Canadá, Inglaterra e outros gastariam menos dinheiro com o

sistema de calefação e terras geladas com muitas riquezas naturais como a Sibéria e parte

do Canadá poderiam ser exploradas economicamente. É claro que os moradores de lugares

baixos sofreriam e deveriam mudar para lugares altos, se tiverem dinheiro para tanto.

Os que ocupam melhores lugares no sistema não se preocupam tanto com os efeitos

maléficos que não os atingem imediatamente, nem de um modo mais grave. Podem até ter

conhecimento do fato da interdependência, mas não reconhecem este fato como algo

significativo nas suas vidas e, por isso, são muito resistentes às propostas de mudanças

necessárias nos seus estilos de vida. No caso de efeito estufa, é fundamental que os países

mais ricos diminuam ou modifiquem o seu padrão de consumo.

Por não conhecimento das relações de interdependência, ou por falta de

reconhecimento deste fato como algo significativo na vida das pessoas e das sociedades,

vivemos sem ver que a interdependência é um fato do qual não podemos escapar. O

conhecimento deste fato pode ser adquirido com uma educação baseada na

transdisciplinaridade e perspectiva sistêmica. O reconhecimento depende de algo mais.

Aqui entram em campo os desejos, os interesses, os medos e outros aspectos afetivos e

emocionais.

O reconhecimento nosso de que esse reconhecimento existencial sobre a

interdependência pressupõe um conhecimento, mas que não é um resultado necessário deste

conhecimento nos dá uma idéia das possibilidades de contribuição da educação, sem

colocar, ao mesmo tempo, demasiado peso sobre os seus ombros.

A insuficiência do desenvolvimentismo

Durkheim, no livro que mais tratou do problema da solidariedade e coesão social,

Da divisão do trabalho social, escreveu:

Page 56: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

56

A divisão do trabalho é, pois, um resultado da luta pela vida, mas é um desenlace

atenuado da mesma. De fato, graças a ela, os rivais não são obrigados a se

eliminarem mutuamente, mas podem coexistir uns ao lado dos outros. Por isso, à

medida que se desenvolve, ela fornece a uma maior número de indivíduos que, em

sociedades mais homogêneas, seriam condenados a desaparecer, os meios para se

manterem e sobreviverem.53

Segundo ele, a divisão do trabalho é, ou era, um dos pilares fundamentais da

solidariedade orgânica, da coesão social, mas era também a chave para a integração de mais

pessoas à sociedade. O desenvolvimento da divisão do trabalho, isto é, o desenvolvimento

econômico moderno era tido como uma das formas mais importantes de solidariedade

social, na medida em que possibilitava aos que estavam à margem da economia serem

incorporados na dinâmica econômica e assim sobreviverem.

Esta idéia, juntamente com a tese weberiana da racionalização do mundo moderno,

compõe um dos pilares das teorias de desenvolvimento econômico que tiveram grande

aceitação nos meados do século XX. Uma idéia central nessas teorias era que o crescimento

econômico - dentro das relações mercantis como os países ricos (teorias

desenvolvimentistas “burguesas”), ou liberto das relações de dependência em relação aos

“países cêntricos” (teorias da dependência) – levaria à eliminação da pobreza, superação

das grandes desigualdades sociais e a um padrão de consumo igual ao do Primeiro Mundo

(para o primeiro grupo) ou a um padrão digno e respeitável (para o segundo grupo).

As teorias desenvolvimentistas e as de dependência estão meio fora de moda hoje,

mas a idéia de que a modernização e crescimento econômicos é o caminho para a solução

dos problemas sociais continua ainda em voga. Não somente entre os

“desenvolvimentistas” remanescentes, mas também entre os defensores das políticas

neoliberais. A diferença é que para estes últimos os ajustes econômicos, a privatização

completa da economia e a diminuição do papel do Estado nas questões econômicas e

sociais são condições prévias para o crescimento econômico e a posterior solução dos

problemas sociais.

O problema é que esta abordagem não é mais suficiente. Pois, com a revolução

tecnológica que estamos vivendo, a produção econômica cresce sem aumentar o nível de

emprego, sem incluir mais gente na divisão do trabalho social como era de se esperar em

uma visão baseada na solidariedade orgânica (Durkheim). Pelo contrário, a economia

cresce despedindo trabalhadores que não são e nem serão mais necessários. É o grave

problema do desemprego estrutural. E numa sociedade de mercado como a nossa, estar

desempregado sem ajuda do Estado ou dos familiares significa estar excluído dos espaços e

relações que possibilitam viver dignamente.

É claro que sempre houve progresso tecnológico na história da humanidade. Com o

advento do mundo moderno industrial, este progresso se acelerou e provocou nos

trabalhadores a pressão para ir se adaptando às novas tecnologias. Esta insegurança foi

enfrentada, principalmente nos países social-democratas da Europa, com o Estado de bem-

estar-social. As políticas que compunham esse Estado foram concebidas como um

instrumento para reabilitar os temporariamente inaptos e estimular os aptos a se

53

DURKHEIM, Émile. Da divisão do trabalho social. 2a. ed., São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 268.

Page 57: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

57

empenharem mais, protegendo-os do medo de perder a aptidão no meio do processo. Como

diz Bauman,

a comunidade assumia a responsabilidade de garantir que os desempregados

tivessem saúde e habilidades suficientes para se reempregar e de resguarda-los dos

temporários soluços e caprichos das vicissitudes da sorte. O estado de bem-estar

não era concebido como uma caridade, mas como um direito do cidadão, e não

como o fornecimento de donativos individuais, mas como uma forma de seguro

coletivo.54

O documento final “Desenvolver uma Cultura de Solidariedade” do Copenhagen

Seminars For Social Progress, promovidos pelo Ministério das Relações Exteriores da

Dinamarca, chama este mecanismo de “solidariedade entre grupos e classes sociais com

diferentes níveis de riqueza e renda.‖55

É uma solidariedade institucionalizada que

funciona de modo auto-regulado, isto é, sem necessidade de ações solidárias voluntárias

individuais ou grupais.

Hoje, com a revolução tecnológica em andamento, os/as inaptos/as não são mais um

grupo marginal e temporário, mas constituem um crescente setor da população que,

mantido na atual condição de competência, provavelmente nunca reingressará na economia

“formal”. Frente a esta situação, quando mais se necessita da intervenção do Estado de

bem-estar para recapacitá-los/as e ajuda-los/as, a opinião dominante é que não há mais

condições financeiras para custear estes programas e, o pior, que estes programas são

ineficazes e sem sentido.

Os Estados estão em condições orçamentárias precárias, não há muita vontade

política para reformas necessárias para a implantação eficaz destes programas e na

sociedade vigora o que Galbraith chamou de “cultura de contentamento”. Os que estão

“satisfeitos” com a ordem econômica vigente, os que têm capacidade financeira para

contribuir na forma de impostos para financiar estes programas, acreditam que “não estão

fazendo mais do que auferir o seu justo merecimento” e que se “a boa fortuna é merecida

ou se é uma recompensa do mérito pessoal, não há justificativa plausível para qualquer

ação que possa vir a prejudicá-la ou inibí-la que venha a reduzir aquilo que é ou poderá

ser usufruído.”56

Em outras palavras, acham que é do seu direito não contribuir para o que

antes era considerado como um “seguro coletivo”.

Além disso, o desenvolvimento tecnológico chegou a tal ponto que somos capazes

de destruir a natureza em uma velocidade superior à capacidade da natureza de se refazer.

Com isso, estamos colocando também em perigo a vida das futuras gerações, um problema

ausente na dinâmica social baseada somente na divisão do trabalho atual.

Quando falamos que hoje a solidariedade do tipo orgânico (Durkheim) não é mais

suficiente, não estamos querendo dizer que alguma vez tenha sido plenamente suficiente

para resolver todos os problemas sociais. Até recentemente, nas sociedades modernas

industriais este tipo de solidariedade era suficiente para manter a coesão social e gerar

54

BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p.51. 55

Copenhagen Seminars For Social Progress. Develop a Culture of Solidarity. Disponível na Internet,

junho/00. 56

GALBRAITH, John Kenneth. A cultura do contentamento, São Paulo: Pioneira, 1992, p.12

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58

progresso econômico e social. É claro que havia pessoas e grupos sociais à margem deste

progresso, mas esta situação não ameaçava a reprodução da sociedade como um todo.

A diferença hoje é que com o fenômeno do desemprego estrutural, do número

massivo dos “sobrantes”, dos que não são necessários ao sistema econômico, e do

conseqüente dualismo social – tão visível nos países como Brasil – a insuficiência se tornou

estrutural. O mecanismo de solidariedade orgânica não é mais capaz, por si só, de ir

incluindo mais pessoas. Com isso, as sociedades correm risco de uma ruptura interna.

Aliás, este tipo de preocupação está afetando até mesmo pensadores como Francis

Fukuyama, um ardoroso defensor do capitalismo, que escreveu um livro sobre este assunto

com o título “A grande ruptura”.57

Parece que os mecanismos auto-organizadores, até hoje vigentes nas nossas

sociedades, não são mais capazes de solucionar este grave problema atual. Razão pela qual

esse tema da solidariedade volta a ser discutido, isto é, trazido ao nível da consciência

social.

Nós não estamos preocupados somente com a coesão e a reprodução social. A nossa

principal preocupação, ao tratarmos da questão educação e solidariedade, consiste na

integração ou inclusão da massa dos/as excluídos/as na vida social, nas condições de

possibilidade de viverem uma vida digna e prazerosa.

Exclusão social

Antes de continuarmos a nossa reflexão sobre a solidariedade, precisamos dirimir

alguns possíveis equívocos ou mal-entendidos em torno do conceito de exclusão social.

Desde o início deste capítulo temos insistido na interdependência de tudo e de todos como

um fato. Agora estamos dizendo que há pessoas e grupos sociais que estão excluídos.

Afinal, todos estão interligados ou há grupos excluídos? A realidade social é complexa e

não permite uma resposta simples do tipo sim ou não.

O conceito “exclusão” pede um complemento. Excluído/a de que? É claro que a

massa imensa dos/as excluídos/as não está fora do planeta Terra, nem dos seus respectivos

países em que vivem. Neste sentido continuam em relações de interdependência com o

resto da humanidade e com todos os outros seres vivos e não-vivos da natureza. Essas

pessoas também não estão excluídas do alcance dos meios de comunicação de massa que

socializa a cultura dominante e o padrão de desejo de consumo. As pessoas pobres também

têm os desejos de consumo em grande parte determinados pelos meios de comunicação,

mesmo que elas não tenham condição de satisfazer estes desejos via compras no mercado.

Esta impossibilidade ou grande dificuldade de satisfazer os desejos de consumo e as

suas necessidades básicas para uma vida digna está ligada à sua exclusão ou a uma inserção

extremamente desfavorável no mercado de trabalho. Como dissemos acima, o desemprego

estrutural é, sem dúvida, um dos problemas fundamentais da nossa época, além de ser uma

das causas principais da exclusão social.

Há muitas causas desse desemprego estrutural. Por brevidade, vamos citar somente

as duas que têm a ver com o nosso tema educação e solidariedade. A primeira está

relacionada com a mudança no padrão de produção por causa da revolução tecnológica que

estamos vivendo. Esta revolução, que está gerando a sociedade de informação, foi

precedida por duas outras grandes revoluções tecnológicas na história da humanidade. A

57

FUKUYAMA, Francis. A grande ruptura. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.

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59

primeira foi a revolução agrícola, que teve início mais ou menos há dez mil anos, e a

segunda foi a revolução industrial, que começou no século XVII. Estas grandes revoluções

tecnológicas, inevitáveis em termos históricos, modificaram e modificam hoje

profundamente o modo de sociedades trabalharem e viverem. O que significou e significa

ainda hoje a necessidade de reaprendizagem por parte dos trabalhadores/as que aprenderam

o padrão que está sendo substituído.

Na passagem de uma sociedade de caçadores-coletores para uma sociedade agrícola,

as pessoas tiveram que aprender a lidar com a terra, com as sementes e a entenderem as

variações climáticas. Por ocasião do surgimento de sociedades industriais, os/as

trabalhadores/as acostumados/as com o campo tiveram que aprender a ler não a natureza

mas sim o alfabeto e a aprender a lógica do funcionamento das máquinas e a se adaptarem

às novas formas de trabalho e de sociabilidade nas cidades. Nos dias de hoje, com a

revolução da informática, os/as trabalhadores/as precisam aprender não somente o alfabeto,

mas também a lógica do funcionamento dos computadores e das máquinas de alta

tecnologia. Além de adquirir, isto é aprender, formas de relacionamento e posturas como

iniciativa, criatividade, capacidade de comunicação e de trabalho em equipe, coisas que o

padrão anterior (das linhas de produção nas indústrias) não só não exigia, mas também

proibia.

Domínio da língua natal, raciocínio abstrato e lógico, conhecimento básico da

álgebra e geometria, capacidade de comunicação, iniciativa e criatividade são hoje

requisitos básicos – nem sempre suficientes – para se ingressar no mercado de trabalho. E

todos nós sabemos que estas qualidades não são inatas e nem adquiridas nas ruas. Também

não basta ir à escola, se a escola continua oferecendo uma educação para um mundo que

está acabando. Uma educação baseada num tipo de disciplina que inibe iniciativa e

criatividade, numa estrutura curricular e ensino de matérias que não tomam em conta a

complexidade da realidade e não utiliza abordagens transdisciplinares e/ou de temas

transversais não é mais capaz de preparar as pessoas para uma boa inserção do mercado de

trabalho e na sociedade.

Escolas e educadores que, por diversos motivos, não colaboram para preparar

alunos/as para esta nova sociedade e novo tipo de trabalho estão, de um modo ou outro,

conscientemente ou não, contribuindo para o aumento ou manutenção da exclusão social.

Por isso a renovação profunda da educação é hoje uma tarefa social extremamente

prioritária. Escolas atrasadas significam aumento da exclusão. Escolas que se renovam e

atualizam significam salvar vidas humanas.

Não estamos querendo imputar toda responsabilidade ao sistema educacional, mas

não podemos negar que todos nós que fazemos parte dele, de uma maneira ou outra, temos

uma parcela de responsabilidade. Estamos dizendo responsabilidade, não necessariamente

culpa, que é uma outra questão. E reconhecer que temos parcela de responsabilidade é a

condição para podermos tomar novas atitudes e tentar fazer algo para mudar a situação.

Para as pessoas que já saíram das escolas e estão buscando emprego ou algum tipo

de trabalho com o qual possam viver, o processo de readaptação ou nova aprendizagem

enfrenta o grave problema do tempo. Este processo exige tempo, além de organismos

educacionais que as ajudem na recapacitação. E tempo significa dinheiro. Como vimos

acima, os Estados de bem-estar-social, que funcionavam razoavelmente bem na Europa e

que na América Latina nunca foram uma realidade, tinham como sua missão exatamente

dar suporte financeiro (salários-desemprego, educação) e estruturas institucionais para esse

processo de recapacitação dos/as trabalhadores/as ou adaptação ás novas condições de

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60

trabalho. Isto era uma forma de solidariedade institucionalizada. Os custos desta

solidariedade eram repartidos por toda a sociedade, através de impostos, porque a sociedade

considerava esses mecanismos como um direito de cidadania, como uma forma de “seguro

coletivo”.

Hoje, com a hegemonia da ideologia neoliberal no processo de globalização

econômica, esse modelo de Estado de bem-estar-social foi sendo deslegitimado e

substituído por Estados preocupados fundamentalmente com processos de ajustes

econômicos em vista da dinâmica do mercado mundial, em particular do mercado

financeiro. Daí os cortes nos programas sociais que poderiam amenizar estes problemas e a

exclusão deste problema da lista das prioridades reais dos governos.

Essa mudança no conceito do Estado foi acompanhada pela crescente apatia da

população frente à questão política e insensibilidade social frente ao problema da exclusão

social. Esta apatia e insensibilidade, que leva as pessoas a verem os problemas dos pobres e

problemas estruturais da sociedade como problemas dos/as “outros/as”, têm a ver com a

incapacidade de ver as relações de interdependência entre todas as pessoas e grupos. O

equívoco na percepção da realidade, a falta de uma educação baseada no princípio da

transdisciplinaridade e visão sistêmica do mundo, colabora na manutenção desta situação

social inaceitável do ponto de vista ético e sistêmico.

Alguns, em nome da defesa dos direitos dos/as trabalhadores, simplesmente

criticam todo este processo da mudança do padrão tecnológico e suas conseqüências, sem

perceber que há aspectos positivos e até inevitáveis nele. Para simplificar, façamos uma

analogia deste processo com a “crise” da adolescência. A adolescência é uma fase de

transição na nossa vida que não podemos evitar. É uma fase rica em experiências, mas

também difícil, de insegurança e de necessidade de reordenamento e de readaptação. Assim

como as revoluções tecnológicas na história da humanidade, que propiciam avanços

importantes na vida humana, ao mesmo tempo em que provocam muitos problemas. Só que

há uma grande diferença entre viver a experiência da adolescência em um ambiente

familiar acolhedor, compreensivo e dialógico, e a de viver em um ambiente frio, agressivo

e insensível. A nossa sociedade está vivendo uma fase da transição inevitável, mas há muita

diferença entre viver essas dificuldades em uma sociedade que têm espírito de solidariedade

e busca dar apoio aos/às que têm mais dificuldades no processo de reordenamento e

readaptação e em uma sociedade insensível que corta ainda as poucas formas de

solidariedade institucional já existentes.

A exclusão ou inserção extremamente desfavorável no mercado de trabalho tem

como conseqüência a exclusão do mercado consumidor. Este é o segundo aspecto da

exclusão. Estar excluído/a do mercado consumidor significa, em uma sociedade de

mercado como a nossa, estar excluído/a das condições para satisfazer as necessidades

básicas para uma vida digna. O conceito de necessidades básicas é um conceito muito mal

compreendido nos debates sociais. Alguns, como o pessoal do marketing, simplesmente

identificam as necessidades com os desejos e utilizam estas duas palavras como sinônimos.

Outros, como muitos marxistas e cristãos preocupados com questões sociais, deixam de

lado a questão do desejo e reduzem as necessidades básicas aos itens materiais que

compõem a cesta básica. É claro que sem a satisfação das necessidades materiais básicas o

ser humano não pode sobreviver, mas as pessoas precisam mais do que “comida e bebida”,

precisam se sentir vivas, sentir que a vida vale a pena de ser vivida. E isto tem a ver com os

desejos e com as dimensões simbólicas da vida. Neste sentido, alguns desejos e símbolos

fazem parte das necessidades que compõem a “cesta básica”.

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61

Estar excluído/a do mercado consumidor, não significa somente ter dificuldades em

satisfazer as necessidades básicas (materiais e simbólicas), mas também dificuldades na

construção de identidade e no relacionamento com outros grupos sociais. Pois, em uma

cultura de consumo, como a que estamos vivendo, o processo de consumo é muito mais que

simples relações comerciais. O que uma pessoa consome é um elemento importante na

definição da pertença a um grupo e na diferenciação em relação a outras pessoas e/ou

grupos. Muitos dos grupos de jovens são formados a partir do compartilhar os mesmos

gostos e padrões de consumo. Sendo assim, estar excluído/a do mercado consumidor

significa ter um baixo nível de auto-estima e estar fora das relações sociais significativas e

reconhecidas pela sociedade.

Em suma, as pessoas pobres estão dentro do mesmo território, da mesma sociedade

e do alcance dos meios de comunicação que socializa a cultura e os desejos de consumo.

Mas ao estarem excluídos/as do mercado de trabalho ou de postos de trabalhos

razoavelmente remunerados, estão excluídos/as do mercado consumidor e das relações

sociais significativas e reconhecidas pela sociedade, isto é, pelos que são reconhecidos

como pertencente à parte “boa” da sociedade. Para tentar dar conta desta complexa relação,

estamos usando a expressão “exclusão social”.

Contudo, devemos reconhecer que por trás do uso corrente das palavras “exclusão”

e/ou “excluídos/as” há uma armadilha da qual é muito difícil escapar. Esses conceitos

foram importantes para mostrar que as pessoas pobres, apesar de continuarem sofrendo as

mesmas dores da pobreza de antes, estavam inseridas em um novo contexto econômico e

social. Mas, quando para facilitar a comunicação utilizamos “excludído/a” sem

complemento ou esclarecimento adicional, corremos o risco de identificarmos a exclusão

do mercado com a exclusão como tal. Se fizermos isso, acabamos caindo na lógica (ou

armadilha) neoliberal que reduz todas as dimensões da vida social ao mercado e identifica

tudo com o mercado. Para um neoliberal radical tudo é (ou deve ser) reduzido ao mercado,

todos os aspectos da vida devem ser subordinados à lógica do mercado.

Com isso, nós acabamos reproduzindo os velhos esquemas dualistas. As pessoas

podem estar excluídas do mercado formal, mas viver nas franjas do mercado através de

atividades econômicas informais ou ilegais. O mercado não é um sistema econômico

fechado, uma estrutura estática com seus limites claramente delimitados. Como todo

sistema real (isto é, não ideal), o mercado é um sistema aberto que interage com o seu meio

(a sociedade e a natureza) como uma “estrutura dissipativa”, isto é, não é estático, nem está

em equilíbrio ou tem seus limites claramente delimitados.

Além disso, estar excluído/a do mercado e das relações sociais reconhecidas pelo

status quo – o que estamos chamando de exclusão social – não significa necessariamente

não fazer parte de nenhuma outra forma de socialização e/ou de trocas econômicas e

simbólicas. Não admitir isso seria assumir a tese neoliberal de que não há nada de bom e

saudável fora do mercado.

Muitas vezes o termo “excluído/a” nos leva à fantasia de um ser-chutado-para-fora-

do-mundo, quando esse povão fica dentro desse único mundo e investe todos os seus

desejos nele. É engraçado que geralmente são só os que podem satisfazer um nível razoável

dos seus desejos, como os intelectuais ou atores políticos, que investem os seus desejos em

outro mundo. Parece que quem tem que se virar neste mundo para realizar algo dos seus

desejos, como os pobres, investe as suas energias e desejos neste único mundo que temos.

É difícil sair dessa armadilha. Uma tentativa seria de usar a expressão “excluído/a

social” no lugar do termo “excluído/a”, mas não resolve todos os problemas, além de não

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62

ser esteticamente interessante. Assim, continuaremos usando o termo “excluído/a”

esperando que o/a leitor/a tenha em mente todas essas reflexões. De vez em quando

colocaremos algum complemento, só para nos lembrarmos que é muito difícil sair das

armadilhas em que a linguagem usual nos coloca.

Sensibilidade solidária com os/as excluídos/as

A figura de excluído/a social entra nas nossas vidas como uma “perturbação”, seja

através das cenas que passam na TV ou das pessoas concretas que cruzamos nas nossas

ruas ou olhamos pelos vidros dos carros. Perturba-nos porque nos causa um certo abalo no

espírito, nos faz perder a serenidade, nos confunde, nos embaraça, nos intimida, nos

incomoda. Ao mesmo tempo, como uma perturbação que nos obriga a uma mudança na

maneira de viver ou ver o mundo e as pessoas ou que nos exige uma resposta no sentido de

dar uma explicação que permita integrar esta experiência sem mudanças fundamentais na

nossa maneira de ser, viver e olhar o mundo.

Nós não conhecemos as cenas e as pessoas como elas são “em si”, mas sempre

através de uma interpretação. E esta interpretação é feita a partir da cultura que temos

internalizada em nós e na qual vivemos. Vimos um pouco disso acima, quando, citando

Morin, dissemos que a cultura é um instrumento de cognição que abre e fecha as nossas

“janelas”, isto é, as nossas possibilidades de conhecimento. O sistema social que exclui as

pessoas produz também uma cultura que “explica” este paradoxo de pessoas e grupos

estarem dentro do nosso mundo, ao mesmo tempo em que estão fora.

Elas estão dentro do horizonte das nossas visões, por isso as vemos mesmo que seja

através da tela de uma TV, mas elas estão fora do sistema produtivo e das relações sociais

significativas e reconhecidas pela sociedade. Assim sendo, elas são vistas e explicadas

como “perturbações” da “vida normal”, do funcionamento do sistema econômico e cultural

dominante. São pessoas e grupos sem funções no sistema. Podemos dizer que elas estão

“dentro-e-fora” do sistema. Por isso são “sobrantes”, excluídas e vistas como perigosas.

Neste processo de rotulação social, essas pessoas são vistas geralmente como culpadas das

suas condições.

Uma característica importante da cultura dominante é que ela se apresenta como a

cultura. O mundo organizado e interpretado por essa cultura é visto como a realidade. Esta

característica de se apresentar como a realidade dá certezas inabaláveis para pessoas que

vivem dentro e segundo essa cultura. Esse modo de viver baseado nas certezas é

concomitante ao modo de conhecer que se crê capaz de conhecer com certezas. Quem tem

essas certezas não é capaz de se abrir ao novo que foge, que está além, das rotulações e das

funções e explicações do sistema vigente. Torna-se intolerante com o diferente, com

pensamentos e pessoas que ameaçam essas certezas.

As pessoas e sociedades vivem baseadas na crença dessas certezas porque crêem

que é possível ter certezas absolutas. E essas certezas seriam possíveis porque só haveria

uma única realidade passível de ser desvendada por algum tipo de ciências ou religiões

portadoras ou anunciadoras das verdades absolutas. Não haveria nada fora e além do

alcance dessas certezas. Essas teorias, quando adotam uma abordagem sistêmica, são

teorias de sistemas fechados, que não admitem a possibilidade de sistemas abertos e,

portanto, sem verdades e certezas absolutas.

Quando as escolas ensinam ciências, em especial as ditas exatas e biológicas, como

se elas fossem capazes de produzir certezas, estão reforçando essa visão do mundo como

Page 63: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

63

um sistema fechado. E esta visão leva à intolerância e a não compreender que por detrás

das rotulações dos/as excluídos/as, feitas pela cultura dominante, existem pessoas, histórias

e outros sistemas e modos de viver.

Um processo de aprendizagem que leva as pessoas à intolerância frente ao diferente,

abre as portas para uma cultura do narcisismo (C. Lasch). Pois, “o que justamente

caracteriza a subjetividade na cultura do narcisismo é a impossibilidade de poder admirar

o outro em sua diferença radical, já que não consegue se descentrar de si mesma.”58

Solidariedade não é só uma questão temática a ser tratada por algumas disciplinas

da área de humanas ou sociais ou então por temas transversais. Solidariedade tem a ver com

o modo de ver o mundo e a vida. Solidariedade é uma relação inter-humana fundamentada

na alteridade, que pressupõe o reconhecimento do/a outro/a na diferença e singularidade,

atributos da alteridade. Reconhecer o/a outro/a na diferença pressupõe relativizar a si

mesmo, as nossas certezas, enfim, todas as mesmices. Sendo assim, ensinar pressupondo a

possibilidade de certezas é tender para uma negação da solidariedade com os/as que estão

“dentro-e-fora” do sistema.

Como ser solidário/a com estes grupos e pessoas? Isto é, como interpretar essas

“perturbações” de tal modo que queiramos reordenar as nossas vidas em direção a ações e

atitudes que favoreçam a criação de novas condições que possibilitem uma vida digna e

prazerosa para eles/as?

A primeira condição epistemológica é que haja lugar para dúvidas na nossa

maneira de conhecer a realidade. Sem duvidar das nossas certezas culturais e dos rótulos

sociais que estamos acostumados a usar para classificar as pessoas, não há possibilidade

para um novo tipo de percepção das pessoas e do mundo. Isso significa que uma educação

que dê lugar e considere positivamente as dúvidas é um passo fundamental. Não somente a

dúvida de quem aprende e de quem ensina, mas a dúvida e a incerteza como uma parte

integrante do fazer ciência, do conhecer a realidade. Rejeitar a idéia arcaica da ciência

como um conjunto de verdades que vão se acumulando e assumir uma concepção mais

adequada às últimas descobertas científicas, que mostram que as teorias científicas vão se

sucedendo ao longo da história e não passam de modelos explicativos parciais e sempre

provisórios de determinados aspectos da realidade. Só assim estaremos realmente

abertos/as ao novo.

A segunda condição é a valorização da sensibilidade como conhecimento.

Sensibilidade no sentido de experiências físicas da visão, audição e tato. A relativização da

nossa capacidade racional e das nossos teorias racionais deve vir acompanhada da

valorização das nossas experiências sensitivas, do nosso contato visual ou físico com as

pessoas, que são sempre realidades mais complexas e portadoras de mistérios que

transcendem a nossa capacidade racional. Também é preciso valorizar a sensibilidade no

sentido da “sensibilidade humana”, a capacidade de sentir a empatia e a compaixão, de se

deixar tocar pelas vidas, sofrimentos e alegrias, esperanças e desejos das outras pessoas.

Nesse sentido, a solidariedade para com os/as excluídas é sempre mais do que a

solidariedade na concepção tratada no início do capítulo. A solidariedade que nasce do

reconhecimento da interdependência dos membros de um mesmo sistema não dá conta

desse tipo de solidariedade para com os/as que estão “dentro-e-fora” do sistema, para com

os/as cujas mortes e sofrimentos alteram muito pouco ou quase nada nas nossas vidas

imediatas. Para esse tipo de relação é preciso antes de mais nada uma “sensibilidade

58

BIRMAN, Joel. Mal-estar na atualidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999, p. 25.

Page 64: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

64

solidária”. A palavra sensibilidade quer mostrar que a solidariedade como ato ético-

subjetivo radical só acontece quando entram em jogo os “sentidos’, como a percepção

empática do sofrimento e angústia dos/as outros/as. O ver e o ouvir, alterando a

sensibilidade da nossa pele. Ao mesmo tempo, a sensibilidade é a condição a priori para

que o/a outro/a possa irromper no meu mundo como outro/a.

Nas palavras de E. Dussel:

[...] o fato de que o rosto do miserável possa ―interpelar-me‖ é possível porque sou

―sensibilidade‖, corporalidade vulnerável a priori. [...] Sua aparição não é uma

mera manifestação mas uma revelação; sua captação não é compreensão mas

hospitalidade; diante do outro a razão não é representativa, mas presta ouvido

sincero à sua palavra.59

Quando somos capazes de nos permitir esta abertura ao/à outro/a, quando somos

capazes dessa sensibilidade solidária, podemos ouvir e conhecer histórias de vidas das

pessoas que rompem com os nossos esquematismos pré-concebidos. Na medida em que

relativizamos os nossos preconceitos e as nossas teorias provisórias e parciais, somos

capazes de tentar entender as experiências e vidas destas pessoas a partir do mundo e

história delas. Aprendemos que a vida das pessoas não pode ser interpretada a partir de

fora, a partir das nossas categorias que pouco têm a ver com a vida delas. Descobrimos que

para conhecer a realidade complexa das vidas humanas e sociais o caminho não é a

proposta cartesiana de “idéias claras e distintas”, mas a aproximação respeitosa e dialógica.

Esta aproximação é mais do que um método de abordagem do real. É uma maneira

de compreender nossa relação com os seres humanos e não-humanos. Uma abordagem que

vai descobrindo diferentes perspectivas, lugares e tempos neste diálogo e aproximação.

Assim, somos capazes de descobrir um aspecto fundamental da realidade: a existência de

muitos mundos diferentes dentro do nosso mundo, a pluralidade dentro da realidade. E ao

reconhecer a pluralidade na realidade, aprendemos a reconhecer a pluralidade das

interpretações, a respeitar as diferentes perspectivas e pontos de partida.

Esse reconhecimento e diálogo é essencial para a sensibilidade solidária, porque,

como diz M. Pensky, a solidariedade ―exige uma preocupação por outros/as, uma

habilidade de assumir o papel do outro e de ver os interesses e bem-estar de outros como

intimamente conectado com os seus próprios interesses e bem-estar.‖60

Empatia e medo

A percepção do sofrimento do/a outro/a, em particular dos/as excluídos/as não é,

contudo uma questão meramente teórica. Não basta o conhecimento da teoria dos sistemas

abertos e/ou as teorias da complexidade para que ocorra a sensibilidade solidária. Pois um

conhecimento meramente teórico, racional, não é suficiente para gerar uma postura

existencial desse tipo.

59

DUSSEL, Enrique. Ética da liberação na idade da globalização e da exclusão. Petrópolis: Vozes, 2000, p.

367. 60

PENSKY, Max, op. cit., p. 130.

Page 65: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

65

A percepção do sofrimento na terceira pessoa – isto é, o sofrimento infligido a

outrem por um terceiro – sempre provoca um processo afetivo no sujeito. “Perceber o

sofrimento alheio provoca uma experiência sensível e uma emoção a partir das quais se

associam pensamentos cujo conteúdo depende da história particular do sujeito que

percebe: culpa, agressividade, prazer, etc.”61

Se a pessoa que percebe o sofrimento alheio

tem muita dificuldade em perceber e conviver com os seus próprios limites, medos e

sofrimentos, também terá muita dificuldade em perceber empaticamente o sofrimento do/a

outro/a. Assim sendo, tenderá a assumir uma postura de indiferença ou de agressividade

como forma de defesa frente à sua dificuldade em perceber o seu próprio sofrimento. E não

cabe dúvida que a nossa cultura oferece muitas formas “civilizadas” de justificar esta

insensibilidade social.

Infelizmente, na maioria das vezes a reação não é só de indiferença, mas de

agressividade. As pessoas e grupos sociais integrados no mercado se sentem agredidos e

ameaçados por grupos que estão à margem da sociedade. Ameaça que algumas vezes é real,

mas que na maioria das vezes é superestimada. Isto é, a possível ameaça deles é percebida

de um modo exagerado, ou no mínimo desproporcional às condições sociais objetivas. Com

isso se assumem posturas agressivas desproporcionais e, muitas vezes, injustificadas e/ou

não merecidas.

Isso se explica em parte pela nossas dificuldades em convivermos com a

ambigüidade das nossas vidas, como os nossos medos, limites e sofrimentos. A nossa

civilização ocidental moderna não nos educou para aceitar e convivermos com as

ambigüidades da vida, como por exemplo a tensão e a convivência entre a vida e a morte, o

amor e a insegurança frente à possibilidade de perder a pessoa amada, o desejo de

felicidade plena e a inevitável frustração desse desejo. Assim nós tendemos a projetar para

fora dos “muros” da sociedade estas ambigüidades das nossas vidas e da nossa sociedade.

Os nossos “demônios interiores” são encarnados naqueles que “sitiam” os nossos muros e

nossas vidas, os/as excluídos/as sociais. A presença deles/as nos recorda os nossos medos e

ambigüidades que queremos não ver. Existem duas formas de resolver esta situação:

sermos agressivos com os/as que nos recordam o que queremos esquecer; ou enfrentarmos

os nossos próprios medos e sofrimentos e percebermos que nós, os/as incluídos/as e os/as

excluídos/as compartilhamos da mesma condição humana.

Sem uma educação que nos ajude a convivermos com os limites e as ambigüidades

da condição humana, como a morte e a vida, a dor e o prazer, sofrimentos e alegria, medos

e coragens, egoísmos e gestos de solidariedade, necessidades e desejos, etc., teremos muita

dificuldade em percebermos com empatia e compaixão (sentir a mesma paixão/dor) os

sofrimentos dos/as e excluídos/as pela sociedade. E para isso, é também importante que no

processo de educação se reconheça que as teorias e ciências que se ensinam são sempre

provisórias e parciais.

Esperança humana

Recentes anúncios sobre o Projeto Genoma reascenderam em muitos/as o secreto

desejo da imortalidade. Desejo secreto, porque a morte é um tema que faz parte do nosso

cotidiano e o anunciar essa palavra nos dá medo e angústia. No afã de negar a ambigüidade

e a precariedade da condição humana, as sociedades moderna e pós-moderna tornaram

61

DEJOURS, Christophe. A banalização da injustiça social. 2a. ed., Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1999, p. 45.

Page 66: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

66

invisível a morte no nosso cotidiano. Os cemitérios desapareceram das nossas vistas, e

parecem muito mais jardins do que cemitérios. No cotidiano, a morte é um assunto

camuflado, evitado e proibido. Violência e morte que ronda as grandes cidades são

transformadas em espetáculos. A cobertura pela televisão das cenas de violência urbana é

recheada com músicas ao fundo para dar mais “emoção”. Com a espetacularização essas

experiências humanas únicas vão perdendo a sua dimensão qualitativa e o seu caráter não-

intercambiável e sendo reduzidas a uma vivência pontual, sem memória e diálogo acerca

das bases sociais da sociedade. Em uma sociedade assim, o avanço científico e tecnológico

no campo da vida nos dá, de novo, a esperança e a ilusão de podermos ser imortais.

Hannah Arendt disse, no final dos anos 50:

talvez o desejo de fugir à condição humana esteja presente na esperança de

prolongar a duração da vida humana para além do limite dos cem anos.

Esse homem futuro, [...] parece motivado por uma rebelião contra a existência

humana tal como nos foi dada – um dom gratuito vindo do nada (secularmente

falando), que ele deseja trocar, por assim dizer, por algo produzido por ele

mesmo.62

É claro que não estamos propondo que o ser humano deixe de lutar para prolongar e

melhorar a qualidade da sua vida. Mas, queremos chamar a atenção para o mito da

imortalidade embutida nas esperanças, e porque não dizer das utopias, depositadas nas

ciências hoje. Os antigos se refugiavam da sua condição humana na certeza dogmática da

imortalidade da alma ou da vida após a morte. A modernidade tentou banir ou esquecer-se

da morte com as promessas de liberdade e construção de mundos utópicos. Esperanças e

utopias têm a importante função de não nos deixar acomodar e a se conformar com a

situação em que vivemos. Mas, quando esperanças ou utopias se propõe ir para além da

condição humana acabam se tornando desumanas. Pois, quando queremos esquecer da

nossa condição humana, não somos capazes de reconhecermos a nós próprios, e nem a

condição humana das pessoas que sofrem com o processo de exclusão social e com a

insensibilidade social

A desumanidade dessas esperanças se torna mais clara quando nos lembramos que a

“salvação” pelas ciências da vida não é para todos/as, mas somente para aqueles/as que

venceram na concorrência do mercado e estão aptos/as para pagar os preços exigidos.

Concorrência obstinada que gera exclusão e insensibilidades sociais. Assim como diversas

configurações históricas do cristianismo que prometiam o céu, a salvação eterna, não para

todos/as, mas somente para aqueles/as que tinham “pago” os sacrifícios necessários.

Ernest Bloch escreveu:

Esperança, esse antiafeto da espera contra a angústia e o medo, é, por isso, o mais

humano de todos os movimentos do ânimo e só acessível ao ser humano, e, ao

mesmo tempo, refere-se ao mais universal e ao mais lúcido dos horizontes.63

Ele tem razão em parte. A esperança é algo tipicamente humano e é fundamental

para superarmos o medo de encararmos os nossos medos e angústias. Mas, ao não

62

ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Univ., 1991. 5a. ed. rev., p.10.

63 BLOCH, Ernest. El principio esperanza. Madri: Aguilar, 1977, tomo 1, p. 61.

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67

reconhecer os limites da factibilidade humana, isto é, ao não reconhecer que o ser humano

pode sonhar, desejar e esperar para além da sua condição humana ou das possibilidades da

história humana, Bloch não percebeu que há – e a história nos dá muitos exemplos –

determinadas esperanças que não são horizontes lúcidos.

Precisamos de esperanças humanas, do tamanho do ser humano, não a Esperança de

soluções definitivas e absolutas, pois estas negam a nossa condição humana. Esperanças

que não podem ser deduzidas das certezas religiosas dogmáticas e nem das pretensas

certezas científicas. (Nunca devemos nos esquecer que doutrinas religiosas e ciências

também são produzidas pelos seres humanos.) Esperança só é esperança quando não se

funda em certezas. Quando há bases seguras, “científicas”, para as nossas projeções

desejantes, temos otimismo. Esperança é quando nós esperamos apesar das nossas

incertezas, apesar das atuais condições humanas e sociais que não nos dão garantia da

possibilidade de realização dos nossos desejos. Alguém é otimista por causa de, enquanto

que nós temos esperança apesar de. Por isso, Horkheimer disse que ―a esperança de que o

horror deste mundo não tenha a última palavra é com toda certeza um desejo não

científico.‖64

A esperança humana, da qual estamos falando, é um horizonte de futuro tecido com

desejo. Não o desejo de um único indivíduo, nem o desejo de subir na “escada do sucesso”

segundo os parâmetros da eficiência do mercado regendo todos os aspectos da nossa vida,

mas o desejo do reconhecimento mútuo e respeitoso entre pessoas e grupos sociais, o

desejo de uma vida mais digna e prazerosa para todos/as. O desejo de um mundo onde

caibam muitos e muitos mundos.

É esse horizonte de esperança que nos mostra, nos revela, a mesquinhez e a

irracionalidade de uma sociedade centrada na exclusão e insensibilidade, e a desumanidade

de uma vida humana voltada para negar a sua condição humana.

Horizonte de esperança não é algo que se toma dentre as ofertas do mercado, nem

pode ser produzido individualmente. Como todo horizonte de compreensão, ele deve ser

tecido no diálogo, na construção de uma linguagem e esperanças comuns. Por isso, um

horizonte de esperança que nos abra e nos interpele para a sensibilidade solidária só pode

ser fruto de um desejo de dialogar com os/as que estão dentro-e-fora da sociedade, do nosso

mundo (o mundo de cada um, o mundo de cada grupo social). Diálogo que pressupõe o

reconhecimento mútuo.

Quando nos imergimos neste horizonte, descobrimos algumas verdades humanas

básicas. A descoberta da minha condição humana não se dá fora do reconhecimento da

condição humana (da dignidade humana) dos que estão “dentro-e-fora” da sociedade. Eu

não posso me descobrir como pessoa humana, se não “descobrir” o/a outro/a, o/a diferente,

como participante da mesma condição humana. É o reconhecimento do/a diferente como

“igual”, isto é, co-participante da mesma condição humana, que me possibilita encontrar

comigo mesmo. Na década de 70 havia uma propaganda que mostrava um menino e uma

menina, cada um olhando dentro do shorts de banho do/a outro/a. Acima do desenho, a

frase: “Ah! Descobri a diferença!”. É a descoberta de que existe um sexo diferente na

mesma espécie humana, que me faz descobrir que eu sou um ser sexuado, masculino ou

feminino.

64

HORKHEIMER, Max. Prólogo ao livro de JAY, Martin, The Dialetical Imagination. A History of the

Frankfurt School. Londres: Heinemann, 1973, p. xii.

Page 68: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

68

Em resumo, tentar encontrar-se consigo mesmo e realizar-se como ser humano

negando o/a outro/a que lhe revela e lhe lembra as suas angústias e medos inerentes à sua

condição humana é um caminho trágico, no sentido grego desse conceito, isto é, não como

destino, mas como tomada de consciência de um desafio radical que faz parte da nossa

condição humana.. A única forma de nos realizarmos como seres humanos é reconhecendo

e assumindo a nossa condição humana. É isto que nos possibilita vivermos as alegrias da

vida, mas também os momentos tristes e angustiantes. Esse assumir a nossa condição

humana pressupõe o reconhecimento do/a outro/a que nos lembra das nossas inseguranças.

Este reconhecimento mútuo só é possível se cultivarmos e vivermos a sensibilidade

solidária e o horizonte de esperança. Educar para esperança é uma das chaves para educar

para a sensibilidade solidária.

Queremos terminar este capítulo oferecendo algumas reflexões de dois pensadores –

coincidentemente dois judeus – sobre onde encontrar o fundamento ou forças para a

esperança. O primeiro pensador, Horkheimer, nos aponta para a direção de uma aposta

radical, uma aposta no sentido da fé. Uma aposta na esperança que se funda na negação do

caráter absoluto de qualquer sistema social ou coisa que há sobre a face da terra.

Perguntado sobre o absoluto, ele disse:

Não podemos comprovar a existência de Deus. O conhecimento consciente do

desamparo, da nossa finitude, não se pode considerar como prova da existência de

Deus, senão que tão somente pode produzir a esperança de que exista um absoluto

positivo.(...) Não podemos representar o absoluto, não podemos, quando falamos

do absoluto, afirmar muito mais que isto: o mundo em que vivemos é algo

relativo.65

Ele fala da esperança de um absoluto positivo não para afirmar Deus, mas sim para

afirmar a relatividade do mundo, a nossa condição humana, contra aqueles que querem

fazer do sistema social vigente um absoluto. É a negação do mundo atual como absoluto

que nos abre a possibilidade para a esperança e para a sensibilidade solidária. Essa é uma

compreensão da religião bem diferente, e à qual muitos não estão acostumados. Uma

compreensão da religião que está baseada na interpretação da proibição, no judaísmo, de

representar a Deus: “Creio que este [mandamento com esta proibição] existe porque na

religião judaica não se trata de ver como é Deus, senão de como é o homem.”66

Por isso, para ele a teologia não é a ciência do divino ou de Deus, mas

significa aqui a consciência de que o mundo é um fenômeno, de que não é a

verdade absoluta nem o último. A teologia é - me expresso conscientemente com

prudência - a esperança de que a injustiça que caracteriza o mundo não pode

permanecer assim, que o injusto não pode considerar-se como a última palavra.‖67

65

HORKHEIMER, Max. “La añoranza de lo completamente otro”, em: MARCUSE. H., POPPER, K. e

HORKHEIMER. M.. A la búsqueda del sentido. Salamanca: Sígueme, 1976, pp. 67-124. Citado da p. 103. 66

Idem, La añoranza..., op.cit, p. 104. 67

Idem, La añoranza..., op.cit, p. 106.

Page 69: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

69

Um outro autor judeu, Elie Wiesel, ganhador do Prêmio Nobel da Paz em 1986, que

sobreviveu a Auschwitz, nos oferece uma reflexão que aponta para uma outra direção, mas

que, no fundo, se complementa com a de Horkheimer:

Se eu olho ao meu redor, no mundo só vejo falta de esperança. E apesar de tudo,

eu, e todos, temos que tratar de encontrar um fonte de esperança. Temos que crer

no homem, apesar do homem. [...]

Eu não tiro forças unicamente das fontes escritas, as forças provêm também de

nossos comportamentos humanos. E por isso provêm dos outros seres humanos,

sobretudo das crianças.68

Podemos falar hoje de sensibilidade solidária e de esperança porque muitos/as antes

de nós e ao nosso redor viveram e vivem estas duas qualidades que fazem valer a pena

pertencermos à espécie humana. Terminamos o capítulo com uma pequena e antiga história

que Wiesel contou, ao final do seu diálogo, para responder a uma pergunta sobre o futuro

do ser humano.

Um rei ouviu dizer que no seu reino havia um sábio, um homem que falava todas as

linguagens do mundo. Sabia escutar o piar dos pássaros e compreender os seus

cantos. Sabia interpretar o aspecto das nuvens e compreender o seu sentido.

Também sabia ler o pensamento de outros homens. O rei lhe deu ordem de ir ao seu

palácio. O sábio chegou.

Disse então o rei:

- É certo que sabes ler todas as línguas?

Sim, Majestade.

É verdade que sabes escutar os pássaros e que entendes o seu canto?

Sim, Majestade.

É verdade que compreendes a linguagem das nuvens?

Sim, Majestade.

É verdade que sabes ler o pensamento de outras pessoas?

Sim, Majestade.

Disse então o rei:

- Nas mãos, atrás das costas, tenho um pássaro. Diga-me, está vivo ou morto?

O Sábio teve medo, pois se deu conta de que, dissesse o que dissesse, o rei poderia

matar o pássaro. Olhou ao rei e guardou silêncio por um bom tempo. Ao final, disse

algo que eu também quisera dizer aos meus leitores:

A resposta, Majestade, está em suas mãos. Você perguntou pelo porvir. A resposta está em nossas mãos.

69

68

METZ, Johann B. & WIESEL, Elie. Esperar a pesar de todo. Madri: Trota, 1996, pp. 73 e 74. 69

Idem, op.cit.¸ p. 107.

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70

Capítulo 3

DIGNIDADE HUMANA:

O ACESSO A CAPACIDADES BÁSICAS

No final do século XVIII, durante uma viagem através da China como secretário particular

do Conde de Macartney, embaixador do Rei da Inglaterra, John Barrow testemunhou uma

cena estranha:

Entre as pessoas que se amontoavam às margens do grande canal (que leva a Cantão),

muitas se puseram sobre a alta popa de um velho barco que, infelizmente, rompendo-se com

o peso, atirou ao canal todo um grupo delas. Apesar de vários botes navegarem pelo lugar,

não se observou nenhum que saísse em auxílio dos que lutavam com as águas; um homem

foi visto muito ocupado em tirar da água, com seu arpão, o chapéu de um homem que se

afogava. Isto aconteceu porque havia abundância de homens e escassez de chapéus. Se os

chapéus fossem abundantes e os homens escassos, a história teria sido completamente

diferente. É tragicamente inevitável que, quando ocorre uma abundância de homens em

relação a outros recursos, seu valor marginal diminua e a dignidade da vida humana se

deteriore na mesma proporção. Para a salvaguarda do valor e da santidade da vida

humana é fundamental que o homem não se torne a mais barata de todas as mercadorias. Carlo M. CIPOLLA70

A crise atual do conceito de dignidade humana

Pode parecer espantosa a frieza do relato que acabamos de citar. Mas ele se encaixa

perfeitamente dentro da lógica do assim chamado marginalismo dos economistas neo-

clássicos. Essa vertente teórica predominou na maioria das Escolas de Economia, em

praticamente todo o mundo capitalista, ao longo do século vinte. O keynesianismo, um

pouco mais preocupado com a conjugação entre livre mercado e políticas públicas, e por

isso mais próximo ao pensamento político social-democrático, nunca logrou uma acolhida

tão duradoura entre os economistas acadêmicos.

Os socialismos "reais" desmoronaram por dentro, sem que fossem necessários

complôs sistemáticos de fora, devido a uma soma complexa de fatores, entre os quais os

economistas geralmente preferem destacar a baixa produtividade e a escassa diversificação

de bens de consumo. Esse destaque não se torna tão convincente quando se recorda que

existia um atendimento bastante generalizado de algumas necessidades humanas

elementares (alimentação, saúde, educação, moradia). Um fator determinante do colapso foi

provavelmente aquilo que o Papa João Paulo II chamou de equívoco antropológico71.

Em que teria consistido esse equívoco ou deficiência na visão do ser humano? Uma

análise sociocultural mais aguda do colapso dos socialismos nos remete à escassa atenção

que eles davam à dinâmica dos desejos humanos - de valorização pessoal, liberdade de

iniciativa e livre fluxo da vontade humana de sonhos e devaneios. Com isso se tornou cada

vez mais abstruso o recorte de compreensão da dignidade humana amarrada unicamente na

satisfação daquelas poucas necessidades humanas básicas, com as quais os socialismos se

haviam efetivamente preocupado até um nível, se não satisfatório, ao menos respeitável,

como se pode ainda hoje conferir em Cuba, apesar da deterioração crescente até mesmo

desse aspecto.

70

CIPOLLA, Carlo M. História econômica da população mundial. Rio de Janeiro: Zahar, 1977, p. 119. 71

Cf. JOÃO PAULO II, Encíclica Centesimus Annus, n. 13, 23 y 24.

Page 71: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

71

Com a exacerbação das teses neoliberais nas duas décadas finais do século XX, a

maximização da rentabilidade do capital se foi descolando ainda mais das urgências sociais

e do próprio processo produtivo e o comando do mercado mundializado - que leva o

charmoso nome de globalização - passou às múltiplas pontas soltas do capital financeiro e,

em não pequena porcentagem, do capital especulativo. Este se foi mostrando cada vez

menos preocupado com os seres humanos concretos. Somando a isso o aumento

exponencial da produtividade do trabalho humano, quando eficazmente acoplado ao uso da

mais avançada tecnologia, chegou-se a uma crise social quantitativamente sem precedentes.

Mesmo nos países ricos, mas sobretudo nos assim chamados "emergentes" e, pior ainda,

nos quase totalmente relegados, o fosso das desigualdades sociais virou abismo.

Já não se consegue disfarçar que a própria concepção do mercado foi

profundamente transformada por sua mundialização sob a égide do capital financeiro. A

suposta peculiaridade das propostas da União Européia, e nomeadamente dos arautos da

assim chamada "Terceira Via", e até mesmo alguns pronunciamentos das chefias do FMI e

do Banco Mundial apontam para um discreto retorno à ênfase em políticas públicas, que

procurem reaproximar os mecanismos de mercado de urgências sociais geograficamente

localizáveis. Mas essas "boas intenções" se chocam com a tese ainda soberana de que

quaisquer tentativas de rechear de conteúdo programático o sonho do "mercado social"

terão que passar inevitavelmente pelo crescimento econômico, ou seja, o velho mito de

primeiro o bolo, depois o seu fatiamento.

A esta altura da pós-modernidade, seria bastante absurdo sonhar com um mundo

sem mercado, porque significaria sonhar com cordões de isolamento em volta de processos

sócio-econômicos de pequeno porte, localmente auto-sustentáveis e de interdependência

escassa com outros bolsões similares. Vão nessa direção alguns rebrotes ideológicos neo-

comunitaristas e o sonho "alternativo ao capitalismo" de algumas ONGs. Sonham com um

estranho ciberespaço reservado apenas a suas interconexões supostamente orientáveis por

canais comunicativos e de fluxos de bens e serviços paralelos e relativamente autônomos. É

difícil acreditar que isso ainda seja possível num mundo no qual o predomínio do mercado

e sua mundialização vieram para ficar, ao menos no que tange a produção e circulação

ampla de bens e serviços.

Dito de outra forma, a sociedade ampla, complexa e prevalentemente urbana se

tornou definitivamente um fenômeno que abrange o planeta inteiro e essa interdependência

já não pode ser anulada. A busca de alternativas, recolocada no tapete com a crise da

ortodoxia neoliberal, passa pelo questionamento da sua concepção peculiar de mercado

mundial, fulcrada não apenas na dominância do econômico na concepção do todo social,

mas na dominância do capital financeiro enquanto rentabilidade auto-acumulativa

tendencialmente cada vez mais distanciada da própria economia, no sentido clássico de

sistema de produção, circulação e consumo de bens e serviços.

O propalado "mercado social" ou é mera balela ideológica, ou requer uma

concepção de mercado realmente diferente do conceito neoliberal. A diferença consistiria

sobretudo em dois aspectos: primeiro, numa re-vinculação decidida e obrigatória da

lucratividade do capital à dinamização do sistema produtivo; segundo, na priorização de

critérios de produtividade social relacionados com a geração de empregos e a valorização

de todas as formas de atividade humana, as já existentes e outras por inventar. Isso significa

que será necessário normatizar e controlar as formas de rentabilidade de tal modo que se

torne possível o re-ingresso dos excluídos sociais no todo social. Um mercado no qual não

prevalecerem os critérios de inclusão jamais poderá ser um "mercado social".

Page 72: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

72

A dinâmica de um mercado social exige uma redefinição dos princípios

organizativos do todo social. Teoricamente, não é tão complicado imaginar um

espalhamento da própria rentabilidade dos investimentos para um leque aberto de

atividades humanas, que sirvam como suporte para remunerações e ingressos, e portanto

também para índices diferenciados de rentabilidade monetária e outras formas de

rentabilidade. Na prática, os capitalistas exitosos nunca o foram apenas em termos

estritamente financeiros. Existe uma vasta literatura - incluídas várias ponderações do

próprio pai fundador Adam Smith - sobre rentabilidades não limitadas a fatores monetários

(prestígio, criatividade inovadora, investimento em inventividade não imediatamente

lucrativa, o retorno de fluxos comunicativos gratificantes pelo seu teor cultural e social,

etc.).

A pergunta que hoje se agudiza é a velha questão acerca da possibilidade de tornar

plausível um atrator complexo que incite e motive iniciativas, esforços, uso inovador da

inteligência e aplicação de todo tipo de recursos mediante a criação de um vasto conjunto

de satisfações e compensações efetivamente gratificantes para os seres humanos enquanto

empreendedores. É ilusório imaginar-se uma ampla dinâmica ao mesmo tempo

economicamente produtiva, socialmente solucionadora e culturalmente instigante como

resultado de ações humanas inteiramente desinteressadas e gratuitas. Não existe sujeito

histórico imaginável para tão vasta operação de gratuidade. Nesse sentido, a civilização do

amor não é viável com a espécie humana na fase atual de sua evolução. Ninguém nos

proíbe imaginar lentos progressos evolutivos futuros nessa direção, contanto que não se

queira escrever história atual com esse sonho.

Os limites oscilantes da questão da dignidade humana

1. Recordar é preciso (I): Origem da tese

de que há vidas inúteis e até socialmente nocivas

Na organização social pré-moderna dos países europeus, que costumamos

caracterizar como feudalismo, havia certamente formas brutais de discriminação social e

funcionavam recursos culturais e religiosos que podiam ser utilizados para incitar

agressividades cruéis, como as guerras religiosas, a caça às bruxas, etc. Apesar disso,

prevalecia uma coordenação unificadora dos aspectos produtivos e dos aspectos sociais e

culturais da sociedade. No interior dessa frágil unidade entre o sistema produtivo e o

sistema social, existiam evidentemente desigualdades aberrantes. Mas não se deve esquecer

que havia uma certa previsão de acolhimento e atenção mínima até mesmo para os

deficientes físicos e psíquicos e os velhos e enfermos.

O fato que queremos destacar é o seguinte: com a chegada da industrialização e o

surgimento dos mecanismos do mercado, deu-se uma ruptura brutal e profunda entre o

sistema produtivo e todos os aspectos do sistema social da sociedade. Desapareceu quase

abruptamente aquele mínimo de cuidados e atenções com os quais contavam os seres

humanos praticamente improdutivos do ponto de vista econômico. Daí por diante, esse

contingente de seres produtivamente inúteis sofreu um esvaziamento quase completo do

resto de dignidade humana que se lhes reconhecia. E a razão desse esvaziamento foi

primordialmente o fato de eles não poderem oferecer nenhuma força de trabalho

significativa em um novo contexto produtivo, no qual o trabalho humano se via

transformado em mercadoria. Outra razão foi a súbita ampliação das referências espaciais e

Page 73: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

73

temporais nas relações sociais: foi o salto das pequenas aldeias para as incipientes cidades

industriais. Os laços inter-humanos foram submetidos a rupturas e distanciamentos que não

existiam antes.

Uma teoria mais explícita acerca de "vidas que não merecem viver" foi surgindo aos

poucos e encontrou, provavelmente, as primeiras formulações mais chocantes em círculos

médicos e psiquiátricos das últimas décadas do século XIX e nas décadas iniciais do século

XX. A criação de instituições para confinar seres humanos produtivamente inúteis e cujo

estado físico ou mental era considerado um peso excessivo para os mais achegados foi -

como nos demonstrou Foucault - um fato sintomático da mudança profunda na percepção

humana acerca da dignidade humana. Certas variantes psicopatológicas passaram a ser a

referência dos limites da universalização socialmente "possível" do reconhecimento da

dignidade humana.

É bastante sintomático que se tenham usado argumentos relacionados com critérios

genéticos e hereditários para as teses mais explícitas de des-dignificação de seres humanos.

As esterilizações eugênicas serviram, ao que tudo indica, como referência prática para

ampliar o conceito de seres que representam uma ameaça genética para os demais. Em

menos de 40 anos, dos anos 1890 aos anos 1920, a consciência subjetiva de muitos médicos

começou a admitir como normal um direito de intervenção para fins de limpeza genética,

da qual derivou rapidamente o conceito de limpeza racial nazista. É provável que, a rápida

normalização desse suposto direito a eliminar determinados seres humanos tenha sido

acompanhado, praticamente desde o início, pelo pretexto de "pena" e "misericórdia".

Matava-se para redimir determinadas pessoas de seu triste estado e de seu

sofrimento. A forte presença da referência ao sofrimento facilitou a manutenção da

tranqüilidade da consciência. O sofrimento era visto, simultaneamente como a dor efetiva

das vítimas potenciais e o mal-estar dos que deveriam continuar cuidando deles. Até aí é,

até certo ponto, compreensível o mecanismo da legitimação dos recortes na universalização

da dignidade humana. Aliás, convém frisar que esse aspecto retorna hoje com muita força

na discussão sobre a eutanásia.

Que a eliminação de milhões de seres humanos por outros motivos, como é o caso

da motivação explicitamente racista do genocídio praticado com os judeus pelo nazismo (e

outros casos similares de menores proporções, até na atualidade) tenha sido praticados por

"gente normal" é bastante mais difícil de explicar. A questão que estamos apontando é

precisamente esta: os seres humanos são capazes de violar, "normalmente" e com toda a

naturalidade, a dignidade humana de seus semelhantes e ao mesmo tempo continuar

professando uma adesão genérica à dignidade peculiar dos seres humanos. Essa

normalidade da coexistência entre afirmação e violação da dignidade humana é o que

precisa ser encarado e analisado.

Não seria possível recordar aqui todas as formas de brutalidades e mortandades,

guerras insanas e perseguições sistemáticas até a morte, que a história da nossa espécie

registra. No século XX , enquanto se acelerava o progresso tecnológico, houve também um

agravamento ostensivo da brutalidade humana. O tão lembrado Holocausto dos judeus,

especialmente na fase final do nazismo, foi precedido e acompanhado pela eliminação de

centenas de milhares de seres humanos portadores de alguma deficiência física ou psíquica.

"Que aquilo que eu fazia era assassinato, esse pensamento só me foi possível tê-lo depois

de 1945, e desde então ele me acompanha insistentemente em todos os momentos" - Eis a

Page 74: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

74

declaração de um médico, que provavelmente representa uma espécie de média do que

muitos médicos nazistas sentiam ao praticarem crimes horrendos72

.

A eliminação física de seres humanos percebida como algo normal , pelos

causadores diretos e pelo contexto cultural no qual agiam, verificou-se com suma

freqüência na evolução da nossa espécie, mesmo nos tempos modernos. As mais diversas

formas de discriminação - a da mulher, a étnica, o racismo, etc. - e a escravização de um

número assustador de seres humanos ao longo da história, com evidentes repercussões até

hoje, nos obriga a ser cautelosos e até desconfiados diante de qualquer suposição apressada

de que já tenha vigência o reconhecimento óbvio da dignidade humana estendida a todos os

membros da nossa espécie.

Na realidade jamais aconteceu até hoje uma universalização efetiva do

reconhecimento da dignidade humana de todos os seres humanos, sem graves distinções

limitantes. Por isso, é desejável, por um lado, que se enfatize, nas mais variadas formas e

ocasiões, que todos desejamos chegar a essa meta ética e social da dignidade humana

universalizada, por outro lado, deve-se evitar que a simples proclamação desse ideal sirva

de manto ideológico para encobrir ou até acobertar as negações práticas da mesma. Por

mais desagradável que seja, cada tanto precisamos dar-nos conta, explicitamente, da

persistência da destrutividade humana. Nesse contexto, cabe mencionar aqui o fato nada

estranho de que, com o colapso do socialismo real e o recrudescimento neoliberal do

capitalismo selvagem, tenham surgido "livros negros" sobre a lógica destrutiva de vidas

humanas, tanto no capitalismo realmente existente como nos socialismos73

.

Um dos propósitos desse rápido flash de memória histórica foi criar uma entrada ou

um preâmbulo para o desafio maior, isto é, a dificuldade de fazer valer hoje, no plano

social e em amplitude universal, o reconhecimento pleno da dignidade universal de todos

os seres humanos. Grande parte dos humanos não têm muita sensibilidade para o que está

acontecendo com seus semelhantes. Os aspectos chocantes de acontecimentos, aos quais

aludimos rapidamente, deveriam servir-nos para perceber e avaliar, com sensibilidade

aguçada - e em termos comparativos, se quiserem - a amplitude da exclusão social hoje,

enquanto fenômeno amplo de sistemático não reconhecimento da dignidade humana de um

número assustador de seres humanos.

A expressão “lógica da exclusão”74

pretendia enfatizar precisamente a crueza da

"insensibilidade normalizada", como elemento inerente à concepção neoliberal do mercado.

O fato maior do mundo de hoje consiste na assustadora combinação entre exclusão social e

insensibilidade crescentes. Mas a esta altura todos sabemos que a mera indignação ética e a

insistência em "gritos" de denúncia têm uma força bastante reduzida na criação de novos

consensos sociais. Parece que ainda precisamos entender melhor como articular e ampliar

os campos do sentido inovadores, que possam desarticular estruturas do sentido já

incorporadas na (in)sensibilidade cotidiana.

72

DÖRNER, K. Wir verstehen die Geschichte der Moderne nur mit den Behinderten vollständig (Só

enteneremos a história moderna a partir dos portadores de deficiência). Texto disponível na Internet,

junho/2000. 73

PERRAULT, G.(org.) O Livro Negro do Capitalismo. Rio de Janeiro: Record, 1999; COURTOIS, S. et al.

O Livro Negro do Socialismo: Crimes, Terror e Repressão. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999. 74

ASSMANN, Hugo. Crítica à lógica da exclusão. São Paulo: Paulus, 1994.

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75

2. O contraste entre o "valor" de baixas militares e baixas sociais

É bastante conhecido o conceito de baixas militares, ou seja, mortes de

combatentes. O cálculo de mortes admissíveis, em relação ao número global de

combatentes, sempre foi um elemento-chave das estratégias militares. Com a profunda

transformação tecnológica das guerras recentes, houve uma tendência para a diminuição

acentuada do número de baixas militares admissíveis. Em discussões acerca de confrontos

bélicos na Europa, inclusive números bastante reduzidos de baixas militares (por exemplo,

no máximo 350 por conta de tal país), passaram a ser considerados baixas excessivas.

Apenas 30 e poucos anos após a Guerra do Vietnã, os Estados Unidos da América do Norte

dificilmente voltariam a admitir cerca de 50.000 baixas num confronto bélico com aquelas

características.

A quem não parece absurdo e arrepiante que, tão pouco tempo atrás, as frentes em

luta num país tão pequeno como a Nicarágua, considerassem admissível um número de

40.000 mortes antes da vitória sandinista e um número parecido nos 10 anos posteriores?

Enfim, poderíamos trazer à lembrança vários outros cenários de conflitos armados,

ocorridos na América Latina e mundo afora, nos quais a percepção subjetiva acerca da

quantidade de mortes admissíveis representavam um fenômeno aterrador quando

confrontado com as solenes declarações acerca da dignidade humana dos líderes e

ideólogos desses processos de luta.

Estamos fazendo esta evocação de horrores de guerra para suscitar nossa surpresa

diante do fato de que, enquanto está decrescendo a tolerância quanto ao número de baixas

militares admissíveis, ninguém se lembrou ainda - ao que nos consta - de sequer elaborar o

conceito de baixas sociais e muito menos de apontar para a urgência de termos indicadores

de sensibilidade social para isso, e não meras estatísticas acerca da fome e da miséria. Além

disso, vale recordar que, para as baixas militares costuma haver algum tipo de

reconhecimento dos governos e da população, sob forma de pensões, condecorações,

monumentos e homenagens. O panorama é muito diferente no que se refere às baixas

sociais.

Os conceitos de custo sociais e dívida social ainda flutuam por cima de qualquer

cobrança efetiva que se possa encaminhar juridicamente. De resto, o próprio conceito de

cidadania - que, nos países anglo-saxãos costuma referir-se a direitos efetivamente

exigíveis porque estabelecidos juridicamente - é, entre nós, um termo e sentido flutuante,

que circula num campo tão amplo e diversificado que se tornou praticamente impossível

transformá-lo em eixo de articulação de exigências concretas em defesa da vida.

3. A dispersão dos referenciais da dignidade humana

Qual é a referência básica para caracterizar as propriedades do ser humano que se

pressupõem quando se usa o conceito de dignidade humana? O indivíduo humano adulto e

normal? Todo indivíduo humano a partir do momento do seu nascimento até a morte? Que

forma de nascimento e que forma de morte?

Para percebermos que a generosa suposição da dignidade humana universal é em boa

medida ilusória e pode ser, em muitos casos, fonte de hipocrisia ou filtro ideológico em

nossa percepção daquilo que efetivamente acontece no mundo, é conveniente refletir sobre

o fato estranho de que a admissão de freqüentes exceções ao referido pressuposto conta

igualmente com amplos consensos. Vamos a alguns casos concretos:

Page 76: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

76

Uma atleta feminina é barrada das Olimpíadas porque há suspeitas acerca da definição

orgânica do seu sexo.

Um casal de New Jersey processa seu médico por não ter evitado o "nascimento indevido" de seu filho portador da Síndrome de Dow.

Na Califórnia ficou notório o caso da criança cujo nascimento foi planejado especificamente para que ela se tornasse doadora de medula óssea para sua irmã. É

plenamente possível e começa a ser legal por alguns lados, planejar nascimentos para

doação de órgãos. (As suspeitas de que exista, há bastante tempo, um tráfico

internacional de crianças, que incluiria a criação de bancos de órgãos, já foram muitas

vezes levantadas por entidades de renome internacional...)

Em Lousiana, EUA, basta (por ora ainda) que um embrião seja concebido num

laboratório para que se lhe aplique proteção pela lei estadual. Mas assim que este

mesmo embrião for implantado no útero de uma mulher, o aborto desse embrião,

mesmo como feto de vários meses, poderá ser feito ao amparo de uma outra lei

constitucional.

Companhias de seguro praticam, em várias partes do mundo, discriminações genéticas, por exemplo, exigindo contribuições mais elevadas ou até negando-se a dar cobertura

de seguro em casos que qualificam como "condições negativas preexistentes", como a

presença de enfermidades geneticamente transmissíveis. (Nas Escolas Médicas de

Harvard e Stanford descobriram centenas de ocorências desse tipo).

A legalização da eutanásia em casos de doentes terminais com sofrimentos agudos, por idade ou tipo de doença, avança mundo afora. (A legislação da Holanda neste sentido,

embora contenha cláusulas restritivas fortes, parece haver se tornado uma referência

para muitos, dada a ênfase central que se confere à terminalidade, à agudeza do

sofrimento e à articulação de consensos em vários níveis da família, além do próprio

paciente, no caso de ele ainda se encontrar em estado consciente).

A tese da dignidade humana ontológica - alcances e fragilidade

Em 1993, a Comissão Internacional da Bioética da UNESCO definiu a "dignidade

humana" de forma sumamente genérica como direito de todos os membros da espécie

humana "à exigência de liberdade e solidariedade". Aplicada às implicações bioéticas das

pesquisas relativas ao Genoma Humano e similares, essa definição soa assim:

A proteção do indivíduo com respeito às implicações da pesquisa em biologia e

genética é destinada a salvaguardar a integridade da espécie humana como um

valor em si mesmo, e como o respeito da dignidade, liberdade e dos direitos de

cada um de seus membros 75

.

Como se pode ver, as referências do conceito são bastante confusas, o ser humano

individual parece ser a referência direta da dignidade, da liberdade e dos direitos, mas ele é

visto de fato numa referência muito mais ampla, a da integridade da espécie humana. Basta

tomar um conceito aparentemente tão simples como o de sobrevivência para dar-se conta

que os critérios concretos não estão definidos. Sobretudo em tempos de explosão

75

Paris, 15 a 16 de setembro de 1993, 1ª Sessão . cf. SALVI, M. Ontology and Bioethics: the case of Human

Dignity Principle in Human Genetics. texto disponível na internet, junho/2000.

Page 77: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

77

demográfica e de busca, quase obrigatória (na China é rigidamente obrigatória), de redução

da natalidade, é evidente que a sobrevivência quantitativa da espécie pode dispensar

perfeitamente a existência individual de uma parte ponderável dos seres humanos.

A pergunta começa a agudizar-se: a dignidade humana, que se pretende defender, é

de fato algo assim como uma propriedade ontológica de todos os seres humanos

simplesmente pelo fato de serem membros da espécie humana? Até que ponto isto

corresponde a uma dinâmica intrínseca dos processos evolutivos dessa espécie? Ou estamos

dispostos a abandonar, ou nem sequer ponderar esse critério de supostas leis evolutivas da

espécie? Olhando para trás, parece fora de dúvida que a evolução não se ateve a esse tipo

de cuidado com a dignidade dos indivíduos.

Também a fase mais recente dessa evolução, após o surgimento das formas mais

complexas da comunicação simbólica e lingüística, e após a aparição do fenômeno

reflexivo que solenizamos com o termo sapiens (Homo Sapiens Sapiens), não manifesta

nenhum cuidado peculiar com a preservação da dignidade de todos os indivíduos. Isso torna

difícil derivar a atribuição individual da dignidade humana, da simples característica de

hominização da espécie.

Dito de outra forma, o advento evolutivo da hominização só pode coincidir com

uma emergência da dignidade humana, universalmente aplicável a todos os indivíduos da

espécie, por algum tipo de argumentação que supere a simples dinâmica intrínseca dos

processos evolutivos. Surge assim a pergunta: quais são os critérios ou as referência bio-

sócio-históricas que tomamos como base para afirmar a dignidade universal de todos os

seres humanos?

A tese adotada pela Comissão Internacional de Bioética da UNESCO assume, em

termos genéricos, a posição de que existe uma dignidade humana a ser reconhecida para

todos os membros da espécie humana. Mas, como já vimos, essa afirmação não é

aprofundada até o ponto de dirimir velhas disputas acerca do que - para facilidade de

compreensão - se costuma distinguir com os conceitos de visão ontológica versus visão

reducionista. Muitos cientistas da área da genética e das Biociências em geral sustentam

que precisam de um conceito prático e operacional da dignidade humana para poderem

refletir sobre os alcances de suas pesquisas. Afirmam que não lhes basta um conceito tão

genérico da dignidade humana que não lhes ofereça elementos de referência concreta para

intervenções, de índole prática e operacional, por exemplo no campo da saúde, da

preservação, recomposição e, na medida do possível, da melhoria das funções bio-orgânicas

do ser humano. Como é fácil de perceber, a genética e a bio-engenharia representam hoje

fronteiras avançadas e, em muitos aspectos, ameaçadoras de intervenção factível na própria

constituição da corporeidade humana.

Seria impossível trazermos aqui os detalhes desse debate cada vez mais aceso.

Tentemos, por isso sintetizar ao máximo os critérios invocados pelas duas posições.

Comecemos pela argumentação dos que advogam uma concepção da dignidade humana

referida a campos concretos de intervenção.

Pode se resumir essa argumentação no seguinte esquema76

:

Aspecto da DH

Critério Crítica

O conceito de "dignidade" parece estar apelando Com tal princípio ontológico ainda

76

Reelaborado a partir de SALVI, M. loc cit.

Page 78: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

78

A DH como Princípio

Ontológico

inevitavelmente para um "outro elemento", fora

daquilo que é cientificamente pesquisável, que

serviria de base para tornar o ser humano

"dignus". Esse outro elemento seria a referência

última da "dignitas".

não temos um referencial racional

que possa servir de nexo com a

realidade física. O próprio conceito

de dignidade humana estaria

fundamentado em premissas

metafísicas ou religiosas que

servem de base para a interpretação

da realidade.

A DH como Princípio

Sócio-econômico

A dignidade humana pode ser tomada como

referencial sócio-econômico, indicando-se

parâmetros para o limite mínimo de seu

atendimento.

Ficam, porém, por esclarecer

problemas cruciais como: existem

parâmetros universalizáveis para

isso? Quem os define? Que dizer

dos estilos de vida que não são

universalizáveis precisamente

porque absorvem excessivos

recursos?

A DH como Princípio

Biológico

Pode-se pensar a dignidade humana em termos

biológicos reducionistas. Tal acontece quando,

por exemplo, se adere à teoria de que os

aspectos empiricamente analisáveis do genoma

humano, com os atuais instrumentos e hipóteses

da ciência, contêm todas as peculiaridades

fundamentais espécie-específicos da "raça

humana".

Este conceito, embora

operacionalmente aplicável, é

reducionista na medida em que a

dignidade humana passa a ser

entendida como "constituição

biológica" e "propriedades

biológicas constitutivas" do

organismo enquanto

empiricamente analisável. É

suficiente tal conceito enquanto

critério ético e sócio-histórico?

Convém lembrar que as discussões das instâncias internacionais de mais alto nível,

relacionadas com a criação de referenciais jurídicos para a Bioética, já encaminharam (por

exemplo, junto à UNESCO e cúpulas jurídicas de vários países) versões de textos

preliminares, que adotam praticamente o princípio reducionista exposto no esquema. Um

exemplo, o do IBC (International Bioethics Committee):

Art.1. O genoma humano é um componente fundamental da herança comum da

humanidade.

Art.2. O genoma de cada indivíduo representa sua identidade genética específica.

A reserva crítica fica pendurada fragilmente no destaque verbal "um componente".

Feito isso, acredita-se estar respondendo plenamente às exigências da formulação elaborada

pelo mesmo IBC:

Os princípios de proteção das pessoas, no que se refere às conseqüências da

pesquisa do Genoma Humano, estão baseados sobre um conjunto de direitos que

derivam diretamente do princípio da dignidade: o direito a um tratamento igual

(...), o direito dos indivíduos à liberdade (...), o princípio de solidariedade entre os

povos e os países77

.

77

Apresentação da versão preliminar de uma Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os direitos

humanos. Apud. SALVI, M. loc cit.

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79

Peculiaridades da onto-teologia católica da dignidade humana

Como é sabido, já não é unânime entre todas as igrejas cristãs, e menos ainda entre

as demais religiões do mundo, a colocação de um referencial orgânico-biológico no cerne

da definição da dignidade humana. A alta cúpula do magistério da Igreja Católica romana

continua, no entanto, defendendo a necessidade dessa conexão entre a concepção

ontológica da dignidade humana e um referencial orgânico-biológico. Até esse ponto

certamente várias tendências éticas, religiosas e seculares, se inclinam a compartilhar a

idéia de que o abandono de um referencial bio-orgânico significa abrir as portas a um

perigoso pluralismo de fundamentação última da dignidade humana.

Convém, por isso, enfatizar que, a posição oficial da cúpula católica vai um pouco

além da exigência dessa conexão da dignidade com a corporeidade. Ela se apega a uma

definição espaço-temporal do início e do fim da vigência operante de um princípio

encarnatório da dignidade humana nos momentos, respectivamente, da concepção e da

morte. Trata-se de uma teoria peculiar, que implica o surgimento súbito e o

desaparecimento súbito de uma qualidade entitativa que caracterizaria o surgimento e o

desaparecimento do suporte bio-orgânico ligado à dignidade (em síntese, é a questão da

"alma" como entidade não totalmente coincidente com "princípio vital", porque

"autônoma" em relação a ele, no princípio e no fim da vida).

Como se nota, a espaço-temporalidade invocada é a do átimo ou instante, e não a de

um processo. Entra aqui uma concepção peculiar do princípio animador supostamente

único e específico da vida humana. É sintomático que em todos os documentos da Igreja

Católica relativamente favoráveis a uma admissão da teoria da Evolução - Pio XII ainda

sustentava, em 1951, que se tratava de uma mera hipótese; João Paulo II já admitiu que é

mais do que mera hipótese - conste invariavelmente a demanda de uma intervenção divina

criadora em relação à alma de cada pessoa humana.

É facilmente perceptível que essa posição não é sem problemas diante da visão

predominante, entre os cientistas, acerca da passagem dos hominídeos ao Homo. De resto,

tanto na Cosmologia como nas biociências e em praticamente todas as questões científicas,

tornou-se impossível pretender anular o pluralismo teórico, isto é, a existência de uma

pluralidade de teorias acerca de um mesmo assunto, inclusive em aspectos cotidianos

sumamente cruciais do comportamento humano.

O Cardeal Joseph Ratzinger relaciona a posição doutrinária católica com um

conceito específico de "pessoa humana":

A reprodução da espécie humana se realiza mediante a união de duas "fitas de

informação"; assim, ao menos, podemos resumir o assunto. Não há dúvida de que

essa descrição está correta. É também exaustiva? Aqui se impõem imediatamente

duas perguntas: é o ser reproduzido dessa forma apenas um outro indivíduo, um

exemplar reproduzido da espécie Homo, ou é algo mais: uma pessoa, isto é, um ser

que se por uma parte representa sem variantes aquilo que é comum na espécie

humana, é, por outro lado, algo novo, original, não reprodutível, com uma

singularidade que vai além da simples individuação de uma essência comum? E se

é assim, de onde provém essa singularidade?

Com essa questão está relacionada a segunda pergunta: de que maneira chegam a

encontrar-se as duas "fitas de informação"? Esta pergunta, aparentemente até

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80

demasiado simples, transformou-se hoje no ponto da decisão crucial na qual não

apenas se separam as teorias acerca do ser humano, mas no ponto no qual a

prática encarna as teorias dando-lhes todo o seu rigor.

(...) É possível designar a reciprocidade entre o homem e a mulher como um

fenômeno puramente natural, no qual também a recíproca inclinação espiritual não

seria talvez nada mais do que uma astúcia da natureza (para dizê-lo na linguagem

de Hegel) que os engana tratando-os não como pessoas, mas somente como

indivíduos de uma espécie? Ou, pelo contrário, seria necessário afirmar que,

mediante o amor de duas pessoas e com a liberdade espiritual, vem à luz uma nova

dimensão da realidade a qual corresponde o fato de que também a criança não é

uma simples repetição de uma informação sem variantes, mas uma pessoa

caracterizada pela novidade e pela liberdade de um eu, que representa um novo

centro no mundo? Não está por acaso, simplesmente cego, quem nega essa

novidade e reduz tudo a um puro mecanismo, vendo-se obrigado a inventar para

isso uma natureza astuta, que é um mito irracional e cruel? 78

Como se pode notar, a concepção ontológica-religiosa da dignidade humana se vale

da conjunção entre um determinado conceito de pessoa e um determinado conceito de

natureza. Não é de nosso interesse polemizar com semelhante argumentação, mas apenas

insinuar onde se encontram seus aspectos decisivos, frágeis para uns, fortes segundo outros.

Cremos que o debate acerca da dignidade humana deve ser travado em termos plenamente

seculares, sem o contrabando de pressupostos metafísicos, mas também sem reducionismo

cientificista.

É em questões como essa que se torna mais evidente que qualquer interpretação

biologicista - e ela pode existir mesmo quando se apela a algo mais radical que os

argumentos biológicos - não dá conta da visão processual, complexa e radicalmente bio-

sócio-histórica, que se esboça em conceitos como emergência, autopóiese e auto-

organização dos sistemas dinâmicos, adaptativos e aprendentes que denominamos seres

vivos.

Ficam, no entanto, algumas questões: seremos capazes de abandonar nossos

referenciais antropocêntricos no que se refere à concepção do nosso lugar no mundo da

vida? Como sentir-nos plena e responsavelmente integrados no todo da evolução, sem a

petulância de reclamar para nós um destaque de superioridade e excelência única, sob o

pretexto de que somente tal destaque poderá fundamentar nossa responsabilidade única na

continuidade da evolução? Será que nossa responsabilidade ético-política de sermos

solidários com todos os membros da nossa espécie e com a vida e o Cosmos em geral

precisa realmente desse reclamo de sermos algo mais e algo especial em relação a tudo

mais que existe no Universo?

Quando as culturas humanas arcaicas foram inventando seus mitos acerca de um

pertencimento profundo a uma esfera misteriosa, a filiação reclamada referia-se

fundamentalmente a aspectos da natureza e do cosmos projetados para um imaginário

religioso. Ser filhos/as do Sol, da Natureza, da Terra. Sabemos que esse tipo de suporte

mítico arcaico foi evoluindo para teorias religiosas marcadamente antropocêntricas,

conferindo ao ser humano um lugar único no Universo e em relação a Deus. A discussão

78

RATZINGER, J. La sacralidad de la vida humana. Texto disponível na Internet, junho/2000.

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sobre a dignidade humana - ao menos no plano filosófico e teológico - está desafiada a

levar finalmente a sério o processo evolutivo do Universo, sem pressupostos marcadamente

antropocêntricos.

No discurso religioso cristão, praticamente toda a argumentação teológica em favor

da dignidade humana universal costuma ser ancorada nas metáforas (somos) "imagem de

Deus", (somos) "filhos de Deus". Por estar fartamente difundida em documentos, não

precisamos retomar aqui essa fundamentação recorrente em abundantes documentos das

igrejas. No diálogo pedagógico e comunicativo em geral será preciso tomar em conta e

respeitar a presença de convicções provenientes desse tipo de formas culturais.

Como simples registro, relatamos um pequeno incidente curioso: num grupo

ecumênico, um católico argumentava em favor da dignidade humana universal a partir da

afirmação de que todos os seres humanos são filhos de Deus; mas um membro de uma

denominação evangélica interveio com a surpreendente distinção: - Minha igreja pensa

diferente. Para a minha igreja, todos são criaturas de Deus, mas filhos de Deus são

unicamente os que aceitam a Jesus como seu salvador. Este episódio mostra que a mera

argumentação religiosa tem um alcance limitado na fundamentação da dignidade humana.

Um novo patamar para discutir a dignidade humana

1. Recordar é preciso (II): Custou muito chegar aonde estamos

Vale a pena trazer à memória alguns fatos históricos que manifestam quanto custou e

demorou para chegarmos aos frágeis semi-consensos atuais hoje acerca de uns poucos

ingredientes básicos da dignidade humana. Por exemplo, o mandamento "Não matarás!" foi

surgindo, enquanto preceito, em contextos culturais específicos, como o dos israelitas, e

alguns biblistas acreditam que sua aplicação se confinava, numa primeira fase, ao âmbito

interno do povo judaico. A incrível normalidade do "direito" de aniquilar, sem mais, os

adversários, era discurso corrente até na boca dos deuses. Como é sabido, grupos, tribos e

povos inteiros estiveram imbuídos pela obsessão de destruir, das formas mais variadas e

cruéis, os seres humanos não pertencentes ao seu clã. Culturas inteiras praticaram, por

longos períodos, a eliminação física de primogênitos sacrificados aos deuses, de deficientes

expostos às feras ou simplesmente mortos sem que ninguém se sentisse assassino.

Milhares de hereges e bruxas foram cruelmente torturados/as e assassinados em

verdadeiros espetáculos públicos, assistidos por multidões, das quais não poucos

contribuíam com seu feixe de lenha, e - coisa espantosa para nós hoje - tudo isso costumava

ser encenado em praças públicas, com imagens da Santíssima Trindade na fachada da

catedral ou igreja, e na hora de execução o povo era incitado a cantar o Te Deum laudamus

(A ti louvamos, ó Deus - o famoso hino de agradecimento atribuído a Santo Ambrósio, do

século IV d.C/).

Os cristãos, portanto, não deveriam esquecer que, por quase dois milênios, foi ensinada

explicitamente, e ainda continua muito presente em boa parte das vertentes cristãs de hoje,

a doutrina de que a salvação não é para todos. A maior parte dos grandes teólogos do

passado (e alguns do presente) admitiu como óbvio que haveria muitos condenados. A

exclusão da salvação, e não sua garantia, era o tema obsessivo de muitos teólogos e

pregadores. Santo Agostinho deixou a suspeita, em muitos dos seus textos, de que a

salvação seria a exceção e não a regra (confira-se sua linguagem sobre a massa damnata).

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82

Embora chocante, será que há muito exagero no seguinte quasi-poema de desabafo de um

internauta anônimo?79

: Os tempos amadureceram

para os cristãos se envergonharem

de terem acreditado

num Deus Juiz implacável

e Providência Divina arbitrária

de terem acreditado

numa Redenção Sacrificial

de terem admitido

a condenação eterna como possibilidade real

de terem povoado

as fantasias de tanta gente com entes demoníacos

de terem identificado a mulher

com o mal e o pecado

O mais paradigmático dos sintomas do atraso ético e humano de certas organizações

religiosas é, sem dúvida, o seu persistente patriarcalismo, que impregna suas doutrinas,

grande parte de suas linguagens, suas estruturas organizativas e suas atitudes práticas.

Embora haja discretos sinais de querer mudar, em geral ainda não se admite que a des-

dignificação da mulher forma parte do campo de (sem-)sentido estruturado a partir de

conceitos centrais da teologia, distorcidos pela visão patriarcal da experiência religiosa80

.

Até muito recentemente, o tema da dignidade humana não sobressaía no ideário

religioso do Ocidente. Ao contrário, um dos temas de maior destaque era a indignidade

humana. Ela, sim, formava um vasto campo semântico no linguajar religioso. Ela teve

extrema importância na formação do pensamento ocidental. Por isso, vale a pena destacar

alguns de seus elementos: o pecado era tido como a marca primeira da condição humana; o

mundo material era visto como lugar de perdição, ou de sofrimento meritório, na melhor

das hipóteses. A indignidade do homem é o grande tema da teologia oficial da igreja da

Idade Média. Essa indignidade era considerada tão visceral que o ser humano, apenas por si

mesmo, jamais conseguiria salvar-se; para isso era imprescindível a ação mediadora da

Igreja, seus clérigos, seus sacramentos. A duras penas, e não sem imenso esforço, houve -

aqui e acolá - lances de mais otimismo acerca da vocação terrena do ser humano (por

exemplo, no franciscanismo).

A contrapartida histórica a esse pessimismo foi o lento surgimento de um extremo

oposto: o antropocentrismo da modernidade, alavancado, sucessivamente, pelo humanismo

renascentista, pela razão iluminista, pela ideologia do progresso, etc., até chegarmos, no

século XX, ao questionamento radical dessa petulância antropocêntrica.

2. O impossível retorno ao antropocentrismo

Ainda nos custa bastante levar a sério os desarraigamentos e as descentrações que o

avanço das ciências foi impondo, passo a passo, à presunção do ser humano de ser ele o

centro de todas as coisas e, obviamente, de todos os sentidos cabíveis para o mundo da vida

79

Die Christen sollten sich schämen. Texto anônimo da Internet, outubro/1999. 80

Sobre issso vale conferir GEBARA, Ivone. Rompendo o silêncio, Uma fenomenologia feminista do mal.

Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.

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e do universo. Eis um quadro sintético dos golpes sucessivos que as ciências assestaram, e

continuarão a infligir, à auto-imagem pretensiosa do ser humano81

:

AS “AFLIÇÕES” DO ANTROPOCENTRISMO ORIGEM

As três que Freud nomeou (Mal-estar da Cultura)

cosmológica: fim do geocentrismo

biológica: evolução; somos seres “deste mundo”

psicológica: “o eu não é dono em sua casa”

...e a seqüência ainda em curso

bio-semiótica: imersos em "campos" de linguagens

etológica: herdamos comportamentais animais

epistemológica: aprendemos evolucionariamente

sociobiológica: valores estreitos, altruismo “egoísta”

bio-ecológica: interagimos com nossos nichos vitais

informacional: inteligência e socialidade artificiais

neurofisiológica: que é “consciência”?

Copérnico, Kepler, Galileu

Darwin

Freud

bio-sócio-semiótica e biociências

O. Heinroth. J. Huxley

K. Lorenz, D. Campbell, K. Popper

E. Wilson

H. Maturana, F. Varela, etc.

Novas Tecnologias

Estudos sobre o cérebro/mente

Quem de fato acredita numa dignidade humana igual para todos?

Nós, povo do planeta Terra, respeitando a dignidade de cada vida humana preocupados

com as gerações futuras cada vez mais conscientes da nossa relação com o nosso ambiente

reconhecendo os limites dos nossos recursos e a necessidade de comida, ar, água, abrigo,

saúde, proteção, justiça e auto-realização, declaramos aqui a nossa interdependência e

decidimos trabalhar juntos em paz e harmonia com o nosso ambiente para melhorar a

qualidade de vida em todos os lados

(Declaração de Interdependência - Profs. do norte, Portugal)

Em nossos dias - não, porém, em qualquer tempo e lugar da história - existe

aparentemente um senso comum que supõe que todos os seres humanos participam de uma

dignidade comum a todos eles. Não é fácil provar que semelhante suposto valorativo seja

de fato compartido por todos os seres humanos existentes, nem que seja atribuída de

maneira uniforme a todos. Mesmo assim, geralmente vivemos com uma espécie de

convicção tácita de que exista um consenso universal em relação ao pressuposto de que

todos os seres humanos possuem um estatuto moral especial baseado no simples fato de

serem humanos. As implicações desse pressuposto são de fato infringidas com suma

facilidade.

Note-se bem que o pressuposto é sumamente generoso quanto à qualificação

genérica do humano, não estabelecendo quaisquer exceções ou limites. O pressuposto não

só atribui aos seres humanos uma dignidade básica universalmente compartida. Vai além

disso porque supõe-se que os seres humanos atribuam normalmente um valor especial - isto

é, uma espécie de dignificação consensual de si mesmos - ao simples fato de serem

humanos, independentemente do fato de que existam elementos da espécie humana que não

reconhecem coerentemente essa dignidade humana atribuída a todos os seres humanos, pelo

simples fato de serem humanos.

81

Inspirado em VOLLMER, Gerhard. Die vierte bis siebte Kränkung des Menschen. Em Aufk;ärung und

Kritik, 1/1994, p. 81s. Disponível na Internet, 1999.

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Estamos bastante acostumados à idéia de que os direitos humanos básicos - e,

portanto, o reconhecimento de um respeito à dignidade humana de qualquer ser humano -

seriam, ao menos hoje em dia, patrimônio ético consensual da humanidade. Isso é um grave

engano. Se assim fosse certamente seria bem diferente o quadro das preocupações

prioritárias dos governos e da maioria das instituições e pessoas.

Na modernidade há, de fato, duas tradições bastante diferentes e, até certo ponto

contrapostas, no que se refere ao universalismo da dignidade humana, enquanto atributo

historicamente atribuível aos seres humanos. Simplificando bastante, pode-se distinguir

uma tradição mais política (e filosófica) e outra mais econômica. Na tradição política se

inscrevem todas as lutas pela liberdade, igualdade, direitos humanos e democracia como

valores universais. A tradição econômica é muito menos explícita e muito mais restritiva

quanto ao reconhecimento pleno e universal de direitos básicos de todos.

Resumindo: no fundo, o pensamento econômico burguês só reconhece direitos a

quem “se mexe”, toma iniciativa, sabe competir, enfim, a quem chega a ser um agente

econômico produtivo. Neste sentido, uma certa dose de darwinismo social perpassa todo o

pensamento econômico burguês. E é nele e em suas conseqüências práticas que estamos

todos mergulhados. Temos que analisar e entender muito bem a antropologia que subjaz a

essa visão. É uma antropologia muito diferente daquela que suporta o pensamento

“revolucionário”. E é inegável que ela contém elementos - como os expressados no “código

fundante” de Adam Smith: interesse próprio, industriosidade, iniciativa... - que, quando

traduzidos por auto-apreço, empenho e criatividade, não só não devem ser eliminados de

uma antropologia construtiva do social, mas formam parte, hoje, de um conjunto amplo de

tendências espirituais, psicológicas, organizacionais, etc.

Dignidade humana: oportunidade social para competências sociais

Precisamos de linguagens sobre dignidade humana que sejam minimamente

operacionais no plano do pensamento estratégico e dos projetos de intervenção prática nas

regras do jogo da sociedade. Neste sentido, e como primeira aproximação ao plano

operacional, a noção de dignidade humana talvez devesse partir do seguinte postulado:

expandir ao máximo possível o direito concreto dos indivíduos e grupos sociais a terem

acesso às mesmas regras do jogo daqueles que melhor conhecem e mais se das regras do

jogo da sociedade em que vivem.

Nessa formulação de um ponto de partida operacional para falar da dignidade

humana ficam imediatamente evidentes duas implicações: primeiro, que sem educação não

há acesso ativo (pode haver outorgação passiva) à dignidade humana; segundo, que só é

justa aquela sociedade na qual se possa trazer à luz o escândalo sumamente freqüente

(especialmente no Brasil) da manipulação jurídica das leis - em si mesmas, não poucas

vezes, já viciadas por propósitos de diferenciação social injusta - para a defesa de

privilégios de uns contra os outros. Dito de outro, os princípios organizativos da sociedade

e a normatividade efetivamente implantada constituem as referências práticas para se

conferir qual é o conceito de dignidade humana vigente nessa sociedade. O mesmo vale,

como já foi dito, para o conceito de solidariedade humana básica. Os dois temas estão

claramente interligados.

Tem-se, por vezes, a impressão de que bem poucos acreditam que se possa lutar por

uma vigência prática do velho preceito jurídico de que todos são iguais perante a lei. Já que

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todos sabemos que isso não se cumpre, talvez o respeito à dignidade humana deva ser

ancorado, para começo de conversa, num consenso mínimo dos membros de uma

sociedade, que afirma defender a dignidade humana, para estarem dispostos a acabar com a

própria conivência com a prática de regras do jogo socialmente diferenciadas para situações

iguais. Em outras palavras, a defesa da dignidade humana pressupõe que uma sociedade

não queira continuar a mentir constantemente a si mesma.

Esse é precisamente o caminho pelo qual o filósofo social alemão Jürgen Habermas

vincula a solidariedade com a justiça, a saber, a solidariedade básica de uma sociedade se

institui no plano da normatividade, consensualmente construída e efeticamente exigível

pela sociedade civil. Mas sempre existe uma distância, quando não um fosso, entre as

normas e o acesso à sua vigência ou aplicação à efetivação dos direitos cidadãos. Esta

distância não se transpõe pelo manejo abstrato e ideológico de manifestos, normalmente

generosos no reclamo de uma sociedade fraterna e justa (o que não deixa de ter uma certa

relevância na "cultura social"). Transpõe-se pela aquisição de competências sociais que

acabem com a privação de capacidades para conhecer as referidas regras sociais e fazer uso

das mesmas.

Nas pequenas comunidades este acesso geralmente não é sonegado. Mas nas

sociedades amplas e complexas existem mil subterfúgios para ocultar, distorcer e manipular

essas regras. Seu conhecimento e uso é impossível sem a educação. Portanto a educação é

tão ou mais fundamental para a prática da cidadania quanto já mostrou ser o caminho mais

eficaz para os problemas demográficos.

Precisamos de um conceito operacional de dignidade humana para a negociação de

consensos relativos a oportunidades sociais concretas para as pessoas. Isto nos obriga a

situar-nos na perspectiva das capacitações para exercer atividades e ampliar experiências

que tenham sentido, ao mesmo tempo, de realização pessoal e de relevância social.

Formulado dessa maneira, trata-se de um princípio ainda muito abstrato e genérico. Mas

talvez se trate de um tipo de linguagens inovadoras, que nos ajudem a baixar do plano

sumamente abstrato e genérico ao qual nos acostumou o discurso sobre os direitos

humanos, a cidadania (no discurso brasileiro, não tanto no anglo-saxão) e os princípios

universalistas acerca da dignidade humana.

Não se trata de aderir, sem mais, à posição neo-pragmática de Richard Rorty, que

nos recomenda desistir totalmente de princípios universalistas e tomar, como ponto de

partida, as limitadas sensibilidades solidárias efetivamente existentes como, por ex., o

relativo progresso da sensibilidade liberal para sentir repulsa diante de crueldades

explícitas e um certo nojo de ver cenas explícitas de tortura e miséria extrema. É bom

lembrar que tais sentimentos são relativamente recentes na história da sensibilidade

coletiva. Assistir a espetáculos públicos de eliminação recíproca foi esporte apaixonado

por séculos (gladiadores, duelos, execuções públicas, etc.). A excitação com cenas

explícitas de violência e sadismo, bem como o atiçamento agudo do imaginário catastrófico

e apocalíptico ocupam, sabidamente, um lugar nada secundário na produção

cinematográfica contemporânea. Com demasiada facilidade embarcamos em especulações

abstratas acerca da suposta evidência de princípios universalistas sobre a dignidade

humana. Esquecemos facilmente que, na prática, os níveis de sensibilidade solidária da

nossa espécie são lamentavelmente muito baixos no que se refere à inclusão, sem reservas e

exceções, de todos os seres humanos num patamar minimamente acima do vilipêndio direto

da corporeidade viva das pessoas.

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A intenção dos filósofos neo-pragmáticos, ao estilo de Rorty, certamente não é

restringir os propósitos de expansão universalizante da diginificação de um número cada

vez maior de seres humanos. Eles nos propõem simplesmente que partamos de uma visão

realista das sensibilidades sociais disponíveis. De que adianta manifestar a nossa

indignação diante dos acontecimentos terríveis de exclusão social, se não formos capazes

de situar as nossas linguagens em contextos concretos de negociação de consensos mínimos

acerca de passos factíveis para reverter essa situação. Sem isso, o discurso meramente

denunciatório pode tornar-se politicamente estéril e servir, sobretudo, para catarses da

conciência indignada, que já nem se dá conta de que encontrou um jeito de embutir a sua

impotência no próprio tom vociferante de suas linguagens.

A reflexão acerca das limitadas possibilidades de fundamentar argumentativamente

- isto é, para efeito da ação comunicativa negociadora - deve ser alentada e potencializada a

partir do referencial plural dos acatamentos efetivos de valores solidários, que possam ser

articulados sem resistência explícitas imediatas. Cremos que existe, efetivamente, a

possibilidade de utilizar, com propósitos argumentativos, uma série de linguagens que

articulam exigências sociais básicas e já contam com aquele elemento consensual mínimo

de não poderem ser recusadas de antemão, pelo simples fato de terem adquirido uma ampla

circulação nos campos semânticos socialmente construídos em instâncias de repercussão

relativamente ampla.

Muitos ainda acreditam que a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU

expressa o patamar mínimo e, portanto, um ponto de partida sólido e obrigatório para

negociações consensuais. Cremos que isto é uma perigosa ilusão, sem querer, com isso,

diminuir a importância argumentativa desse referencial. É preciso aceitar, embora não nos

agrade, o duro fato de que apenas relativamente poucos membros da nossa espécie têm um

nível de sensibilidade social tão generosamente includente. Por isso é necessário elaborar

linguagens sobre a dignidade humana que possam servir para encaminhar consensos acerca

de melhorias concretas, em situações concretas.

Como exemplo disso, nos parece relevante a linguagem de Amartya Sen acerca da

pobreza, entendida como privação de capacidades, e acerca da liberdade como um conjunto

de oportunidades sociais concretas.

Há bons motivos para julgar a vantagem individual em função das capacidades que

uma pessoa possui, ou seja das liberdades substantivas para levar o tipo de vida

que ela tem razão para valorizar. Nessa perspectiva, a pobreza deve ser vista como

uma privação de capacidades básicas em vez de meramente como baixo nível de

renda, que é o critério tradicional de identificação da pobreza. A perspectiva da

pobreza como privação de capacidades não envolve nenhuma negação da idéia

sensata de que a renda baixa é claramente uma das causas principais da pobreza,

pois a falta de renda pode ser uma razão primordial da privação de capacidades de

uma pessoa.

Uma renda inadequada é, com efeito, uma forte condição predisponente de uma

vida pobre. Já que isso é aceito, então por que tanta preocupação com ver a

pobreza desde a perspectiva da capacidade( em vez de pela clássica avaliação da

pobreza com base na renda)? 82

82

SEN, Amartya. Desenvolvimento como Liberdade. São Paulo: Cia das Letras, 2000, p. 109. (O autor

recebeu o Prêmio Nobel em Economia).

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87

Precisamos de uma linguagem sobre a dignidade humana que contenha elementos

diretamente perceptíveis pela sensibilidade social, com a qual se possa contar, até certo

ponto, como fruto de experiências humanas feitas pessoalmente pelas pessoas envolvidas

no diálogo. É preciso testar, em cada caso, quais são as linguagens mais apropriadas para

falar

do potencial de uma pessoa para ser mais produtiva,

do preparo necessário para a pessoa auferir renda própria,

das facilidades sociais necessárias para organizar uma vida cotidiana minimamente feliz,

das habilidades necessárias para relacionar-se bem na vida e no trabalho,

dos riscos de ficar privado de chances para um relacionamento interpessoal gratificante,

e da necessidade de expansão desse tipo de habilidades e competências humanas básicas.

Nas novas linguagens educacionais, a que nos referimos em capítulos posteriores

deste livro, já aparecem indícios apreciáveis de que se está começando a perceber a

insuficiência operacional dos conceitos genéricos sobre dignidade humana, direitos

humanos, cidadania e solidariedade. A solidariedade só adquire sabor de experiência

personalizável quando as linguagens sobre ela trazem embutida a relação com os requisítos

de capacitação social.

As novas linguagens pedagógicas sobre a competência humana, a competência

social e similares representam, neste sentido, um deslocamento da semântica abstrata para

as situações humanas verificáveis. É nesse plano que o papel da educação adquire uma

relevância direta para a dignificação humana das pessoas e dos contextos sociais. Ninguém

se ilude achando que ela sozinha dará conta dessa tarefa de solidarização da sociedade. Mas

ninguém pode duvidar de que ela representa uma condição fundante para isso.

O limite do intolerável, a ser definido em normas de convivência democraticamente

construídas, não existe apenas em relação àquela exclusão que se concretiza na privação de

oportunidades para a afirmação da vida. O limite do intolerável também se aplica à falta de

inventividade e aproveitamento de oportunidades existentes ou viáveis. Nenhuma sociedade

humana pode funcionar na base de paternalismos e assistencialismos. Adam Smith tinha

razão ao afirmar que a economia não pode ser pensada a partir da mentalidade de

mendigos. No Brasil, não chegaremos nunca a uma sociedade onde caibam todos se muitos

continuarem confundindo a dignidade humana com privilégios corporativistas e os mais

diversos tipos de interesses criados e institucionalizados

Encerremos este capítulo sobre a dignidade humana com uma alusão rápida àquela

que nos parece ser a referência decisiva para a questão da solidariedade, a saber: a

corporeidade viva. É tristemente sintomático que esse tema provoque imediatamente, em

alguns, a suspeita de recaída no individualismo ou de adesão a uma concepção egoísta da

subjetividade. O tema da corporeidade está fortemente ligado à solidariedade, e isso por

duas razões:

primeiro, porque salta como tema necessário a partir de uma visão unificada das necessidades e dos desejos na vida humana (assunto no qual os “socialismos reais” se

equivocaram seriamente, enquanto o capitalismo enraizava nele os seus fetiches);

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segundo, porque não é possível levar muito longe uma dicussão ético-política sobre a

base de absolutos (metafísicos ou religiosos), tidos como pressupostos prévios

indiscutíveis.

Qual é, então, a última instância dos critérios éticos no interior da história? Existe

referência mais radical para uma ética solidária do que a corporeidade viva?.É necessário

refundar e refundamentar os critérios ético-políticos a partir daquela instância interna à

história humana acerca da qual talvez ainda seja possível obter o maior número de

consensos: a dignificação da corporeidade viva.

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89

Capítulo 4

SENSIBILIDADE SOLIDÁRIA E PRINCÍPIOS ORGANIZATIVOS

A sensibilidade solidária é uma forma de conhecer o mundo que nasce do encontro

e do reconhecimento da dignidade humana dos que estão “dentro-e-fora” do sistema social;

um conhecimento marcado pela afetividade, empatia e compaixão (sentir na sua pele a dor

do/a outro/a). Por isso mesmo, é um conhecimento e uma sensibilidade que estão

comprometidos, que vivem a relação de interdependência e mútuo reconhecimento de um

modo existencial,visceral, e não somente intelectual.

Sensibilidade solidária e esperança

Quem se posiciona desta maneira diante da realidade é capaz de ver o que os

“olhos” de quem olha com os valores da cultura dominante não conseguem ver. Isto é, além

de ver as coisas que são, também deseja e vê as coisas que ainda não são, as relações

humanas e sociais que ainda não existem de fato, mas que podem vir a existir. A

solidariedade para com os/as excluídos, uma vida digna e prazerosa de todos/as e um

sentido mais humano das nossas vidas aparecem não somente como uma possibilidade, mas

essas realidades ainda não-existentes aparecem como algo que deveriam ser, porque

desejadas.

Quando desejamos o mundo assim, produzimos e passamos a viver dentro de um

horizonte de esperança e de utopia. Utopia no sentido de desejar e de “ver” um mundo, um

lugar, “topos”, que ainda não existe e que talvez nunca venha a existir, mas que dá um

sentido às ações que nascem do nosso desejo de um mundo melhor. Este horizonte de

utopia e de esperança nascem juntamente com este desejo de vivenciar a sensibilidade

solidária para além das relações pessoais, ou em um pequeno grupo, o desejo de que toda a

sociedade, toda a realidade seja invadida e “grávida” desta solidariedade mais genuína. E é

este horizonte utópico que alimenta este desejo e dá sentido a esta sensibilidade solidária.

Em outras palavras, a sensibilidade solidária suscita um desejo que articula um novo

horizonte de sentido às nossas vidas, um horizonte utópico e de esperança. E este novo

horizonte utópico dá sentido à sensibilidade solidária e realimenta o nosso desejo de um

mundo mais humano, acolhedor e solidário.

A descoberta deste novo horizonte de sentido nos faz ver que não compartilhamos

mais as esperanças e utopias apresentadas e prometidas por este mundo excludente e

insensível. Não é que passamos a ter uma utopia e esperança, como se antes não as

tivéssemos. Nenhuma sociedade é capaz de alimentar os desejos, as esperanças e, porque

não dizer, a adesão dos seus membros se não é capaz de “vender” a sua utopia e esperança.

O que acontece é que a sensibilidade solidária com os/as que foram excluídos/as do sistema

nos faz encontrar novos desejos, esperanças e utopias.

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Solidariedade como princípio organizador da sociedade?

Antes de continuarmos a nossa reflexão, é importante lembrarmos que não estamos

tratando de algum conteúdo “objetivo” que pouco tem a ver com o sentido da nossa

existência, como por exemplo descobrir que dois mais dois é quatro. Esses temas da

sensibilidade solidária, esperança e utopia são mais do que conteúdos teóricos, tem a ver

diretamente com o sentido das nossas vidas. Poderíamos dizer que estamos tratando de

“verdades existenciais”, verdades que são importantes para o sentido das nossas vidas e

que, por isso, são difíceis de serem tratados de uma maneira “objetiva” e racional. Há um

velho ditado que diz: “futebol, política e religião, não se discute”. Não porque não houvesse

discussões sobre esses assuntos, mas porque era e ainda é muito difícil ter um debate

racional ou razoável, e, principalmente, não passional. Estamos tratando de temas que se

aproximam desse nível de paixão. Este lembrete é importante para não nos deixarmos levar

demasiadamente por paixões e polêmicas e perder assim a nossa capacidade de dialogar

com alguém ou com alguma teoria que sejam diferentes dos nossos desejos ou propostas.

Visto isto, voltemos ao nosso tema. Uma das características importantes das

experiências de sensibilidade solidária é que estas se dão no contexto de relações

interpessoais e/ou comunitárias. É claro que também nos sentimos solidários com

multidões ou com povos, mas estas experiências não são experiências interpessoais, nem

diretas, mas geralmente são relações mediadas por algum instrumento de comunicação,

como a TV, um livro ou um jornal. Quando sentimos uma indignação ética vendo

sofrimento de povos através de uma tela de TV, não estamos estabelecendo uma relação

direta com esses povos ou pessoas, mas uma relação mediada por um dispositivo de

interação virtual, tais como TV, livros, jornais ou Internet. A nossa sensibilidade solidária

com estas pessoas se dá por uma analogia com alguma experiência “real”, imediata, que

tivemos com pessoas “de carne e osso”.

Dispositivo de interação virtual (DIV) é qualquer tipo de artefato – desde moeda a

um sistema de transporte – que se converte de forma sistemática em mediador objetivo de

interações reais ou possíveis entre agentes. DIV é como um cabide no qual podem se

sustentar interações concretas. Não cumpre um papel meramente instrumental, mas pode

chegar assumir um papel constitutivo e essencial. Algumas das suas características.

Primeira, muitos DIVs não se limitam a fomentar e facilitar as interações, senão que

chegam a possibilitar a própria existência destas. Em segundo lugar, os DIV costumam

conformar as interações, fazendo-as a adotar uma forma estereotipada ou pré-determinada.

Em terceiro, os DIV tendem a despersonalizar as interações que sustentam.

Um outro aspecto que nos interessa relembrar neste momento é que o

reconhecimento do/a excluído/a como pessoa com dignidades e direitos se dá fora das

relações sistêmicas dominantes, do sistema que o/a excluiu, e também muitas vezes com

sentimento de protesto, de indignação ou de oposição em relação ao sistema social

dominante.

Como a sensibilidade solidária é uma das fontes fundamentais do novo horizonte de

esperança, que falamos acima, é muito comum vermos essas duas características como

eixos estruturadores dos horizontes utópicos ou projetos sociais de muitos grupos. Em

outras palavras, nós tendemos a projetar no nível do horizonte utópico ou no nível do

projeto de uma sociedade alternativa as características marcantes das nossas experiências e

perspectiva de sensibilidade solidária. Desta forma, tendemos a não perceber que, quando

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se passa de um nível micro-social para o macro-social, emergem novas propriedades que

mostram que houve uma mudança qualitativa ao passar de um nível ao outro. E sabemos

que houve esta passagem ao percebermos estas novas propriedades.

Movidos por nosso desejo, projetamos as melhores qualidades da nossa experiência

solidária no nosso horizonte de sentido e a partir dele elaboramos o nosso discurso como

deve ser uma nova sociedade. E como este discurso é um discurso afetivo, carregado de

desejo e esperança, tendemos a ser extremamente otimista quanto à possibilidade de

realizarmos os nossos sonhos e projetos. Assim, raramente nos perguntamos seriamente se

esses sonhos e projetos são passíveis de serem realizados. Como diz uma canção,

preferimos acreditar que “se o poeta sonha com aquilo que vai ser real, vamos sonhar com

as coisas boas...”.

1. Sociedade justa e solidária

Quando acreditamos que os nossos desejos são prenúncios do futuro, começamos a

propor a construção de uma sociedade justa e solidária, uma sociedade sem exploração e

desigualdade, uma civilização do amor, e coisas do gênero. Este tipo de discurso

apaixonante e sedutor é muito comum entre grupos de movimentos sociais, igrejas e

grupos religiosos que preservam e valorizam a sensibilidade social.

Tomemos como um exemplo dessa tendência alguns trechos do texto-base da

Campanha da Fraternidade da Igreja Católica do ano de 1999, que teve como tema “A

fraternidade e os desempregados”.83

Como todos documentos de uma instituição tão complexa e grande como a Igreja

Católica, podemos encontrar nesse texto-base algumas posições teórico-práticas que não

necessariamente são coerentes, pois representam visões diferentes de grupos que

participaram do processo de redação. Entretanto, este fato não nega a importância social

deste documento, principalmente tendo em vista o alcance das Campanhas de Fraternidade

como um processo educativo e social. (De um modo ou outro, estes documentos são

estudados ou usados como tema de debate em quase todas as escolas, comunidades e

paróquias católicas do Brasil.)

O primeiro dos seis objetivos da Campanha da Fraternidade de 1999 é apresentado,

na introdução do documento, desta forma: ―contribuir para que a comunidade eclesial e a

sociedade se sensibilizem com a grave situação dos desempregados, conheçam as causas e

as articulações que a geram e as conseqüências que dela decorrem‖. O tema da

solidariedade com os/as desempregados/as – um dos eixos articuladores do documento – é

apresentado através da perspectiva que chamamos de “sensibilidade solidária”. E isto é

bastante compreensível, afinal a experiência e a missão religiosa tem muito a ver com a

experiência da sensibilidade solidária.

Entretanto, o documento não reduz o problema da solidariedade à dimensão da

sensibilidade, mas diz também que “é indispensável que na distribuição da renda, da

propriedade e dos bens, os mais bem aquinhoados socialmente sejam solidários com

pobres, débeis e inferiorizados, assumindo realmente um importante ônus social. E isso

deve acontecer simplesmente porque sem solidariedade não há estabilidade social, pois o

abismo entre ricos e pobres gera automaticamente conseqüências perigosas para o tecido

social. Todos somos estreitamente ligados uns aos outros e com a natureza, e todos

83

Utilizamos a versão disponível na Internet: www.cnbb.org.br

Page 92: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

92

partilhamos do mesmo destino.” (n.134) Assim apresenta a solidariedade, ou melhor a

interdependência, também como um fato que deve ser reconhecido. Duas formas de ver a

solidariedade que analisamos antes.

A partir desse reconhecimento da interdependência e da necessidade da

sensibilidade solidária, o documento apresenta ou anuncia um novo modelo de sociedade:

uma sociedade justa e solidária e a favor do meio ambiente preservado, baseada em novos

paradigmas, onde a pessoa humana seja o centro, e vivendo a cultura da solidariedade.

O problema aparece na hora de discutir com mais detalhes como alcançar e/ou

organizar esta sociedade.

O novo modelo de sociedade, que aos poucos se vislumbra, aponta para a

partilha igualitária e solidária da produção e de renda e para a

corresponsabilidade pelo bem comum. O universo, confiado por Deus à

administração dos seres humanos, só será fonte de humanização e de

felicidade, na medida em que as pessoas trabalharem juntas e partilharem

os frutos de seu trabalho. É preciso, portanto, repartir entre todos os bens

produzidos na sociedade e não apenas entre os que produzem ou conseguem

deles se apropriar. A solidariedade se baseia no respeito à dignidade da

pessoa humana, seja ou não produtora. (n.138)

É, sem dúvida, um texto que se funda na experiência de sensibilidade solidária e

projeta para a futura sociedade os melhores desejos de um mundo harmonioso e justo. Por

isso, sedutor e motivador de lutas mais abnegadas. E como se dará isso se vivemos em uma

economia capitalista que valoriza não a harmonia, mas sim a concorrência como a mola do

progresso e do desenvolvimento? A resposta para esta questão segue o mesmo tom do

parágrafo citado acima:

Esta nova árvore só é possível a partir de projetos muito concretos do povo,

através de pequenas organizações solidárias, que vão se somando, se

articulando, construindo laços primários de fraternidade e cooperação,

dando ênfase a valores éticos e forçando o Estado e as empresas

particulares a se humanizarem. (n.137)

Aqui aparece mais claramente a lógica da projeção que falamos pouco acima. As

experiências concretas e locais, prenhes de sentido humano e de frutos concretos, servem

como a base para acreditar que a soma e a articulação desses pequenos projetos criará uma

avalanche que obrigará ao Estado e às empresas a se tornarem senão iguais, pelo menos

parecidos com essas pequenas organizações baseadas na solidariedade. O resultado final

deste movimento seria o surgimento dessa nova sociedade.

Esta crença ou desejo pressupõe algo fundamental: que não surjam diferenças

qualitativas importantes no funcionamento destas organizações e da articulação quando da

passagem de um nível local para nível mais amplo. Ou então da passagem de uma

articulação com poucas organizações para uma articulação com um número enorme de

organizações de muitos lugares diferentes, ou quando estas organizações aumentarem

muito de tamanho por causa dos seus sucessos econômicos. Pois, se emergirem novas

propriedades quando da passagem de um nível para outro, essa projeção não terá validade.

Em outras palavras, se o crescimento e o desenvolvimento das organizações e das

Page 93: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

93

articulações sistêmicas destas não se derem de uma forma linear, sem rupturas qualitativas

no caminho, esses sonhos não serão realizados.

Além da condição do crescimento linear, o modelo proposto pressupõe que o Estado

e as empresas particulares possam se humanizar sem perder a sua funcionalidade e

identidade.

Aliás, o penúltimo texto citado já apresenta uma cláusula de possibilidade de esses

desejos se tornarem realidade: “O universo, confiado por Deus à administração dos seres

humanos, só será fonte de humanização e de felicidade, na medida em que as pessoas

trabalharem juntas e partilharem os frutos de seu trabalho.” (n.138) Isto é, a substituição

da competição pela solidariedade e cooperação no campo econômico é a condição

necessária. Se não for possível seja por motivo de impossibilidade humana ou pela falha

nossa que as pessoas trabalhem juntas de modo cooperativo e harmonioso e partilhem eqüitativamente os frutos do trabalho, essa sociedade tão sonhada e desejada não existirá.

O documento não toma em sério este ponto fundamental: a possibilidade ou não de

se substituir completamente a competição pela solidariedade na economia. Pois, se não for

possível, não está dada a condição necessária para que o universo se transforme em fonte de

humanização e felicidade. Como crê que esta nova sociedade seja possível, parte do

suposto de que a condição necessária também será cumprida. Assim, dá por assentada a

tese de que é possível substituir plenamente a competição pela solidariedade. Esta posição

teórica é muito mais fruto do desejo e da aposta (fé) do que de uma reflexão consistente que

leve a sério as condições humanas e os limites da natureza e da sociedade.

Propor a humanização de empresas privadas e Estado é, sem dúvida, algo positivo.

Mas isto não pode significar a perda do realismo necessário para toda e qualquer ação

social. E este realismo, mesmo que de forma um pouco débil, está presente na mesma seção

onde aparecem os textos mais sedutores:

Não é possível uma cultura de justiça e solidariedade sem tomar medidas

para que o desenvolvimento seja sustentável em função das futuras

gerações. (...) O desenvolvimento sustentável, (...), só é possível se houver

uma forte disciplina na exasperação do consumo, que por sua vez requer

controle quanto à excessiva produção de benesses e conseqüente hipnose do

consumidor, através da propaganda. Para isso são indispensáveis

determinações jurídicas, econômicas, políticas e sociais, num consenso

básico ético e moral sobre os direitos humanos universais (liberdade

individual, participação social, direitos econômico-sociais e culturais), o

amparo social (necessidades elementares atendidas: educação, saúde,

assistência social...) e os direitos da terra. (n. 136)

Dizer que a sociedade justa e solidária só será possível se houver uma “forte

disciplina na exasperação do consumo” significa reconhecer a necessidade de

“determinações”, ou mecanismos institucionais no campo econômico, político-jurídico e

social. Ora, aqui aparece claramente a tensão entre os bons desejos de uma sociedade

harmoniosa, justa e solidária e as necessárias institucionalizações da sociedade. Uma forte

disciplina implica em coerção moral ou legal, imposta ou assumida. E nos sonhos da nova

sociedade não está prevista essa noção de coerção. Pois estes grupos que lutam pela

Page 94: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

94

“sociedade justa e solidária” compartilham uma das aspirações fundamentais da

modernidade, a liberdade como ausência de coerção.

Na verdade, o realismo presente nesse trecho não modificou a identificação dos

desejos de uma sociedade harmoniosa, onde a solidariedade toma o lugar da competição e

há uma distribuição justa e eqüitativa dos bens, com o projeto de uma sociedade factível. O

reconhecimento da necessidade de determinações no campo jurídico, político, econômicos

e social não levou a reconhecer os limites que a necessária institucionalização da sociedade

impõe ao nosso desejo de substituir competição e regras sociais pela solidariedade pura. Ou

seja, reconhecer que a primeira condição necessária não se realiza. Assim, o próprio texto

nos mostra que essa nova sociedade não será concretizada, pelos menos não nos termos

propostos pelo documento.

Instituições significam a possibilidade de reprodução de um grupo social e/ou da

própria sociedade. Sem institucionalização não há sobrevivência de grupos, por mais

solidários que eles sejam. Ao mesmo tempo, instituições são o que são porque produzem e

reproduzem regras, controles, hierarquias, burocracias, etc..

O desafio é manter essa tensão entre os desejos que nascem da sensibilidade

solidária e o realismo que reconhece a necessidade das institucionalizações e assim buscar

soluções efetivas e viáveis também no campo macro-social.

Essas determinações institucionais e sociais precisam estar, como aponta o texto,

ancoradas em consensos básicos éticos sobre direitos universais de todas as pessoas. Assim,

diferenciamos três níveis: o nível dos dinamismos básicos da solidariedade, como a

sensibilidade solidária e desejos; o nível dos princípios éticos; e o nível dos princípios

institucionais.

Quando vamos do nível dos sonhos e desejos generosos para níveis mais

institucionais e/ou operacionais da realidade social, somos obrigados a abandonar uma certa

ingenuidade presentes neste tipo de sonhos e a enfrentar o desafio de traduzir a

sensibilidade solidária em políticas econômicas e sociais viáveis e eficazes.

2. Economia solidária

Uma outra seção do documento da Campanha da Fraternidade de 1999, apresenta,

baseando-se em estudos do professor Paul Singer, um conceito chave no nível da

operacionalidade econômica: a economia solidária. Ao tratar o tema da solidariedade com

os/as excluídos no nível operacional, aparece uma outra proposta que é qualitativamente

diferente da proposta, apresentada acima, de uma “sociedade justa e solidária”, isto é, onde

a concorrência seja substituída totalmente pela solidariedade.

Esta proposta de economia solidária está baseada na convicção de que é possível

organizar a produção em larga escala sem ser pelo molde do grande capital. Para isso é

preciso quebrar o isolamento da pequena e microempresa – as que proporcionalmente mais

empregam trabalhadores/as – e a falta de mercado para os novos produtores autônomos.

A idéia básica é, mediante a solidariedade entre produtores autônomos de

todos os tamanhos e tipos, assegurar a cada um mercado para seus

produtos e uma variedade de economias externas, de financiamento, e ainda

a orientação técnica, legal, contábil, etc. (n.98)

Page 95: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

95

Dadas as dificuldades, a solidariedade é a solução racional: um conjunto de

produtores autônomos se organiza para trocar seus produtos entre si, o que

dá a todos e a cada um uma maneira de escoar a produção sem ser de

imediato aniquilado pela superioridade dos que já estão estabelecidos.

(n.99)

Dois pontos importantes a serem destacados aqui. Primeiro, a solidariedade da

economia solidária não é vivida por todas empresas e grupos da sociedade, mas sim entre

os produtores autônomos, pequena e microempresas que não conseguiriam sobreviver à

concorrência das médias e grandes empresas sem essa relação de solidariedade. Portanto, é

uma proposta de viabilização de um tipo de economia convivendo com a economia

capitalista de mercado.

A relação de concorrência não seria substituída pela relação de solidariedade em

toda sociedade, mas no interior e entre empresas que dentro dessa economia solidária

adotassem a auto-gestão ou co-gestão.

Como o próprio texto-base diz, esta proposta não é uma proposta global para

superar o capitalismo, mas sim uma estratégia contra o desemprego e a exclusão social. E

“se a economia solidária se consolidar e atingir dimensões significativas, ela se tornará

competidora do grande capital em diversos mercados.” (n.102)

A cooperação e solidariedade são vividas entre estes produtores porque conferem

benefícios ao grupo e os possibilita enfrentar a concorrência com o grande capital. É uma

forma de organização solidária que lembra o que disse o biólogo Richard Alexander: os

seres humanos cooperam para competir.

É claro que alguns poderiam reinterpretar essa proposta de economia solidária no

sentido de que é uma estratégia de médio prazo rumo a uma sociedade pós-capitalista.

Assim, pareceria que não há contradição ou diferença com a primeira proposta apresentada,

isto é a da sociedade “justa e solidária”. Contudo, é preciso não esquecer que a proposta de

economia solidária que analisamos não propõe o fim do mercado, mas sim a criação e a

manutenção de um mercado para estas pequenas e microempresas auto/co-gestionárias. E a

manutenção de relações de mercado, por mais pós-capitalistas que sejam, implica na

continuidade das relações de concorrência entre agentes econômicos, sejam produtores ou

consumidores. Isto é, não haveria a sociedade plenamente harmoniosa, justa e solidária.

Por isso, os que não aceitam essa “redução” ou “adequação” dos desejos do mundo

“justo e solidário” aos limites da realidade econômico-social, isto é, os que não percebem

ou não querem aceitar a tensão inevitável entre os desejos/utopias e as necessárias

institucionalizações na sociedade, não aceitam essa visão de economia solidária. Uma visão

alternativa é conectar a economia solidária à revolução socialista, como a apresentada por

Nuñes, em um artigo publicado na home page de uma rede de ONGs e pessoas que se

autodenomia Aliança por um Mundo Responsável e Solidário

Uma economia solidária não pode ser concebida nem desenvolvida fora do

contexto de um projeto revolucionário que lhe dê sustentação. A grande diferença,

em relação às revoluções anteriores, está em que, na economia solidária, não é

preciso esperar pela tomada do poder político para que os avanços aconteçam –

Page 96: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

96

ela mesma é parte da tomada do poder político, ela mesma é parte da revolução,

ela mesma é parte da transição e da construção do socialismo.84

Outros, como Carlos Vainer, preferem criticar de frente essa proposta de economia

solidária dizendo que esta expressão é um paradoxo em si.

O mundo da economia tal como ele existe, o mundo da sociedade onde a economia

domina é, sobretudo, na representação dos economistas, mas não apenas – sejam eles

clássicos ou neoclássicos –, o mundo natural da guerra de todos contra todos.”85

Para ele,

“a economia é o lugar da competição e da guerra. Os espaços de solidariedade são

aqueles dominados por outros fins, por outros valores e por outras práticas. [...] Não é

possível construir uma alternativa à economia, às leis da economia, nos marcos da

economia.86

Aqui temos um exemplo claro de como, não aceitando os limites que a realidade

humana e social impõem aos nossos desejos e projetos mais generosos, podemos cair em

situações sem saídas. Ao defender a solidariedade pura nas relações sociais, Vainer acaba

reduzindo a economia a um lugar de guerra, sem reconhecer ou admitir que as sociedades

humanas puderam desenvolver-se econômica e socialmente também graças ao

desenvolvimento das relações econômicas. Negar a importância e a ambigüidade da

economia e de algumas “leis” inerentes à toda e qualquer economia, em toda e qualquer

sociedade, é um tipo de negação metafísica que não nos leva a lugar nenhum. A aparência

de radicalidade na defesa da solidariedade como valor e como princípio organizador da

sociedade acaba levando a um beco sem saída.

Como ser solidários com os/as excluídos/as, como atuar no campo econômico em

defesa dos direitos e dos interesses dos/as desempregados/as se partimos do princípio de

que é impossível conjugar a solidariedade com economia? Impossibilidade a que se chega

por opor duas escolhas radicais: economia sem nenhuma relação de concorrência, somente

com pura solidariedade, ou a separação radical entre a solidariedade e economia. Uma

visão dualista, de oposição metafísica que não compreende a complexidade da vida humana

e social e acaba, em nome da solidariedade, negando os caminhos e ações concretas de

solidariedade possível.

Paul Singer, respondendo às críticas de Vainer, diz que a proposta de economia

solidária é menos inconsistente do que a economia capitalista porque ela coloca, aberta e

diretamente, a solidariedade como princípio organizador da economia social em lugar da

competição. Contudo, Singer não crê na possibilidade do fim da concorrência no campo da

economia e também nas relações sociais. Para ele, “na economia solidária a competição é

basicamente negativa, embora, em certas circunstâncias, seja inevitável [...] pelo menos no

mundo em que vivemos”. No campo social, ele cita o exemplo da universidade. Para que se

mantenha um nível mínimo de conhecimento para pesquisa, ensino e extensão é necessário

84

NUÑES, Orlando. Os caminhos da revolução e a economia solidária. Disponível na Internet, mai/00. 85

VAINER, Carlos. “O presente de um futuro possível”. Em: GUIMARÃES, Gonçalves. Sindicalismo &

Cooperativismo. A economia solidária em debate. São Paulo: Unitrabalho, s/d (2000), pp. 37-61. Citado da p.

45. 86

Idem, op.cit., p. 47.

Page 97: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

97

que haja algum tipo de processo de seleção, o que significa competição. “O processo social

tem limites para a solidariedade. Mas os limites são muito amplos.”87

Na resposta de Singer persiste ainda o problema da solidariedade como princípio

organizador da economia social em lugar da competição. É possível organizar uma

sociedade ou uma economia social só com um princípio? Como ele reconhece que a

competição vai sobreviver mesmo no economia solidária, podemos nos perguntar se não

seria melhor pensar em mais de um princípio organizador da economia e da sociedade.

Retomaremos este assunto mais para frente.

Reconhecidos os limites para solidariedade, voltemos ao desejo de expandir esta

economia solidária ao nível global. Aqui surge novamente a pergunta: se a economia

solidária conseguir atingir dimensões tais que possa competir com o grande capital

continuará mantendo as características de solidariedade que é possível quando se está em

uma escala pequena? Não é possível dar uma resposta definitiva a esta questão, pois esta

situação nunca aconteceu. Teoricamente podemos antecipar que dificilmente a economia

solidária em grande escala manterá as mesmas características. A razão é simples: quando

um sistema, ou uma rede, cresce muito em escala surgem novas propriedades no sistema

que modificam a suas características de funcionamento.

Mas, para vermos melhor esta questão, vejamos mais uma proposta semelhante a

estas que temos discutido.

3. Rede de colaboração solidária

Euclides André Mance apresenta no seu livro A revolução das redes o que ele

entende como “uma alternativa viável e concreta para os excluídos e marginalizados pelo

movimento de globalização econômica”, que se efetivado de modo amplo e mundial, “tende

a construir uma sociedade alternativa ao capitalismo”88

. O título dá uma idéia da sua

perspectiva teórica, e o subtítulo, A colaboração solidária como uma alternativa pós-

capitalista à globalização atual, o seu objetivo.

Como deixa subentender no título, o autor aplica as novas teorias da complexidade

na análise e na projeção das possibilidades das redes de colaboração solidária. Por isso, ele

diz que “um princípio básico dessa noção de rede é que ela funciona como um sistema

aberto que se auto-reproduz, isto é, como um sistema autopoiético”.89

Entretanto, parece

que o autor reduz esta característica de autopoiese somente à rede de solidariedade e não

reconhece no sistema capitalista esta possibilidade ou característica sistêmica. Por exemplo,

ele diz:

O capital, [...], ao gerar cada vez mais excluídos e ao desenvolver

continuamente as forças produtivas, atua em direção de sua própria

dissolução ao ir eliminando progressivamente a relação ‗capital-trabalho-

assalariado‘ como modo dominante da produção social, criando as bases e

a necessidade de expansão e desenvolvimento das redes de colaboração

87

SINGER, Paul. “Desafio à solidariedade”. Em: ”. Em: GUIMARÃES, Gonçalves. op. cit. pp. 63-76. Citado

da p. 69.

88 Mance, Euclides André. A revolução das redes. A colaboração solidária como uma alternativa pós-

capitalista à globalização atual. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 13. 89

Idem, op.cit., p. 24.

Page 98: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

98

solidária como único modo de os excluídos poderem gerar e usufruir da

riqueza produzida com vista a assegurar o bem viver pessoal e coletivo.90

Esta análise ou predição sobre o futuro do capitalismo tem muito pouco a ver com o

conceito de autopoiese ou com outros da teoria da complexidade que ele utiliza ao falar das

redes de colaboração solidária. Parece que o autor ainda mantém as idéias centrais do

marxismo sobre o fim inevitável do capitalismo, resultado de um desenvolvimento quase

linear, e a existência de um único caminho necessário para a sua superação e para a

emancipação dos/as excluídos/as ou dos/as trabalhadores/as. É como se o capitalismo não

funcionasse também como um sistema aberto com processos autopoiéticos.

Há mais de cinqüenta nos Schumpeter mostrou que o capitalismo é um sistema

que incessantemente revoluciona a estrutura econômica a partir de dentro,

incessantemente destruindo a velha, incessantemente criando uma nova. Esse

processo de Destruição Criativa é o fato essencial acerca do capitalismo.91

A expressão “destruição criativa” mostra bem o caráter auto-organizativo do sistema

capitalista e a emergência da ordem a partir e nos limites do caos. O que significa dizer que

a dissolução de determinadas relações econômico-sociais ou o aumento do “caos social”

nas sociedades capitalistas não podem ser tomadas como sinais do seu fim.

Além disso, quando um sistema econômico entra em sua fase de “alta

instabilidade”, com possibilidades (isto é, não necessariamente) de ser substituída por um

outro, não surge um único caminho necessário. Sempre há mais de uma possibilidade.

Teóricos como I. Wallenstein ou E. Laszlo utilizam o conceito de “bifurcação” na tentativa

de superar esta visão determinista da história e da própria evolução da natureza.

Talvez Mance tenha sido traído por seu desejo de ver o fim do capitalismo e, assim,

apresentado uma análise que pouco tem a ver com a perspectiva teórica adotada no livro,

mas que condiz mais com o seu desejo e expectativa da implantação de um novo sistema

social em escala global.

Ele afirma que a organização de redes de colaboração solidária, valendo-se dos

recursos produzidos no capitalismo, tende a construir uma sociedade alternativa em nível

global. E que

para a viabilização dessa meta somente uma condição é necessária e nada

mais, a saber, que todos os que aderirem ao projeto de uma nova ordem

mundial centrada na promoção das liberdades públicas e privadas

pratiquem o consumo solidário, isto é, que em todas as suas atividades de

consumo dêem preferência a produtos que tenham sido produzidos pelas

redes de colaboração solidária, mesmo que estes produtos custem um pouco

mais caro que os produtos elaborados sob a rede capitalista, embora, em

geral, venham a ser mais baratos, uma vez que na colaboração solidária

inexiste a figura do acúmulo privado de lucro. (...) [com o consumo

solidário] colaboramos para eliminação de toda forma de exploração dos

90

Idem, op.cit., p. 35. 91

SCHUMPETER, Joseph A.. Capitalismo, socialismo e democracia. Rio de Janeiro: Zahar Ed., 1984, p.113.

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99

seres humanos e para a construção de uma nova sociedade colaborativa e

solidária.92

O consumo solidário ocorre quando a seleção do que consumimos é feita

não apensas considerando o nosso bem-viver pessoal, mas igualmente o

bem-viver coletivo. Esse tipo de conduta somente se torna possível quando

as pessoas compreendem que a produção encontra a sua finalidade – ou o

seu acabamento – no consumo e que ele tem impacto sobre todo o

ecossistema e sobre a sociedade em geral.93

Esta longa citação merece ser analisada com mais vagar, pois levanta um série de

importantes questões.

A primeira questão é a apresentação de uma única condição para se atingir uma

meta tão grandiosa – se é que é possível – de uma nova sociedade sem exploração dos seres

humanos. Além desta confusão entre o horizonte de desejo, de uma sociedade sem

exploração, com um projeto social concreto, o autor insiste em um dos mais graves erros da

modernidade, que foi e continua sendo a obsessão, estreita e simplista, por um único

caminho e um único princípio de organização social. O liberalismo e o neoliberalismo com

mais intensidade propõem o mercado, enquanto que o marxismo propunha a planificação

centralizada pelo Estado.

Mance não propõe a planificação como o princípio organizador da sociedade, mas

não supera a idéia de um único princípio organizador e propõe a solidariedade, ou o

consumo solidário. É importante recordarmos aqui que uma das características do

pensamento complexo é a superação dessa busca de um único princípio ou de uma única

causa dos problemas e das soluções. A realidade é mais complexa do que essas reduções.

Devemos trabalhar com uma pluralidade simultânea de diversos princípios organizativos da

sociedade.

Não há dúvida de que a idéia de uma única causa principal para os nossos

problemas e um único princípio ou caminho para a solução destes é bastante atraente, na

medida em que simplifica o nosso desafio e nos dá uma certeza que nos motiva para a luta.

Contudo, estas “vantagens” da simplificação são ilusórias e, o mais importante, não são

eficazes e nem geram resultados desejados.

A segunda questão se refere à prática concreta do consumo solidário. O autor

propõe que as pessoas e grupos solidários dêem preferência a produtos que tenham sido

produzidos pelas redes de colaboração solidária. Aliás, já existe na Europa redes de lojas

que comercializam esse tipos de produtos para pessoas que querem fazer do seu ato de

consumir um gesto concreto de solidariedade com os/as excluídos/as dos países do Terceiro

Mundo.

Se o autor estiver correto e se aos poucos essas redes substituírem a rede capitalista,

enfrentaremos um novo problema. Como escolher entre dois ou mais produtos similares da

rede solidária? Este dilema não ocorreria se houvesse uma planificação perfeita em nível

mundial que evitasse a duplicação de ofertas de mesmo tipo de produtos em mesmas

localidades. Mas, o problema é que este planejamento é impossível, pois implica em lidar

com bilhões de fatores que estão se modificando a cada instante em todas as partes do

mundo. Assim sendo, na medida em que a redes solidária fosse aumentando a sua presença

92

MANCE, E. A., op.cit., p. 13. 93

Idem, op.cit, p.29.

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100

no campo econômico, os consumidores teriam que escolher entre produtos similares dessa

mesma rede. E isto aconteceria antes mesmo que a rede solidária desbancasse a rede

capitalista.

Quando a presença da rede solidária no mercado é pequena, o consumidor solidário

tem um critério claro na sua escolha entre um ou mais produtos da rede capitalista e um da

rede solidária. O critério é a solidariedade e por isso escolhe o segundo. Mas, quando o

consumidor tiver que escolher entre dois ou mais produtos similares da rede solidária, esse

critério não funcionará mais. O que obrigará ao consumidor ou aos defensores dessa

proposta elaborar um novo critério. É óbvio que o critério não pode ser meramente

econômico (como o preço, a relação entre o custo e o benefício), nem meramente a

qualidade do produto, pois assim estariam seguindo as leis da concorrência do mercado.

Existe um critério fundamental para o consumo solidário?

Aparentemente, Mance responde esta questão com a definição que ele dá sobre o

consumo solidário, a parte final da citação acima. Para facilitar o/a leitor/a, citemos

novamente:

O consumo solidário ocorre quando a seleção do que consumimos é feita não

apensas considerando o nosso bem-viver pessoal, mas igualmente o bem-viver

coletivo. Esse tipo de conduta somente se torna possível quando as pessoas

compreendem que a produção encontra a sua finalidade – ou o seu acabamento –

no consumo e que ele tem impacto sobre todo o ecossistema e sobre a sociedade em

geral.

O problema se repete. Esta definição é útil quando a rede solidária é pequena, mas

não para a nossa questão que surge quando ela já é grande. Por exemplo, quando o

consumidor tem à sua frente duas opções claras, como por exemplo, uma bolsa feita com a

pele de crocodilo e uma outra feita com juta por trabalhadoras da área rural de um país

subdesenvolvido, a escolha por consumo solidário é feita sem maiores problemas. Mas,

quando o consumidor se vê diante de duas bolsas de juta, ou diante de outros produtos dos

quais não conhece os impactos sobre o meio ambiente e sobre a sociedade, como escolher?

A proposta de Mance pressupõe um conhecimento a respeito de cada produto –

desde quem os produziu, a forma como foi feita, o material utilizado e os impactos da

produção e consumo desses produtos no meio ambiente e na sociedade – que é impossível

ter. Isto exigiria um nível de conhecimento que nem os melhores centros de ciência

possuem e nem poderão possuir, por causa da complexidade da realidade e por causa do

número gigantesco de fatores envolvidos. Nem falar dos/as consumidores/as comuns.

Na impossibilidade desse conhecimento, a escolha entre produtos similares da rede

solidária se dará, provavelmente, por critérios de qualidade e preço. Critérios que fazem

parte hoje da concorrência de mercado.

Isto nos leva ao problema da concorrência entre “células produtivas” que fazem

parte desta rede solidária. Mance critica a tese de Paul Singer de que a competição entre

empresas que participam na economia solidária é imprescindível para que haja estímulo

para melhorar a qualidade e baixar os custos. Para Mance o conceito de competitividade,

que pressupõe competição, concorrência, deve ser suplantado pelo conceito de

solidariedade. Além disso, para ele,

Page 101: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

101

o que qualificará a produção não é a competição entre as unidades laborais, posto

que é o fluxo de valores entre elas o que permite a expansão da rede, mas a

avaliação pública dos consumidores que têm autonomia, inclusive, para propor

mudanças sobre os produtos e serviços ofertados na rede.94

Para ele, a melhoria da qualidade dos produtos virá com a pressão exercida pelos

consumidores e não pela competição entre os produtores.

O que se pressupõe quando se diz que a qualidade de produtos deverá ser melhorada

somente pela pressão dos/as consumidores/as? Primeiro, que todos/as os/as

consumidores/as deverão ter acesso aos produtores. O que não é muito fácil em uma

economia globalizada, quando muitos dos produtos ou das matérias primas ou partes dos

produtos não são produzidos no mesmo local do consumo. Mesmo que não pensemos na

economia global, em um país do tamanho do Brasil essa conexão não é viável na maioria

dos produtos.

Mesmo que esta conexão fosse possível em todos ou na maioria dos produtos, como

os/as consumidores/as poderiam exercer essa pressão? Sem levar em consideração que o

conjunto de consumidores/as de um determinado produto não forma uma unidade

homogênea, temos de ver os mecanismos concretos da pressão. Uma pressão social só é

uma pressão real se o grupo que pressiona tem alguma forma de sancionar aquele que é

pressionado se não atendido nas suas reivindicações. No caso dos movimentos sociais e

políticos, uma das formas de sanção é negar votos aos políticos que não atendem a pressão

popular. E no caso da pressão dos/as consumidores/as?

A arma fundamental de pressão dos/as consumidores é mudar de produto, ou do

produtor. Uma célula produtora só levará a sério a pressão ou reclamo dos/as

consumidores/as se tiver receio de perder uma parte das suas vendas. Se as suas vendas e os

seus postos de trabalhos estiverem garantidos por algum mecanismo extra relação

vendedor-comprador, não terá motivo para ceder às pressões que significarão mais

trabalho. Em suma, a pressão dos/as consumidores/as só será eficaz se estes/as tiverem a

possibilidade de comprar produtos de uma outra célula que atenda os seus reclamos. Isto é,

a melhoria dos produtos e serviços só ocorrerá por causa da concorrência entre os

produtores.

Esta é uma das razões porque a palavra competitividade, que deriva da competência,

possui dois sentidos: um que indica a boa qualidade do produto ou da empresa,

competência; e outro que vai na direção da competição, concorrência. Em espanhol a

palavra “competencia” significa ao mesmo tempo a ação de competir e a qualidade de

competente. Em resumo, a proposta de uma rede de colaboração solidária é importante

para viabilizar muitas das atividades econômicas fundamentais para a sobrevivência de

tantas pessoas que vivem condições econômicas precárias, mas não podemos simplesmente

projetar esta proposta ao nível global. Solidariedade é e deve ser um componente

importante nas relações econômicas e sociais, mas não pode ser transformada no único

princípio organizador.

A solidariedade e competição são dois elementos indispensáveis na convivência, na

manutenção e na reprodução da vida social. Os neoliberais pretendem fazer da competição

o único princípio organizador da sociedade. Os marxistas tentaram fazer do planejamento

centralizado o único princípio. Hoje surgem muitos grupos que parecem querer fazer do

94

Idem, op.cit., p. 173.

Page 102: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

102

conceito de solidariedade o único princípio organizador. O problema fundamental não está

na disputa pela escolha por um destes princípios, mas no pressuposto de que há ou deverá

haver um único princípio organizador e na antropologia subjacente a estas defesas.

Princípios de organização social

Uma consideração a ser feita sobre a solidariedade e o problema da organização

social é a seguinte: os princípios de organização social de uma sociedade deveriam servir

para articular, de maneira eficiente e sustentável, a garantia da produção e distribuição de

bens e serviços para a ampla maioria e, tendencialmente, a totalidade dos membros da

referida sociedade. Este enunciado aparentemente tão óbvio contém toda uma gama de

pressupostos entre os quais convém explicitar ao menos três.

Em primeiro lugar, a insistência no plural princípios, que pretende sinalizar a

suspeita, já assinalada antes, de que um dos erros mais graves da modernidade foi e

continua sendo a obsessão, estreita e simplista, por um único princípio de organização

social predominante sobre quaisquer outros, que porventura pudessem coexistir

perfeitamente com ele. Por exemplo, ou mercado, ou planificação; ou livre iniciativa e

aguerrida competitividade, ou o predomínio de políticas públicas. Os princípios de

organização social provavelmente nunca foram redutíveis a um único princípio. Mesmo nas

formas de organização social de pequenas ou médias proporções (tribal, comunitária, e

praticamente todas as formas de organização social anteriores ao Estado-nação) geralmente

houve a presença simultânea de vários princípios organizativos, ou seja, de várias formas

de relacionamento e de poder.

Só em alguns escassos países europeus logrou-se, a nível nacional, superar essa

obsessão por um único princípio e se chegou a uma coexistência frutífera da dinâmica do

mercado com políticas públicas de acentuado cunho socializante. Mas o modelo neo-

liberal, cuja crise previsível já se tornou evidente (a discreta crise já visível do

neoliberalismo não significa, como gostariam alguns, a crise do capitalismo), quis forçar a

barra em direção a um retorno radical a um único princípio organizativo predominante,

especialmente na economia, mas tendencialmente omnívoro em relação a todos os aspectos

da sociedade. O tema solidariedade - e seus conexos - nos recoloca a questão de uma

conveniente pluralidade simultânea de diversos princípios organizativos da socialidade

humana, especialmente em sociedades amplas, complexas e crescentemente urbanizadas.

Em segundo lugar, a consideração inicial, feita acima, insinua a impossibilidade e

crescente inconveniência de querer enquadrar o conjunto das múltiplas atividades humanas

em funções economicamente produtivas. No momento em que os avanços tecnológicos e o

aumento exponencial da produtividade do trabalho humano permitem antever que, no

futuro, um número cada vez menor de agentes produtivos dará conta da produção dos bens

materiais, tornou-se imperiosa uma transformação do próprio conceito de produção

socialmente relevante. Não se trata apenas de incluir prontamente nesse conceito a incrível

expansão e diversificação de bens e serviços socialmente demandados. Trata-se de acolher

nesse conceito muitas atividades até há pouco consideradas não-produtivas e de intensificar

o apreço coletivo à constante inovação em novas formas criativas relacionadas com a

acolhida, o reconhecimento mútuo, a convivialidade, a conectividade da sociedade da

informação, a aprendizagem multirreferencial transformada em forma de prazer, o lúdico, o

incentivo artístico e a dinamização da cultura e dos relacionamentos humanos em geral.

Page 103: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

103

Em terceiro lugar, a maneira como ficou formulada a consideração inicial alertava

para um pressuposto desagradável, mas antropologicamente realista, a saber: o passado

histórico da espécie humana sugere certa cautela quanto à pretensão de estabelecer

princípios organizativos de conjuntos sociais relativamente amplos, nos quais não fique

ninguém de fora do atendimento básico de suas necessidades mais elementares. De fato não

parece ter havido jamais nenhuma organização social humana sem alguma forma de

discriminação ou exclusão social. De modo que parece recomendável ater-se a princípios

organizativos da sociedade que impliquem tendências decrescentes de discriminação e

exclusão social. Na situação socialmente desvairada do mundo de hoje de fato não se

vislumbra nenhuma convergência rápida de políticas decisórias que prometam uma

universalização do ideal da solidariedade humana, entendido como igualdade de

oportunidades satisfatórias de felicidade para todos os seres humanos.

Supondo-se que haja acordo mínimo acerca do enunciado inicial, e alguma atenção

às ponderações adicionais, podemos começar a perguntar-nos quais são as palavras e/ou

conceitos que melhor se prestam para nomear esses princípios de organização social. Como

já ficou dito acima, de fato predominou e ainda predomina a busca de uma resposta no

singular, ou seja, a de um princípio organizativo absolutamente básico e determinante. A

forma de governo foi o princípio predominante, mas nunca suficiente, para ampliar a

produtividade e o acesso aos bens e serviços até depois do final da Idade Média. A

solidariedade, entendida como solução básica para a universalização desses bens e serviços

jamais aconteceu sob qualquer regime político, embora houvesse variações umas mais

outras menos propícias a tal objetivo, aliás poucas vezes explícito. O que marca a origem

da Modernidade é precisamente a aspiração a metas sociais universalizáveis.

Praticamente até Hobbes e Maquiavel, a resposta no singular se referia ao “bom

governo”, ou seja, a solução se daria pelo caminho do poder político. Sucede então, aos

poucos, uma grande despedida – até hoje inconclusa – do sonho da solução por vias de

exercício do poder político. Com o surgimento do projeto inovador de uma solução

prevalentemente econômica – a produção suficiente de “riqueza das nações” para dar conta

das demandas/necessidades básicas de todos – a modernidade emergente se bifurca em duas

grandes vertentes: a vertente política e filosófica (ilustração, iluminismo), que voltará sua

insistência à universalização dos direitos civis e dos direitos humanos; e a vertente

econômica, buscando um matrimônio nunca indissolúvel entre mercado e democracia

(liberalismo econômico e liberalismo político).

Vale a pena insistir: desde os clássicos da economia burguesa, a resposta desviou-se

da preferência pela solução política em direção a uma saída primordialmente econômica, a

saber, a opção preferencial por mecanismos de mercado que, supostamente, emergeriam de

forma espontânea do respeito à propriedade e aos contratos. Esta proposta supõe a adoção

de uma nova e singular visão do ser humano no convício social dentro de sociedades

amplas e complexas. Os seres humanos como feixes de “paixões e interesses”, que se

regem socialmente por interesse próprio, iniciativa, industriosidade e criatividade – de

acordo ao conceito liberal de liberdade.

Portanto, uma visão antropológica que os economistas clássicos se imaginaram ser a

mais adequada a um novo contexto social, o das sociedades amplas e complexas (a “grande

transformação”, segundo Karl Polanyi). Adam Smith foi muito explícito num ponto: não se

pode conceber o funcionamento econômico de uma sociedade ampla com a mentalidade de

mendigos, que imaginam a sua sobrevivência a partir da benevolência alheia. É bom não

deixar de frisar que, aos menos nas promessas dos clássicos, o mercado tenderia à

Page 104: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

104

universalização, ou seja, seria um novo caminho original para a criação efetiva do bem

comum. Até Marx reconhece que este sonho era explícito nos “pais fundadores” da

economia burguesa. Após duras penas, algum dia o mercado alcançaria espontaneamente a

meta do bem comum. Se não se lembra deste antigo sonho da economia burguesa, torna-se

mais difícil entender o fervor do credo neo-liberal das décadas finais do século XX.

Como é sabido, em meados do século XIX, com desdobramentos até a penúltima

década do século XX, sonhou-se com uma outra solução, a das economias planificadas por

um poder político centralizado. A saída socialista mataria de um vez a charada de dupla

cara, a econômica e a política. Só que para isso precisava de uma visão do ser humano

muito diferente daquela proposta pela economia burguesa. Agora os seres humanos deviam

ser vistos como tendencialmente generosos, naturalmente abertos a sacrifícios, entregas e

dedicações quase espontâneas, bastando para isso uns piparotes de formação da consciência

política. Simplificando um pouco as coisas, o espontaneismo auto-organizativo dos

mecanismos do mercado, pregado pela economia liberal, seria substituído por outro

processo auto-organizativo, igualmente quase espontâneo, mas dessa vez apoiado na

capacidade de adesão espontânea e consciente das massas. Estava inventada uma outra

auto-organização, a da consciência histórica coletiva.

Não por já terem ambos passado efetivamente à história, a primeira (a do “bom

governo”) e a terceira (a “socialista”) deixaram de ressoar nos debates acerca da

universalização do acesso aos bens e serviços requeridos pela “produção e reprodução

social da vida” (para usar terminologia marxista). Um ponto chave, que precisa ser

retomado em cada nova situação sócio-histórica, é a da concepção do ser humano. E essa

questão não se resolve no plano puramente abstrato. É preciso ter em contar os campos de

sentido no qual os seres humanos constróem a sua auto-percepção.

A lição mais profunda da deblacle dos socialismo – que se deu primordialmente

desde o interior, por erosão interna, e não por imposição ou intromissão de poderes

externos – seria a de que cometeram um equívoco quanto à assim chamada “natureza

humana” (afirmação na qual coincidem explicitamente o Papa João Paulo II e Zbigniew

Brezezinski). Em outras palavras, haveria um erro antropológico na proposta marxista: os

seres humanos não se preocupam apenas com suas necessidades, mas também – e

muitíssimo – com seus desejos. E é muito difícil fazer que necessidades e desejos

coincidam no imaginário coletivo, e até no individual. Foi nesse ponto que os “socialismos”

se equivocaram, porque não é fácil negar que houve ingentes esforços no atendimento

primordial das necessidades materiais elementares de toda a população, prometendo não

dar margem a discriminações de qualquer índole. Nem a metástase escandalosa da

“Nomenklatura” privilegista, nem mesmo os “gulags” hediondos anulam a presença de

certas formas institucionais surpreendentemente solidárias nos defuntos “socialismos”.

Contudo, no que se refere ao atendimento mínimo das necessidades mais

elementares da maioria da população, a atual situação da maioria dos países do Leste

europeu, tomados por um vandalismo anarco-capitalista, nos indica que o fracasso dos

“socialismos reais” não existiu, ou, pelo menos, devemos minimizar este conceito de

fracasso.

A globalização do mercado, com o comando de ponta do capital financeiro, recoloca

a temática da universalização do acesso aos bens e serviços elementares para todos os seres

humanos dentro de um quadro inédito e de dramaticidade extrema. O mercado se apresenta

como a única via institucional básica para a ampliação do referido acesso universal. Ao

mesmo tempo, ele aparece como o obstáculo maior para a criação desse acesso. De modo

Page 105: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

105

que nos confrontamos com dois conceitos contrapostos de solidariedade prioritária: a

suposta solidariedade básica das formas institucionais geradoras da ampliação da riqueza e

do crescimento econômico, ou seja, a que se articula a partir de critérios de defesa do

mercado, enquanto solução universalizante; e, por outro lado, a solidariedade cujos critérios

básicos se articulam a partir da atenção prioritária aos que não cabem no mercado assim

como ele funciona.

Sensibilidade solidária e complexidade social

A opção por este segundo conceito de solidariedade não pode, contudo, nos levar a

repetir equívocos do passado. Em primeiro lugar, devemos evitar a tentação de retornar,

pura e simplesmente ao antigo sonho de uma solução para os problemas sociais através do

bom governo, capaz de supervisionar e direcionar todas as atividades da sociedade (esse

sonho recebeu um golpe definitivo com o colapso dos socialismos "reais"); ou a tentação de

atribuir o vigor de princípio organizativo da sociedade a uma suposta predisposição

generosa dos seres humanos para se entusiasmarem pelo bem comum ao ponto de o

transformaram, quase espontaneamente, em objetivo constante de suas ações.

Note-se que estamos falando da organização do todo social em sociedades amplas e

complexas. Ninguém pretende negar que, em comunidades relativamente pequenas e

culturalmente bastante isoladas, um conjunto de regras comunitárias tenha sido suficiente

para instigar a iniciativa e manter a coesão social. A concepção do ser humano como

membro de uma comunidade não pode ser estendida, sem mais, à sociedade ampla e

complexa. Por isso também a exigência de determinados princípios organizativos para o

funcionamento do todo social é profundamente diferente nos dois casos, ou seja, para os

contextos comunitários e para sociedades modernas.

Em segundo lugar, devemos reconhecer os limites da nossa condição humana e

social. Isto é, devemos renunciar a idéia ou projeto de soluções definitivas. Sociedades

“harmônicas, justas e solidárias”, ou sociedades sem exploração do ser humano, são

horizontes utópicos que nos motivam a lutar e a caminhar, mas devemos reconhecer que,

como todos horizontes, são impossíveis de serem atingidos. É de João Guimarães Rosa a

bela frase: "Nada devora mais que os horizontes". "Devorar" nos dois sentidos de atrair e

engolir. Os horizontes puxam e atraem, e nisso são necessários, Mas também podem ser um

sorvedouro de vidas, como se viu na Nicarágua. Não estamos propondo a renúncia dos

desejos que geram esses horizontes, mas o reconhecimento de que esses horizontes, como

todo e qualquer horizonte de perfeição ou de soluções definitivas são irrealizáveis em

plenitude na história humana.

O problema destes desejos não reside somente na impossibilidade da sua realização.

Quando pessoas e grupos sociais buscam metas impossíveis, não somente não realizam os

seus objetivos, mas – o mais importante – não realizam metas possíveis, não valorizam

ações e projetos solidários possíveis e eficazes, pois estes comparados com os seus sonhos

de perfeição definitiva parecem demasiadamente insignificantes. Muitas vezes, nesta

obsessão por “solidariedade perfeita” acabam se tornando pessoas amargas e agressivas,

que só sabem criticar propostas factíveis de outras pessoas ou grupos.

Ações que se resumem em criticar e denunciar, sem nenhuma ação ou proposta

positiva dentro das possibilidades existentes, não passam de “pseudo-profetismo

apocalíptico” que mais paralisa do que mobiliza a sociedade para um caminho menos

excludente e insensível.

Page 106: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

106

Quando se busca a “solidariedade perfeita”, ou “soluções definitivas”, impõe-se

sobre pessoas e grupos sociais um fardo pesado demais para carregar. Sacrificam-se vidas

de pessoas em nome do fim de sacrifícios de vidas humanas. Os “efeitos colaterais” desta

busca de “construir a utopia” são demasiadamente dolorosos. Como também é dolorosa a

vida das pessoas que se entregam à lógica insensível da sociedade atual e não conseguem

nem sonhar ou desejar um mundo diferente do que conhecemos hoje.

Para não cairmos nessa postura imobilizante, é fundamental distinguirmos teórica e

existencialmente o desejo que nasce da sensibilidade solidária dos princípios organizativos

e as instituições necessárias no nível da sociedade. Este é o terceiro ponto. Entre o desejo

do novo que nasce da sensibilidade solidária e a institucionalização da solidariedade na

sociedade existe uma relação complexa e contraditória.

Sem a institucionalização, a sensibilidade solidária não se torna real e operacional

no âmbito social. Necessitamos de mecanismos institucionais que encarnem o espírito de

solidariedade como coesão social e que gere normalmente, de modo auto-organizado, a

produção e a distribuição do suficiente para todos/as da sociedade. A sensibilidade solidária

precisa ser transformadas em normais sociais e mecanismos institucionais automatizados

para que funcione em sociedade ampla e complexa.

Entretanto, a institucionalização da solidariedade mata um pouco da sensibilidade

solidária, pois a solidariedade é realizada de modo institucional, isto é, com regras baseadas

em mecanismos ao mesmo tempo auto-organizativo e burocrático. Mas não há outro jeito.

Para entendermos um pouco melhor esse paradoxo, tomemos como exemplo para

análise um caso de aparente contradição que está no Antigo Testamento. Há um consenso

entre os estudiosos do tema que o Decálogo representou um avanço na consciência social

da época. Num contexto social onde a força era um critério fundamental, o Decálogo

significou uma tentativa de ordenamento social baseado no reconhecimento dos direitos dos

mais fracos. Não podemos esquecer que foi o primeiro ou um dos primeiros códigos legais

a defender o direito ao descanso semanal dos/das trabalhadores/as livres e escravos/as. Em

outras palavras, o Decálogo expressa um princípio organizativo baseado na sensibilidade

social. No Decálogo há um imperativo central: “Não matarás.” (Livro do Êxodo, 20, 13).

Um princípio fundamental para a nova organização social que estava sendo construída

pelos israelitas e todos/as aqueles/as que aderiram a este projeto social. Contudo, logo no

capítulo seguinte, no Código da Aliança (um código mais amplo que, em uma linguagem

moderna e não-técnica poderíamos dizer, regulamentava o Decálogo e dava prescrições

mais concretas para a vida cotidiana) há uma outra determinação: “Quem ferir a outro e

causar a sua morte, será morto” (Livro do Êxodo, 21,12)

Esta aparente contradição é a condição de operacionalidade do princípio “não

matarás”. Como o grupo sabia que o estabelecimento de um novo princípio social e legal

não modificava automaticamente as pessoas, tiveram que estabelecer as penas para aqueles

que não cumprissem estes novos princípios e regras sociais. Para um princípio fundamental,

a sanção teria que ser proporcional à importância do princípio. É a gravidade da sanção que

mostra a importância e o peso social da regra. Por isso, para a consciência social daquela

época, o avanço que significou “não matarás” deveria ser garantido com uma sanção à

altura: “quem matar, morrerá”. A diferença entre a primeira e a segunda morte é que a

segunda não é fruto de uma vontade, interesse ou paixão de um indivíduo ou grupo, como é

a primeira, mas representa a forma institucional da comunidade garantir a segurança de

todos/as. Neste caso, nós temos uma clara suspensão do princípio “não matarás” para

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107

garantir o cumprimento desta mesma lei. A violação da norma frente àquele que a violou é

consubstancial à existência de qualquer norma.

Usamos este exemplo mais simples do que as relações econômicas e de uma

sociedade pré-moderna (menos ampla e complexa do que a nossa sociedade) para mostrar

que mesmo nesse caso a contradição entre um princípio ético ordenador das relações

sociais e a sua necessária institucionalização é inevitável. Faz parte da complexidade das

relações sociais.

Voltando ao nosso tema, quando as relações e redes de solidariedade vão se

tornando mais amplas, extensas, e complexas emergem novas propriedades nas relações e

sistemas que vão introduzindo a necessidade de novos tipos de soluções institucionais que

continuarão em tensão contraditória e complexa com o princípio de solidariedade.

Isto nos leva ao quarto ponto. Devemos definitivamente abandonar a idéia de um

único princípio organizador da sociedade e assumir a necessidade de articulação de vários

princípios, como o mercado, políticas públicas por parte do Estado visando metas sociais

solidária, sensibilidades solidárias encarnadas em redes de organizações solidárias e outras

mais. Pois, não podemos nos esquecer que qualquer sistema organizador que seja escolhido

ou imposto como um único princípio para toda vida social, é de fato um sistema auto-eco-

organizador, isto é um sistema autônomo/dependente em relação ao seu/s ecossistema/s.

Como dizem Morin e Kern, não podemos

considerar a economia [ou qualquer outro sistema] como uma entidade fechada. É

uma instância autônoma/dependente de outras instâncias (sociológica, cultural,

política), também eles autônomas/dependentes umas das outras.95

É claro que essas novas formas de articular os princípios organizativos vão exigir

novas culturas, que levem as pessoas e a sociedade a serem capazes de assumir a

solidariedade como um valor social, de viver em ambiente de tolerância e respeito mútuo,

de criatividade e vigilância para sanar os efeitos não-intencionais negativos de qualquer

ação bem intencionada ou de qualquer sistema auto-organizativo. Pois todos os sistemas

auto-organizadores produzem por si mesmo as suas próprias regulações, em desfavor e a

favor de evidentes e inevitáveis desordens, em favor e em desfavor aos interesses de

determinados grupos sociais e econômicos.

A introdução do fator cultural e, conseqüentemente, do ético na compreensão dos

sistemas econômicos e sociais a partir da noção de auto-organização nos leva a tomarmos

cuidado para não negarmos as diferenças entre a auto-organização no nível biológico e no

nível social. Até mesmo Francis Fukuyama, famoso pela sua tese de que o capitalismo

liberal é o ápice e o fim da evolução da história humana, diz que a precondição para a auto-

organização de uma sociedade extensa e complexa como a nossa sociedade baseada na

informação “são regras e normas de comportamento interiorizadas”.96

Também não podemos esquecer que dizer que algo funciona de modo auto-

organizativo não significa necessariamente que seja algo bom. Próprio Paul Krugman, um

dos economistas mais influentes no mundo hoje, após dizer que o mercado capitalista,

embriões e furacões tem em comum o fato de funcionarem de modo auto-organizativo, (não

explicitando as diferenças entre os níveis físico, biológico e social – podendo assim levar a

95

MORIN, Edgar & KERN, Anne B., Terra-Pátria, Lisboa: Instituto Piaget, s/d. [1993], pp. 53-54.. 96

FUKUYMA, F. A grande ruptura. Rio de Janeiro: Rocco, 2000, p.19.

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108

uma interpretação naturalizante do mercado capitalista) reconhece que “auto-organização

não é necessariamente, ou mesmo presumivelmente, uma coisa boa”.97

O quarto ponto é a questão antropológica. A visão antropológica do neoliberalismo

prioriza, acima de tudo, a liberdade da iniciativa empreendedora e a industriosidade e supõe

um ser humano incapaz de solidariedade no âmbito social, movido somente pelos interesses

próprios. Deposita toda a sua confiança na “mão invisível” do mercado que geraria

espontaneamente o bem comum a partir dos egoísmos dos participantes do mercado. O

marxismo e muitos defensores da solidariedade como o único princípio organizador da

sociedade supõe um ser humano essencialmente solidário, capaz de grandes generosidades,

desde que liberto das alienações do mundo capitalista. Precisamos ser realistas. O ser

humano é um feixe de paixões e de interesses, de necessidades e desejos, de egoísmo e com

potencialidade de solidariedades mais generosas. Em outras palavras, o ser humano é um

ser complexo que não pode ser reduzido a nenhum princípio bom ou mau, que vive da e na

convivência dessas características distintas, mas inseparáveis.

Quando se tem em mira a construção de linguagens socialmente significativas,

deve-se ter sumo cuidado em não supor, como normais e "naturais", aqueles consensos e

comportamentos convergentes que exigem profundas mudanças de mentalidade e de

atitudes. Devemos tomar consciência de que não existem automatismos do amor. Este

sempre exigirá a difícil construção de campos do sentido, mediante a convergência de

dinâmicas do desejo social da felicidade.

A ligação muito estreita, que estamos tentando estabelecer, entre competências

sociais e sensibilidade solidária refere-se a um “projeto antropológico”, que pretende juntar

a liberdade de seres empreendedores, respeitados em suas iniciativas, com a construção

democrática de consensos a respeito de uma felicidade comum vista como verdadeiramente

desejável para todos. Para isto precisamos de conceitos complexos acerca da subjetividade

individual e da “subjetividade social”. O conceito de “subjetividade social” só parece ter

algum sentido quando a noção de consciência e de sujeito deixar de ser um racionalista da

modernidade para fundir-se com a noção de dinâmicas do desejo, ativadas por interfaces

comunicativas

Complexidade, ética e educação

Se há uma palavra que resume os nossos pontos é a complexidade. A nossa

educação, se queremos fomentar a sensibilidade solidária, deve trabalhar com um

conhecimento pertinente capaz de enfrenta-la.

Complexus significa o que foi tecido junto; de fato, há complexidade

quando elementos diferentes são inseparáveis constitutivos do todo (como o

econômico, o político, o sociológico, o psicológico, o afetivo, o mitológico),

e há um tecido interdependente, interativo e inter-retroativo entre o objeto

de conhecimento e seu contexto, as partes e o todo, o todo e as partes, as

partes entre si. Por isso, a complexidade é a união entre a unidade e a

multiplicidade. Os desenvolvimentos próprios a nossa era planetária nos

97

KRUGMAN, Paul. The Self-Organizing Economy. Malden: Blacwell Publisher, 1996, p.5.

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109

confrontam cada vez mais e de maneira cada vez mais inelutável com os

desafios da complexidade.98

A compreensão desta complexidade é fundamental não somente para articularmos

de uma maneira mais correta a relação entre o nível de princípios dinâmicos básicos (a

sensibilidade solidária e o desejo de solidariedade) e o nível de princípios organizativos da

sociedade (determinações institucionais), mas também para articularmos o nível de

princípios éticos. Edgar Morin diz, com toda propriedade, que as mentes formadas pelas

ciências disciplinares

perdem suas aptidões naturais para contextualizar os saberes, do mesmo modo que

para integrá-los em seus conjuntos naturais. O enfraquecimento da percepção do

global conduz ao enfraquecimento da responsabilidade (cada qual tende a se

responsável apenas por sua tarefa especializada), assim como ao enfraquecimento

da solidariedade (cada qual não mais sente os vínculos com seus concidadãos).‖99

Em um mundo cada vez mais complexo e globalizado, é cada vez mais difícil

perceber as conexões, as causas e os efeitos de uma ação ou omissão. O aumento da

complexidade da divisão do trabalho social em uma economia em escala global e a

manutenção da concepção disciplinar, compartimentada, da nossa educação, das ciências e

da nossa maneira de ver o mundo nos leva a uma situação que Morin chamou de

“enfraquecimento da responsabilidade”.

Para evitar mal-entendidos, diferenciamos o conceito de responsabilidade da culpa.

O sentimento de culpa deriva da idéia de que erramos moralmente por ignorância, fraqueza

ou intenção de fazer o mal. A moral que coloca no seu centro este sentimento de culpa é

uma moral da paralisia, da omissão, da indiferença ou da submissão a uma palavra alheia

que nos diz dogmaticamente como agir, sem que tenhamos que pagar o preço de nossas

decisões.

Outra coisa é a noção de responsabilidade. A responsabilidade pode ou não estar

ligada à culpa. Está ligada à culpa quando somos agentes de infração ou omissão e de nós

depende a seqüência dos efeitos reprovados. Mas podemos ser responsáveis por

conseqüências de atos que não foram de nossa autoria e sobre os quais também não

podemos ser acusados de omissão. Esta responsabilidade nasce do reconhecimento da

interdependência que há no nosso mundo, na nossa sociedade e nas nossas vidas.

Responsabilidade é uma conduta, atitude ou disposição para agir maior e mais vasto do que

a mera culpabilidade. A culpabilidade põe em jogo o erro moral pessoal, mas não

compromete com acontecimentos que não lhe digam respeito.

Zygmunt Bauman, no seu livro Modernidade e Holocausto100

, nos mostra como o

enfraquecimento da noção de responsabilidade ética foi importante para que muitas pessoas

“mentalmente sãs/normais”, e não somente os nazistas convictos, tivessem participação no

holocausto. A divisão crescente do trabalho faz as pessoas perderem a noção de conexão

entre os seus atos e omissões e os resultados finais. Cada um se prende ao seu trabalho,

98

MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez; Brasília: UNESCO,

2000, p. 38. 99

Idem, Os sete saberes..., pp. 40-41. 100

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e holocausto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.

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110

burocrática ou tecnicamente determinado por outras pessoas distantes, e assim a sua

responsabilidade ética se transforma em uma mera responsabilidade técnica. Cada um é

responsável somente pelos resultados visíveis e imediatos das suas ações.

Quando, por exemplo, um economista burocrata do F.M.I, ou um economista do

nosso governo, passa adiante o receituário de cortes nos programas sociais por conta de

programa de ajustes econômicos, ele não vê pessoas concretas sofrendo no seu corpo e dos

seus familiares as conseqüências dessas medidas, mas somente números, gráficos e índices.

A desumanização começa no ponto em que, graças ao distanciamento, os objetos

visados pela operação burocrática podem e são reduzidos a um conjunto de

medidas quantitativas. [...] Reduzidos, como todos os outros objetos de

gerenciamento burocrático a meros números desprovidos de qualidade, os objetos

humanos perdem sua identidade. [...] Só os humanos podem ser objetos de

proposições éticas. [...] Os seres humanos perdem essa capacidade assim que

reduzidos a cifras.101

Uma educação baseada no pensamento complexo nos ajuda a entender melhor a

relação complexa e contraditória entre os desejos que nascem da sensibilidade solidária e os

princípios organizativos da sociedade. Além disso, nos permite entender um pouco melhor

as razões do enfraquecimento da noção da responsabilidade na nossa sociedade e também

nos mostra caminhos para o fortalecimento do sentimento de responsabilidade ética e da

solidariedade. Para Morin,

O emprego do princípio de complexidade esclarece as virtudes da

solidariedade. Quanto mais uma sociedade é complexa, menos rígida ou

duras são as obrigações que pesam sobre os indivíduos e os grupos, de

modo que o conjunto social pode se beneficiar das estratégias, iniciativas,

invenções ou criações individuais. Mas, numa situação extrema, [como a

que vivemos hoje] o excesso de complexidade destrói qualquer obrigação,

distendendo o laço social até o ponto em que a complexidade, em seu

extremo, se dissolve na desordem. Nessas condições, a única salvaguarda de

uma complexidade muito alta, que não pode ser apenas a obrigação,

encontra-se unicamente na solidariedade vivida, interiorizada em cada um

dos membros da sociedade.102

Estas sensibilidades solidárias vividas, que fazem emergir novos desejos, precisam

se tornar atratores de novos princípios éticos solidário. Estes princípios éticos não podem

ficar somente em formulações abstratas e gerais, mas precisam também se concretizar em

normas de comportamentos éticos. E estes princípios éticos precisam ser “corporificadas”

em princípios organizativos da sociedade norteando o funcionamento das instituições da

sociedade.

Estes três níveis não formam esta seqüência linear apresentada acima por razões

didáticas. Na verdade, eles “dançam” como atratores estranhos interagindo entre si, sem

perder as suas diferenças específicas. (Para entender isso melhor talvez convenha aplicar o

101

Idem, op.cit, p. 127. 102

MORIN, Edgar, Meus demônios, Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 1997, p. 99.

Page 111: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

111

conceito de teoria de campo ao funcionamento das motivações éticas e das construções

sociais de mundos do sentido. É uma temática que não aprofundamos especificamente neste

livro, mas à qual fazemos alusões exemplificadoras, como neste caso).

O ser humano é um ser complexo, como também é a sociedade e o meio ambiente

no qual vivemos. Educar para sensibilidade solidária pressupõe e implica em ajudar as

pessoas a perceberem a complexidade da realidade e da nossa vida social, a tomarem

consciência da nossa condição humana, a relativizarem as suas certezas, a aprenderem a

tolerar aos outros e a si próprio nas suas limitações e falhas, a aceitar e conviver com a

“resistência” da realidade social em se adaptar aos nossos mais sinceros e honestos desejos

de uma vida baseada na justiça e solidariedade. Ao mesmo tempo em que persevera em

suas ações solidárias, materializações da sensibilidade solidária, como caminho de ser fiel

aos seus desejos mais profundos de um mundo mais solidário e humano.

Page 112: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

112

Capítulo 5

O ALCANCE SOCIAL DO DESEJO

Subjetividade e conhecimento

Edgar Morin, ao tratar do que ele considera “problemas centrais ou fundamentais

que permanecem totalmente ignorados ou esquecidos e que são necessários para se

ensinar no próximo século”103

, diz que

todo conhecimento comporta o risco do erro e da ilusão. A educação do futuro deve

enfrentar o problema de dupla face do erro e da ilusão. O maior erro seria

subestimar o problema do erro; a maior ilusão seria subestimar o problema da

ilusão. O reconhecimento do erro e da ilusão é ainda mais difícil, porque o erro e a

ilusão não se reconhecem, em absoluto, como tais.104

Este perigo de erro e ilusão do conhecimento vem do fato de que todo

conhecimento, seja na forma de palavras, idéias ou teorias, é fruto de uma

tradução/reconstrução por meio da linguagem e do pensamento. O que implica na

introdução da subjetividade do conhecedor, de sua visão do mundo e de seus princípios de

conhecimento. E para Morin – queremos chamar atenção – “a projeção de nossos desejos

ou de nossos medos e as perturbações mentais trazidas por nossas emoções multiplicam os

riscos de erros.”105

O reconhecimento do papel do desejo, medo e emoções no campo do conhecimento

e, o mais importante, na multiplicação dos riscos de erro, nos obriga a tomarmos em sério o

tema do desejo no campo da educação e na discussão sobre a sensibilidade social solidária.

A solução pretendida por muitos, no passado e ainda hoje, de eliminar esse risco recalcando

a afetividade não é possível, pois o desenvolvimento da inteligência é inseparável do

mundo da afetividade, tanto no mundo mamífero, quanto mais no mundo humano. Sem

curiosidade, paixão, interesses e desejos, as pesquisas filosóficas ou científicas não teriam

como avançar, nem o processo de aprendência.

Isso significa que não há conhecimento sem erro ou ilusão, pois “as deformações da

realidade produzidas por ação do desejo, embora variem em qualidade e grau, não são

próprias desta ou daquela patologia, mas próprias da existência de desejo e do recalque, o

que significa próprias do humano, como o inconsciente também é‖.106

O que podemos

fazer é ter consciência do tipo de desejo que está em jogo no processo de conhecimento e

verificar se é compatível com o bem estar de toda humanidade. Pois, o não reconhecimento

dessa intrínseca relação pode nos levar a um conhecimento que, por ser cego de suas

motivações mais profundas, se transforme em um perigo à humanidade e ao meio ambiente.

103

MORIN, Edgar. Os setes saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez; Brasília:

UNESCO, 2000, p. 13. 104

Idem, op.cit., p. 19. 105

Idem, op.cit., p. 20. 106

KEHL, Maria Rita. O desejo da realidade. em: NOVAES, Adauto (org). O desejo. São Paulo: Cia das

Letras, 1990, pp. 363-382, citado da p. 365.

Page 113: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

113

Por isso, como Morin já havia dito antes, “as ameaças mais graves em que a humanidade

incorre estão ligadas ao progresso cego e descontrolado do conhecimento”.107

Esta é a razão pela qual “a educação deve-se dedicar, por conseguinte, à

identificação da origem de erros, ilusões e cegueiras.”108

Isto é, devemos nos debruçar

sobre a “mola” propulsora do conhecimento e da sociedade contemporâneas que tem nos

levado para caminhos nem sempre mais humanos e solidários. Aqui devemos enfrentar o

tema do desejo.

Antes, é útil nos relembrarmos do duplo estatuto do ser humano. O ser humano é

um ser marcado pela sua natureza biológica, física e cósmica, ao mesmo tempo que

também pela sua cultura, ou seja do universo da palavra, do mito, da idéia, da razão e da

consciência. O ser humano é um ser biológico-natural, mas que se realiza plenamente como

ser humano pela cultura e na cultura. A cultura é possível por causa do cérebro humano,

mas a mente, isto é, a capacidade de consciência e pensamento, não seria possível sem a

cultura. Sem esta tríade em circuito entre cérebro/mente/cultura não seria possível o ser

humano se realizar como ser humano.

Isto significa que o desejo nos seres humanos tem um fundamento biológico, mas

também é cultural. Pois, a própria concepção da idéia do desejo e a forma como se deseja

está condicionada pela cultura. Somos seres naturais e culturais (naturalcultural; cerebral

psíquica). Portanto, para além das projeções de desejos que multiplicam os riscos de erro do nosso conhecimento, precisamos discutir a própria noção de desejo humano que

subjaz à nossa cultura ocidental. Pois, o que nós os seres humanos desejamos

concretamente está delimitado pela nossa natureza biológica e pela forma como a nossa

cultura interpreta e constrói a noção primordial de desejo. E esta noção de desejo pressupõe

e veicula uma visão do ser humano.

Adam Smith e o “homem econômico” competidor

As novas linguagens das reformas educacionais, mundo afora, ao insistirem em

juntar três tipos de competências básicas (competências cognitivas, competências sociais e

competências sócio-afetivas) estão veiculando novos pressupostos antropológicos, ou seja,

essas linguagens mexem com a visão do ser humano. Podemos interpretar estas reformas de

um modo generoso, mas não ingênuo, como tentativas de superar a visão do ser humano

que os economistas inventaram sob a ficção do Homo Oeconomicus. As novas linguagens

pretendem conduzir-nos a uma visão unificada de dois aspectos aparentemente

contraditórios das habilidades que necessitamos para o convívio social: a capacidade de

competir e ser eficientes no mundo do trabalho e a necessidade de sermos solidários.

Para aprofundar um pouco mais essa arrojada tentativa de uma nova visão do ser

humano é importante que tomemos consciência de que a visão antropológica, que

predomina na modernidade, especialmente no pensamento econômico, é terrivelmente

redutivista. A dimensão solidária do ser humano foi esvaziada de uma maneira tão radical

pelo pensamento econômico e pela filosofia social predominante que qualquer pessoa que

se der conta da gravidade do que sucedeu precisa tomar alento para recuperar-se do

espanto. Talvez sirva para isso um pequeno esforço para entender um pouco melhor as

razões que levaram ao cancelamento praticamente total do desejo de solidariedade nas

107

MORIN, E., Introdução ao pensamento complexo, Lisboa: Instituto Piaget, 1991, p.13. 108

Idem, Os setes saberes...., p.21.

Page 114: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

114

teorias sobre a produtividade e a organização de uma sociedade com mercado. Se não

entendemos quão radical foi esse ocultamento da solidariedade, podemos facilmente

cometer o equívoco de achar que bastaria voltar a insistências gerais sobre a dignidade

humana universal como um conjunto de direitos e deveres básicos que, supostamente,

todo ser humano poderia atribuir-se e exigir e difundir um discurso vibrante sobre a sensibilidade social, para chegarmos a transformações significativas do triste panorama de

exclusões em que nos encontramos.

O que precisamos entender é que a ausência da menção explícita da solidariedade

no discurso econômico, e em grande parte do discurso filosófico moderno, deriva de

pressupostos geralmente não explicitados e que se referem precisamente à concepção dos

seres humanos situados em sociedades amplas e complexas e acerca da maneira como eles

se relacionam entre si. Trata-se de entender que uma determinada visão redutivista do que

se passou a considerar o comportamento normal e predominante dos seres humanos na

produção, circulação e consumo de bens e serviços (portanto, o aspecto econômico-social)

foi expandida e imposta como a única visão cabível acerca do ser humano.

Em outras palavras, o próprio conceito de dignidade humana, de relacionamento

social e, indo mais fundo ainda, do que significa o desejo como dimensão básica do

relacionamento inter-humano, foi profundamente deturpado mediante um determinado

redutivismo. A partir do fato de que somos um tipo de seres fundamentalmente marcados

por paixões e interesses, o mundo moderno passou a supor que o princípio organizativo

predominante na concepção da economia e da sociedade teria que ser inevitavelmente o

interesse próprio. É este conceito que precisamos rastrear como elemento fundamental de

uma determinada concepção do convívio social possível em sociedades amplas e

complexas. Isso, porém, implica numa pesquisa relativamente longa e exigente para a qual

daremos somente algumas pistas em outro momento. Nesta altura da nossa reflexão vamos

tomar como premissa um fato inegável: o de que o pensamento econômico confia que os

próprios mecanismos do mercado resolverão, mediante tendências intrínsecas para a busca

do bem comum, o problema da solidariedade básica na sociedade, sobrando apenas alguns

remendos ocasionais e emergênciais para intervenções mais diretas de instâncias políticas

públicas. Notemos que, semelhante visão cria uma estranha sinonímia entre ser competitivo

e ser solidário. Quem sabe competir já estaria sempre realizando tarefas fundamentais

relacionadas com a solidariedade básica de uma sociedade eficiente na produção de bens e

serviços. Dito de maneira mais direta ainda: para semelhante visão da economia e da

sociedade a solução do problema da solidariedade já estaria fundamentalmente embutida

nos próprios mecanismos do mercado.

É espantoso que essa concepção tenha chegado a obter uma adesão tão inabalável e

tão ampla no nosso tempo. É evidente que a exclusão não é uma conseqüência marginal ou

como às vezes se pretende insinuar um “resto” ainda não suficientemente atingido pela

dinâmica dos mecanismos de mercado, mas tem a ver com a própria lógica da atual

organização econômica e social. Como temos insistido, a crítica a esta concepção não pode

nos levar a uma postura ingênua de propor a solidariedade como o único princípio

organizador da sociedade, tomando o lugar da defesa do interesse próprio no mercado. Se

queremos confrontar-nos criticamente com o espantoso redutivismo antropológico da

modernidade, devemos pensar conjuntamente duas coisas. Primeiro, que mecanismos de

competitividade e, portanto, de livre iniciativa e mercado, são provavelmente

indispensáveis em qualquer sociedade ampla e complexa. Isso porque mecanismos auto-

Page 115: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

115

organizativos são indispensáveis nas sociedades amplas e complexas e também porque os

seres humanos efetivamente aspiram a que sejam tomados em conta enquanto

empreendedores. Segundo, que é inaceitável que se queira impor o critério da eficiência

produtiva a todos os aspectos da vida humana.

Deixando para outro momento algumas referências adicionais sobre a consolidação

histórica do referido redutivismo antropológico (uma distorção espantosa que não pode ser

tomada como acontecimento banal no avanço da modernidade) passemos agora a destacar

alguns elementos que possam predispor-nos para saber contra-argumentar acerca desse

assunto. A premissa da reflexão que segue é a de que estamos efetivamente urgidos como

nunca para uma grande virada na concepção do ser humano como um ser que precisa dos

outros para a sua própria identidade e felicidade individual. Estaremos, pois, trabalhando

com a tese de que a felicidade individual e a sobrevivência do planeta terra requer que o

desejo de solidariedade se transforme em necessidade vital personalizada como

experiência própria em um número crescente dos habitantes deste planeta.

Todo o pensamento ocidental está atravessado por uma tendência ao predomínio da

concepção dos seres humanos como fundamentalmente competitivos, concorrentes e

virtualmente inimigos entre si. Esta definição do ser humano como predominantemente

competitivo fez com que a dimensão social, isto é, o fato de estarmos sempre convivendo

com outros seres humanos, não seja geralmente visto como algo que determina a nossa

própria natureza ou, se quiserem, a “essência” do ser humano. É claro que não se alardeia

explicitamente que se está defendendo a tese de que poderíamos viver como seres solitários

ou indivíduos isolados. Semelhante tese saltaria logo à vista como bastante absurda, embora

muitas coisas do mundo dos valores ocidentais tenham precisamente como matriz básica a

concepção do indivíduo autônomo, responsável isolado por seus pecados ou méritos. A tese

que perpassa o pensamento ocidental é, junto com a do indivíduo isolado, a idéia de que

esse indivíduo, na hora em que se encontrar com o seu semelhante, se transformará

inevitavelmente em competidor pelo simples fato de haver encontrado um outro que

também é concebido como competidor.

Notemos que essa concepção da competitividade enquanto marca essencial do ser

humano não entra necessariamente em choque com as famosas afirmações de Aristóteles:

O homem que é incapaz de ser um membro de uma comunidade, ou que não

sente nenhuma necessidade disso porque é auto-suficiente, não forma parte

de modo algum da cidade-estado e conseqüentemente é ou um deus ou um

bruto. (Política, 1253 a)

Para nós o bem implica um relacionamento com o outro (Ética Nic.,1245 b).

Todorov, comentando esta concepção, diz: “Os animais e os deuses são auto-

suficientes. Podemos imaginá-los como estando sozinhos. Quanto ao ser humano, ele é

irremediavelmente incompleto e precisa dos outros.”109

É importante destacar que a socialidade essencial do ser humano, afirmada por

Aristóteles, passou a ser subsumida dentro de uma visão relacional sumamente estreita, ou

seja, o ser humano precisa de algum tipo de companhia com outro ser humano. Em

Aristóteles e Platão essa socialidade se estende à pequena amplitude da Polis grega. Pode-

se sustentar, com certo vigor, que a Paidéia grega de fato visava a formação do cidadão,

109

TODOROV,Tzvetan. Living Alone Together. Texto disponível na Internet, junho/2000.

Page 116: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

116

entendido como integrante da elite, considerado numa perspectiva para além da simples

relação dual de ter alguém como companhia.

Se não tivermos em conta algo dessas sutilezas, poderíamos ter sérias dificuldades

em entender como essa socialidade, tão claramente afirmada, fosse reduzida, mais tarde, no

pensamento ocidental à visão do ser-humano-competidor. A visão da filosofia grega não

parece fornecer-nos base suficiente para evitar semelhante reducionismo, já que a

socialidade afirmada não é contraditória com uma visão competitiva e até guerreira das

relações entre os seres humanos em organizações sociais situadas numa amplitude maior

que a do relacionamento entre poucos indivíduos.

Vamos dar um grande salto por cima das formulações antropológicas como a de

Hobbes: Homo homini lupus que prepararam a antropologia do homem competitivo que subjaz ao pensamento econômico e social moderno e chegar em Adam Simith, pai fundador

da economia burguesa.

De Adam Smith, se reteve, antes de mais nada, a sua famosa formulação acerca do

predomínio do interesse próprio nas relações socialmente produtivas:

O homem, entretanto, tem necessidade quase constante de ajuda dos

semelhantes, e é inútil esperar esta ajuda simplesmente da benevolência

alheia. [...] Não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro ou do

padeiro que esperamos nosso jantar, mas da consideração que eles têm pelo

seu próprio interesse. Dirigimo-nos não à sua humanidade, mas à sua auto-

estima, e nunca lhes falamos das nossas próprias necessidades, mas das

vantagens que advirão para eles. Ninguém, a não ser o mendigo, sujeita-se a

depender sobretudo da benevolência dos semelhantes.”110

Nas últimas décadas, entretanto, surgiram abundantes tentativas de resgate de um

pensamento mais benevolente em Adam Smith. A sua visão do ser humano competitivo

estaria historicamente condicionada pela resistência da igreja e da nobreza contra a

implantação de uma economia regida pela livre iniciativa. Por outro lado, Adam Smith

estaria preocupado em enunciar um princípio rector importante para a dinâmica econômica

e não pretendia impor esse princípio como o único princípio organizativo da sociedade em

geral. Certas afirmações dele, formuladas sobretudo em sua Teoria dos Sentimentos

Morais, servem de sustentação a essa interpretação mais generosa de seu pensamento.

“Todas as vantagens que podemos apontar como derivadas (da busca de

humanidade) devem ser observadas, atendidas, e tomadas em conta com simpatia,

complacência e aprovação.”111

O fato de cada um de nós ser levados em consideração é, ao

mesmo tempo, “a esperança mais agradável e o desejo mais ardente da natureza

humana”.112

Não há preço que não estejamos dispostos a pagar para obter

reconhecimento, posto que “os homens chegam a dar a sua própria vida para adquirir,

após a morte, um renome que não puderam desfrutar mais na vida”113

(esta é uma das

citações mais famosas para mostrar que Adam Smith admitia que existiam paixões que

110

SMITH, Adam. A riqueza das nações: investigações sobre sua natureza e suas causas. Vol 1, São Paulo:

Abril Cultural, 1983, p. 50. 111

SMITH, Adam. The Theory of Moral Sentiments. Oxford: Clarendon Press, 1976, p. 50. 112

Idem, op.cit.,p. 51. 113

Idem, op.cit., p. 116.

Page 117: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

117

estavam acima do interesse próprio). Ausência de reconhecimento é vista como o mal

maior que pode atingir-nos: “comparados com o fato de que a humanidade nos venha a

desprezar, todos os demais males externos são facilmente suportáveis”.114

Para Todorov

Adam Smith tem o mérito de superar, dessa forma, uma oposição, transmitida de

século a século, entre nossas vãs aspirações por um lado e nossas aspirações

utilitárias, pelo outro, ou, para usar a frase sintética de Albert Hirschman a

oposição entre paixões e interesses.115

Há autores, como Dupuy, que são ainda mais generosos com Adam Smith:

Smith se recusa a cair e ficar preso na armadilha do individualismo burguês ou do

interesse próprio egoísta.116

Como deu para notar, para Adam Smith não se trata de admitir, sem mais, uma

propensão geral dos seres humanos para a solidariedade. Na sua visão, é simplesmente o

desejo de prestígio e fama que pode superar a estreiteza do interesse próprio. Fica, portanto,

a pergunta se essa concessão serve de base para uma visão da dinâmica social atravessada

por diversos outros elementos do desejo humano claramente distinguíveis do interesse

próprio. Ao que tudo indica Adam Smith não se preocupou diretamente com motivações

tão acentuadamente sociais como as que hoje costumamos inserir no conceito de

solidariedade. O fato de ele visualizar um ser humano que supera a sua situação de

competidor confrontativo com outros competidores, admitindo que possa agir

generosamente por motivos alheios aos estrito interesse próprio, não significa que ele o

esteja situando na amplidão de convergências solidárias. Basicamente a sua visão do ser

humano capaz de sacrificar-se para não perder o reconhecimento alheio continua

configurada dentro de um esquema de competitividade, só que agora de competição pelo

prestígio como valor maior que a lucratividade material. O caráter confrontativo continua

sendo a marca determinante dessa visão do ser humano.

Podemos perguntar-nos se a reinterpretação generosa de Adam Smith supõe nele um

início da percepção do/a outro/a enquanto fonte originante da própria possibilidade de

termos uma identidade enquanto indivíduos. Parece que, na perspectiva de Adam Smith,

não se configura nenhum caráter primordial do/a outro/a na constituição do eu-próprio de

cada um de nós, elemento antropológico determinante para uma teoria substancial da

solidariedade. Adam Smith parece estar sugerindo unicamente uma espécie de construção

abstrata de um espectador bem informado acerca daquilo que nos move a agir, e que talvez

não coincida sempre com um estreito interesse próprio. Muitos autores se referiram ao

imaginário desse espectador abstrato, suposto observador indiscreto do nosso íntimo, ou

seja, uma espécie de deus secular. George Herbert Mead o chama de “o outro

generalizado”; Mikhail Bakhtin o visualiza como “o super interlocutor” (the

superaddressee).

114

Idem, op.cit., p. 61. 115

TODOROV, T. Loc. cit. 116

DUPUY, J.P. Le sacrifice et l'envie. Paris: Calmann Lévy, 1992, p.102.

Page 118: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

118

Um grande trecho separa essa visão sumamente abstrata e genérica do outro de uma

afirmação do outro enquanto fonte originadora da identidade do eu. Para chegar lá, veremos

que a metáfora do olhar será fundamental, mas ela também terá que passar por diversas

transformações. É longo o caminho desde o olhar supostamente vigilante de um outro

generalizado, internalizado como olhar vigilante dos demais sobre nós, e olhar

reciprocamente admirativo e existencialmente constitutivo de identidades que se aceitam e

dialogam sobre a base da aceitação de serem diferentes. Este será, de certa forma, o ponto

de chegada da nossa reflexão. Antes, porém, convém avaliar um pouco melhor todo o peso

de uma tradição antropológica e filosófica que constitui um sério obstáculo para chegar a

uma concepção radicalmente nova do que devemos entender por reconhecimento do/pelo

outro. Para enxergar melhor os obstáculos que existem para um pensamento solidário

radical, é inevitável desmontar a distorção do conceito de reconhecimento que encontramos

num tipo de pensamento exemplificável por Hegel.

O reconhecimento do/pelo outro em Hegel

Rousseau usou para isso o conceito de consideração. Adam Smith o chamou de

atenção. Hegel prefere o conceito de reconhecimento (Anerkennung). Fiquemos atentos ao

fato de que Hegel pretende estar definindo aquilo que caracteriza o ser humano enquanto

ser humano, diferente dos outros animais. Segundo ele, o ser humano aspira ser

reconhecido em seu valor e esse reconhecimento só lhe é possível a partir do olhar dos

outros. Para Hegel, o propriamente humano se iniciaria lá onde “o desejo biológico de

preservar a própria vida” é subordinado ao “desejo humano de reconhecimento”.117

Nas palavras claras de Kojève , expondo o pensamento de Hegel: “em outras

palavras, a humanidade do homem 'vem à luz' somente se ele arrisca a sua vida (animal)

por causa do seu Desejo humano.”118

A necessidade de reconhecimento é o fato constitutivo

do humano. É nesse sentido que o homem não existe como anterior à sociedade senão que o

humano se funda no inter-humano e que sua realidade só pode ser social. “Se eles

pretendem ser humanos devem ser ao menos dois em número”.119

O homem deseja

algo que vai além da realidade dada. Ora, a única coisa que vai além da realidade

dada é o próprio Desejo. (...) Portanto, para ser antropogenético o Desejo deve

estar dirigido para um não-ser (para algo que ainda não é), isto é, para um outro

Desejo, um outro vazio que atrai e cobiça, um outro Eu.120

Como se pode notar, Hegel concebe o pólo atrator do olhar do outro como um olhar

competitivo e potencialmente voraz. O eu não se constitui, enquanto identidade, a não ser a

partir do olhar cobiçante do outro. A isto – por espantoso que possa parecer – Hegel

chama de reconhecimento. Portanto, na própria concepção teórica dessa reciprocidade ,

embora ela seja vista como constitutiva da identidade do eu, já está pré-incluída a

conflitividade e a competição. Na verdade, como veremos ao examinar mais de perto a

dialética do senhor e do escravo, – fundamental para entender o que Hegel entende como

117

KOJEVE, Alexander. Introduction to the Reading of Hegel. Ithaca: Cornell, 1980, p. 7 118

Idem, Loc.cit.. 119

Idem, op.cit., p. 43. 120

Idem, op.cit., pp. 5 e 40.

Page 119: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

119

reconhecimento – se trata de um reconhecimento no qual aquele que reconhece ou anula o

reconhecido ou é por ele anulado. No fundo, não haveria jamais espaço para uma

convergência solidária e não conflitiva. Segundo Hegel, todo reconhecimento significa um

julgamento valorativo que termina fatalmente numa apreciação de que o outro vale ou não

vale para mim. Para que alguém de nós obtenha reconhecimento, é o outro que deve perder

o seu reconhecimento. Ou, para chegar logo à metáfora central do pensamento hegeliano, a

demanda de reconhecimento implica necessariamente numa luta de confrontação.

É quase impossível exagerar quão profunda é, no pensamento ocidental – desde

uma série de mitos antigos, passando pela mitologia religiosa, e culminando, de certa

forma, no pensamento hegeliano – a obsessão de transformar a todos os seres humanos em

competidores rivais e inimigos. É, na verdade, relativamente pequena a margem de

variações dentro dessa concepção fundamentalmente antagônica dos seres humanos. Nas

palavras de Kojève,

o encontro entre eles só é possível como luta até a morte”; “a luta até a morte por

puro prestígio”; “Uma luta de vida e morte. Uma luta já que cada qual vai

pretender subjugar o outro, todos os outros, mediante uma ação negadora e

destruidora.121

Para o pensamento hegeliano, obter reconhecimento significa estar metido numa

luta por poder. Quando a relação humana é concebida nesse registro inevitavelmente

confrontativo, todo olhar se transforma em olhar julgador e todo desejo é um desejo-valor,

isto é, deseja-se algo porque este tem valor. Com isso deixou de ser um “valor”-desejo, isto

é, algo tem valor porque é desejado. O desejo perdeu a batalha diante da crua valorização

em chave de poder. Valor é, para Hegel, o valer (o fazer-se valer) da imposição

confrontativa.

O pensamento de Hegel é, em seu cerne, o de um voyeur-filósofo, que parece estar

sentindo um estranho prazer em reduzir tudo à confrontação. Essa é, até certo ponto, uma

antropologia muito mais radicalmente bélica do que a da competitividade do mercado. Há

algo de estranhamento pré-moderno, quase atavicamente primitivo e animalescamente

ancestral, ou, na melhor das hipóteses, de colonialista-escravagista, na obsessão de Hegel

por tomar a dialética do senhor e do escravo como a referência chave para a sua visão do

que caracteriza o propriamente humano.(Cabe perguntar-se se na obsessão de Marx pela

luta de classes não continua igualmente presente esse elemento pré-moderno de um tipo de

competição reciprocamente anuladora, em relação à qual a competitividade do mercado

poderia ser vista como um jogo de confrontações virtualmente mais branda, e nesse sentido

realmente moderna).

É importante que se entenda que, na dialética hegeliana do senhor e do escravo, a

emergência do humano é a emergência de um vencedor num conflito confrontativo. O outro

aparece como o ponto de referência para o auto-reconhecimento, ou seja, a gênese da

identidade do eu, mas esse outro será fatalmente um perdedor, se eu não o for. Neste caso,

se eu for o perdedor, não surge verdadeiramente um eu como Hegel o concebe. O

pensamento de Hegel se move basicamente dentro de uma confrontação dual (como

continuará dual a confrontação marxiana entre burguesia e proletariado, classes dominantes

e classes dominadas). Enquanto persiste a dualidade confrontativa, não surge o

121

KOJÈVE,A. Introduction to the reading of Hegel. Ithaca: Cornell, 1980, p. 140-41.

Page 120: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

120

plurirrelacionamento do social amplo, que admite simultaneamente a presença de

divergências e convergências.

O social de Hegel está submetido à dualização confrontativa. O outro só emerge

como meu potencial anulador, dando-me uma chance de eu ser o seu anulador. Se o outro

for perdedor, minha identidade surgirá, e ele, se não for morto, se transformará em meu

dependente ou escravo. Os escravos sobrevivem preferindo salvar a sua vida em lugar do

seu reconhecimento. Ao adaptar-se à submissão, renunciam à condição especificamente

humana.

Como se pode notar, a visão de Hegel é essencialmente trágica, porque o

reconhecimento ao qual se aspira, não se cumpre como reconhecimento provindo de outro

ser humano, já que este ficou reduzido a uma condição infra-humana. Novamente com

palavras de Kojève, o senhor “é reconhecido por alguém que ele mesmo não reconhece (...)

por isso a atitude do senhor resulta num impasse existencial.”122

Todorov sintetiza a

frustração desse desejo intrinsecamente trágico: “a vitória não traz nenhuma satisfação

porque não pode ser coroada com o reconhecimento-admiração”.123

Ou na formulação de

Kojève: “O homem surgiu e a história começou com a primeira luta que terminou com a

aparição de um senhor e um escravo”.124

Segundo Hegel, toda a história humana nada mais seria do que a evolução dessa

relação senhor-escravo. Mas Hegel sonhava com a manifestação do Espírito mediante

comandos ilustrados como o de Napoleão ou do governo emergente da Prússia. No fundo

uma espécie de retorno à solução pré-moderna de um governo sábio, capaz de administrar a

incontornável conflitividade humana. Também Marx fica preso a uma visão da dinâmica

evolutiva da história marcada por uma violência confrontativa, sonhando com uma saída

utópica na sociedade sem classes. O pensamento econômico burguês visualiza a

competitividade como princípio organizativo da dinâmica produtiva, com a tentação

persistente de estender esse princípio organizativo à própria dinâmica da sociedade como

um todo. A socialidade humana é, assim, concebida como estruturada por dentro por um

princípio que preserva a contraposição dos atores como elemento dinamizador

fundamental.

Fukuyama: o desejo de reconhecimento e a luta econômica

Fukuyama no seu famoso livro O fim da história e o último homem, propôs uma

leitura que podemos chamar de benévola e otimista desta visão hegeliana de socialidade e

de história. Seguindo Hegel, ele diz que os seres humanos diferem fundamentalmente dos

animais porque desejam algo a mais do que objetos externos, como comida, bebida, abrigo

e a preservação do corpo. O ser humano “deseja o desejo dos outros homens, ou seja, quer

ser 'reconhecido'. Especialmente quer ser reconhecido como ser humano, isto é, como um

ser com certo valor ou dignidade.”125

A sua tese do fim da história está ancorada na sua leitura de Hegel:

122

KOJÈVE,A. op. cit. p.19. 123

TODOROV, T. loc.cit. 124

KOJÈVEA. op. cit. p.43. 125

FUKUYAMA, F., O fim da história e o último homem, Rio de Janeiro: Rocco, 1992, p. 17.

Page 121: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

121

Para Hegel, a ―contradição‖ inerente à relação entre domínio e servidão

foi superada finalmente em conseqüência da Revolução Francesa e,

devemos acrescentar, da Revolução Americana. (...) O reconhecimento

intrinsecamente desigual de senhores e escravos é substituído pelo

reconhecimento recíproco e universal (...) Hegel conclui que a história

chegou ao fim porque a aspiração que impulsionou o processo histórico - a

luta pelo reconhecimento - está agora satisfeita numa sociedade

caracterizada pelo reconhecimento universal e recíproco. Nenhum outro

ajuste das instituições sociais humanas é mais capaz de satisfazer essa

aspiração, e portanto não é possível nenhuma outra mudança histórica

progressiva.126

É importante ressaltar que, para Fukuyama – na sua leitura de Hegel –, “o primeiro

motor da história humana não é a ciência natural moderna ou o horizonte constantemente

em expansão do desejo que a potencializa, mas um impulso totalmente não-econômico, a

luta pelo reconhecimento”.127

E é este reconhecimento por outros seres humanos como

homem que possibilita ao indivíduo tornar-se autoconsciente, isto é, consciente de si como

ser humano distinto.

Para Fukuyama, a sociedade liberal permitiu que esta busca de reconhecimento se

desse por outros mecanismos que não mecanismos violentos ou conflituosos que levam a

uma relação de dominação de um sobre outro. O reconhecimento recíproco e universal teria

substituído, nas sociedades liberais, a luta violenta pelo prestígio. Ele reconhece, entretanto,

que

A megalothymia - o desejo de ser reconhecido como superior - vive ainda

no nosso cotidiano sob uma variedade de disfarces, (...) grande parte do que

consideramos satisfatório em nossa vida não seria possível sem ela. Mas em

termos do que dizemos de nós mesmos foi eticamente derrotada no mundo

moderno. (...) O que substituiu a megalothymia foi uma combinação de duas

coisas. A primeira é o desabrochar da parte desejante da alma, que se

manifesta como uma completa e constante economização da vida. (...) A

segunda coisa que substituiu a megalothymia é uma isothymia

generalizada, isto é, o desejo de ser reconhecido como igual aos outros.128

Antes ele havia afirmado que o motor da história é um impulso não-econômico, a

luta pelo reconhecimento. Agora, ele afirma que a conflitividade e a violência no interior

dessa luta pelo reconhecimento é superada pela economização da vida e o desejo de ser

reconhecido como igual aos outros. A segunda parte da combinação que tornou possível a

substituição do desejo de ser reconhecido como superior, megalothymia, por desejo de

reconhecido como igual, isothymia, é uma mera tautologia. Ele simplesmente repete que a

megalothymia foi substituída por isothymia. Isto é uma constatação, mas não uma

explicação das causas da mudança ocorrida. Pior. Como ele havia reconhecido que a

megalothimia sobrevive de muitas formas no nosso mundo e que “grande parte do que

126

Idem, op.cit.¸ p.19. 127

Idem, op.cit., p. 176. 128

Idem, op.cit., p. 235.

Page 122: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

122

consideramos satisfatório não seria possível sem ela”, na vida social não houve esta

substituição, pelo menos em grande escala. O que ele afirma na verdade é que

megalothymia foi derrotada eticamente, seja no campo da discussão filosófica, seja no

campo da democracia formal. Em todo caso, se aceitamos a sua hipótese de que ocorreu a

derrota ética da megalothmya, e que essa derrota ética já caracterizaria o fim da história,

toda a solução aparente está ancorada na economização da vida.

E como se daria o reconhecimento pelo outro no campo econômico? Na aquisição

de propriedades ou de determinados objetos:

O homem lockiano adquiria propriedades para satisfazer seus desejos. (...)

O homem [hegeliano] sente satisfação possuindo propriedade não apenas

pelas necessidades que ela satisfaz, mas porque outros homens a

reconhecem. (...) Hegel vê a propriedade como um estágio ou aspecto da

luta histórica pelo reconhecimento, algo que satisfaz tanto thymos, quanto o

desejo.129

Fukuyama não se pergunta por que o reconhecimento pelo outro se dá na posse de

uma propriedade. Uma resposta bastante plausível é que a propriedade de um determinado

bem gera o reconhecimento pelo outro porque o outro que reconhece também deseja e

valoriza esta propriedade. Sendo assim, o meio para realizar o desejo de ser

reconhecimento pelo outro é desejar e possuir o objeto desejado pelo outro para que assim

ele me reconheça. O que René Girard chama de desejo mimético de apropriação.

O desejo de reconhecimento através desse mecanismo é essencialmente conflitivo.

Quando uma pessoa deseja um objeto, porque este é desejado por um terceiro que vai

reconhece-lo se o possuir, estabelece-se necessariamente uma relação conflitiva. Pois, um

objeto passa a ser desejado por duas pessoas. O próprio conflito vai reforçar o desejo de

posse, pois serve como a comprovação do valor do objeto desejado. Nesta lógica o

reconhecimento só se realiza através da concorrência com o outro que vai me reconhecer se

eu for vitorioso no confronto. Não ocorre um reconhecimento recíproco entre iguais. Só

ocorreria se todas as pessoas pudessem ter as mesmas propriedades que possibilitam o

reconhecimento pelo outro. Mas isto é economicamente impossível. E mesmo que fosse

economicamente possível, uma propriedade que todos possuem não pode funcionar como

indicador de reconhecimento. A economização da vida nas sociedades capitalistas não

substituiu a relação conflitiva e cofrontativa na luta pelo reconhecimento.

Próprio Fukuyama reconheceu isso, em uma obra posterior, quando diz que a

batalha pelo reconhecimento antes travada em

...plano militar, religioso ou nacionalista é agora desfechada no plano econômico.

Os príncipes que outrora procuravam derrotar uns aos outros arriscando suas

vidas em sangrentos embates, agora arriscam seu capital erguendo impérios

industriais.130

Com isso,

129

Idem, op.cit., p. 240. 130

FUKUYAMA, Francis, Confiança: as virtudes sociais e a criação da prosperidade, Rio de Janeiro: Rocco,

1996, p.381.

Page 123: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

123

o que geralmente passa por motivações econômicas não é de fato uma questão de

desejo racional, mas uma manifestação do desejo de reconhecimento. Os desejos e

as necessidades naturais são pouco numerosos e facilmente satisfeitos,

particularmente no contexto de uma economia industrial moderna. Nossa

motivação pelo trabalho e para ganhar dinheiro se relaciona muito mais

intimamente com o reconhecimento que essa atividade nos confere, atividade na

qual o dinheiro se torna símbolo não de bens materiais, mas de status social ou

reconhecimento.131

Quando se diz que estamos no fim da história e identifica a luta pelo

reconhecimento com a luta pelo status econômico- social está assumindo que o

reconhecimento recíproco não confrontativo ou conflitivo é impossível. O/a outro/a só pode

ser olhado como meu/minha competidor/a na luta por uma posição mais privilegiada na

sociedade. Assim, Fukuyama, apesar de sua tentativa de uma leitura otimista e benévola de

Hegel e da história, não consegue superar a dialética de senhor e escravo, não consegue

olhar o o/a outro/a como outro/a, num reconhecimento verdadeiramente recíproco. A sua

noção de desejo continua dentro das tradições ocidentais, continua sendo no fundo o desejo

de dominar o/a outro/a.

Ao propor a economização da vida, a expansão dos critérios de racionalidade e

eficiência econômica para todos aspectos da vida, como o único caminho para superar a

megalothymia, Fukuyama acaba defendendo a tese paradoxal de que a única forma de

realizar o desejo de reconhecimento recíproco entre iguais é desejar ser reconhecido como

superior por outros. Em outras palavras, se contradiz e não consegue sair do impasse

existencial, dessa contradição trágica. A sua proposta otimista da realização do

reconhecimento pela economização da vida não consegue escapar da visão trágica do

pensamento hegeliano, pois o reconhecimento que se aspira não provêm de outro ser

humano reconhecido, mas sim de um ser derrotado, reduzido à condição infra-humana. É

reconhecido por alguém que ele não reconhece.

Desejo e consumo

Quando Fukuyama reduz os caminhos concretos do reconhecimento ao campo

econômico, ele está propondo fundamentalmente a competição econômica, isto é, a

acumulação do patrimônio e/ou a ostentação do consumo. Com isso, na verdade, está

expressando e legitimando aquilo que diversos sociólogos caracterizam como algo

distintivo do nosso tempo: a cultura de consumo. Mike Featherstone diz que “usar a

expressão ‗cultura de consumo‘ significa enfatizar que o mundo das mercadorias e seus

princípios de estruturação são centrais para a compreensão da sociedade

contemporânea”132

e que, na dimensão cultural da economia, a simbolização e o uso de

bens materiais funcionam como “comunicadores”, e não apenas como utilidades. Ou como

diz, Canclini, “no consumo se constrói parte da racionalidade integrativa e comunicativa

de uma sociedade”.133

131

Idem, Confiança..., op.cit., pp.379-380. 132

FEATHERSTONE, Mike. Cultura de consumo e pós-modernismo. São Paulo: Studio Nobel, 1995, p. 121. 133

CANCLINI, Nestor Garcia. Consumidores y ciudadanos. Conflictos multiculturales de la globalización.

México: Grijalbo, 1995, p.80

Page 124: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

124

Quando o consumo passa a ser um dos critérios fundamentais na construção da

identidade e ocupa um lugar importante no processo de comunicação social, ele passa a ser

um dos ordenadores fundamentais do desejo na sociedade. Pois nenhuma sociedade ou

grupo social suportam demasiada irrupção errática dos desejos, nem a conseguinte incerteza

de significados. O desejo de reconhecimento pelo outro no confronto econômico necessita

de estruturas nas que se pense e ordene aquilo que desejamos.

É neste jogo entre desejos e estruturas que as mercadorias e o consumo servem

também para ordenar politicamente cada sociedade. O consumo é um processo no

qual os desejos se convertem em demandas e em atos socialmente regulados.134

Se o consumo é a medida de uma vida bem-sucedida, o caminho do reconhecimento

e da dignidade humana, então nenhuma quantidade de aquisições e sensações emocionantes

têm qualquer chance de trazer a satisfação de manter-se ao nível dos padrões exigidos. Pois

não há padrões a cujo nível se manter quando a linha avança junto com o corredor. Em

outras palavras, nem o vencedor na luta pelo reconhecimento encontra o seu “repouso”, a

sua satisfação. Ele também precisa correr atrás de uma meta que como um horizonte teima

em distanciar-se cada vez que pensa que chegou mais perto.

A redução da realização do desejo humano de reconhecimento ao campo da

economia é um caminho sem fim e sem saída. A única forma de superar essa concepção

trágica do desejo humano é o reconhecimento do/a outro/a enquanto outro/a no desejo

solidário, desejo de cooperação e de inclusão dos/as excluídos/as, dos/as “perdedores/as”.

Só assim a pessoa pode ser reconhecida por alguém que ela mesma reconhece. Quando

todos se vêem somente como consumidores, a solidariedade é impossível. A recuperação da

multirreferencialidade da nossa identidade é fundamental para que possamos sair dessa

aporia que essa visão hegemônica no ocidente nos colocou.

A nossa crítica à cultura de consumo que reduz o ser humano ao consumidor não

pode ser entendida como uma crítica ao consumo como tal. Isso seria uma outra forma de

reducionismo. Um dos problemas fundamentais dos pobres é o seu baixo nível de consumo.

O que significa dizer que as lutas solidárias são no fundo lutas voltadas para aumentar o

nível de consumo dessas pessoas. E este consumo não pode ser restrito ao que se chama de

“cesta básica” para suprir as necessidades básicas. Pois, um outro ponto importante,

freqüentemente esquecido pelas esquerdas, é que o ato de consumir também proporciona

prazeres sensitivos e é um meio de realização dos desejos.

Marx obsessionado por detectar a forma primeva, inicial, (Urform) ou a forma

seminal (Keimform) do capitalismo fixou-se na forma-mercadoria como a mais seminal e

originante. Por isso as relações mercantis passaram a ser vistas como o mais determinante

das relações sociais, e, no interior dessas, das relações de produção. Essa opção teórico-

analítica contém vários pressupostos que podem ser problematizados de muitas maneiras.

Vamos a alguns exemplos: tem-se a impressão de que Marx concebe a forma inicial e/ou

originante como uma espécie de ponto euclidiano ou ponto inicial de uma linha. A própria

forma de indagação teórica estaria inscrita, nesse caso, numa linearidade, ao menos no que

se refere ao momento de arranque da análise. O que segue de uma concepção linear do

início do pensar geralmente se desdobra depois numa espécie de abertura de raios ou linhas

decorrentes. Perguntemos até que ponto semelhante lógica está condenada fatalmente a

134

Idem, op.cit., p.48.

Page 125: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

125

uma determinada aplicação do princípio de causalidade, ou seja, uma seqüência da

causalidades lineares. A concepção do “início” ou princípio originante muda

completamente se, em vez de um ponto, se imagina um campo. Nenhuma teoria de campo

cabe dentro do enfoque linear de causalidades. Para que o início (ou a dinâmica) de

qualquer fenômeno seja visto como um campo, e não como um ponto, a própria forma de

pensar esse início deve ser complexa ou, o que vem a ser o mesmo, deve saber lidar com

interrelações complexas de “causalidade”. O cerne da teoria da complexidade consiste

numa concepção diferente já não linear da causalidade.

Um segundo exemplo: como conceber o detonante inicial de um processo de

desejos? Como definir analiticamente a forma-desejo-originante (Urwunsch)? Parece que

somos chamados imediatamente a pensar muito mais num campo do que num ponto.

A pergunta venenosa é a seguinte: será que Marx nunca pensou que a forma-

mercadoria só poderia ser forma-originante de vastos processos de relações sociais se

fosse, primordialmente, a expressão concreta de uma prática histórica desejante? Se a forma

originante coincide com a forma desejante e efetivamente nela se constitui, e se não se trata

de um ponto mas de um campo, a pergunta analítica se transformaria fantasticamente em

algo parecido à seguinte formulação: quais foram e são os complexos campos de desejos

humanos que encontraram na forma mercantil das relações capitalistas um caminho de

desencadeamento e ampliação jamais oferecido por outras formas de organização social?

Esse “conjunto versátil” de necessidades e desejos humanos é, sem dúvida, extremamente

complexo, mutante, aberto a constantes transformações e exposto a inevitáveis

manipulações.

A economia e a manipulação histórica dos desejos

O que segue agora é um intermezzo de reflexão um pouco mais analítica acerca de

crenças sumamente estranhas que o pensamento econômico continua arrastando consigo e

cujo cerne é abstrato e mítico. É uma temática um pouco mais exigente, mas que precisa ser

encarada sem medo para podermos resgatar, em meio a tantas manipulações históricas dos

desejos humanos, uma dimensão radical de intencionalidade solidária, que impregna toda a

evolução da nossa espécie, a pesar da terrível cadeia de brutalidades anti-solidárias que a

história registra. (Quem se sentir pouco a vontade, nesse terreno mais árido, pode saltar à

seqüência mais amena da seção seguinte).

Será que os humanos precisamos de grandes mundos ficcionais do sentido para

sentir-nos capazes de esperança? Será que nossos desejos, quando se tornam coletivos,

buscam inevitavelmente um ponto de fuga numa espécie de infinito simulado, em lugar de

se comportarem como ânsia de alegria compartida nesta vida e neste mundo? Há deveras

semelhanças muito estranhas entre a confiança no poder da Igreja na Idade Média e a

confiança de hoje no mercado mundializado com seu carro-chefe, o capital financeiro.

Nos dois casos trata-se de mediações sumamente abstratas e virtuais. Mas que

podem assumir uma arbitrariedade e um poder de arbítrio terrivelmente implacáveis. A que

se deve isso? Parece que se deve à "colaboração" (pelo visto, imprescindível) de uma

confiança quase cega. Não é à toa que sempre de novo se desemboca na exigência da

confiança (cf. Fukuyama). Parece até que os humanos, quando precisamos de ações

coletivas conjuntas, sempre tendemos a inventar algum tipo de mediação abstrata. Somos,

ao que parece, inventores profissionais de ídolos.

Page 126: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

126

A construção arbitrária do mito do crescimento econômico - como premissa e

panacéia, como base para todas as postergações de mudanças substantivas - tem muito a ver

com esses níveis fetichizadas da confiança. Trata-se de uma ingente indústria de distorção

dos nossos desejos relacionais. Praticamente todos os critérios macro-econômicos

(estabilidade da moeda, controle da inflação e do déficit público, taxa de juros,

direcionamento das ajudas financeiras, etc.) levam embutidas doses cavalares de simulação

da confiabilidade.

Em tudo isso evidentemente nunca se trata apenas de economia. Está em jogo uma

usurpação do sentido de nossos desejos e ações. Reconstruir os campos do sentido implica,

portanto, remexer a fundo os referenciais históricos das nossas esperanças. Isso não será

possível sem apostatar dos ídolos usurpadores do nossos profundos anseios de confiar uns

nos outros. E provavelmente não basta que esta apostasia sela manejada no plano dos

argumentos racionais. A "racionalidade" humana tem ainda outras dimensões. A apostasia

dos ídolos provavelmente deverá enraizar-se em experiências desejantes, cujos referenciais

concretos em nosso cotidiano nos tornem vivencialmente evidente que os ídolos não são

portadores de uma "boa nova" (um evangelho), mas nos enganam descaradamente. E com

isso retornamos ao tema do auto-engano135

.

O lugar do desejo de algo incondicionalmente gratuito, porque relacionalmente

concreto, jamais deveria ser ocupado totalmente pela confiança necessária em princípios

organizativos. A esperança precisa de uma reserva do desejo não integralmente cedido às

instâncias mediadoras da socialidade organizada ampla136

. Há uma relação de

convergências e divergências sumamente complexa entre ter confiança e ter esperança. Este

assunto está ainda muito pouco aprofundado em nossas concepções antropológicas.

O imaginário cristão acerca da graça contém muitos pressupostos, à primeira vista,

estranhos. Um deles é o de um misterioso inter-fluxo de benevolências invisíveis entre os

fiéis, algo muito próximo do que hoje muitos denominam o campo Psi. Este pressuposto de

um inter-agenciamento de benevolências recíprocas subjaz às grandes metáforas

eclesiológicas do Corpo Místico de Cristo e da Comunhão dos Santos.

Se é correta essa visão de um pressuposto de solidariedade congênita entre os "fiéis"

e "santos" , é bastante estranho que os cristãos tenham admitido, com tamanha naturalidade,

que houvesse excluídos radicalmente afastados da salvação, isto é, condenados. Como pode

coexistir um pressuposto geral de includência e solidariedade com semelhante aceitação da

exclusão sobretudo se ela era/é usada como recurso de cobranças à submissão a doutrinas e

esquemas organizativos específicos? A resposta talvez se encontra na coexistência desses

imaginários da solidariedade com o seu complemento truculento: o tema da "eleição" -

Deus teria seus preferidos, os eleitos. O resto pode perder-se nas "trévas".

Quando se chegará a tomar consciência de que o conceito ocidental de Deus nunca

parece estar isento desse dualismo da confrontação com um reino oposto? Não é, pois, de

estranhar que isso reapareça por todo lado: nas teorias do desejo, na antropologia

econômica. Se o deus ocidental é um competitivo, por que seus fiéis não o seriam? Mas não

se trata de acusar os deuses. A (psico-)análise dos deuses é impossível, porque eles não são

135

GIANNETTI, Eduardo, Auto-engano. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. 136

Algo disso começa a perfilar-se em relação a franjas da assim chamada "Nova Economia", onde aparecem

franjas de "conveniência do gratuito", porque certos softwares e aplicativos da informática já entraram no

"reino da não escassez" e seria quase impossível reintegrá-los nas mercadorias com preço. Estão surgindo

também ensaios sobre a "economia da dádiva". Cf. GODBOUT, Jacques T. O espírito da dádiva. Rio de

Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1999.

Page 127: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

127

convocáveis a isso. São os seres humanos os que precisam entender por que em sua

evolução emergiu a "revelação" de tais mitos e deuses. Trata-se de entender as razões

"evolucionárias" que levaram a nossa espécie a inventar esse tipo de auto-concepção

projetada em seus mitos e deuses. Haveria que examinar até que ponto os antropólogos já

conseguiram entrelaçar as funções explicativas dos mitos (os mitos são bons para serem

comidos, nos ajudam a "explicar" o mundo, etc.) com seu papel enquanto pontos de fuga de

nossos desejos. (Mas isto é assunto para outros divertimentos).

As teorias econômicas têm estranhos pontos comuns com as teorias teológicas

acerca da salvação e da graça. Nos dois campos, existem constantes apelos à confiança, e

esses apelos parecem remeter, sempre de novo, a um pressuposto oculto de que o reino da

salvação e o reino da economia contariam com uma solidariedade já garantida, em última

instância. Tanto a teologia como a economia promovem uma crença básica ingênua num

mundo benévolo, como último determinante "ecológico" de nossas existências. Mas, nos

dois campos, essa promessa de uma solidariedade básica, apesar de jamais se cumprir na

prática, continua reclamando validade.

Por que - nesse plano sumamente abstrato - as mentiras repetidas nunca parecem

desnudar-se completamente? Mais estranho ainda é a auto-validação desses "poderes"

consiga, tantas vezes, "fazer crer" que as promessas continuam válidas apesar de não se

realizarem a não ser para alguns privilegiados (os "eleitos"). Parece até que o tema dos

"eleitos", tão antigo nas religiões, sobrevive na moderna economia. Pode-se comprovar um

jogo, nem sequer tão sutil, de exigência da confiança continuada, mesmo quando se admite

que não todos "couberam" (por enquanto...) nas promessas feitas. Os que ficaram de fora da

solidariedade anunciada sempre serão culpados como aqueles que não tiveram suficiente

confiança na crença básica da solidariedade. Não se salvam porque não confiaram em que a

salvação lhes tocaria também a eles.

Para a teologia e para a economia todos devem nascer e perseverar como confiantes.

Os desconfiados não se salvam. A exclusão, pode então, ser apresentada como culpa de

descrença. Mas que fazer se o mundo social nos condena inevitavelmente a desconfianças?

A exigência básica continuará sendo que se exerça a confiança. Este parece ser um dos

aspectos mais misteriosos do funcionamento dos campos do sentido na vida social.

Existem, aparentemente, campos do sentido que foram estruturados a partir de pressupostos

cuja verificação histórica estava, de antemão, proibida. Quando o vazio (ou a mentira) do

pressuposto se manifestam com toda a sua crueldade na vida cotidiana, sempre aparecem

rapidamente surpreendentes formas para recriar a confiança naquilo que a realidade já

desmentiu infinitas vezes, a saber: que haveria uma solidariedade básica, na qual o sentido

de nossas vidas poderia apostar confiadamente, ilimitadamente.

Caberia examinar historicamente as maneiras, muitas vezes até engraçadas, pelas

quais os profissionais da salvação conseguiram refazer a confiança na disponibilidade da

"graça de Deus", mesmo em meio a contextos que pareciam desmentir completamente essa

disponibilidade da graça. Como é sabido, o recurso à salvação num "outro mundo" foi o

mais usado pelas religiões. Mas como é que os economistas lidam com este assunto do

esvaziamento sócio-histórico da confiança, exigida com tanta insistência, mas de tão difícil

cumprimento?

Na realidade, os economistas nunca desistem de trabalhar com o pressuposto de

uma solidariedade básica, ou seja, uma crença de que, apesar de todos os desmentidos

factuais, é possível continuar afirmando que existe, no bojo mais profundo das atividades e

dos projetos econômicos, uma tendência congênita em direção ao bem-comum. Dito de

Page 128: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

128

outra maneira, a economia provavelmente nem funcionasse na prática sem doses

apreciáveis de confiança de que, mesmo com tantos enganos, algo há que não nos engana.

Esse algo oculto, seria o ponto de convergência das confianças cobradas, e acerca desse

algo - um algo totalmente indefinido - se poderia manter, sempre ainda e apesar de tudo, a

crença de que se trata de um dinamismo solidário.

Valeria a pena examinar os extremos mais aberrantes a que pode conduzir essa

doutrina da confiança imprescindível numa solidariedade de última instância, supostamente

já inserida na história evolutiva da nossa espécie. Exemplos: confiar na bondade

fundamental de sistemas de crença (religiosos ou outros) que visivelmente se desdobram,

na prática, na mais descarado distanciamento das necessidades e desejos da maioria dos

seres humanos envolvidos no vasto campo semântico imposto mediante semelhante sistema

de crença. A porção maior do capital financeiro, na fase atual de mundialização do

mercado, nem se preocupa com sua eventual relação com a produção de bens e serviços.

Em si, isso não deveria parecer-nos tão inédito. Houve longos períodos da história humana,

nos quais os valores apregoados pelos sistemas de crenças estavam de fato em gritante

oposição às demandas mais cotidianas da produção e reprodução social da vida E apesar

disso - coisa que nenhum historiador negará - tais sistemas sobreviveram por séculos.

Talvez não seja absurdo supor que a nossa espécie tem um desejo atávico da

solidariedade, embora, a sua história evolutiva não comprove a sua capacidade de ser

solidária para além de limites relacionais bastante estreitos. Esse desejo solidário atávico,

provavelmente persiste precisamente apenas enquanto desejo, apoiado em experiências de

convivialidade indispensáveis nos grupos humanos primitivos. Persiste como desejo, mas

não como um ethos prático, ou um conjunto de valores para cuja execução houvesse

predisposições adequadas em nossa corporeidade.

A persistência atávica do desejo solidário talvez faça parte de um escindimento, de

uma fissura original que se foi constituindo no desdobramento evolutivo da nossa espécie

na medida em que os nichos vitais comunitários e cooperativos se foram transformando,

através da própria multiplicação dos grupos, em campos operacionais de competitividade e

confrontação. Dito de maneira muito resumida: algo do campo de sentido primordial, que

tinha características solidárias (cf. Neotenia, no final deste livro), continuou sendo arrastado

pela evolução da espécie como saudade persistente de experiências agradáveis de

solidariedade nos contextos primevos da evolução humana, constituindo a "sobra de um

sentido" cujas demandas operacionais foram sendo substituídas por outras demandas

operacionais marcadas pela competitividade e pela confrontação.

Somos um animal que acumulou filogeneticamente propensões à destrutividade e

agressividade, como herança genética e cultural de múltiplas e difíceis lutas pela

sobrevivência, mas que também guarda ainda - sob a forma de um desejo atávico,

enquanto Urform (forma originante) do desejo - um pendor para a solidariedade, que,

embora operacionalmente tão vazio, é tão forte que sobre ele se podem erigir vastos

constructos religiosos e econômicos (a hiatória o comprova).

Possivelmente a operacionalização concreta da esperança deva resgatar também

essas raízes profundas - incrivelmente manipuladas ao longo da história - das nossas ânsias

de convivialidade. Por que não explicitar melhor para a nossa espécie, e propor-lhe como

projeto, nessa virada civilizatória, uma coerência prática com a nostalgia da convivialidade

que, porventura, ela ainda guarda como saudade da Primeira Neotenia? Por que não falar

que, no passo para uma verdadeira Humanização, existem certas analogias com o passo

Page 129: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

129

evolutivo efetivamente dado em nossa Hominização? É claro que uma Segunda Neotenia

não emergirá do prosseguimento da evolução sem a nossa participação explícita.

Amizade e inveja: uma crônica do cotidiano

Retomando o tema das concepções de desejo e de ser humano dominantes na nossa

cultura, fica mais clara a sua importância se lembramos do que dissemos antes acerta do

nosso duplo estatuto de seres biológicos e culturais. Nós tomamos contato com nossos

sentimentos, emoções e desejos por meio da cultura na qual estamos imersos. Essas noções

de ser humano e do desejo humano de reconhecimento conforma a nossa percepção de

nossos desejos e sentimentos, e o modo como vemos a nós mesmos e a outros/as.

Uma crônica de Danuza Leão – que retrata a vida social do Rio de Janeiro –,

publicada em alguns dos maiores jornais do país, nos dá uma idéia de como essas teses

estão presentes e conformam o nosso cotidiano.

Tem graça jantar com Madonna e ninguém saber? Claro que não. Aliás, de

que adianta ter todas as glórias da vida - não que jantar com Madonna seja

uma delas, apenas um exemplo -, se as amigas não vão saber e se esse

acontecimento não chegar aos ouvidos das inimigas, sobretudo? [...] qual o

interesse em desfilar usando jóias, ter uma BMW ou aparecer na televisão?

Para que vejam e comentem, com admiração ou inveja; e também - por que

não dizer? - para dar raiva nos outros. [...]Viver dá trabalho, e é uma pena

pensar em como são poucas as coisas feitas apenas para nosso prazer

pessoal, sem precisar de platéia para aplaudir ou cobiçar.137

Para que “batalhas econômicas” se não podemos causar invejas em amigas/os e,

sobretudo, em inimigas/os? Os bens ou a exposição na mídia não valem por si, mas pelo

reconhecimento que se dá na inveja ou admiração provocadas principalmente em

inimigas/os. Assim, a admiração da amiga vale mais se for carregada ou misturada com

inveja. Por isso, o tom da crônica dá muito mais acento na inveja do que na admiração. E a

vida dá trabalho porque não se vive para prazer pessoal, mas para sentir o prazer que nasce

do provocar inveja em outros/as. Assim, a noção de amizade é profundamente modificada.

Amiga é aquela que sente inveja de nós, sem ser inimiga declarada. Na verdade, não há

amigas/os no sentido mais profundo da palavra. Só concorrentes na luta pelo

reconhecimento de ser ou melhor ter o que outros gostariam de ter.

Essa é a razão pela qual, na segunda parte da crônica, Danuza Leão se pergunta pela

atitude das pessoas que “sabem das coisas”:

Elas não costumam ter amigas íntimas, nem contam coisa alguma de suas

vidas ou de seus sentimentos para ninguém [...] Elas sabem que os grandes

momentos de felicidade, aqueles muito preciosos e muito intensos,

dificilmente podem ser compartilhados. Talvez no momento em que eles

acontecem, talvez por uma fração de segundo, talvez o tempo de um olhar,

em silêncio; talvez. Os momentos mais verdadeiros de uma vida - assim

137

LEÃO, Danuza. “Ah, aqueles momentos”, O Estado de São Paulo, São Paulo, 15/03/1999.

Page 130: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

130

como as grandes dores - são pessoais e intransferíveis; e, apesar do que

dizem, não podem ser compartilhados

.

Pessoas que “sabem das coisas” não se preocupam, pelo menos aparentemente,

com a opinião dos/as outros/as, mas também não olham outro/a como um/a possível

amigo/a com quem possa compartilhar o reconhecimento recíproco, compartilhar os

momentos importantes da vida. Sensibilidade solidária, amizade gratuita, cooperação,

reconhecimento recíproco, conceitos assim não fazem parte de um mundo que não ensina a

olhar as pessoas simplesmente como pessoas com quem devemos aprender a conviver e a

cooperar, que não ensina que a vida vale a pena ser vivida porque encontramos prazer de

viver no encontro com a/o outra/o, no compartilhar e no cooperar, apesar de todas as

dificuldades.

Quando, alguém imerso nesta cultura do “eu contra o/a outro/a”, por um “acaso” ou

“descuido” sente compaixão pela dor do/a excluído/a, isto é, quando emerge um desejo de

ser solidário/a e se deslumbra que a felicidade humana está intimamente ligada ao

reconhecimento do/a outro/a enquanto outro/a, vai provavelmente interpretar este desejo

como irracional, sem sentido, ou não-prático economicamente falando.

Sem uma teoria de desejo que se abra ao/à outro/a como tal, que não olhe ao/à

outro/a com olhar de confrontação, sem que uma teoria assim seja parte da nossa cultura,

as pessoas terão muita dificuldade em tomar contato e perceber mais corretamente os

sentimentos de compaixão e empatia, e desejo de reconhecimento recíproco que continuam

brotando entre nós humanos. A cultura conforma a nossa maneira de percebermos a nós

mesmos e a outros/as, mas a cultura que nos conforma não é na verdade “a”, mas sim

“uma” cultura, que pode ser modificada. Além disso, a dimensão cultural não esgota o

nosso ser. Somos também seres naturais, isto é, sem cérebro (natureza) não haveria cultura.

A tríade cérebro-cultura-mente nos permite ver que cultura tem um papel importante, mas

não é a única fonte da nossa humanidade e da nossa socialidade. Voltaremos a este tema.

A ambivalência e o desejo da ordem na modernidade

Por que esta forma de conceber o ser humano e delimitar dessa forma as

multifacetadas possibilidades de desejo tornou-se a hegemônica no nosso mundo? Para

respondermos a esta questão precisaríamos fazer uma longa e extensa pesquisa, que com

certeza não esgotaria a questão. Vamos somente oferecer algumas idéias ou pistas.

Provavelmente, autores que propuseram teorias como as expostas acima acabaram

se tornando hegemônicos porque as suas propostas estabeleceram uma relação de

convergência e de mútuo reforço com o processo histórico assumido pelos Estados e

sociedades modernas.

Principalmente a partir de Hobbes, a sociedade deixou de ser concebida como um

reflexo de algo transcendentalmente pré-definido e externo, e passou a ser concebida como

uma entidade artificialmente ordenada pelo Estado soberano. O mundo em fluxo passou a

ser considerado como algo natural que devia ser restringido pela ordem. A crença de que a

comunidade, como a ordem, é uma criação humana foi fundamental para a

reconceitualização da sociedade.

O mundo moderno descobriu o conceito e o problema da ordem ao mesmo tempo

em que descobriu que a ordem não era natural. Assim, dentre muitas tarefas impossíveis

Page 131: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

131

que a modernidade se atribui (como o conhecimento perfeito e a “construção” da utopia),

sobressai a ordem como tarefa. Esse mundo moderno que luta pela ordem é, segundo

Bauman,

moldado pela suspeita da fraqueza e da fragilidade das ilhas de ordem projetadas e

construídas pelo homem num mar de caos [...]A luta pela ordem não é a luta de

uma definição contra outra, de uma maneira de articular a realidade contra uma

proposta concorrente. É a luta de determinação contra a ambigüidade, da precisão

semântica contra a ambivalência, da transparência contra a obscuridade, da

clareza contra a confusão. [...] O outro da ordem não é uma outra ordem: sua

única alternativa é o caos.138

Se fossemos resumir em um único ponto, é a luta contra a ambivalência que vai

marcar toda a razão moderna e também a sociedade moderna. A ambivalência é a

possibilidade de conferir a um objeto ou evento mais de uma categoria, o que provoca a

ambigüidade e confusão no processo de comunicação e nas relações sociais. Esta

possibilidade de ambivalência nasce de uma das principais funções da linguagem: a de

nomear e classificar. Ao mesmo tempo em que um dos objetivos fundamentais da função

nomeadora/classificadora é a prevenção da ambivalência.

Como a modernidade colocou como uma das suas tarefas fundamentais a construção

da ordem, o que implica em uma racionalização do mundo sem lugar para o acaso e o

imprevisto, buscou aperfeiçoar o processo de classificação visando o fim da ambivalência.

O aperfeiçoamento do processo de classificação – que significou o aumento da

especialização das ciências e, no campo educacional, a disciplinarização da educação – não

levou e nem pode levar ao fim da ambivalência porque nomeações e classificações mais

precisas pedem operações mais precisas ainda e, com isso, dão lugar a mais ambigüidade. É

uma corrida sem fim.

Contudo, como a ambigüidade gera experiências de indecisão e ansiedade, ela é

experimentada como desordem. Experiências de desordem em um mundo que busca a

ordem demanda ainda mais a luta contra a ambigüidade, o que gerará por sua vez mais

ambigüidade que será experimentada como desordem. De novo uma corrida sem fim.

Na teoria é mais fácil dizer que é uma corrida sem fim. Só que na prática, nenhuma

pessoa ou sociedade pode viver por muito tempo com essa sensação de ansiedade e

indecisão que geram o medo da desordem e do caos. Em termos práticos, ou se abdica deste

projeto da ordem sem ambivalência, abdicando do projeto da modernidade e da razão

moderna e aprende a viver com experiências de ambivalência e ambigüidade ou

acredita que esta corrida um dia terá fim.

Para que isso ocorra, é preciso acabar com a ambivalência e expulsar o medo. Para

isso, é preciso esforçar-se para definir com precisão e eliminar tudo ou todos que não pode

ser precisamente definido. Uma sociedade que busca isso vai ter naturalmente uma

inclinação à intolerância, negação dos direitos e das razões de tudo e de todos que não

podem ser assimilados. A busca pelo fim da ambivalência, das definições e classificações

precisas leva à deslegitimação do outro. Como diz Bauman, “Na medida em que a ânsia de

pôr termo à ambivalência comanda a ação coletiva e individual, o que resultará é

intolerância – mesmo que se esconda, com vergonha, sob a máscara da tolerância (o que

138

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999, p. 14.

Page 132: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

132

muitas vezes significa: você é abominável, mas eu sou generoso e o deixarei viver.”139

(Aqui vale a pena lembrarmos de nossas obsessões pelas definições precisas,

divisões/classificações claras entre e no interior das disciplinas/ciências que compõe o

currículo – a luta pelo fim da ambivalência – nas nossas escolas em todos os níveis.)

A intolerância se expressa em primeiro lugar contra aqueles/as que foram

colocados/as na parte “exterior” da necessária divisão/classificação entre interior-exterior

na construção de uma ordem artificial. O fato de que toda ordem produz necessariamente

uma determinada classificação interna e uma delimitação entre o interior-exterior não

significa que todas ordens irão produzir intolerância como prática social. A intolerância

nasce da busca do fim da ambivalência e, por isso, se volta contra os/as que são

considerados/as inadaptáveis, incontroláveis e ambivalentes. Aqueles/as que chamamos de

excluídos/as.

Nas práticas de intolerância é muito comum ouvirmos os/as intolerantes afirmarem

que as vítimas eram ou são ameaças para a ordem estabelecida, para as pessoas “boas” da

sociedade. Isto ocorre porque toda ordem social produz determinadas fantasias dos perigos

que lhe ameaçam a identidade. Por causa da dificuldade de conviver com a ambivalência e

a ambigüidade, inerentes à condição humana – dificuldade que é agravada pela crença de

que é possível acabar com a ambivalência –, as ansiedades e os medos são projetados

nos/as que estão à margem ou fora da ordem social e esta projeção torna essas pessoas uma

ameaça à ordem.

A extrojeção da ambivalência e ambigüidade interna da ordem social leva a

sociedade e as pessoas inseguras da sua ordem, do seu modo de vida, a desenvolverem

mentalidade de uma fortaleza sitiada. Os/as excluídos/as aparecem assim não mais como

interpeladoras da nossa sensibilidade social e cooperação, mas sim como ameaça à ordem e

a preservação do modo de vida desejada pelas pessoas integradas no mercado. Os/as

amigos/as não são mais para compartilhar reconhecimentos recíprocos, na gratuidade da

amizade, mas concorrentes na luta por provocar invejas em uns e outros, na busca da

realização do desejo de ser superior aos demais. Quem aparentemente não busca

reconhecimento nesta luta, quem “sabe das coisas”(Danuza Leão), se fecha na sua

fortaleza, pois “sabe” que o segredo da vida consiste no isolamento, na apartação

existencial de todos/as que lembram a sua condição humana, a impossibilidade de superar a

ambivalência e a ambigüidade.

Precisamos desejar um desejo diferente, olhar o ser humano de um modo distinto e

pensar com uma razão diferente; senão o mundo humano não terá futuro. (Não teremos

debates frutíferos sobre a sensibilidade social ou sensibilidade solidária se não soubermos

articular de um modo complexo e transdisciplinar os temas do desejo, epistemologia e

antropologia.) Não somente porque o nosso mundo não terá mais um sentido humano, mas

fundamentalmente porque a voracidade do consumo, a enorme capacidade produtiva e

destrutiva possibilitada pelo avanço tecnológico, o progresso cego do nosso conhecimento

científico-tecnológico, a intolerância com os/as inadaptáveis à sociedade da informação e

com estrangeiros/as (em particular nos países ricos), a insensibilidade frente à exclusão

social e outros sintomas da profunda enfermidade que está cometida a nossa espécie nos

levarão a um mundo em que muitas e muitas vidas humanas serão sacrificadas. Alguns

pensadores chegam a falar na possibilidade de uma crise tal que levaria ao fim da

civilização humana como nós conhecemos hoje.

139

Idem, ibidem, p. 16.

Page 133: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

133

O cinismo e o desejo de cuidar

É possível um desejo diferente do que conhecemos na nossa tradição ocidental? A

princípio sim. Pois, o modo de conceber o ser humano e o desejo que prevaleceu no

Ocidente não esgotou as possibilidades humanas. Foi uma perspectiva que se tornou

hegemônica e se apresenta como “natural”. Alguns até apresentam essa visão do ser

humano e da sociedade com certo orgulho.

Paul Krugman, em um artigo onde analisa a vitória do capitalismo sobre o

socialismo soviético, se pergunta “porque um sistema que funcionou suficientemente bem

para competir com capitalismo nos anos 40 e 50 caiu nos anos 80. O que aconteceu de

errado?”140

Para ele a mudança tecnológica e a globalização da economia não explicam o

colapso dessa antiga potência econômica e militar. Na sua opinião, “o problema básico não

foi o técnico, mas moral. Comunismo faliu como um sistema econômico porque o povo

parou de acreditar nele‖.

A diferença fundamental do sistema de mercado e a sua superioridade consistiria,

Para Krugman, no fato de que esse sistema “funciona o povo acreditando nele ou não. (...)

O capitalismo pode funcionar, mesmo florescer, em uma sociedade de cínicos egoístas.

Mas uma economia de não-mercado não pode”.

Como conclusão ele diz:

capitalismo triunfou por ele ser um sistema que é resistente ao cinismo, que assume

que cada homem é feito por si próprio. Por mais de um século e meio os homens

tem sonhado com algo melhor, com uma economia que se utilizasse do melhor da

natureza do homem. Mas sonhos, isso ficou provado, não pode manter um sistema

funcionando a longo prazo; o egoísmo pode.

Em parte ele tem razão, mas o problema central é que uma sociedade não pode se

basear somente no egoísmo e na competição. A vitória no campo econômico hoje não

significa que essa sociedade seja social e ecologicamente sustentável por muito tempo.

Apesar do ufanismo dessa visão redutivista do ser humano, o crescente número de

pessoas excluídas das condições de sobrevivência digna e o aumento da instabilidade social

pelo mundo afora exigem de nós a elaboração e difusão de um modo diferente de ver o ser

humano e o desejo que seja operacional e eficaz em sociedades amplas e complexas.

É preciso urgentemente resgatar a socialidade cooperativa detrás desta

predominância das relações competitivas e confrontativas. Antes que seja tarde demais.

Mas devemos reconhecer que precisamos dar um salto verdadeiramente enorme para situar

a socialidade cooperativa como princípio articulador da coesão social. A visão de mundo

que predomina e que, de certo modo se radicaliza com o neo-liberalismo, continua

submetida a uma cadeia de mitos fundadores acerca do humano e da história, nos quais, a

confrontação e a competição exercem a função de chave interpretativa predominante. Na

realidade não se trata de teorias sociais científicas, no sentido popperiano de teorias

falseáveis. Elas se movem num plano mítico de especulações acerca da origem e da

140

KRUGMAN, Paul. Capitalism‘s Mysterious Triumph. Publicado em Nihon Keizai Shimbun. Disponível na

internet, jun/00. As citações seguintes são deste texto.

Page 134: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

134

dinâmica dos processos sociais crescentemente mais complexos ao longo da história.

Enquanto mitos, e não hipóteses científicas de teoria social, não podem ser nem

confirmadas nem refutadas. O terrível é que podem perfeitamente ser objeto de adesão no

plano das crenças mais profundas.

Precisamos efetivamente de um novo começo para pensar a socialidade humana. De

pouco ou nada serviria erigir um novo mito no qual apenas se pudesse crer. A solidariedade

não deveria ser rebaixada a enunciados míticos. Ela, no entanto, deverá ser incrementada

num mundo de seres propensos tanto a crer que eles são potencialmente adversários entre

si, como a crer que as adversidades reais poderão ser ocultadas com o manto de simulações

que só servem para nos iludir. O novo início de um pensamento alternativo talvez deva ser

discreto e começar com a reflexão sobre situações humanas, concretas e efetivamente

vivenciáveis, e que não encontram nenhuma explicação dentro da lógica dos mitos de luta,

confrontação e competitividade. Há muitos exemplos da vida real que não se enquadram

dentro da lógica da competição. O problema é que, somos cegos diante de muitos

acontecimentos relacionais humanos que não cabem dentro da lógica mercantil

confrontativo.

Retomemos a metáfora da reciprocidade do olhar, tão terrivelmente distorcida tanto

por Adam Smith e mais ainda por Hegel. Para redescobrir o que significa olhar, enquanto

fonte constitutiva da identidade do indivíduo, e para resgatar um sentido verdadeiramente

humanizador no reconhecimento mútuo, nada melhor do que começar com uma breve

reflexão sobre o que acontece entre a mãe e a criança no início da vida humana.

Note-se que não estamos, nessa altura da reflexão, à busca de nenhum princípio

organizativo que se preste para pensar a organização global de uma sociedade, seja em sua

eficácia efetiva de bens e serviços, seja na imensa variedade de outros aspectos da vida

social. O que se pretende destacar é simplesmente a serventia praticamente nula do

princípio da competitividade para entender fenômenos tão básicos como as relações entre

mãe e filho/a nos meses iniciais da vida de um ser humano. O aspecto específico sobre o

qual queremos concentrar nossa atenção é precisamente a emergência do caráter humano

nessa relação. Praticamente todos os ingredientes relacionais das experiências iniciais da

vida humana escapam a um modelo interpretativo que tome como dinâmica articuladora a

competitividade. Cabe aqui uma citação de Todorov, sumamente ilustrativa por seus

detalhes e pela vinculação forçada à linguagens mercantis, precisamente para revelar que

elas não cabem:

Os primeiros movimentos recíprocos entre a mãe e a criança não tem em si

nada de especificamente humano. A criança ―demanda‖ ser alimentada e

mantida em quentura acolhedora. Numa palavra, quer ser protegida. A mãe

―demanda‖ dar proteção. Essa relação inicial tem muitos equivalentes no

mundo dos animais. Isso é indiscutível. Contudo, ao cabo de poucas

semanas, começam a ocorrer fenômenos especificamente humanos. A

criança começa a trocar olhares com a mãe (ao que parece, a focalização

da imagem dela só se aperfeiçoa ao longo de três a quatro meses) ... já não

apenas para que a mãe a alimente e conforte, mas também porque esse

olhar recíproco começa a significar para ela a descoberta de um mundo

novo que ela experimenta como complemento indispensável. Esse olhar

confirma para a criança a sua própria existência. Em outras palavras,

agora a criança 'demanda' o reconhecimento da parte da sua mãe (o de um

Page 135: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

135

adulto que assuma essa função, que pode ser também o pai ou uma terceira

pessoa). A mãe procura conceder a sua criança esse reconhecimento,

dando-lhe segurança da sua existência. E ao mesmo tempo, mesmo que não

tenha nenhuma consciência disso, ela se sente reconhecida em seu papel de

agente do reconhecimento através da troca de olhares com sua criança.

Portanto, a existência do indivíduo, enquanto especificamente humano, não

se inicia num campo de batalha ou numa confrontação competitiva, mas no

pedido, que a criança está fazendo, de que a mãe olhe para ela, uma

situação evidentemente ―menos heróica‖. Para evitar mal-entendidos

convém acrescentar que a palavra ―olhar‖ está sendo usada aqui para

expressar o conjunto de fluxos de comunicação que começam a intensificar-

se no contato recíproco entre ambos. Mas na ausência do olhar (como no

caso da criança cega) outros sentidos, especialmente o tato e a audição,

cumprem o mesmo papel.141

Tentemos, agora, de analisar brevemente essa relação entre a mãe e a criança, na

linguagem do desejo. O que se pretende é provocar a sensação nítida de um contraponto

evidente com a teoria do desejo, que encontramos em Hegel. Para Hegel, a reciprocidade

dos desejo de reconhecimento - analisada na dialética senhor-escravo - está marcada

estruturalmente por uma dinâmica de confrontação competitiva. Essa matriz interpretativa

não é apenas questionável mas evidentemente ridícula e insultante, quando aplicada às

relações iniciais entre a mãe e sua criança (o que não significa que não possa haver

posteriormente entre eles relações conflitivas e até mesmo edipianas). Nem Freud ousou

aplicar sua famosa obsessão pelo complexo de Édipo ao surgimento das primeiras relações

de reconhecimento mútuo entre mãe e filho/a.. Voltemos a citar Todorov:

Será que a criança deseja o desejo de sua mãe? Ela deseja seu olhar, sua

presença, numa palavra: seu reconhecimento (sua acolhida). Mas, em

termos apropriados, esse reconhecimento somente pode ser chamado desejo,

no sentido competitivo, forçando muito a imaginação.142

Portanto, temos que falar do desejo num sentido completamente diferente daquele

que Hegel dá a essa palavra. Esse conceito alternativo de desejo nos servirá para

fundamentar tanto a abertura acolhedora ao outro/a, como, sobretudo, para frisar que é

possível querer a felicidade alheia como parte integrante da felicidade própria, ou seja, que

é possível sonhar com uma profunda unidade entre o desejo e a necessidade de sermos

solidários. Na visão de Hegel - e na de muitos outros autores, inclusive René Girard, com

sua teoria do desejo mimético fundamentalmente competitivo -, o entrejogo dos desejos

humanos sempre é potencialmente voraz, porque submetido a uma inescapável

contraposição. O exemplo do entreolhar-se da mãe e da criança nos serve apenas como um

exemplo gritante de que precisamos de uma outra teoria do desejo para poder conferir

substância a uma visão não-competitiva daquelas muitas formas de relacionamento humano

que não cabem no esquema das relações mercantis. Poderíamos ter seguido adiante com

uma teoria sobre o surgimento das primeiras trocas de sorrisos entre mãe e filho/a, e assim

141

TODOROV, T. loc.cit. 142

TODOROV, T. loc.cit.

Page 136: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

136

chegar aos poucos a entrever uma vasta gama de experiências humanas de reciprocidade, às

quais não cabe aplicar o princípio organizativo da competitividade. Note-se bem que, em

nenhum momento, se pretende negar a abundante presença da competição na socialidade

humana. Podemos até mesmo admitir que ela represente, até certo ponto, um forte princípio

organizativo, entre outros, na dinamização da produtividade social de bens e serviços. Não

se trata de objetar a presença importante de mecanismos de mercado na sociedade.

Pretende-se apenas sublinhar que a expansão da dominância da competitividade econômica

para todos os aspectos da vida social é um equívoco antropológico tão grande ou maior que

o equívoco antropológico que consiste em imaginar os seres humanos como naturalmente

solidários, bastando para isso alguns piparotes de conscientização acerca de metas sociais

comuns, cujo planificação e execução se entregaria generosamente às mãos de vanguardas

iluminadas.

O amor e a humanização

As primeiras relações entre mãe e filho/a, usado até agora como um exemplo para

criticar a concepção confrontativa do desejo, nos traz um outro ponto muito sugestivo: o

imprinting cultural. Konrad Lorenz propôs o termo imprintig para falar da marca indelével

que as primeiras experiências imprime no animal recém-nascido. Por exemplo, filhotes de

passarinhos que, ao sair do ovo, seguem como se fosse a sua mãe o primeiro ser vivo que

passe por ele. A partir desse conceito de Lorenz, Edgar Morin fala de imprinting cultural

nos seres humanos: “O imprinting cultural marca os humanos desde o nascimento,

primeiro com o selo da cultura familiar, da escolar em seguida, depois prossegue na

universidade ou na vida profissional.”143

Não queremos debater aqui até que ponto é possível utilizar esta metáfora que vem

da biologia para falar dos seres humanos. Mas, não devemos esquecer que próprio Lorenz

buscou a metáfora do imprinting fora da biologia. Aliás, as ciências costumam elaborar

seus conceitos novos buscando alguma metáfora de uma outra área. O que nos interessa

aqui é mostrar que é possível pensar desejo de outra forma que não seja essa visão

redutivista hegeliana. Mais importante do que a “cientificidade” das teorias sobre a

estrutura fundamental do desejo, é a elaboração de teorias ou conceitos que dêem conta da

multifacetadas possibilidades do desejo humano e que nos ajude a superarmos este sistema

econômico-social que se orgulha do seu cinismo e egoísmo.

Voltando, podemos dizer que o imprinting cultural primário é esse reconhecimento

que vem do olhar da mãe (ou de quem faz este papel), que é um olhar do cuidar, do zelar,

guardar. Um olhar de reconhecimento baseado na reciprocidade e não na confrontação

competitiva. Por sobre este imprinting cultural primário são impressos sucessivos selos da

cultura familiar, das escolas, dos grupos de amigos, universidades e dos ambientes

profissionais.

Sobre esta experiência maternal-acolhedora vão se sobreescrevendo marcas

patriarcais competitivas e confrontativas. O problema não está nestas camadas ou selos

posteriores, mas no fato de essas marcas posteriores ir ocultando essa experiência de desejo

fundante. A solução não é retornar a essa experiência original maternal e querer organizar

toda a vida social a partir desse princípio. Nós já vimos que isso não é possível e nem

desejável. Não podemos cair novamente no dualismo: patriarcalismo versus

143

MORIN, Edgar. Os sete saberes..., op.cit., p. 28.

Page 137: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

137

matriarcalismo. O problema está exatamente no desencontro que aconteceu na nossa

civilização entre estes dois princípios necessários à vida em sociedade ampla e complexa.

Os imprintings culturais, por serem culturais, não são indeléveis nem totalmente

apagáveis, e nem deterministas. Podem ser revistas, reformuladas e/ou recuperadas.

Processos educacionais podem reforçar unilateralmente as marcas patriarcais-

confrontativas ou podem ajudar a recuperar a experiência originante do desejo de

reconhecimento recíproco no olhar do cuidar, o desejo de felicidade alheia como parte

integrante da felicidade própria. Este imprinting cultural primário, esta experiência do

amor maternal, pode ser recuperado porque está lá, no fundo do desejo humano. É claro que

para isso é preciso que se propicie à pessoa um ambiente acolhedor e relações de

reconhecimento recíproco que aceite a ambivalência, os limites e as potencialidades de

cada um/a.

Estas reflexões nos mostram que a essência humana do desejo não se reduz à

contraposição conflitiva desses desejos. Ao contrário, muito embora alguma dose de

conflitividade quase sempre esteja presente no entrejogo dos desejos humanos, é

perfeitamente possível descobrir neles uma dimensão convergente mais fundamental do que

todas as formas de competitividade. Esta é a nossa tese fundamental que diverge, como é

óbvio, radicalmente da concepção hegeliana, e mesmo freudiana, da dinâmica do desejo. É

a dimensão convergente dos desejos que os eleva a algo eminentemente humano e

humanizador, sem que devamos reclamar uma exclusividade especificamente humana para

todas as formas de trocas desejantes. Os outros animais também realizam e provavelmente

experimentam trocas desejantes. Mesmo assim cabe ousar a hipótese de que o “algo mais”,

que surgiu na evolução da nossa espécie, provavelmente é interpretável de uma forma

melhor não com esquemas racionalistas, que situam na razão a nossa especificidade

humana, mas com uma apreciação positiva da nossa capacidade de desejarmos uns/umas

para os/as outros/outras uma verdadeira alegria de viver. Se aplicarmos a isso a palavra

amor, embora excessivamente trilhada, talvez se perceba intuitivamente que esse amor já

não pode ficar confinado em dualidades, mas exige irradiar-se socialmente como amor

solidário, isto é, troca desejante coletiva que anela a construção de ecologias sociais de

felicidade compartida, nas quais se torne efetiva, de alguma forma, a nossa limitada

possibilidade de transformar nossos desejos de reciprocidade em necessidades vitais.

Para Humberto Maturana a linguagem, que está na origem do ser humano, “se

origina em uma certa intimidade do viver cotidiano, no qual esses nossos antepassados

conviviam compartilhando alimentos, na sensualidade, em grupos pequenos, na

participação dos machos na criação das crianças, no cuidado com as crias, nas

coordenações de ação que isso implica.”144

E o que tornou esta convivência possível foi o

fundamento básico do emocionar-se do mamífero e do primata. “A emoção que torna

possível essa convivência é o amor, o domínio de ações que constituem o outro como

legítimo outro na convivência.”145

Por isso ele diz:

Emocionar, em cuja conservação se constitui o humano ao surgir a

linguagem, centra-se no prazer da convivência, na aceitação do outro junto

a nós, ou seja, no amor, que é a emoção que constitui o espaço de ações no

qual aceitamos o outro na proximidade da convivência. Sendo o amor a

144

MATURANA, Humberto. A ontologia da realidade. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1997, p.46. 145

MATURANA, Humberto. Loc.cit.

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138

emoção que funda a origem do humano, e sendo o prazer do conversar

nossa característica, resulta em que tanto nosso bem estar como nosso

sofrimento dependem de nosso conversar.146

Amor e o olhar materno-filial como imprinting cultural primário, amor e o

conversar, ouvir o/a outro/a mutuamente na sua alteridade, como fundamento biológico-

cultural da origem e evolução da nossa espécie. Perspectivas que nos revelam que é

possível pensar o desejo de uma outra forma do que a brutal conclusão de Hegel-Kojève:

“Por isso a existência humana, histórica e auto-consciente, somente é possível onde há ou -

ao menos - houve lutas sangrentas, guerras pelo prestígio.”147

Para evitar qualquer mal-entendido, queremos deixar claro novamente que não

estamos propondo uma volta romântica ao passado da nossa espécie, nem propondo, como

Maturana faz, que o amor seja o único princípio organizador da sociedade, sem nenhuma

relação de concorrência. Isso não é possível, nem funcional, nas sociedades amplas e

complexas. Competição, competências e solidariedade são ingredientes necessários em toda

sociedade ampla e complexa que quer garantir a todos/as a produção e a distribuição do

suficiente para uma vida digna e prazerosa.

A evolução da espécie e o surgimento de sociedades cada vez mais amplas e

complexas fizeram emergir novas propriedades, como também o crescimento de uma

criança faz surgir novos tipos de relacionamento familiar e social. Contudo, isso não

significa que o amor materno ou o amor que fez possível o surgimento da espécie humana

devam ser esquecidos ou substituídos completamente por uma noção de desejo

confrontativo ou pelas relações de concorrência. Pelo contrário, a vida madura de uma

pessoa ou a sobrevivência saudável da nossa espécie depende da nossa capacidade de

reordenar a vida integrando esse amor com outros tipos de relações – incluindo a

competição – que vão surgindo.

Essa nossa tese vai frontalmente contra aquela apresentada pelo Hayek, o “papa” do

neoliberalismo no último livro da sua vida, A fatal arrogância. Para ele a nossa sociedade

“nunca teria chegado a surgir se não tivesse sido ignorada a recomendação de que todo

semelhante seja tratado com o mesmo espírito de solidariedade que se dedica a quem

habita o entorno mais próximo‖.148

Para ele não há outro caminho do que a concorrência,

que diz estar presente em toda evolução, e que, portanto, devemos desistir da solidariedade

e nos submetermos às leis do mercado.

Segundo Hayek, propor solidariedade ou justiça social em sociedades amplas é

desconhecer o processo de evolução e o funcionamento do mercado. Solidariedade seria

possível somente em comunidades pequenas, antes do surgimento da economia de

mercado. Após a evolução humana ter atingido o capitalismo, qualquer proposta que

levante a questão social “é radicalmente incompatível com uma ordem de mercado

competitivo e com o aumento e inclusive a manutenção da população e a riqueza atuais.

Deste modo, por meio de tais erros, se chega a chamar ‗social‘ o que na realidade

constitui o principal obstáculo para a boa marcha da ‗sociedade‘. O ‗social‘ deveria mais

bem tachar-se de anti-social.”149

146

Idem, ibidem, p. 175. 147

KOJÈVE, A. Op.cit. p.41. 148

HAYEK, Frederich. La fatal arrogancia: los errores del socialismo. Madri: Unión Editorial, 1990, p.43. 149

Idem, op.cit., p. 188.

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139

Em nome da evolução ele inverte o sentido da solidariedade. Ser solidário é não ser

solidário. Em nome da eficiência do e no mercado ele reduz a relação humana à

concorrência e o/a outro/a a concorrente a ser vencido.

Desejo de solidariedade como necessidade vital

Nós estamos falando com os sentidos voltados para a percepção da realidade atual

do mundo da necessidade de superar, em nossa apreciação do potencial desejante humano, semelhantes visões auto-mutiladoras. O ponto de incidência direta da nossa crítica

se refere a fusão indevida do desejo humano com uma suposta vontade de competição

onipresente, como se todo desejo, pela simples razão de ser desejo de reconhecimento pelo

outro, sempre já estivesse sob o império da oposição entre desejos contrapostos e

virtualmente guerreiros entre si. Precisamos de uma teoria do desejo que inclua, junto à

existência de propensões competitivas, uma radical propensão humana para o encontro e o

reconhecimento solidário mútuo. Não somente para criticar – já basta de criticar/denunciar

por criticar/denunciar – , mas para possibilitar que as pessoas e a própria sociedade possa

perceber melhor lampejos de desejos de reconhecimento solidário que iluminam de vez em

quando as noites escuras das nossas vidas marcadas pela competitividade e insensibilidade.

Pois, sem essas novas concepções de desejo e de ser humano, estes lampejos podem ser

interpretados como ameaças que vêm do exterior, do mundo onde habita os/as outros/as, os

que não cabem na razão econômica estendida a todos os aspectos da vida.

É preciso urgentemente resgatar relações de solidariedade e de cooperação por trás e

deste predomínio das relações competitivas e confrontativas. O desequilíbrio entre de um

lado a capacidade produtiva e de geração de riquezas virtuais e de outro a fragilidade do

tecido social e graves problemas sociais que atingem bilhões de pessoas em todo mundo

está nos mostrando que o ser humano está se convertendo no grande inimigo da

humanidade. Aqui não importa precisar qual ser humano está se convertendo nesse inimigo,

pois – mesmo reconhecendo as diferenças de poder e influência que existe em toda

sociedade – todos nós devemos enfrentar esse fato: nós somos inimigos de nós mesmos.

Mecanismos de projeção e extrojeção não podem continuar sendo usados para defender um

presumível inocência de um determinado grupo social e para a criação de um bode

expiatório da crise. Não há um salvador inocente a descobrir ou a criar, como não há um

bode expiatório que possa carregar todas as responsabilidades e culpas e com a sua morte

salvar a humanidade. Utilizar-se destes mecanismos seria reproduzir a luta pelo fim da

ambivalência e o olhar confrontativo que criticamos acima.

No interior de cada um de nós, de cada grupo social e de cada sociedade vive a

ambivalência e a ambigüidade. Todos/as nós somos responsáveis e, por isso, podemos fazer

algo para recriar, resgatar e revalorizar a sensibilidade social e redescobrir o desejo do

reconhecimento recíproco. Desejo que nos faz desejar a felicidade alheia como parte

integrante da nossa felicidade, por isso que faz o desejo de solidariedade se tornar uma

necessidade vital.

Page 140: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

140

PARTE II

EDUCAR PARA

A ESPERANÇA SOLIDÁRIA

Page 141: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

141

Capítulo 6

COMPETÊNCIA E SOLIDARIEDADE:

RENOVAÇÃO DO DISCRUSO PEDAGÓGICO

Novas interfaces entre competência e solidariedade

As reformas educacionais, mundo afora vêm insistindo em juntar vários tipos de

competências básicas para criar, através delas, um patamar mínimo para que as novas

gerações estejam preparadas para aprender a aprender e aprender por toda a vida. A virada

se refere, portanto, à própria concepção do que é educar. Do predomínio da visão

instrucional (ensinar) passou-se à ênfase maior nas experiências de aprendizagem (aprender

a aprender).

Doravante a relevância da escola será avaliada de maneira diferente da tradicional,

que avaliava cursos concluídos, notas, atestados e títulos. Provavelmente essas referências

continuarão a existir. Mas aquilo que a sociedade tenderá a cobrar doravante à escola será,

mais e mais, aquilo que - na linguagem atual do MEC - leva o nome de competências e

habilidades. No contexto de todas as demais instâncias da sociedade, que também têm a ver

com a cultura e formação da socialidade humana, a escola terá que provar que é capaz de

proporcionar às novas gerações um patamar de iniciações básicas para saber aprender;

manter acesa a curiosidade de aprender mais e incrementar o desejo do conhecimento;

fazer sentir, na prática escolar, a importância de saber acessar e construir

conhecimentos;

mostrar que a informação, a ciência e a cultura deixaram de ser bens escassos na era das redes e da Internet.

Está implicada nisso uma questão relacionada com a visão do ser humano. Pela própria

dificuldade de expressá-la, sem incorrer em ambigüidades de cunho ideológico, esta

questão é geralmente silenciada. Tentemos formulá-la em forma de pergunta: como

incorporar nas linguagens pedagógicas, de maneira crítica mas também positiva e

motivadora, referências explícitas acerca dos princípios organizativos e dos critérios ético-

políticos mais gerais da sociedade? A educação precisa ter a coragem de superar o dualismo

persistente entre formação para o bom desempenho profissional, e isso numa era de

profunda transformação do próprio conceito de trabalho, e formação ética para a

sociabilidade humana?

Cremos que é precisamente esta junção de competências que está sendo tematizada e

encaminhada, de alguma forma, pelas novas linguagens pedagógicas. Não há por que

silenciar que o pomo da discórdia - por absurdo que pareça - ainda é, para muitos, o

balanceamento de linguagens positivas e linguagens críticas acerca do mercado. Mas fixar-

nos apenas nisso nos conduziria a um simplismo inaceitável. Para além da questão da

aceitação afirmativa de mecanismos de mercado, no plano da economia, está um conjunto

de problemas mais radicais da atual encruzilhada civilizatória da humanidade.

Trata-se de questões éticas verdadeiramente radicais como a paz, a liberdade entendida

como oportunidades sociais efetivas, a união entre interesse próprio e abertura aos outros, a

superação da pobreza enquanto privação de capacidades, e outras similares. Esse tipo de

questões é geralmente escamoteado, porque implica numa visão realista do ser humano e de

Page 142: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

142

suas limitações sócio-históricas, que não é fácil de reconciliar com o discreto otimismo

antropológico e pedagógico, já que educar pressupões que se acredite na educabilidade do

ser humano, pois sem isso educar não teria muito sentido. Pensamos que uma abordagem

sincera de temas como competência humana, competências sociais, sensibilidade social e

solidariedade pode levar-nos a um marco de referências bastante inovador.

Os analfabetos de amanhã não serão os que não aprenderam a ler e a escrever, mas os

que não aprenderam a aprender por toda a vida. E aprender por toda a vida não significa

apenas manter-se em estado aprendente diante de novas formas de atividade humana.

Significa igualmente continuar criativo e aprendente no que se refere aos relacionamentos

interpessoais e a convivialidade humana, tanto no plano interpessoal imediato quanto em

perspectiva ampla e planetária.

Especialmente desde 1996, quando a UNESCO os assumiu em seus documentos150

,

passaram a ser referência quase obrigatória

Os quatro pilares da educação aprender a aprender -> priorizar as experiências de aprendizagem aprender a fazer -> ênfase nas competências e habilidades aprender a viver juntos -> juntar competência e solidariedade aprender a ser -> realizar-se como indivíduo e ser social

Quem lê com a atenção a proposta da UNESCO há de convir que ela não é, de forma

alguma, um documento fechado ou um "tijolo ideológico". Ela abre Horizontes (título da 1ª

parte), aponta Princípios pedagógicos inovadores e elásticos (2ª parte) e formula

Orientações (3ª parte). O destaque do papel da educação na luta contra a exclusão, a ênfase

na participação democrática, o alerta de que o crescimento econômico perde sentido sem o

desenvolvimento social e a insistência na visão de um mundo solidário evidenciam que se

trata de uma visão que certamente não pode ser acusada de neoliberal. Por outro lado, é

óbvio que não fantasia acerca de um mundo sem emulações competitivas e mecanismos de

mercado.

Um assunto que permeia todo este livro é o dos supostos antropológicos que existem

em qualquer proposta educacional, econômica, política e cultural. Trabalhamos com a

hipótese de que está havendo, em nossa época, mudanças significativas na auto-percepção

do ser humano e na construção das identidades subjetivas. Ao transformar-se tão

sensivelmente o mundo à nossa volta, como poderíamos escapar à tarefa de re-situar-nos

nele?

Este capítulo se restringe a tentar uma amostragem, em textos relacionados com a

educação (e teorias da gestão), da emergência de novas linguagens acerca do que é preciso

aprender e fazer para sentir-se mais à vontade em meio às complexas exigências do mundo

de hoje. (Note-se que não vamos ocupar-nos diretamente das assim chamadas competências

cognitivas, assunto inseparável do nosso, mas com ênfase diferente). Nossa amostragem se

limita a ser precisamente o que o termo expressa: apenas uma amostragem, como incitação

para que cada qual a complemente com suas buscas pessoais. Haverá apenas algumas

poucas insinuações para aprofundar as implicações antropológicas dessas novas linguagens.

Selecionamos, um tanto a esmo, quatro atratores semânticos (polarizações do sentido)

que sinalizam que se está explicitando, com ênfase crescente, o vínculo entre o aprender

escolar e o aprender a se mover competentemente num mundo social cada vez mais

150

DELORS, Jacques e Outros. Educação: um tesouro a descobrir. Relatório para a UNESCO da Comissão

Internacional sobre Educação para o século XXI. São Paulo: Cortez; Brasília: MEC- UNESCO, 3ª ed., 1999.

Page 143: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

143

exigente e complexo. Dedicaremos depois um capítulo inteiro (o que segue a este) aos

conceitos sensibilidade, sensibilidade social, razão sensível e sensibilidade solidária. Com

isso esperamos estar contribuindo para superar o desencontro, que ainda persiste, entre as

linguagens que se referem às competências e habilidades e as que apontam para uma

sociedade solidária. O próprio título deste livro evidencia essa intenção. As quatro

expressões escolhidas são: competência humana competências sociais aprendizagem social

inteligência social

Não pesquisamos muito o lado cronológico do surgimento dessas expressões. Por

isso apenas nos arriscamos a insinuar que parece ter havido, por parte do MEC, uma

preferência crescente pela formulação Competências e Habilidades. A expressão

competências sociais, inicialmente usada, talvez soasse para alguns como demasiado ligada

à eficiência ou marcada por uma relação mais direta com a competitividade do mercado de

trabalho (no espanhol, que não usa a nossa palavra "concorrência", este seria o sentido mais

imediato).

Discreto deslocamento? (sujeito a mais pesquisa)

1994 em diante Plano Decenal: Educação para

Todos

competências cognitivas e

competências sociais

1996 em diante PCNs - Ens. Fundamental Competências cogniticas, competências

sociais, competências e habilidades

1998 em diante PCNs - Ens. Médio Competências e habilidades, competências

cognitivas, sócio-afetivas e psicomotoras

De qualquer maneira, uma linguagem explícita acerca da competência e das

habilidades, relacionadas com a inserção do/a aprendente na vida social e do mundo do

trabalho, começou a ocupar um lugar importante nos documentos do MEC. Cremos que

realmente vale a pena conferir, nas seções sobre Competências e Habilidades dos PCNs,

notável um esforço por encontrar linguagens expressivas e frisar entrelaçamentos

transdisciplinares sobre os diversos assuntos tratados. Como veremos, nos escritos e

debates sobre a educação e nas teorias gerenciais são ainda bem mais abundantes os

diversos atratores semânticos que polarizam novos enfoques antropológicos e pedagógicos.

Competência humana

Este bairro tem problemas. (Imagens de miséria e violência).

A gente deste bairro é boa (Imagens de conversas, idas e vindas).

Mas às vezes faz coisas não boas (Novas cenas de agressão e violência).

Mas a gente deste bairro está aprendendo o valor de uma coisa: a competência!151

Esta expressão não tem algo de engraçado em si mesma? Uma ironia para cima da

gente? Parece dizer - ou diz mesmo! - que a gente, não por ser gente, já tem garantia de ser

tido como gente. E que para ser reconhecido como gente, precisa primeiro tornar-se gente.

Ou então, que o mundo que está aí, requer da gente mais do que a gente está preparado para

151

Paráfrase de uma publicidade de uma revista semanal na CNN em Espanhol, junho/2000

Page 144: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

144

ser "normalmente"... Que vai ser preciso dar um jeito de atender essa exigência de virar

gente, gente mesmo, ou ao menos gente etiquetável como alguém na vida. Enfim, tudo

meio estonteante e complicado.

Que a gente não nasce pronto, isso todo mundo sabe. Não nascemos como o

patinho, que sai da casca e sai nadando, ou como o carneirinho e tanto outro bicho, que se

ajeita de pé e sai andando em menos de meia hora. Nós não nascemos prontos, e o fato de

nascermos prematuros, exigindo um útero externo acolhedor, marcou toda a nossa

evolução, principalmente a do cérebro. Disso vamos tratar mais adiante (no final do livro,

seção sobre Neotenia). Hoje a humanidade se encontra numa guinada civilizatória e, para

chegarmos a uma Humanização de alcance planetário, a nossa espécie tem que enfrentar

uma esforço evolutivo que permite certas analogias com a Hominização.

A questão é entender por que nos voltam a cobrar competência humana

precisamente hoje. Se não é porque não nascemos prontos (coisa já mais que sabida,

embora não sempre entendida e devidamente atendida), deve ser por outro motivo. E parece

que esse motivo é levemente maldoso: é que nos querem dizer, às claras, que não é

qualquer um/a que está preparado/a para enfrentar as exigências que a vida nos coloca hoje.

Lá atrás, por exemplo há apenas um século, se a gente nascia com saúde, mamava

direitinho, encorpava e crescia, aprendia as "primeiras letras", dependendo de onde a gente

vivesse, talvez nem precisasse preocupar-se muito com "segundas" e outras letras. Bastava

gostar das melodias da vida. Hoje, ficou difícil tirar as coisas "de letra". Por isso, toda essa

conversa nova sobre o aprender a aprender e aprender por toda a vida.

Mas vejamos algo da cotação da competência humana no mercado de moda das

linguagens. Quantitativamente, a vigência da expressão é apreciável. Para avaliar o

conteúdo da embalagem vai ser preciso conferir a "mercadoria" mais de perto. Pedro

Demo, aí pelos anos 1995 a 1997, nutria sintomáticas suspeitas acerca da invasão dessa

linguagem, mas por outro admitia que ela viera para ficar152

:

O tema da competência humana sempre aparece com alguma suspeita, porque

nasceu no berço dos órgãos das Nações Unidas, que, como se sabe, exsudam laivos

neoliberais fartamente. Mesmo assim, pode-se considerar um ganho importante este

tipo de conceituação, sobre o panorama pertinente do desenvolvimento humano e

do desenvolvimento como oportunidade. É irônico que isto se proponha no espaço

capitalista neoliberal, mas é a mesma ironia que aparece nos horizontes dos

direitos humanos, quase um espólio particular do Ocidente capitalista.

Por outro lado, percebia que

Talvez seja o resultado mais consistente das modernas teorias da aprendizagem a

descoberta de que aprender é uma das marcas mais típicas da competência

humana...

O tema se prestava, obviamente, para iracundas diatribes políticas, já que tudo

parecia girar em volta da "competência humana para trabalhar". Mas. após alguns rodeios,

152

DEMO, Pedro. Cf. os textos Aprendizagem reconstrutiva e Educação profissional - Desafio da

competência humana para trabalhar - encontráveis na Internet; ou seus livros da fase 1994-1998; em livros

mais recentes o tom muda bastante.

Page 145: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

145

Demo acabou valorizando a expressão, injetando-lhe, contudo, uns quantos recheios da sua

lavra pessoal (o resumo apertadíssimo é nosso):

construir a concepção importante de competência humana, fundada instrumentalmente no

manejo da educação e do conhecimento;

competência humana inclui competitividade, mas a esta jamais se reduz;

desafio da competência para a dimensão política, a "qualidade política";

combate à pobreza política - é problema mais profundo que a carência material;

emergência do sujeito histórico capaz de projeto próprio coletivo ;

cidadania é mal posta na assim dita "qualidade total";

competência humana é saber humanizar o conhecimento;

que não descambe em mera instrumentação da competitividade;

competência humana é apenas outro nome para a cidadania;

consciência crítica, sem o que não nasce o sujeito histórico;

um projeto alternativo, com base em educação e conhecimento críticos;

organização política transforma a consciência crítica em competência humana.

Este é um tema de tal relevância que seria uma pena se ele encalhasse em miragens

ideológicas ou manipulações pseudo-gerenciais, como a que segue:

Os gerentes continuam sendo escolhidos, na maioria dos casos, pela competência

técnica ou por decisões políticas, raramente pela competência humana. O gerente

emocionalmente inteligente tem capacidade para conduzir pessoas harmonizando-

as, para que produzam qualidade com baixo custo, levando à competitividade e ao

lucro. O nível de qualidade de vida dos funcionários traduz-se num baixo

absenteísmo, desperdício e retrabalho, além da supressão total de todo e qualquer

tipo de sabotagem, fatores muito presentes nas empresas que atuam sem

inteligência emocional153

.

O conceito de competência humana tem um leque de referências muito aberto e não

se contra-distingue nitidamente de outros afins como habilidade humana, competência

comunicativa e mesmo competência social. Goza, porém, de um uso bastante freqüente em

diversos idiomas, especialmente em inglês. Nas teorias gerenciais aparece em ligação com

os critérios de melhoria do relacionamento interpessoal nas empresas, que supostamente as

transformaria em "organizações aprendentes" (learning organizations). O Certificado de

Qualidade ISO 14000 se refere explicitamente a tais critérios. Alguns autores definem a

competência humana como "a natureza das novas competências que estão emergindo" e

falam de um novo modelo de competência. Acreditam que este será, cada vez mais, um dos

critérios de medida do prestígio e, por essa via, da própria competitividade das empresas154

.

É interessante observar que competência humana é uma das expressões que

contracenam, com certa freqüência, com competência técnica ou profissional, para

sublinhar a insuficiência desta, na ausência da humana. Por exemplo, um Colégio Lassalista

faz propaganda destacando que seus educadores procuram unir "zelo pela competência

humana e profissional". O verbete viaja desde discursos do Papa até folhetos de propaganda

153

De um texto dos Virtual Entrepreneuring Teams| - disponível na Internet, junho/2000. 154

"the nature of the new competencies which emerge". Cf. DOHERTY, P. & NYHAN, B.Human

Competence and Business Development. Emerging Patterns in European Companies. Berlim/Heidelberg,

Springer-Verlag, 1996 - ISBN: 3540199721.

Page 146: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

146

de cursos de reciclagem de municípios, por exemplo um de Curitiba, que define o conceito

da seguinte maneira:

COMPETÊNCIA HUMANA inclui:

- Saber intervir na realidade com autonomia e competência.

- Uma cultura de reconstrução permanente do conhecimento e doa saberes necessários à

competência humana.

- Desenvolver atitudes de competência emocional e político-social.

- Compreender a importância da aprendizagem permanente...

- Vivenciar o processo de reconstrução do conhecimento com autonomia individual e

coletiva.

- Desenvolver atitudes de pesquisa e de expressão elaborada do conhecimento.

- Vivenciar a proposta para, posteriormente, disseminá-la na Prefeitura Municipal de

Curitiba.

Competências sociais

A definição dos princípios faz parte de um momento inicial necessário para se

pensar na atualização de um projeto para a escola, voltado para a objetivação das

competências sociais, cognitivas, motoras, afetivas e intersubjetivas. A

intervenção pedagógica busca o aprofundamento dos saberes considerados

escolares e daqueles trazidos do social, ampliando as esferas de atuação dos

alunos. ( MEC- PCNs Ensino Médio)155

.

A presença do conceito de competências sociais nos textos do MEC - nessa

formulação ou outras similares - tem uma ligação comprovável com os de cidadania e

solidariedade. Considerando a ênfase explícita nesses dois tópicos nos textos sobre os

Temas Transversais, percebe-se uma tendência a tomar certa distância crítica do atrator

semântico "competitividade". Nota-se um cuidado em evitar tanto o tom politizante, como a

escorregada para dentro da perspectiva mercadológica. As duas cautelas merecem

encômios em textos desse tipo. Como veremos, havia tentações à mão, porque o conceito é

de farto emprego nas teorias gerenciais.

É importante perder o medo a conceitos que se referem explicitamente à

competência e à capacidade de tomar iniciativa. Não há nada de errado em falar

abertamente que a educação visa ajudar as pessoas a se tornarem empreendedoras. O apelo

à solidariedade só atinge a vida cotidiana das pessoas quando é relacionado com

transformações concretas e possíveis dos comportamentos sociais em que elas se

encontram. O ser humano é um ser de relações sociais concretas e não um sujeito receptivo

para mensagens que pouco têm a ver com elas. Este deveria ser um pressuposto óbvio para

uma pedagogia preocupada em juntar competência e sensibilidade social156

.

A escola evidentemente não tem influência direta em todos os fatores que

interferem na constituição da competência social. Alguns dos fatores principais

relacionados com o amadurecimento relacional e social das crianças e dos jovens não estão

sob o controle da escola. Basta pensar no papel formador da competência social que

representa uma família acolhedora e incentivadora, o apoio de pessoas criativas e

155

MEC EnsMédio - Linguagens., Códigos e Suas Tecnologias (p. 66). 156

Cf. STRIEDER, Roque. Educar para a iniciativa e a solidariedade. Ijuí, RS: Editora UNIJUÍ, 2000 (no

prelo).

Page 147: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

147

esperançadas, contextos de aprendizagem de hábitos sociais, o papel significativo da mídia

eletrônica na difusão de valores e anti-valores sociais.

A seguir vamos sintetizar e reelaborar uma "chuva de idéias" recolhidas numa

pesquisa relativamente ampla sobre aa expressão competência social em diversos idiomas,

na Internet.

O espírito de cooperação não se improvisa. Também a competência social precisa ser

aprendida.

O conceito de competência social geralmente é definido como um leque muito aberto de novas qualificações emergentes.

Na criação da competência social cabe um papel importante às sensações de prazer de estar juntos e ao sentimento de pertença recíproca.

O tema da competência social deve ser tomado como chance educativa para orientar

as pessoas conjuntamente para a competência, a capacidade de iniciativa, a coragem

de enfrentar desafios novos, e a preservação de uma acentuada sensibilidade social.

Os déficits sociais e os déficits pragmáticos estão associados, uma vez que o pragmatismo é parte da competência social.

Criar a sinergia que nos dará força para nos sentirmos socialmente interligados.

Alfabetização sociocultural é muito mais do que alfabetização no uso das novas

tecnologias.

É preciso que as pessoas aprendam a inserir-se em processos de estruturação e criação de novos sentidos socialmente perceptíveis e vivenciáveis.

É preciso dar aos jovens ocasiões de participar em atividades físicas e lúdicas agradáveis e não-competitivas para que o comportamento social positivo, ao qual se dá

o solene nome de competência social, não se concentre exclusivamente, nem

prioritariamente na formação de um agressivo ânimo de competitividade

mercadológica.

Relações humanas também se aprendem. Já não bastam as espontâneas...há o risco de ser presa fácil de relações calculadas, estratégias de manipulação...

Competência social significa responsabilidade, know-how flexível em certos tópicos,

prestígio, reconhecimento, responsabilidade.

Competência social é a habilidade de ampliar seus pontos de vista, de enxergar e sentir as necessidades dos demais, de ter êxito ao mesmo tempo em diversos níveis: o

profissional, o pessoal e o social.

Um elemento importante na competência social é saber avaliar a sua própria competência social. O lado pessoal da competência social não deve ser abandonado ao

jogo fortuito das circunstâncias. Pergunte-se até que ponto você é capaz de aceitar as

outras pessoas do jeito como elas são, de aprender a imaginar-se no lugar delas, de

procurar olhar o mundo com o olhar delas, de reconhecer o talento e as habilidades

alheias? competência social significa que deveríamos parar de preocupar-nos com

competir para ganhar vantagens sobre os demais, de comparar-nos com os demais

para calcular maneiras de dominá-las. Precisamos elaborar um conceito de

competência social que inclua a capacidade competitiva mas não tenha nela a sua

referência prioritária.

O segredo do sucesso em nossa sociedade consiste na harmonia da nossa mente,

intuição, sinceridade e habilidade para comunicar-se. Competência social significa que

Page 148: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

148

deveríamos integrar as nossas habilidades e chegar a uma verdadeira sinergia com os

outros. Conecte a sua competência social com a sua competência profissional.

Não cair na mediocridade relacional de um modelo comunicativo caracterizável como

modelo de processamento da informação aplicado ao comportamento social.... input,

codificação, programação, processamento central, estágio de decisões, ouput

A competência social implica predominantemente um modelo cognitivo, que confira muita importância ao lado emocional.

Sentir-se ligado, estar-em-relação, viver relacionado humana e tecnologicamente, assumir um papel estruturador em relacionamentos coletivos sem tornar-se chato.

Competência social deve incluir retroalimentações inovadoras, 'transformações

significativas das condições iiniviais (teoria do caos), níveis relacionais não previstos e

planejados mas randômicos (dar lugar à auto-organização do vivo).

Geralmente existe em cada sociedade um consenso relativamente amplo acerca do que é considerado desejável e que serve de base para um determinado leque de relações

consideradas socialmente positivas. Não se trata de encarar essas expectativas

relacionais da sociedade como um código ideal de comportamentos. Muito ao

contrário. A competência social deve ser entendida como capacidade criativa para

contribuir para a transformação dos comportamentos e da cultura socialmente existem,

visando torná-la mais apta para ensejar a felicidade das pessoas. Mas as expetativas

sociais existentes não devem ser desconsideradas, porque elas fazem parte das

condições de possibilidade da transformação dos comportamentos sociais.

Para chocar, por vezes a competência social deve ser definida a partir da sua ausência, ou seja, competência social é a superação da incompetência social.

Não existe, ao menos por ora, nenhuma definição de competência social aceita

universalmente. Mas ao ouvir a expressão, muita gente já se dá conta de que ela se refere a um conjunto de desafios dos quais já experimentaram algo em sua própria

vida.

Vamos trazer agora a tradução de alguns breves textos sobre competência social mais

ligados ao contexto empresarial. Comecemos com o sociólogo austríaco Otto Nigsch,

que tenta responder à pergunta: Que é competência social?157

Hoje em dia as empresas esperam de seus futuros empregados um alto grau da

assim chamada competência social. Em cursos de reciclagem de trabalhadores a

questão da competência social é abordada de várias maneiras. Existe, sem dúvida,

certa confusão semântica sobre o assunto. (...)

No jargão das empresas, competência social é, sobretudo, a habilidade dos

empregados para identificar-se com os interesses e objetivos da empresa em que

trabalham, e só depois pode ter também outros sentidos somo um padrão de

pertencimento a uma certa classe social ou setor profissional, e só por último como

estado/processo de consciência reflexiva acerca de relacionamentos e perfis

sociais, ou a capacidade de adaptar-se a diferentes situações sociais.

Deste modo, a expressão competência social na realidade forma parte de dois

universos de discurso bastante diferentes. Por um lado, forma parte da retórica

157

NIGSCH, Otto, Was ist Sozialkompetenz ? Österreichische Zeitschrift für Soziologie, nº 1 / 99 -

disponível na Internet, junho/2000.

Page 149: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

149

administrativa de novas teorias gerenciais que propõem novas estratégias para

tornar as empresas mais competitivas, incluindo a dimensão participativa humana.

Por outro lado, a expressão competência social se refere à melhoria de um

conjunto de habilidades comunicativas e relacionais das pessoas, seja no trabalho,

seja na vida social em geral.

Mas o que queremos dizer com competência social? Nossa definição provisória de

competência social é: possuir e saber usar a habilidade de integrar pensamento,

emoção e comportamento para cumprir tarefas sociais e obter resultados que sejam

valorizados pelo contexto sociocultural em que as pessoas se encontram. Num

conjunto escolar, essas tarefas e resultados incluem saber acessar com êxito o

currículo da escola, satisfazer necessidades pessoais de cunho social emocional, e

desenvolver aptidões e atitudes que sejam valorizadas para além da escola.

Contextos diferentes requerem e valorizam competências sociais muito diferentes.

Comportamentos que são disfuncionais e reprovados num contexto talvez sejam

funcionais e aprovados em outro contexto. A pessoa socialmente competente é

capaz de selecionar e controlar, com o pensamento e a emoção, quais

comportamentos evitar ou suprimir, e quais utilizar e incrementar, para chegar aos

objetivos que se propõem elas mesmas ou que outros/as lhes prescrevem.

Segue um texto auto-promocional de um Centro para Competência Social da

Alemanha158

:

Hoje não bastam habilidades profissionais e técnicas para atender as exigências

do mercado de trabalho. Para nomear uma série de novas aptidões sociais

requeridas pelo contexto flexibilizado do mundo do trabalho foi criado o conceito

de competência social. Ele não se refere apenas a um conjunto de novas

qualificações emergentes. Refere-se sobretudo à mudança requerida na capacidade

das pessoas de se relacionarem de modo flexível e inovador em contextos sociais

submetidos a constante transformação. Por exemplo: comunicação inter-humana

efetiva, capacidade de argumentação, ser confiável, coerência e autenticidade

como base da confiança recíproca, sensibilidade para mudanças comportamentais,

trabalho construtivo em equipe, a capacidade de relacionar auto-estima e projetos

pessoais com contextos de colaboração coletiva, saber expressar críticas e

exigências em linguagem positiva, saber organizar a sua vida e seus

relacionamentos de modo a não magoar constantemente os demais, saber utilizar

horários estritos sem entrar em estado de estresse.

Os velhos conceitos de aptidões ou habilidades sociais devem ser atualizados em

confronto com o número crescente de novas teorias e pesquisas sobre a

competência social. As dimensões cognitivas e comportamentais dos processos de

aprendizagem devem ser vistos de maneira unificada. Hoje o cultivo de

competências sociais faz parte da "pedagogia da empresa"

Para encerrar esta seção nos parece interessante mencionar que uma das emendas ao

assim chamado Toque Inicial (Head Start - linhas mestras oficiais para o início da

158

ALTRICHTER, Herbert, Kommentar zum Vorschlagpapier "Zentrum für soziale Kompetenz" Ver

também WAGNER, Franz, Sozialkompetenz - Disponível na Internet, junho/2000.

Page 150: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

150

escolaridade, nos EUA), votadas pelo Congresso norte-americano em 1998, diz

literalmente:

(Verificar) se os programas do Head Start têm, em termos gerais, impacto

consistente com a sua finalidade principal que é a de incrementar a competência

social das crianças159

.

Aprendizagem social

Como fizemos na seção anterior, vamos a uma "chuva de idéias" colhidas e

reelaboradas a partir de pesquisa sobre os verbetes na Internet.

Aprendizagem social é a mudança relativamente permanente na capacidade para

determinados comportamentos. Mudança duradoura dos mecanismos de

comportamento envolvendo estímulos e/ou respostas resultantes de uma experiência

anterior com estímulos e respostas similares (definição behaviorista) - Claro que sobre

a aprendizagem definida desse jeito se poderia afirmar que ela "é relativamente

incomum na natureza".

Aprendizagem social evolucionária: dentro da Evolução a aprendizagem social cumpre uma função adaptativa. Muitos animais tiraram enorme vantagem evolutiva do

seu potencial de aprendizagem social. Na evolução da espécie humana, a neotenia [da

qual trataremos em outro capítulo], ou seja, o nascimento "prematuro" e

"despreparado", dispôs o ser humano para uma aprendizagem extra-uterina que

envolve suma flexibilidade adaptativa e enorme dependência cognitiva do meio-

ambiente natural e social.

A cultura humana nada mais é do que uma complexa capacidade adaptativa das linguagens e dos campos do sentido.

A aprendizagem social é especialmente importante para poder lidar com variações

ambientais imprevistas, tanto sob ponto de vista social-humano, como em relação às

variações espaciais e temporais.

A aprendizagem social deve tornar-se um recurso para economizar o uso de energias humanas no constante enfrentamento de desafios que implicam tentativa e erro

A aprendizagem social depende da conexão com redes horizontalmente estruturadas de intercâmbio de experiências de aprendizagem e conhecimentos adquiridos.

Incentivos para a aprendizagem social são importantes para criar um clima de

confiança e colaboração que fomente a aprendizagem social.

Toda aprendizagem é social, mas hoje as aprendizagens devem tornar-se

conscientemente sociais, porque estamos imersos numa aceleração dos potenciais de

conectividade tecnológica e inter-humana da sociedade do conhecimento.

Toda a competência social precisa ter um enraizamento em contextos locais concretos.

A inteligência social é fundamentalmente inteligência localizada.

159

"...if, overall, the Head Start programs have impacts consistent with their primary goal of increasing the

social competence of children…" (Head Start Amendments of 1998).

Page 151: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

151

Inteligência social

Os conceitos de "inteligência social"(IS)160

e "inteligência socialmente situada" são

menos freqüentes em textos relacionados com a educação, no Brasil. Seu uso em inglês é

relativamente abundante. Mas, IS ainda não parece haver emplacado como categoria

analítica, dada a enorme discrepância sobre indicadores aferíveis. Vamos limitar-nos, por

isso, a algumas observações, mais com o propósito de sentirmos que tipo de questões são

ventiladas mediante uma certa profusão de conceitos similares.

As tentativas de circunscrever o conceito de IS apontam para questões como:

- perspicácia e iniciativa no relacionamento social;

- sagacidade para a pronta captação do meio social;

- aguçamento das preocupações com os problemas relacionados com a melhoria

da convivialidade humana ; etc.

Portanto, é um conceito bastante próximo ao de competência social e se presta para

falar das características distintivas de uma aguda pró-socialidade ou um conjunto de

propensões, mais ou menos espontâneas, para um comportamento socialmente benfazejo e

uma visão da realidade condizente com semelhantes comportamentos. Definida desta

maneira, a IS serve como referencial, ou uma espécie de modelo interpretativo, para

averiguar teores comportamentais diferenciados de sensibilidade social. Na ponta dos

critérios mínimos, o conceito de IS serve para ironizar e criticar a estupidez dos

comportamentos auto-destrutivos ou ostensivamente perniciosos. O indivíduo chato, o que

irradia uma "aura ruim", carece evidentemente de IS.

Um uso expressivo da noção de IS precisa incluir um conjunto de qualidades

comportamentais explicitamente ligadas à melhoria da qualidade de vida dos indivíduos e

seus contextos sociais. Esta ênfase nos parece analiticamente significativa. Mas convém

acrescentar, de imediato, um alerta para que quaisquer indicadores dessa compaixão

interpessoal, que se pretendam distinguir como características pesquisáveis, não derrapem

para dentro de pré-julgamentos e/ou preconceitos marcados por posicionamentos

ideológicos e sectários.

Dentro de uma perspectiva de aproximação do conceito de IS ao de sensibilidade

social e capacidade solidária, podemos explicitar alguns dos seus ingredientes básicos:

1. saber avaliar e enxergar para além dos mitos e preconceitos culturalmente

herdados e/ou impostos pelas formas de organização social imperantes;

2. entender a necessidade de um constante retorno reflexivo da nossa inteligência

sobre critérios relacionados a qualidade de vida e a felicidade própria e alheia;

3. saber discernir oportunidades propícias e obstáculos na melhoria do

relacionamento interpessoal;

4. estar aberto ao uso, não ingênuo mas crítico, de termos e expressões que

favoreçam a criação de campos semânticos positivos e motivadores de

relacionamentos interpessoais humanamente saudáveis.

Em resumo, o conceito de IS, embora não tenha prosperado como "instrumento" analítico,

parece proveitoso para remexer os significados - muitas vezes já seqüestrados por

ideologias - de expressões como "consciência social", "compromisso social", "engajamento

160

Para uma história desse conceito e bibliografia atinente, ver: ELIANE GERK-CARNEIRO, E. e ROSA

ZIVIANI, C. A pessoa inteligente no mundo social Disponível na Internet, junho/2000.

Page 152: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

152

social", etc. O conceito de IS também aponta para a necessidade de uma re-aprendizagem

da convivialidade e socialidade humana por toda a vida. Tomado nessa amplitude, o

conceito de IS se torna dinamicamente mais amplo que o de consciência política, opção

ideológica, motivação psicossocial e similares.

Page 153: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

153

Capítulo 7

O PAPEL COGNITIVO E SOCIAL DA SENSIBILIDADE

O progresso de uma civilização se mede

pelo aumento da sensibilidade para o outro.

Teilhard de Chardin

Sensibilidade e socialidade humana

A convivência social humana precisa ser construída com empenho explícito em

cada contexto histórico. Ela não conta com suportes instintivos ou "naturais" de índole

genética, nem surge espontaneamente em aprendizados mais ou menos formalistas. Dito de

forma ainda mais incisiva: para tornar-se gente civilizada - o que quer dizer: pessoas

buscadoras da felicidade própria e alheia - precisamos aprender a gostar explicitamente

deste mundo e desta vida. A individualidade pró-social precisa nascer e estruturar-se junto

com o conhecimento. Em francês, conhecer e conhecimento se fala co-nascer, co-

nascimento (connaître, connaissance).

Nosso propósito, neste capítulo, é bastante modesto, pois queremos apenas

predispor-nos um pouco melhor para o que virá depois, a saber, um tratamento específico

do tema da epistemologia solidária. Visamos, em primeiro lugar, plantar a inquietude

acerca da carência de conceitos e linguagens sobre o perigo de desencontro entre as

linguagens sobre a competência e as que pretendem explicitar as urgências solidárias. Em

segundo lugar, buscaremos sinalizar alguns indícios de que a tematização explícita da

sensibilidade social e/ou solidária começa a ser demandada pelos/as educadores/as. Num

terceiro momento juntamos alguns fragmentos de meditação sobre o tema

O ser humano é social no sentido de que tem potenciais para transformar-se em ser

convivencial, se as circunstâncias da sua vida propiciarem essa conversão em ser social..

Esta não lhe advém de predisposições genéticas instintivas, a não ser sob a forma de uma

potencialidade aberta à aprendizagem da socialidade. Requer-se para isso um verdadeiro

desenvolvimento, um crescimento comunicativo para dentro da socialidade. Sem processos

de socialização somos socialmente incompetentes e relacionalmente inviáveis. E é no cerne

dessa questão crucial da nossa habilitação para a convivência que se corre o risco do

desencontro entre a competência para sobreviver e a competência para conviver

socialmente.

As expressões já incorporadas, de alguma forma, na renovação das linguagens

pedagógicas - e que registramos no capítulo anterior - colocam essa problemática de

maneira bastante inovadora. Mas o risco do desencontro continua presente nas próprias

linguagens na medida em que elas enfatizam, por um lado, a relevância das competências

(ou das habilidades) humanas, sociais, ou sócio-afetivas, mas, depois, dão um salto quase

acrobático para conceitos éticos como cidadania e solidariedade (salto e "aterrissagem" que

ficam, aliás, muito por conta dos chamados "temas transversais").

Nossa pergunta é se não existe aí uma espécie de elo-que-falta e que consistiria num

trabalho mais direto com a ponte experiencial entre a competência e a preparação humana

Page 154: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

154

para valores solidários. Quais são os apoios necessários, enquanto experiência

peronalizada da importância e da validez comprovada dos valores solidários, para que as

pessoas desenvolvam uma sensibilidade social consistente e perseverante?

Arriscamos apostar positivamente na expextativa de que, no futuro próximo, haverá

uma ênfase crescente nesse elo faltante, ou nessa carência. Só temos para ele um nome

provisório: o de sensibilidade solidária. É preciso devolver à sensibilidade um papel

fundante, uma dimensão primordial e generativa no conhecimento. É uma temática que

exigirá certamente uma pluralidade de linguagens tentativas.

Oxalá se chegue pronto a retomar a própria noção de consciência, porventura em

direção a algo parecido a "conciência (socialmente) sensível". O tema da "razão sensível" já

desponta por diversos lados. No meio disso estarão sendo remexidas, provavelmente,

algumas questões antropológicas fundamentais, como a da própria concepção moderna da

razão e das racionalidades.

Mas é preciso preservar uma certa frieza analítica diante da enxurrada de festejos

verbais que ameaça sufocar-nos. A sensibilidade social é um tema tão candente que é bom

prevenir-se contra a banalização do assunto numa espécie de gelatina geral chamada

simplesmente "sensibilidade", sem mais explicações.

A educação liberal atribuía um papel mediador peculiar à sensibilidade, como deixa

bastante claro a seguinte citação de Wright Mills161

:

Na educação liberal existe uma escala no que se refere a habilidades e valores.

Numa ponta situam-se as capacitações, na outra, os valores. Mas no meio dessa

escala que convém situar o que poderíamos chamar sensibilidades, e elas são que

há de mais importante para o público no sentido clássico. (...) (trata-se) daquelas

sensibilidades culturais, políticas e técnicas que transformam as pessoas em

genuínos membros da sociedade civil, posto que são elas que entrelaçam a

capacitação em habilidades e a educação em valores. (...) E o produto final dessa

educação das sensibilidades redunda simplesmente no homem e na mulher que

aprendeu a auto-educar-se e auto-cultivar-se.

Apesar de o percurso evolutivo das propostas educacionais ser geralmente lento,

estivemos assistindo, nas últimas duas a três décadas, a uma seqüência e mistura

surpreendente de ênfases que, apesar da mixórdia, testemunha a vitalidade das buscas de

atualização. Com uma dose de humor podemos constatar que já tivemos um pouco de tudo:

- predomínio do conhecimento intelectual, a fase da valorização da memória. o destaque ao

raciocínio lógico, a idéia da construção do conhecimento, os estudos sobre o processo

cognitivo, as técnicas de transmissão e a da tecnologia na aprendizagem, a construção do

conhecimento para a construção do sujeito. Como nos resume Vera Rudge Werneck162

,

Chega-se agora a uma nova constatação: é preciso educar a sensibilidade. Como

por encanto, ao mesmo tempo, surgiram de todos os lados educadores dizendo a

mesma coisa: não basta desenvolver a razão. É preciso estimular, desenvolver,

161

WRIGHT MILLS C., The Power Elite (A Elite do Poder). Oxford Univ. Press, 1956 (Capítulo: A

sociedade de massas). 162

WERNECK, Vera Rudge. A educação da sensibilidade. Texto disponível na Internet,

junho/2000.

Page 155: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

155

aprimorar a sensibilidade do homem do futuro. De pouco adianta o processo

educacional trabalhar a racionalidade do aluno se o valor, o que importa na vida,

não é conhecido pela classicamente chamada inteligência, mas pela sensibilidade.

Percebe-se agora ser a sensibilidade uma faculdade cognitiva, um meio para

conhecerem-se os valores, ou seja, o que de qualquer modo vale para o ser

humano.

Corre-se, porém, o risco de apenas multiplicar fraseologia, mais ou menos,

repetitiva e superficial sobre o tema da sensibilidade. Trata-se de um conceito tão

importante e analiticamente exigente que não convém desgastá-lo mediante a mera

multiplicação de frases como: sensibilidade para a verdade. sensibilidade para a beleza,

sensibilidade para a moral, sensibilidade para o sagrado. sensibilidade para o valor do

símbolo, sensibilidade para o "outro", para a pessoa do próximo com seus sentimentos,

necessidades e peculiaridades, enfim, sensibilidade para o crescimento afetivo e social.

Vamos por isso começar "mais embaixo" e ir criando aos poucos um referencial

exigente para os conceitos de sensibilidade humana, sensibilidade social e sensibilidade

solidária.

O mapeamento do genoma humano e o conceito de corporeidade viva

Na era da decodificação do genoma humano corremos o risco de novos

reducionismos. Tanto as biociêncais, quanto as ciências humanas e sociais precisam de

conceitos que recubram, simultaneamente, toda a complexidade dos procesos bio-

orgânicos, psíquicos e sócio-relacionais da nossa corporeidade viva. A interferência tanto

na subjetividade das pessoas, quanto em suas bio-sócio-ecologias pode partir de qualquer

um desses níveis, inseparáveis na prática.

O "humano", enquanto conquista civilizatória, não é um simples resultado de

heranças filogenéticas da evolução da nossa espécie. As diversas vertentes de teoria

evolucionária do conhecimento e dos comportamentos nos mostraram como são

indissociáveis os fenômenos bio-orgânicos e os sócio-culturais163

. Não parece consistente

nenhuma pretensão de erigir a especificidade humana como ruptura totalmente inovadora e

distanciamento do resto do reino da vida. Se muitas vezes se quis fundamentar um

exacerbado antropocentrismo a partir da ênfase unilateral na assim chamada cultura, hoje

corre-se o risco de um biologismo banalizador, que aliás entra em choque com os avanços

das próprias biociências. Nesse contexto vale a pena retomar uma conceituação exigente de

corporeidade viva.

Ao contrário do que, por vezes, parecem insinuar os noticiários superficiais e alguns

ufanistas da bio-engenharia, a assim chamada decodificão do genoma humano não significa

a descoberta de "tábuas da lei" biológica e comportamental da nossa espécie. Representa

tão somente - e isso é certamente fantástico - um passo importante para develar algo das

predisposições bio-orgânicas da nossa corporeidade.. Esta, no entanto, não está circunscrita

aos fluxos comunicativos intra-corporais ligados a fatores genéticos. E mesmo esses não

163

Cf. LORENZ, Konrad. Os fundamentos da etologia. São Paulo: Editora da UNESP. 1975; do mesmo autor

Die Rückseite des Spiegels - Versuch einer Naturgeschichte menschlichen Erkennens. München: DTV, 1977.

Encontra-se facilmente um bibliografia apreciável sobre Evolutionary Epistemology, e verbetes similares, na

Internet.

Page 156: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

156

parecem, de forma alguma, interpretáveis dentro do cauce estreito de causações lineares,

atribuíveis a genes individuais. Também os genes funcionam "em rede". Não, porém, como

rede estritamente computacional. A teia da vida inclui inumeráveis novelos ou bucles

recursivos de retroalimentação. As funções ignoradas do genoma humano continuam sendo

tantas que - como se começa a reconhecer - o próprio nível bio-físico da corporeidade

demanda uma análise complexa de múltiplos fatores interligados.

Falar de corporeidade viva e historicamente situada significa englobar, no próprio

conceito de corporeidade, além dos níveis, até certo ponto, bio-fisicamente analisáveis por

sofisticados instrumentos, também todos os demais fluxos comunicativos da energia, que

nos mantêm em processo de vitalidade ativa. Somos, enquanto corporeidade viva, um

processo de vitalidade sumamente complexo, porque ele inclui o querer continuar vivos

(sobrevivência estrita), o querer vida em aumento (autopoiése dinâmica) e o querer achar

nosso lugar em meio aos inúmeros processos de vida que nos circundam (por exemplo, a

dimensão comunicativa do desejo, assunto que nos ocuprá mais adiante neste livro).

Somos seres simbolizadores, seres gestuais, seres relacionais, enfim, seres bio-

sócio-culturais, nos quais os níveis das múltiplas linguagens - todas elas conformadoras da

corporeidade viva e historicamente situada - englobam, num único sistema dinâmico e

complexo, integrado por uma quantidade enorme de subsistemas comunicativos no ser

individuado e nos bio-ecosistemas que formam seu nicho vital.

As descobertas científicas relativas ao genoma humano são, sem dúvida,

importantíssimas enquanto vislumbre de predisposições bio-orgânicas. Mas a modéstia

continua sendo uma premissa obrigatória da pesquisa, porque a auto-organização do vivo

não se deixa linearizar numa concepção estreita de relações causa-efeito. Aliás, convém

recordar que, no cerne do próprio conceito de complexidade, se re-equaciona

profundamente o clássico princípio da causalidade, que foi estreitado pelo cientificismo em

direção ao predomínio exclusivo de apenas uma - a causalidade eficiente - das quatro

causalidades da filosofia clássica.

Razões para falar abertamente da sensibilidade social

...a gente só se torna sensível com a condição de ter sido sensibilizado - dito de

outro modo, se a sensibilidade concreta não é um dado natural universal e

intemporal e se uma história da sensibilidade não é apenas possível mas

necessária, é bastante normal que a imensa maioria dos seres humanos seja

insensível às questões filosóficas, sem com isso tacharmos rodo o mundo de

hipócrita . Jean Pierre LALLOZ164.

Sobre o pano de fundo dessa breve insistência num conceito exigente e complexo de

corporeidade viva, podemos agora avançar mais rapidamente para dentro da questão da

sensibiliade social. Convém iniciar com um alerta: sensibilidade é um termo resvaladiço.

Com razão alguns apontam para o risco de cair em trivializações sentimentalonas de uma

questão em si altamente relevante.

164

LALLOZ,Jean Pierre, Sincérité et vérité, texto disponível na Internet, junho/2000. (... on peut seulement

être sensible à la condition d'avoir été sensibilisé - autrement dit si la sensibilité concrète n'est pas un donné

naturel universel et intemporel et qu'une histoire de la sensibilité est non seulement possible mais nécessaire,

vous allez trouver normal que l'immense majorité des êtres humains reste insensible aux questions

philosophiques, sans qu'on puisse pour autant taxer d'hypocrisie la terre entière).

Page 157: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

157

Boa parte da infindável oferta de literatura de auto-ajuda opera com esquemas

extremamente simplistas e de escasso valor científico. Por isso mesmo, o consumo

impressionante desse tipo de mercadoria requer uma análise atenta de carências sócio-

afetivas reais, mas também a atenção à força irradiadora de certos campos semânticos, que

provavelmente cumprem o papel de "suplência de sentido" num mundo, no qual os campos

de sentido, socialmente realizáveis, porque individualmente apropriáveis, estão sumamente

rarefeitos.

Hoje a hiperexcitação coexiste com a dessensibilização e a indiferença. As elites se

"enmuralharam" há muito em seus privilégios. As capas médias multiplicam os muros por

toda parte. Mesmo antes de circundarem as suas casas (aliás, muitos começam a construção

com o muro), os muros já existem nas mentes e nos corações. Os poucos pontos de

encontro entre setores sociais diferentes são aquelas interfaces do consumo que podem ser

ainda compartidas por (quase) todos: os shopping centers, os hipermercados e alguns

lugares de coletivização do lazer como as praias, os estádios esportivos, os poucos cinemas

que sobram. (na Europa, o transporte coletivo dos trens).

A hiper-excitação mercadológica de sensações - muitas vezes intensas e

relativamente acessíveis, embora geralmente transitórias e. por último, tendencialmente

frustrantes - forma parte da "estetização" das relações mercantis. De pouco serve repetir,

em nome de uma suposta consciência crítica social, que se trata de fenômenos de

"infantilização regressiva". Precisamos entender por que funcionam tão bem e quais são os

vazios na convivialidade humana, que são parcialmente preenchidos pela indústria das

sensações.

Em linhas gerais, tem-se a impressão de que o pensamento crítico tem preferido

acomodar-se em estratégias de resistência. Talvez conviesse analisar a produção

multifacética de excitações da sensibilidade como parte integrante de um vasto fenômeno,

fundamentalmente positivo, de desconstrução de antigos hábitos de inibição da

sensualidade humana e da pesada ideologia moralista contrária à afirmação do direito

humano ao prazer. E também como sintoma da passagem a um mundo positivamente

pluriawnauL. A música - esse dilúvio de prazerosidade massageante - é talvez um dos

aspectos mais reveladores dessa passagem à plurisensualidade no cotidiano.

É correto continuar ajuizando, como socialmente nociva, a eliminação dos freios

coercitivos da comunicação e dos comportamentos, que destruíram tanto potencial sócio-

afetivo em muitos contextos familiares e sociais? A repressão afetiva não foi apenas o

apanágio de ambientes culturais religiosos. Também as ideologias de esquerda se

mostraram freqüentemente repressivas no tocante à manifetação aberta do apreço às

emoções. Corpo, sexo, prazer e temas similares foram tabus básicos em toda um tramação

de supostos valores éticos e sociais pregados por muitas gera;cões.

Recentemente, uma propaganda de um Shopping Center insistia na seguinte

imagem: não somos um mero centro de venda de produtos de alta qualidade, somos um

espaço de experiências de vida de alta qualidade. Não somos apenas um centro no qual

você vai conhecer muitos produtos, somos um centro no qual você vai descobrir o quanto

podem aumentar os seus desejos.

Francamente, se alguém quisesse chacotear semelhante publicidade como o cúmulo

da exploração dos sentimentos humanos provavelmente teria entendido muito pouco do que

está acontecendo hoje no mundo do consumo. O caso citado foi colhido de uma revista

alemã e a expressão composta "experiências de vida de alta qualidade" utilizava um termo

vivencialmente apelativo: Qualittätserlebnisse (algo assim como "avivamento experiencial

Page 158: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

158

da qualidade"). A publicidade fala a um ser humano que os livros didáticos praticamente

desconhecem: o ser humano experiencial. Será que não é preciso enraizar nesse nível as

experiências de aprendizagem e da sensibilidade soludária?

O "superego" produzido pelos ambientes de intenso consumo é um fenômeno social

extremamente complexo no qual se entrelaçam uma quantidade apreciável de elementos

cognitivos (não simples informação, mas formas de conhecimento novo), um entrejogo

mutável de sensações e uma intensa produção de desejos, que não se deixam reduzir a

meras relações competitivas (que certamente também existem, e como!), porque são, em

boa parte, desejos de imersão em mundos do sentido experiencialmente desejado. Em

resumo, muita gente se sente sumamente bem, como pessoas humanas, nesses ambientes

coletivos do consumo moderno. A crítica azeda ao consumismo não tem sabido encarar

positivamente esses fenômenos relacionais da atualidade. Quando, mais adiante,

abordarmos o tema do consumo, veremos que o assunto não deve ser banalizado,

No mundo de hoje coexistem, em muitas situações concretas, formas de excitação

com chances de crescimento na sensibilidade. Não todo o crescimento em sensibilidade

deve ser cobrado imediatamente como sensibilidade voltada para o social. Isto seria uma

espécie de exagero moralista facilmente imbuído de estreiteza ideológico-política. As

pessoas se excitam pelos mais variados motivos e suas experiências de sensibilização

devem ser avaliadas fundamentalmente enquanto incremento da busca pessoal da

felicidade, como direito de todas as pessoas.

Num mundo no qual se apregoam da maneira acima referida os centros inteiramente

voltados para a circulação de bens e serviços, como poderia a escola desconsiderar as

formas de socialização do desejo e de interrelação das experiências humanas?

Na miséria extrema nem "solidariedade mecânica" funciona

Retomemos, sem muita atenção a nuanças, o conceito durkheimiano de

"solidariedade mecânica". É a solidariedade culturalmente óbvia e "mais que natural",

porque é a que se dá naturalmente entre semelhantes ou iguais. Émile Durkheim criou o

conceito de "solidariedade mecânica" para mostrar que ela não basta, e pode ser até

socialmente nociva (por exemplo, a corporativista) quando se contrapõe ao objetivo de uma

coesão mais ampla da sociedade (que ele concebia, entenda-se bem, dentro do modelo

spenceriano de organismo social). Poderíamos chamá-la também de solidariedade quase-

instintiva. Aplicável, portanto, à auto-preservação familiar, tribal, grupal e corporativista.

A terrível útilidade desse conceito irrompe da realidade da miséria extrema.

Noticiário da TV Globo de 30/06/2000: mulher acusada de vender sua filha-bebê por 2

quilos de comida. Fulana de tal já teve anteriormente 20 filhos de três homens diferentes.

Vizinhos a denunciaram à polícia (notícia com a imagem de uma mulher supostamente de

43, mas com aparência de quase anciã). Seria possível, diante de um caso desses, que se lhe

aplicasse alguma crítica moralista, do tipo: por que tanto descontrole sexual? Perguntamos:

Que mais teve ela na vida?

O caso pasmoso revela a fragilidade dos vínculos mais primários de solidariedade.

O exemplo pode atrapalhar-nos a visão por suas características extremas. Mas uma ruptura

semelhante dos vínculos mais elementares da solidariedade imediata - de curto alcance, é

claro - está acontecendo um pouco por todo lado no mundo de hoje. Quantas mulheres

pobres tiveram que "bancar", com sacrifícios extremos, a preservação dessa fidelidade

solidária, na qual muitas outras espécies nos superam. Lembremos quadros angustiantes da

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159

África, das favelas e "villa-miserias" da América Latina, e das tragédias bélicas mundo

afora.

Não existe imprinting filogenético que garanta a proteção dos "semelhantes", como

salvaguarda da solidariedade instintiva ou porventura genética generalizável, em situações

de miséria extrema e luta cega pela sobrevivência. As exceções heróicas, testemunhadas

por sobreviventes de campos de concentração, não se prestam para qualquer generalização.

Pelo visto, é inegável a degradação solidária devida à total ausência de condições humanas

mínimas para comportamentos solidários elementares.

Nossa espécie continua lenta em adquirir sensibilidade "humana"

Nos Estados Unidos da América do Norte (e não só por lá), ainda em meados do

século XIX, era bastante comum entre os brancos a convicção de que negro-escravo não

tem sentimentos humanos. Houve, porém, uma escritora jovem, de família puritana, que

executou a façanha de provar que escravo também tem sentimentos. Aliás, "provar" não é

bem a termo correto.. Ela fez muito mais que isso. Ela fez sentir, o que é bem mais do que

provar, porque é quase convencer. Fez que muitos sentissem que era verdade que os negros

escravos também tinham sentimentos. Uma de suas pesonagens admitia que eles até têm

"sentimentos cristãos".

A escritora norte-americana Harriet Stowe (1811-1896) construiu, em A Cabana do

Pai Tomás (1852), uma estória que mostrava, de forma impactante, como de fato muitos

brancos achavam que "Esses negros não são como nós", gente sensível. Mostrou que isso

era algo mais brutal que os próprios maus tratos da escravidão. Era a falta de

reconhecimento da plena humanidade dos negros, e era nisso que consistia a raiz mais

abominável e hedionda da aceitação da escravidão como algo normal. Era isso que

precisava ser des-contruído. e ela o conseguiu mediante a desconstrução e reconstrução dos

sentimentos de suas personagens. O livro influenciou profundamente a consciência popular

contra a escravidão. Traduzido a mais de 20 idiomas, foi prontamente adaptado ao teatro e

enchia as platéias da época. Abraham Lincoln, o presidente abolicionista que morreu

assassinado, enalteceu como "a jovem que provocou a guerra civil"165

.

No seu encontro com teólogos latino-americanos em Piracicaba, em 1991, o famoso

pensador René Girard expressou, numa roda de conversa, o pensamento chocante de que, se

o transplante de órgãos humanos tivesse sido uma técnica conhecida pelos egípcios, gregos

e romanos, ou mesmo pelos espanhóis e portugueses que descobriram a América Latina e o

Brasil, sem dúvida alguma eles teriam usado, sem maiores escrúpulos, os corpos de

escravos como "bancos de órgãos". Comentário de um integrante do grupo: É, a gente não

quer se lembrar de quantas coisas horríveis já foram consideradas como perfeitamente

aceitáveis!.

Historicamente, o cultivo da sensibilidade humana. é efetivamente bastante recente.

Como vimos no capítulo sobre a dignidade humana, muitas brutalidades arrepiantes do

século XX foram praticadas por gente que se considerava "normal" (por exemplo, as

barbaridades do Holocausto e as das guerras e guerrilhas). Algumas dessas coisas a gente

165

STOWE, Harriet B., A Cabana do Pai Tomás. (Texto em português de Herberto Sales). Rio de Janeiro:

Edições de Ouro, 13ª ed., 1969. Lincoln se refere,obviamente, à Guerra da Secessão, na qual se enfrentaram o

Leste-Norte mais "modernizante", com o olho na industrialização e o "livre" mercado da mão de obra, e o Sul

ainda aferrado ao escravagismo.

Page 160: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

160

chegou a ver de perto. Dá vontade de traçar um paralelo com a higiene corporal que, como

é sabido, evoluiu muito lentamente, sobretudo na Europa. A "higiene social", sob a forma

da sensação de repúdio psico-somático a espetáculos de tortura, execuções públicas e outras

cenas, que hoje nos parecem instintivamente horripilantes, evoluiu e ainda está evoluindo

de maneira assustadoramente lenta. Ainda hoje se pratica a tortura, existem massacres

coletivos, continua a violência das guerras e campeia a violência urbana.

Mas a maior prova do atraso da nossa espécie, no tocante à sensibilidade,

adjetivável como social no sentido amplo e massivo, é a invisibilização da miséria. A

cultura do mercado tende a invisibilizar a pobreza. Para amplos setores das populações dos

países ricos e para os setores acomodados de países, como o Brasil, os pobres são tão ou

mais imperceptíveis como as entidades imaginárias. Antigamente, anjos e demônios eram

seres praticamente ao alcance das percepções sensoriais daqueles que acreditavam na sua

existência. O fenômeno brutal e amplíssimo da exclusão social é para muitos "mais

distante" dos que os anjos, santos e demônios na cultura religiosa tradicional.

A imperceptibilidade dos seres humanos marginalizados é provavelmente maior na

experiência cotidiana dos ricos e acomodados. Para perceber os pobres requer-se muita

força no olhar do coração. E como tentou demonstrar José Saramago no seu Ensaio sobre

a cegueira, hoje a humanidade está ameaçada de cegeira generalizada. Seu testemunho, em

seu discurso ao receber o Prêmio Nobel, merece ser evocado:

Tudo o que fiz foi com plena consciência de um ser humano que busca relatar sua

identidade. Preciso indagar que diabos estou fazendo aqui na vida, na sociedade e

na história.

Cresce a ênfaze nos temas "sensibilidade" e "razão sensível"

Esta sub-seção lamentavelmente ficará restrita a uma espécie de convite ou

motivação para ampliar os conhecimentos em relação à importância, que o tema da

sensibilidade está adquirindo no debate cultural de hoje. Estamos diante de um fenômeno

complexo, com aspectos desafiadores, mas também com não poucas ambigüidades. Em seu

conjunto, o fenômeno é tão extenso e relevante que só o podemos tangenciar com algumas

anotações alusivas. Vale a pena conferir essas coisas mais de perto, em buscas pessoais. Na

Internet, os verbetes - simples ou compostos - sobre essa temática rendem uma enorme

safra de acessos disponíveis nos diferentes idiomas.

Temos, primeiramente, a explosão da onda acerca da assim chamada "inteligência

emocional", que vem desde meados dos anos 1980. No Brasil prosperou na esteira de

alguns livros-sensação, como o de Daniel Goleman, que já vai pela octogésima edição. Não

sabemos quantos o acompanham até os detalhes mais sonsos das sugestões de testes do

quociente de Inteligência Emocional. A questão não está nesse tipo de detalhes e nem

sequer em aceitar ou não certas distinções discutíveis que ele estabelece entre sentimentos e

emoções. Nesse aspecto, achamos que Merleau-Ponty nos deu embasamentos bem mais

sólidos em sua Fenomenologia da Percepção e demais obras. Nesta linha nos parece

relevante o estudo de James Ostrow por assumir um ponto de vista fenomenológico na

Page 161: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

161

busca de uma superação do subjetivismo e do cognitivismo mecanicista em direção a uma

teoria fenomenológica da sensibilidade social166

.

Á onda da "inteligência emocional" - e uma série de temas afins, sem ignorar a vasta

difusão dos esquematismos da PNL (Programação Neuro-Lingüística), e até mesmo a

literatura de auto-ajuda - tem tudo a ver com a crise da racionalidade moderna. Para

amarrar esse nó, de forma indissolúvel, o livro de António R. Damásio, O Erro de

Descartes veio a calhar, permitindo estabelecer, além do mais, uma boa conexão inicial

com as neurociências.

Este assunto deveria ser visto como um sub-aspecto da crise epistemológica e da

mudança de paradigmas nas ciências, assunto sobre o qual existe uma vasta literatura e há,

a nosso entender, algumas leituras obrigatórias, como Thomas Kuhn, Ilya Prigogine,

Humberto Maturana e Francisco Varela, Fritjof Capra etc. Como podem notar, estamos

sugerindo uma ponte explícita, que nos parece imprescindível, com o fascinante mundo das

biociências.

O retorno do "sensível" nas ciências humanas é um fenômeno hoje bastante

incontestável e já documentado, ao menos de forma incipiente, por autores como René

Barbier167

. O tema "cognição afetiva" vem se espalhando América Latina afora em livros

como O direito à ternura de Luis Carlos Restrepo, de apreciável difusão em vários

países168

. Michel Maffesoli nos brindou com uma problematização filosófica e sociológica

bastante abrangente, embora não sempre analiticamente aguda, da crise da razão moderna e

da emergência oportuna do tema da "razão sensível" na atualidade. Sua rápida abordagem

da "forma social" da razão sensível ficou demasiado parca, mas o conjunto do livro abre um

leque razoável de questões relacionadas com a epistemologia e a educação169

.

Para muitos foi certamente uma surpresa o livro de Pierre Lévy - em co-autoria com sua

companheira Darcia Labrosse -, O Fogo Libertador, no qual esse autor, mais conhecido por

seus abundantes escritos sobre tecnologias da inteligência, o virtual, o ciberespaço e a

inteligência coletiva, se abre sobre seu itinerário de experiências emocionais e espituais170

.

O aprofundamento filosófico do desafio, que a face do/a outro/a representa para a

própria constituição dos fundamentos da ética, passa necessariamente por Emmanuel

Lévinas, principalmente por sua aguda explicitação do tema da sensibilidade solidária

radical.171

Fragmentos de meditação sobre sensibilidade social

1. Sensibilidade é um conceito abstrato que é preciso existencilizar

O conhecimento científico e a sensibilidade e habilidade artística precisam

unificar-se numa única visão do conhecimento e não como aspectos simplesmente

166

James M. Social Sensitivity - A Study of Habit and Experience. New York: SUNY (State Univ. of New

York Press), 1990 . 167

Barbier, René. l'Approche Transversale, l'écoute sensible en sciences humaines, Paris,Anthropos

(Economica), 1997, 350 p.; do mesmo autor, Le retour du "sensible" en sciences humaines - e oputros textos

disponíveis na Internet, junho/2000. 168

RESTREPO, L. C. O dieito à ternura. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999. 169

MAFFESOLI. Michel. Elogio da razão sensível. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998. 170

LÉVY, P (com a colaboração de Darcia Labrosse). O fogo libertador. ão Paulo: Ed. Iluminuras, 2000. 171

Cf. DUSSEL, E. Ética da Libertação na idade da globalização e da exclusão. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000,

p. 363-372 (n. 259-266) - ["Sensibilidade"e "alteridade"em Emmanuel Lévinas].

Page 162: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

162

coexistentes ou de alguma forma complementares... Precisamos educar (e auto

educar-nos) para a sensibilidade social, a compaixão e a responsabilidade social.

Somente se tivermos essas três habilidades seremos capazes de agir moralmente.

Valdemar W.Setzer 172

À primeira vista, a palavra sensibilidade não parece ser um conceito abstrato, mas

é. Enquanto conceito, trata-se uma construção reflexiva do cérebro/mente acerca de

sensações experimentadas, aos quais se conferiu um nome. É bastante plausível que, na

evolução da nossa espécie, tenha havido longas demoras ou intervalos temporais entre o ter

e o distinguir sensações (o sentir experiencial, a sensibilidade como tal) e o conseguir dar

nomes específicos a essas sensações (os conceitos acerca da sensibilidade).

É mesmo provável que os nomes dos sentimentos só tenham surgido bastante tarde,

e aos poucos em nossa evolução, lá por volta de entre 60 e 40 mil anos atrás, quando se

acelerou o surgimento de linguagens. Pelo que dizem os que pesquisam esses assuntos, o

salto das linguagens humanas para a criação de campos semânticos mais elaborados, e

posteriormente para as linguagens lógicas e formais, se deu nos últimos 12 ou 10 mil anos,

quando o início da agricultura e do intercâmbio de produtos exigiu que o ser humano

soubesse explicar, para si mesmo e para os outros, o que estava pretendendo.

Fica, porém, uma discreta suspeita de que algo esteja mal contado nessa história.

Porque a maneira de contá-la se prende por demais à troca das coisas, deixando de

mencionar a troca dos afetos (e seu contrário), que certamente veio acompanhada de gestos,

sons e palavras desde lá atrás, desde os hominídios.

***

2. Alerta contra patrulhamentos ideológicos e moralistas

Quando se introduzem exigências éticas de conversão ao social sem acentuar ao

mesmo tempo a dimensão de busca de felicidade nessa conversão ao social, corre-se o

perigo de criar monstros supostamente conscientizados para o social, mas esquecidos da

necessidade de cada indivíduo de buscar a sua própria realização173

. Essas coisas devem ser

ditas e reditas de muitas maneiras, posto que os equívocos em relação a uma problemática

tão fundamental surgem facilmente porque as próprias linguagens sobre a felicidade e o

prazer estão marcadas por tabus, enquanto muitas das linguagens sobre o social estão

imbuídas de prevenções, suscetibilidades e patrulhamentos ideológicos.

***

3. A obstrução ideológica da sensibilidade

Experiência ideológica e experiência solidária, será que essas duas experiências são

compatíveis? Por experiência ideológica podemos entender muitas coisas, mas

provavelmente alguns de nós sabemos para onde aponta essa formulação. Alude a temas

como: a "certeza" subjetiva de que há um "grande inimigo"; o pressuposto de que "tudo

será diferente" quando ele for removido; as crenças rígidas no interior de grupos coesos e

172

SETZER, V. W. The Mission of Technology - Disponível na Internet, junho/2000. 173

Uma semi-confissão pública de equívocos dos sandinistas neste assunto se porde conferir no livro do ex-

vice-presidente da Nicarágua e grande escritor, Sérgio RAMÍREZ, Adiós Muchacos - Una memoria de la

revolución sandinista, México: Aguilar, 1999..

Page 163: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

163

voltados para objetivos precisos; a adesão intensa a um núcleo rigidamente formulado de

crenças; a necessidade de eliminar supostos obstáculos; a militância fortemente

hierarquizada; etc. Poderiam dar-se exemplos tanto para grupos numericamente reduzidos

como para amplos processos de fanatização das massas. Não se deveria desconsiderar,

porém, que existem concepções mais brandas e menos nocivas da experiência ideológica,

no sentido de adesão forte a um conjunto de princípios éticos, que muitos consideram

imprescindíveis para uma visão humanista.

Em muitos casos a chamada clareza ideológica continha, sem dúvida, o bom

propósito de lidar com horizontes de esperança e fazer experiências participativas. que

merecessem o nome de experiências da esperança possível. Nos anos 70, do século XX,

alguns grupos latino-americanos usaram, ao menos por algum tempo, a consigna "organizar

a esperança!". Nesses mesmos grupos era sumamente frequente um uso positivo do

conceito de ideologia (como se sabe, para Marx e para a maioria dos cientistas sociais,

ideologia é um conceito prevalentemente negativo). Deixemos flutuar a pergunta: em que

medida um conceito positivado de ideologia tende a substituir, deformar e devorar o

conceito de experiência da esperança?

Nenhuma experiência da esperança pode pretender esgotar ou conter completamente

o horizonte utópico. Como seres humanos abertos a mundos futuros, precisamos de um

horizonte de sonhos mais dilatado que as realizações previsíveis num futuro de curto ou

médio alcance.

***

3. Os racionalismos impedem que se entenda o que é sensibilidade

Não quero faca nem queijo.

Quero a fome.

Adélia Prado

Os teóricos da educação tentam explicar-nos em que consiste, "principalmente", o

desenvolvimento da inteligência. A ênfase costuma recair sobre as aptidões cognitivas para

entender linguagens, captar conteúdos, articular perguntas sobre o que não se entendeu

direito, dizer as coisas com as palavras certas, formular pensamentos corretos, articular

raciocínios lógicos, enfim, desenvolver a inteligência de um modo racional. A didática

tradicional estava tão apegada a uma determinada concepção racionalista da inteligência

que muita gente ficou animada quando esse desenvolvimento das aptidões cognitivas

começou a ser visto como algo que acontece dentro de condições sociais e históricas.

O racionalismo continuou, só que agora ele vinha inserido na história social. Mas

essa história social continuou sendo vista em termos quase exclusivamente confrontativos,

ou seja: como luta contra a desumanização capitalista e, mais recentemente, a denúncia do

neoliberalismo. O tema da cidadania já não está dando conta - pelas razões já insinuadas -

da superação do fosso existente entre a necessária aquisição de competências para um

mundo com mercado e a formação para a sensibilidade social.

Hoje constatamos que não se trata apenas de uma lacuna, mas - em muitos casos -

de um verdadeiro bloqueio ideológico que condiciona os acessos ao tema da cidadania (já

amplamente esvaziado por ideologizações de todos os matizes) e ao da solidariedade

(também tendencialmente co-optado). É preciso abrir um novo acesso, teoricamente mais

amplo e - por que não? - ético-politicamente mais radical, por que o "buraco" do político

está mais embaixo, isto é, tem tudo a ver com a estruturação dos campos do desejo e sua

Page 164: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

164

relação com a construção de campos do sentido. Mas este novo caminho - sinalizado por

expressões somo sensibilidade social - já não deveria admitir escamoteamentos em relação

à exigência de competências humanas e sociais efetivas, articulando a partir delas, e não à

margem delas, a sensibilidade solidária. A competência humano-social é um ingrediente

indispensável da abertura solidária.

Page 165: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

165

Capítulo 8

EPISTEMOLOGIA SOLIDÁRIA

Só a descoberta desperta. Só a invenção prova que se pensa de verdade a coisa que

se pensa, seja qual for essa coisa... Só o sopro criativo dá vida, pois a vida

inventa.

Michel Serres174

Eu quero pensar algo diferente, eu quero criar algo diferente para a minha vida,

eu quero me exercitar como ser humano de uma forma diferente Um de participante de curso na Fundação Petrópolis, RJ

Em seu livro Os Sete Saberes Necessários à Educação do Futuro175

, Edgar Morin

volta aum dos seus temas centrais já em Introdução ao Pensamento Complexo176

, isto é: a

inteligência cega ou as formas de conhecimento que geram cegueira. Ele nos convida a

levar muito a sério o fato de que o desenvolvimento histórico das formas de conhecimento

e de acumulação de saberes humanos carrega consigo uma profunda deformação anti-

solidária, que ele volta a denunciar como "as cegueiras do conhecimento". Não é apenas

pelo avanço das ciências e das novas tecnologias ou por causa da mundialização do

mercado que precisamos repensar as formas usuais do conhecimento. Trata-se de entender

que, no cerne da nossa concepção do conhecimento, e nas formas com as quais ele foi

sendo historicamente sistematizado, há diversas ausências cruciais.

Em nossa concepção usual do conhecimento prepondera a linearidade. Precisamos

rever a nossa obsessão por causalidades lineares. Imaginemos concretamente meia dúzia

de acontecimentos concretos nos quais estamos pessoalmente envolvidos: um fato alegre,

um susto, uma nova amizade, algum problema que nos preocupa, etc. Será que

conseguiríamos aplicar a tais experiências pessoais o esquema linear de causa e efeito que

prevalece em tantas coisas que e como se ensinam na escola?

Ignorar a causa de algo parece ser prova de ignorância ou até de burrice. Será que

não há algo de profundamente errado na mania de querer estabelecer relações causais

lineares a cada momento? O pensamento complexo é, no que tem de mais desafiador, uma

tentativa de reequacionar totalmente nossos esquemas racionais relacionados com o jogo de

causalidades. O pensamento filosófico e científico modernos nos viciaram em manias e

obsessões pela causalidade claramente definível. Ficamos tão viciados em explicações

causais que até construímos uma série de frases, aparentemente óbvias, como a seguinte:

por algo será, alguma causa deve haver; alguma explicação deve existir...

Esse tipo de fraseado revela que nos sentiríamos incômodos se tivéssemos que

deixar em suspenso a questão da causalidade. Ficamos frustrados em nossa racionalidade

quando não conseguimos nomear integralmente as causas de qualquer acontecimento. Isso

revela muito acerca da maneira como nos imaginamos "causa". Blindados nesse tipo de

racionalidade, nem nos ocorre que as energias ativas nos processos na natureza e da história

174

SERRES. Michel., Filosofia mestiça. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1993, pp. 108-109 175

MORIN, E. Os Sete Saberes Necessários à Educação do Futuro. São Paulo: Cortez/UNESCO, 2000. 176

MORIN, E. Introdução ao pensamento complexo. Lisboa: Instituto Piaget. s.d.

Page 166: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

166

talvez sejam tão complexamente entrelaçadas que a palavra causa não dê conta das

fantásticas interrelações entre a ordem e o caos.

Nosso propósito básico, neste capítulo, é mostrar que precisamos transformar

aspectos fundamentais em nossas maneiras de aprender e de pensar para podermos dar a

guinada em direção à cultura solidária, que o próprio futuro da espécie humana e a saúde do

planeta Terra exigem de nós. Na linguagem de Morin, precisamos dar-nos conta das

"cegueiras do conhecimento", na forma como ele nos é geralmente proposto.

A perfectibilidade e educabilidade humana

O agir pedagógico e o próprio conceito de aprendizagem e de construção do

conhecimento supõem que se trata de um empreendimento humano que faz sentido para os

seres humanos. Numa frase: educar, aprender e conhecer implicam numa aposta positiva na

perfectibilidade e educabilidade "humanizante" do ser humano. Ao pressupormos que o ser

humano é "melhorável", estamos afirmando implicitamente que ele sempre se encontra

ainda num processo de "vir-a-ser", que admite avanços, mas jamais se estagna numa

plenificação totalmente alcançada. Sem esse pressuposto não teria sentido a afirmação de

que educar, aprender e conhecer valem a pena e são processos humanizadores.

Esse pressuposto admite dosagens variadas de ingenuidade, otimismo e

eventualmente até um certo pessimismo. Essas dosagens diversificadas geralmente têm

tudo a ver com os contextos esperançadores ou desalentadores nos quais os aprendentes

estão inseridos. Na atual situação do mundo, todos os desafios da educação passaram a ter

uma relação sumamente estreita, mas também ambígua, com a própria viabilidade social

das vidas humanas envolvidas nesses processos educativos.

Hoje educar significa realmente salvar vidas. Mas vale a pena salvar vidas para que

se mantenham nos níveis mínimos da sobrevivência? A educação certamente pretende mais

do que isso, embora muitas vezes sua função se limite quase a isso. Os sentidos e limites da

educação se transformaram em questão ético-política, que adquiriu ressonâncias imediatas

para dentro da questão mais radical de nosso tempo: a virada imperiosa para uma

civilização solidária que assegure não apenas a preservação da espécie humana e do planeta

Terra, mas amplie as possibilidades de uma vida feliz para todos os seres humanos.

O próprio envolvimento ativo em processos de aprendizagem e construção do

conhecimento, ou seja, a educação como tal, joga com pressupostos antropológicos que

convém chamar à consciência. Já que se trata de um assunto vasto e exigente, preferimos

abreviar seus detalhes citando uma parte do índice do livro de Hubert Hannoun, Educação:

Certezas e Apostas177

:

Os pressupostos da educação: Pressupostos fundamentais

que a humanidade seja obreira da felicidade

que seja positiva a imagem do homem que vai ser formado

que a pessoa humana seja perfectível

que a pessoa humana esteja capacitada para a liberdade

Pressupostos instrumentais

que a educação não seja "conversa fiada"

que a finalidade da educação seja fundamentada

177

HANNOUN, H. Educação: Certezas e Apostas. São Paulo: Editora da UNESP, 1998.

Page 167: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

167

que as estruturas escolares sejam adequadas

que os conteúdos escolares sejam cientificamente determinados

que a avaliação escolar seja objetiva

que quem ensina seja capaz de ensinar

que quem ensina tenha vontade de ensinar

que a mensagem coletiva atinja o aluno-indivíduo

que a motivação do aluno seja real

que a competência adquirida se tornará aptidão

que a comunicação interindividual seja possível e válida

que a educação não seja manipulação

que a virtude possa ser ensinada

Educar é uma aposta "enactante"

Se acreditamos na educabilidade do ser humano estamos fazendo uma aposta na

possibilidade de unir percepção, desejo, ação. O conceito de enaction, proposto por

Francisco Varela, se refere à necessidade de abandonarmos o conceito de representação

mental em nossa concepção do conhecimento e da ação. Nossos sentidos não são apenas

"janelas" para o mundo. São muito mais do que isso porque nossos sentidos participam

ativamente não apenas na recepção de informação desde o meio ambiente, mas também na

construção da realidade percebida.

A percepção humana - como já insistia em demonstrar-nos Maurice Merleau-Ponty

- implica simultaneamente numa atividade aferente (trazer informação "de fora") e eferente

(construir o real mediante intervenções criativas da própria percepção). Segundo Varela, o

equívoco principal das teorias da representação mental consiste em não saber unificar

"representação" e realização, as duas faces simultâneas da percepção humana. Em outras

palavras, no mesmo instante em que percebemos o mundo, nós o estamos construindo.

Como já afirmava Kant, para a nossa razão o que chamamos objetivo de fato se constitui na

subjetividade do cognoscente.

Aposta enactante da educação significa, pois, que a educação não é uma atitude

expectante diante do mundo, como se houvesse um mundo totalmente pré-definido a ser

transformado em objeto do conhecimento. O próprio ato de conhecer implica muito mais do

que aferir dados externos à subjetividade de quem conhece. Conhecer é experimentar

conjuntamente uma relação cognitiva e desejante, porque todo conhecimento traz consigo

uma busca de sentido do próprio ato de conhecimento para aquele que está conhecendo.

Conhecer, enquanto experiência desejante do sentido, é muito mais que recolher dados

sobre o mundo, porque conhecer já contém a intencionalidade do querer apostar, avaliar se

vale a pena ou não prosseguir nesse conhecimento, enfim, conhecer é perceber

possibilidades do sentido para mim e para outros.

Na epistemologia tradicional, o ato de conhecer estava marcado por um esquema

dualista de relação entre sujeito e objeto. Dentro desse esquema dualista era bastante óbvia

a exigência de um conceito como o de representação, porque se as coisas estão num âmbito

fora de mim, com o qual busco estabelecer uma relação confrontativa entre sujeito

cognoscente e objeto por conhecer, é compreensível que essa relação seja concebida como

um processo de espelhamentos, em cujo cerne sempre já existe o falso pressuposto de que

possa haver, no conhecimento humano, um devoramento cognitivo pela avidez devorante

do sujeito cognoscente.

Page 168: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

168

Tudo muda radicalmente quanto se admite cancelar, de uma vez por todas, essa raiz

agressiva da epistemologia tradicional, que pode ser identificada claramente na busca voraz

da coincidência ou concordância perfeita entre quem conhece e os supostos objetos do

conhecimento. Não há nada a devorar, a não ser a vacuidade da projeção humana que se

denomina equivocadamente de representações do real.

O real não é devorável, só é reconhecível enquanto parte de um processo de

relacionamentos ativos entre nossa percepção e cognição por um lado, e os in-fluxos e e-

fluxos de energia que fluem, por múltipla via, entre os seres cognoscentes e os mundos do

sentido que eles constróem em seu processo de conhecer.

Apenas um destaque ainda: as teorias da representação não conseguem estabelecer

uma relação intrínseca entre atividade desejante e atividade cognitiva. A expressão "aposta

enactante" - que Hubert Hannoun elabora a partir do conceito de enação de Francisco

Varela - nos parece bastante feliz porque ela redefine, ao mesmo tempo, tanto a própria

concepção do conhecimento como da atitude básica requerida para educar, já que ambas

passam a ser entendidas como "concepção", no sentido literal de conceber, gestar, e colocar

ou "pariri" para dentro de um mundo de sentido tudo aquilo que conhecemos ou ensinamos.

A inserção da percepção na ação de construir o sentido - como nos propõe Varela

mediante seu conceito de enação - significa a recuperação positiva da dimensão desejante

no interior do próprio ato de conhecer. Note-se, porém, que essa dimensão desejante é,

agora, concebida como uma busca relacional (uma busca de que a relacionalidade e a

conectividade que constitui e atravessa o conhecimento) e não como um desejo concebido

como confrontação.

Esta é uma remexida profunda no próprio conceito de desejo, porque o conceito de

desejo que predomina no pensamento ocidental contém uma presunção de ameaça, um

medo acerca da própria liberdade de desejar e um medo dos caminhos pelos quais esse

desejo poderia levar-nos. O medo do ocidente sempre já foi também um medo na aposta de

um sentido possível, mesmo que inevitavelmente transitório, dentro de um mundo marcado

pela finitude (Este assunto do desejo voltará, sob diversos enfoques, ao longo deste livro e

haverá, mais adiante, um capítulo especial dedicado a este importante tema)..

No fundo, o pensamento ocidental, que tanto insistiu na fé e, complementarmente

no amor, dificilmente conseguiu apostar no sentido do amor finito, porque o medo do

abismo da sua finitude impedia fruí-lo como plenitude existencial profundamente

satisfatória, apesar da sua finitude. Talvez a esperança tornada difícil seja apenas um

aspecto da incapacidade do ocidente de valorizar como satisfatórias e profundamente

realizantes para o ser humano aquelas experiências do sentido que de fato são possíveis

dentro do horizonte espaço-temporal da cotidianidade humana.

Retornando ao tema da educação, vale a pena frisar que ela não tem a missão de

colocar ordem em tudo, nem na cabeça dos/as estudantes, e muito menos no mundo inteiro.

Seu papel é, por um lado o de possibilitar habilidades e acessos mínimos para construir

mundos de significação e por outro, o de propiciar experiências humanas da capacidade

desejante em relação a mundos relacionais desejáveis. Seria difícil expressar isso de um

modo mais pertinente do que o fez Hubert Hannoun, a quem voltamos a citar:

A educação é um empreendimento fundamentado em apostas enactantes que

constituem a unidade e o sentido de seus componentes. É coordenação significante

daquilo que, disperso ou sem relações aparentes, se apresentaria sem significado.

No plano do corpo, é coordenadora dos componentes da motricidade pessoal em

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169

torno de uma imagem física que propicie o melhor desenvolvimento possível e a

melhor adaptação ao meio ambiente. No plano da bioafetividade, é coordenadora

dos afetos como motores onipresentes do comportamento em sua relação

permanente com o prazer e com a dor. No plano das relações pessoais, prepara

para a substituição da agressividade segregativa pelo relacionamento que une e

enriquece, por se basear em certa idéia de coesão interindividual e social. No plano

da moral, tenta organizar as tendências humanas fundamentais segundo uma

norma de bem que, mesmo variando de uma cultura para outra, não deixa de existir

na base de nossas ações178

.

Aprendizagem à luz de novos estudos sobre o cérebro/mente179

Talvez a mais chocante "cegueira" da concepção tradicional da aprendizagem seja a

inibição sistemática do fantástico potencial de nosso cérebro para construir experiências

cognitivas e sociais de maneira multirreferencial, estruturalmente aberta e relacionalmente

complexa. Muitas formas usuais de concepção da aprendizagem e do conhecimento mal

tomam em conta o potencial cognitivo, que o nosso cérebro/mente adquiriu ao longo da sua

evolução. Por isso vamos dedicar um pouco de atenção a esse incrível potencial. Vamos

elencar alguns "princípios" para o respeito ao potencial do nosso cérebro/mente.

1. Nosso cérebro/mente é um sistema complexo adaptativo

Provavelmente o aspecto mais maravilhoso do cérebro é a sua capacidade de funcionar simultaneamente em muitos níveis e de muitos modos. Esta é uma razão pela qual buscamos superar visões mais estreitas (como a de que o cérebro é um processador paralelo). Aprender é um processo que envolve toda a fisiologia cerebral. Pensamentos, emoções, imaginação, desejos, memorizações e tudo o que chamamos aprender acontece dentro da fisiologia neuronal. Trata-se de processos interligados que operam de forma interativa, e às vezes de forma concorrente e competitiva, à medida que todo o sistema vivo do cérebro interage e troca informação com seu meio-ambiente. É importante compreender que, quando se está aprendendo, emergem no cérebro propriedades novas. E isto acontece no cérebro como um todo e não pode ser reconhecido nem entendido quando se observam unicamente determinadas partes do mesmo. A escola precisa tomar em conta que o aprendente humano aprende melhor quando ativa seus neurônios de maneira complexa e multifacetada.

2. Nosso cérebro é um cérebro social No primeiro ano da vida fora do útero, nossos cérebros são extremamente impressionáveis,

receptivos e versáteis. Essas disposições poderão ser preservadas vida afora, dependendo das circunstâncias nas quais o ser humano se desenvolve. O potencial do cérebro/mente é imenso e começamos a desdobrá-lo em contato com nosso meio-ambiente inicial e com nossas primeiras relações interpessoais. Vygotsky se empenhou em revelar-nos essa construção social do conhecimento. Todas as formas de educação e/ou terapia trabalham, a rigor, com essa dinâmica básica. Hoje sabemos que nosso cérebro/mente está em processo ativo ao longo da nossa vida, num constante envolvimento com outros. Portanto, os indivíduos devem ser vistos como parte integral de sistemas sociais interagentes mais amplos. Na realidade, boa parte de nossa identidade depende da maneira como estabelecemos laços comunicativos e encontramos formas de pertencimento. Por isso, o processo de aprender sempre está profundamente influenciado pela natureza das relações sociais em meio às quais a gente se encontra.

3. A busca do sentido é uma tendência intrínseca do cérebro/mente

178

HANNOUN, H. op.cit. p.175. 179

Texto elaborado a partir de pesquisa em várias fontes, entre as quais se destacam: Caine,R. e Caine,G.

Making conexions. Teaching and the human brain, Addison-Wesley, 1994. e textos da 21st Century Learning

Initiative, disponíveis na Internet.

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170

Em termos gerais, a busca do sentido refere-se à nossa propensão a querer que nossas experiências façam sentido para nós. Essa tendência de busca do sentido é algo básico no cérebro/mente. Convém, portanto, entender que há algo mais que a mera orientação para a sobrevivência no próprio modo de funcionar de nossos neurônios. Quanto à maneira como opera essa busca do sentido em nossa experiência ao longo do tempo, um primeiro aspecto básico é que se trata de algo que tende a ser persistente ao longo da vida inteira. Naquilo que tem de mais profundo, essa busca de sentido parece conter uma espécie de propósito e parece orientar-se a valores. Valores são, em última instância, aquilo que pode ser vivenciado como algo que faz sentido. (Já nos longínquos anos 50, Maslow fazia e enfatizava a extensão e intensidade dessa intencionalidade humana em suas teorias sobre motivação externa e motivação interna). Incluem-se nisso questões básicas como "quem sou eu?" e " por que eu me encontro aqui?". De maneira que a busca do sentido se estende desde a necessidade de alimentar-nos, encontrar acolhida e segurança, construindo uma identidade mediante relacionamentos, até a exploração de nosso potencial e a própria busca de algo transcendente.

4. O sentido emerge através da "criação de parâmetros" (patterning)

Na criação de padrões ou parâmetros se incluem todos os tipos - bastante diferenciados e complexos - de formas de percepção e categorias com as quais construímos o nosso real, quer sejam tendências inatas ou aprendizagens adquiridas. O cérebro/mente precisa registrar, e o faz automaticamente, o que lhe é próximo e familiar, enquanto busca simultaneamente indagar e responder a todo tipo de impressões novas. De certo modo, portanto, o cérebro/mente é ao mesmo tempo, cientista e artista: tenta discernir e entender sequências e padrões na medida que ocorrem em sua experiência, mas - o que é muito importante - aproveita as circunstâncias favoráveis (quando elas existem) para inovar novos padrões únicos e criativos que ele próprio vai criando. O cérebro/mente resiste naturalmente à imposição externa de sentidos rígidos e, sobretudo, à imposição de ausências ou vazios de sentido. Por ausência de sentido entendemos todo tipo de informação ou instrução desrelacionada daquilo que faz sentido para aquele/a aprendente particular. Uma educação realmente efetiva precisa dar aos/às aprendentes a oportunidade de criar, desdobrar, e formular seus próprios padrões de entendimento.

5. As emoções são decisivas na "criação de parâmetros" do sentido Tudo o que aprendemos é influenciado e organizado também por emoções e "configurações"

emocionais que envolvem expectativa, preferências, prejulgamentos pessoais, auto-estima e a necessidade / carência de interação social. As emoções e os pensamentos são um processo tão inseparável que dão literalmente forma uns aos outros. As emoções colorem o sentido. É nesta direção que Lakoff destaca a importância das metáforas. Além disso, o impacto emocional de uma aula ou experência de vida pode continuar reverberando muito tempo depois do evento específico que o detonou. Daí decorre que é fundamental e indispensável para a educação que ela se dê num clima emocional apropriado.

6 .Todo cérebro/mente percebe e cria ao mesmo tempo as partes e o todo

Embora haja algo de verdade na distinção conhecida entre "cérebro direito" e "cérebro esquerdo", isso não representa toda a história. Numa pessoa saudável, os dois hemisférios interagem em cada atividade, desde a prática artística até a formalização do pensamento organizado, e isso tanto numa simples compra como no bate-papo entre amigos/as e na mais sisuda aula. A teoria dos "dois cérebros" serve especialmente para lembrar- nos que o cérebro desmonta qualquer informação até o ponto de servir-lhe para integrar um todo que faça sentido para ele. A percepção, portanto, tende a alcançar sempre uma abrangência holística. Um bom treinamento e uma boa educação sabem reconhecer isso. Por exemplo, introduzindo e tornando perceptíveis projetos "globais" desde o início.

7 . Aprender implica atenção focalizada e percepção periférica "Prestar atenção" precisa de uma dosezinha de distração para não forçar os neurônios e

continuar criativos. O cérebro absorve a informação da qual se dá diretamente conta, mas absorve também, e diretamente, informação que se refere a coisas que estão além do seu foco de atenção imediata. Na realidade o cérebro/mente continua em sintonia com e responde a um contexto sensorial mais amplo dentro do qual estão ocorrendo o ensino e a comunicação. "Sinais periféricos" são extremamente potentes. Mesmo os sinais provindos do inconsciente e que manifestam nossas próprias atitudes e crenças interiores, possuem um poderoso impacto no/a aprendente. É por isso que os/as educadores/as podem e devem prestar atenção ampla a todas as facetas do meio-ambiente educacional (ecologia cognitiva).

8 . O aprender envolve sempre processos conscientes e inconscientes Um aspecto da consciência é o dar-se conta. Muito da nossa aprendizagem é inconsciente na

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171

medida que os ingredientes da aprendizagem, enquanto experiência de idéias e emoções, se processa por debaixo do nível do dar-se conta. Isto significa que boa parte do entendimento possivelmente não aconteça durante a aula, já que pode ocorrer horas, semanas, ou até meses mais tarde. Significa também que os educadores devem organizar aquilo que fazem de maneira tal que facilite o processamento inconsciente posterior da experiência de estar aprendendo por parte dos/as aprendentes. Na prática isso inclui uma proposta adequada de contextualização, a incorporação de reflexão e atividades metacognitivas e, ainda, indicações que ajudem os/as aprendentes a elaborar criativamente suas próprias idéias, capacitações e experiências. Fica, pois, evidente que o processo de ensinar deve transformar-se, em boa medida, numa tarefa de ajudar os/as aprendentes a conseguirem, por si mesmos, tornar visível o que é invisível.

9. Nós temos ao menos duas maneiras de organizar a memória

Embora existam muitos modelos e propostas acerca da memória, um dos que proporcionam uma excelente plataforma para educadores consiste na distinção (feita por O'Keefe e Nadel) entre memória taxonômica e memória local. Sugerem eles que, o ser humano conta com um conjunto de sistemas para evocar / chamar informações relativamente desrelacionadas (sistemas taxonômicos, da palavra "taxonomia"). Estes sistemas estariam motivados por prêmio e castigo. Os mesmos autores sugerem também que nós temos uma memória espacial / autobiográfica a qual não necessita refazer pesquisas e possibilita a evocação "instantânea" de experiências. Tal é, por exemplo, o sistema da memória que registra os detalhes da nossa janta de ontem à noite ou de alguma festa, mas sobretudo todas as vivências mais marcantes. Ele está sempre, por dizê-lo assim, "engatado", é inesgotável e costuma estar motivado para o novo e diferente.. É dessa forma que estamos biologicamente supridos por uma capacidade de registrar experiências como um todo. A aprendizagem do que faz sentido ocorre mediante os dois jeitos de funcionamento da memória. De maneira que, a informação que faz sentido e a que não faz sentido estão organizadas e registradas de maneira distinta.

10. Aprender é um processo que se vai desenvolvendo aos poucos

O desenvolvimento ocorre de diversas maneiras. O cérebro/mente tem a característica básica da plasticidade. Isto significa que grande parte de suas predisposições neuronais se forma através das experiências que as pessoas adquirem. Existem, porém, igualmente sequências do desenvolvimento adquiridas na infância, incluindo "janelas" de oportunidade que foram criando as predisposições para a capacidade de continuar aprendendo mais adiante. Essa é uma das razões porque as crianças deveriam ter, bem cedo na sua infância, o acesso a uma variedade de linguagens incluindo as da arte. Finalmente, convém insistir que, sob muitos aspectos, não existe limite para o crescimento e o potenciamento da aprendizagem nos seres humanos. Os neurônios continuam capazes de estabelecer conexões novas ao longo da vida inteira. Descobertas científicas recentes comprovam inclusive a regeneração dos neurônios e a possibilidade da emergência de novos conjuntos neuronais.

11. Os desafios fomentam e as ameaças inibem a aprendizagem complexa

O cérebro/mente busca otimizar a aprendizagem - ou seja, tende a estabelecer o máximo de conexões - quando é adequadamente desafiado por um meio-ambiente que o encoraja a assumir riscos. Mas, por outra parte, o cérebro/mente "reduz" sua disponibilidade quando se sente ameaçado. Nesse caso torna-se menos flexível e retorna a atitudes e procedimentos mais primitivos. É por isso que precisamos criar e manter uma atmosfera de alerta desinibido, que inclua baixos níveis de ameaça e altos níveis de desafio. Note-se, porém, que um nível reduzido de ameaça não é sinônimo de "sentir-se bem". O elemento chave da percepção de ameaças consiste na sensação de carência de ajuda ou cansaço. Estresse e ansiedade ocasionais são inevitáveis e são algo que deve estar previsto em qualquer genuína aprendizagem. A razão é que toda aprendizagem genuína implica em mudanças que levam a uma reorganização do eu aprendente. Tal aprendizagem pode, às vezes, ser de fato exigente, e neste sentido, estressante, independentemente da capacidade e do oferecimento de apoio existentes por parte de quem ensina.

12. Cada cérebro/mente está organizado de forma única

Todos nós temos o mesmo conjunto de aptidões neuronais básicas e, mesmo assim, somos todos diferentes. Algo dessa diferença deve-se às consequências do nosso embasamento genético. Muito, no entanto, é consequência da diferença das experiências e dos contextos, que formaram o nicho vital de cada um. As diferenças se expressam em termos de estilos de aprendizagem, talentos e inteligências diferentes e assim por diante. Um corolário importante disso é a valorização da necessidade e do direito dos estudantes a formas diversificadas de aprendizagem. É necessário assegurar que eles/elas sejam expostos a uma multiplicidade de chances. Inteligências múltiplas e um vasto leque de diferenças nas formas de aprender são, portanto, uma característica normal dos seres humanos.

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Plasticidade do cérebro e elasticidade dos mundos do sentido

Existe uma cooperação neuronal como base constitutiva de todas as nossas formas

de conhecimento. Isso exige que nos situemos no interior de uma visão complexa, cujo

elemento central é a exigência de refazer completamente nosso modo de entender as

causalidades. Os novelos e imbricamentos dinâmicos de nossos neurônios operam, em cada

processo cognitivo, como um vasto sistema dinâmico e adaptativo de interações e

cooperações. Se o funcionamento dos nossos neurônios é basicamente solidário - o que não

exclui formas de concorrência performativa -, também as formas do nosso conhecimento

deveriam ser solidárias no interior da própria maneira como se articulam. Já se consegue

fazer, hoje, imagens desse processo neuronal de inumeráveis conexões simultâneas e

interativas. Será que não chegou a hora de entender que a própria saúde do nosso

cérebro/mente exige que nossa maneira de aprender e de pensar contenha sempre uma forte

dimensão solidária?

Apontada a plasticidade do cérebro, pensemos agora na elasticidade enorme dos

sentidos das palavras. Em todos os ditos há numerosos não-ditos (por vezes quase

infinitos). Também - e talvez sobretudo - nas linguagens existem "astúcias da razão" (e da

des-razão e sobretudo da emoção) e "mãos ocultas". Esta é uma questão mais ampla e mais

radical do que a dos assim chamados "atos-falhos". Indo a um exemplo concreto,

provavelmente é importante, do ponto de vista dos nossos neurônios, que se lhes permitam

as flutuações da busca, o estabelecimento de parâmetros do sentido apropriados a suas

temporalidades diferenciadas, em suma, que a tentativa e o erro sejam considerados parte

integrante da opção por campos do sentido personalizados.

Para a pedagogia é de suma relevância que se tome em conta que nossos

conhecimentos não surgem como encaixes de formas oriundas de fora, por via puramente

transmissiva. As formas do nosso conhecimento promanam e emergem de um surgimento

de formas (morfogênese) à dinâmica do nosso sistema neuronal. Isso se aplica também à

emergência das redes de significação em nosso manejo de linguagens. Por isso falamos da

conveniência de se cultivarem formas de abertura solidária internas ao nosso modo de

pensar. Trata-se de respeitar e incentivar uma espécie de vocação congênita do nosso

cérebro/mente. Isso deveria deslumbrar-nos como algo maravilhoso. Variados mundos do

sentido são a ecologia cognitiva mais propícia ao desabrochar do potencial aprendente dos

seres humanos.

Nossas idéias deveriam permanecer abertas à parceria mundos do sentido em

constante transformação. Nosso mundo do conhecimento deve ser um mundo no qual

caibam muitos outros mundos de conhecimentos diferentes. Nosso desejo de conhecer não

ser cabresteado para tornar-se unidirecional no que se refere aos mundos do sentido. Aliás,

geralmente as nossas linguagens são atraídas simultaneamente por vários atratores

semânticos, isto é, por polarizações mutantes em direção a campos de significação

instáveis.. Chamamos de campos semânticos as relações reciprocamente interativas de um

determinado conjunto de linguagens (gestos ou palavras).

Nem sempre os campos semânticos, constituídos por um conjunto de signos

estruturados, coincidem rigidamente com os campos do sentido socialmente constituídos ou

em processo de constituição. Os campos de sentido interpessoal flutuam para além dos

campos semânticos verbais. Mas existe, obviamente. uma plausibilidade de que estejam

próximos entre si. O equívoco de certas teorias da linguagem consiste em postular uma

total equivalência ou correspondência entre os campos semânticos e as estruturas

comunicativas do sentido. Isto significaria querer que o que se diz também se chegue

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173

sempre a comunicar. Todos sabemos, de alguma forma, que as coisas não funcionam assim

no mundo das relações interpessoais. Por isso o agir pedagógico precisa transformar-se em

processo comunicativo, para além do mero fluxo de linguagens, seja lá de que tipo forem.

Para não demorar-nos demais nessa digressão, tentemos resumir: os campos

semânticos das linguagens têm uma relação transversátil com os mundos vivenciais do

sentido. Trata-se de um jogo complexo de interfaces e de superposições geralmente apenas

parciais. A comunicação humana é tão fascinante, precisamente, porque raras vezes é um

interfluxo de significações inteiramente precisas. O mais das vezes é apenas um

intercâmbio de tentativas recíprocas para comunicar-nos. Nesse processo a presença ou

ausência do desejo de entender-nos cumpre um papel fundamental. No fundo todos

sabemos que, em geral, não estamos "negociando" o mero sentido de palavras ou frases.

Efetivamente, "negociamos" - e negaceamos - entre nós as nossas entradas e saídas em

mundos do sentido.

Claro que alguém poderia objetar que essa complexa permuta de interfaces de

nossos mundos do sentido não se aplica às linguagens supostamente omni-expressivas e

totalmente formalizadas, como as da matemática e as digitais. Objeção aceita, mas com a

ressalva de que a todas elas se aplique também o teorema da incompletude de Gödel, ou

seja, a situação de constructos formais confinados a seu respectivo mundo de formalização.

É por isso que não dão conta, em seu idioma particular, nem sequer de seus próprios

pressupostos filosóficos. Os algoritmos genéticos e recursivos da mais avançada

computação evolucionária, com parciais processos de auto-organização emergente, já são

uma questão bastante diferente.

Dito de outra forma, as linguagens rigidamente formalizadas representam recursos

instrumentais sumamente úteis para auxiliar-nos no encaminhamento de cadeias parciais de

significação em nossas permutas de linguagens, mas elas jamais recobrem todas as

interfaces de nossos múltiplos campos semânticos e, menos ainda, as dos mundos do

sentido peculiares da comunicação interpessoal humana.

O papel do desejo na emergência do sentido

Nosso jeito humano de experimentar sentidos se dá por rumos plausíveis, e não

mediante garantias antecipadas. Francisco Varela inventou para isso o termo enação

(enaction), que pretende compactar um denso significado inovador. Enação quer dizer que

nosso significar se adentra nos campos semânticos, apostando - enactando - criativamente

em mundos do sentido que achamos que valem a pena para a nossa vida. Por essa aposta

transita, portanto, nosso desejo pessoal de responder a, e ser responsáveis por mundos do

sentido partilhados por outros, com quem nos encontramos em processo de interlocução.

Há, portanto, uma dimensão desejante, que constitui uma dimensão solidária, no

âmago do nosso aprender e do nosso conhecer. A intensificação do desejo de entender-nos

aumenta as chances de nossas interfaces comunicativas. O pensamento intensamente

desejante é mais saudável, do ponto de vista da solidariedade, do que o pensamento menos

vivificado pelo desejo do encontro com nossos parceiros na evolução. Aprendemos e

conhecemos mediante processos solidários de co-presença e co-participação em mundos do

sentido para os quais não apenas nós mesmos mantemos interfaces comunicativas.

Pode-se afirmar que é fundamentalmente o desejo que en-dobra e desdobra, implica

e ex-plica (plica é dobra, em latim) os mundos do sentido, resgatando-os da sua fragilidade

e instabilidade. Nesse sentido, é o desejo de significar - isto é, de conhecer com vistas à

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174

comunicação mútua - que estabelece e salva o sentido. Em última instância, sem desejo

comunicativo nenhum também não existe nenhum mundo partilhado do sentido, já que

estamos falando de milagres deste mundo, o dos dialogantes humanos.

Nessa direção nos parece que vale a pena continuar refletindo. Mal começamos a

intuir que o aprender, o conhecimento, a existência humana enfim, deveriam ser

experienciados como um transitar corajoso e confiante por interfaces. Nossos mundos do

sentido surgem a partir de interfaces com os mundos dos outros. Os nossos não poderão

existir sem que os dos outros sejam simultaneamente afirmados, embora as interfaces de

entrada e saída sejam diferentes. Se não houvesse a partilha solidária de mundos do sentido,

ao menos substancialmente idênticos, que sobraria? Trincheiras, contraposições, senhor e

escravo, etc. numa disputa feroz por "nomear" o mundo com o seu poder?

A noção de interface não inclui nenhuma dimensão adversativa, porque o

sublinhado, pela própria força da palavra, é a dimensão conjugativa do encontro. Por isso

interface não tem nada a ver com trincheira ou campo de guerra. Não desaparece a

competitividade. Mas o mundo do/a outro/a aparece como mundo co-afirmado. Seres

dialogantes se instituem reciprocamente mediante a criação de mundos do sentido. Nessa

perspectiva, fica para trás toda a lúgubre - e no fundo medrosa e covarde - "filosofia do

outro" visto predominantemente como contrincante, competidor, ameaça. O aprendente já

não precisa considerar-se vítima potencial. E o/a ensinante pode transformar-se em parceiro

na construção comum de mundos do sentido. A aprendência passa, então, a ser vivência

compartida. Hoje a própria tecnologia computacional nos evidencia o caráter

imprescindível das interfaces na construção de qualquer campo semântico. Quanto mais,

então, nas trocas comunicativas do relacionamento humano e social.

Aprender é abrir-se ao mundo e aos outros

Nós inventamos o outro como o outro nos inventou.

Paul Eluard

A estratégia da vida consiste em relacionar-se com o diferente de maneira não

somente apropriadora, mas também de maneira respeitosa. O respeito da diferença é

essencial à solidariedade que tem em conta os princípios básicos da vida marcados pela

infinita diversidade dos comportamentos dos seres vivos. Admitamos, porém, que na

experiência possível da relação com o diferente nunca falta completamente um certo tipo de

apropriação.

É melhor ser honestos: é muito difícil amar sem nenhuma mistura de auto-afirmação

dos que amam. Mas o maravilhoso na aceitação do diferente é que o diferente é

"apropriado" de uma forma tal que ele continua sendo diferente "dentro" de mim. Não é,

portanto, simples apropriação ou assimilação, porque acontece a auto-transformação do ser

solidário pelo que lhe é diferente, e este passou a fazer parte, com a sua diferença, da nova

identidade do ser solidário. O ser humano, que se torna solidário, se transforma enquanto

aprende a "incorporar" em si o diferente.

O/a outro/a é, enquanto diferente, a chance do meu projeto de ser. O meu projeto de

ser não pode existir sem essa relação fundante com o outro-diferente. A diferença do

diferente constitui o processo de des-afirmação da minha condição de isolamento

ameaçador, ou seja, o outro-diferente me indefere enquanto mônada. O meu isolamento fica

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175

socialmente desaprovado pela existência do/a outro/a. É a existência dos demais que me

transpõe ao mundo relacional, no qual as mônadas ficam abolidas.

Num certo sentido, portanto, o/a outro/a é a parte mais objetiva da minha realidade

porque não há invenção/descoberta do eu sem invenção/descoberta do tu. E - maravilha das

maravilhas - o/a outro/a é uma invenção que, ao menos em boa medida, não preciso

inventar sozinho porque ela, até certo ponto, se auto-inventa diante de mim.

Há perguntas fascinantes mas quase irrespondíveis, como as seguintes: o que é que

acrescento ao outro para que ele vire o meu outro, que me possibilita enquanto identidade

pessoal? Existe a possibilidade do "salto unilateral" para dentro desse milagre da

constituição simultânea do outro e do eu, ou é imprescindível que - ao menos de vez em

quando e em temporalidades intensas - dois saltos simultâneos, o do eu e o do tu, convirjam

num mesmo processo de constituição de identidades? Seria possível a construção de uma

ponte para o "universal" (o que se supõe que valha para todos) sem a constituição vivencial

de processos comunicativos do sentido em relações interpessoais concretas?

O/a outro/a é inevitavelmente inatingível para nós. Mal e mal conseguimos roçar a

"outridade" (o ser-outro diferente) com nossa experiência, posto que ela sempre preserva

uma espécie de misteriosa identidade intocável. Este aspecto de não plena fusão faz parte

da contingência dos relacionamentos humanos. É importante que não se faça disso, no

plano da experiência pessoal, um pretexto para distanciar-nos dos demais por serem eles,

em última instância, mistérios inatingíveis. É fundamental entender que não existe

identidade pessoal que não tenha sido construída através de relacionamentos com outros/as.

A identidade pessoal só é possível nesse relacionamento. A identidade de cada um de nós

se constitui através de múltiplos acolhimentos de outros em relação a nós e nossos em

relação a eles. O que era diferente, distinto de mim, passou a ser o diferente em mim, e já

não é o diferente "fora" de mim ou separável de mim. A diferença da outridade que entrou

em mim foi determinante para que surgisse a minha identidade diferente.

Aprender é transformar-se

É preciso saber saborear esperanças miúdas, esperanças ao alcance da mão, do tato,

do olfato, do gosto, dos nossos 77 sentidos (ou você se contenta com apenas os 5 sentidos

catalogados?) Esperanças compartidas alicerçam a solidariedade entre as pessoas. Há, no

entanto, uma tentação perniciosa de exagerar nas esperanças possíveis. Custa-nos muito

admitir que não podemos transformar o mundo como desejaríamos. Não é bom arrastar

consigo, por demasiado tempo, esperanças completamente ilusórias. É saudável admitir

que, sob muitos pontos de vista, a Esperança não existe. Aceitá-lo não implica, de modo

algum, negar a possibilidade esperanças tópicas. Se precisamos da Esperança (com

maiúscula) para vivenciar esperanças tópicas é porque há algo de pouco humano - e, nesse

sentido, de doentio - em nossa maneira de entender a esperança.

Na efetivação das esperanças humanas sempre fica omitido algo de muito

importante. Pode-se omitir coisas por querer ou por cálculo. Sejamos honestos: no convívio

social sempre se intrometem também omissões calculadas. E isso dói muito. Mas, por outro

lado, há omissões que não quisemos cometer. Simplesmente acontecem porque, no fundo,

sempre há algo importante que nos escapa.

Talvez ser humano/a também signifique precisamente isto: dar-se conta de que,

felizmente ou infelizmente há coisas incríveis e importantes que ainda nos escapam. Saber

disso pode ajudar-nos a melhorar nossos anseios. Mas obsessionar-se com isso pode gerar

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desgastantes frustrações existenciais. Muitas frustrações não são outra coisa que a não-

aceitação do milagre de que há coisas importantes que ainda não foram devidamente

adivinhadas por nossa limitada curiosidade. O que a educação nunca deveria fazer - mas

que, talvez, seja o que ela mais tem feito - é limitar a curiosidade.

Aprender a aprender é manter acesa a curiosidade. O mero ensinar, ou a mera

entrega de saberes supostamente prontos, mata a curiosidade. É neste ponto que a escola

mais peca, porque muitas vezes ela extirpa a curiosidade, em vez de alimentá-la. Por isso é

bom lembrar que apagar curiosidades é despotenciar neurônios do cérebro humano.

Por uma epistemologia intrinsecamente solidária

Que vem a ser uma epistemologia solidária? Um modo de conhecer, pensar e

interrelacionar pensamentos que seja complexo e aberto desde a sua mais profunda raiz, e

ao longo de seu desdobramento. Formas de conhecimento que sejam, congenitamente,

formas de relacionamento, e que os aprendentes se possam dar conta disso. Que haja uma

dimensão solidária na própria forma de aprender, no cerne do próprio pensamento. Edgar

Morin tem insistido na relação intrínseca que existe entre pensamento complexo e

solidariedade.

Precisamos ensaiar formas do pensar e do aprender que impliquem simultaneamente

a afirmação da subjetividade dos aprendentes e a abertura à intersubjetividade e à

sensibilidade social.. Falar é querer comunicar-se. Querer comunicar-se implica

reconhecimento mútuo entre os dialogantes, Negociar linguagens e significados implica

que vale a pena o intercâmbio dialogante. Gestos e palavras não são nunca mera emissão de

sinais, porque pressupõem que faz sentido emitir sinais comunicativos. Dizer que faz

sentido emitir sinais comunicativos significa estar à espreita ou na expectativa de obter

respostas comunicativas. Esperar respostas significa sentir-se um ser "respondente",

"responsável" (capaz de responder). Sentir-se em estado de "respondente", significa supor

que a gente não está só no mundo.

Em suma, falar, fazer gestos e comunicar-se pressupõe que "algo em nós" já conta

com a possibilidade de estar em contato, em diálogo. Agora, o que é realmente maravilhoso

é que nós sejamos, no que temos de mais profundamente nosso, uma "construção" provinda

de olhares, carinhos, atenções, gestos e palavras que possibilitaram a nossa identidade

enquanto seres "respondentes" e dialogantes. E que sucede quando as identidades não

podem emergir porque não há contexto dialogal que possibilite seu surgimento?

Vale a pena falar sobre esses implícitos, essas pressuposições comunicativas da

própria estrutura de nossas linguagens e do próprio fato de as usarmos. Precisamos

aprofundar a questão da relação dialoga; enquanto elemento originante da abertura às

diferenças desde o interior das próprias experiências da aprendizagem. Por exemplo:

construir campos do sentido nos quais se perceba imediatamente que eles foram articulados

a partir de um desejo solidário e de uma sensibilidade solidária.

A aprendizagem solidária quer atender ao jeito cooperativo de funcionar dos nossos

neurônios. São morfogeneticamente solidárias as linguagens e idéias que já nascem

brincando com linguagens e idéias diferentes. A própria maneira de vincular palavras e

significados pode ser aberta a conexões, assim como os hipertextos da Internet estão cheio

de links. O jeito solidário de pensar não exclui pensamentos contraditórios. Tolera-os como

algo natural, mas não os persegue obsessivamente como se fossem uma imposição cruel da

qual nos deveríamos livrar a todo custo.

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177

Que significaria, por exemplo, pensar transdialeticamente? Uma dialética de opostos

rígidos, na qual não se pressinta nem uma convergência dos contrários, é possivelmente a

tentação atávica da nossa espécie de não tolerar diferenças, cuja harmonização pareça estar

fora do alcance da nossa ação. Ou talvez essa rigidez dialética seja o sintoma de que a nossa

cultura ainda não sabe lidar com a morte como parte dos processos vivos. Querer levar o

jeito solidário de pensar até as vertigens mais radicais que a finitude e transitoriedade da

vida implicam não precisa ser um processo sádico e autotorturante. Trata-se de lidar

naturalmente com problemas relacionados com limitações naturais em nossa vida

cotidiana. Só podemos ser solidários se tivermos uma profunda capacidade de tolerância

em relação a soluções imperfeitas de problemas muito comuns. O pensamento solidário

deve ser complacente com os paradoxos.

Conhecimento como aposta ética transdisciplinar

Ética é, no fundo, saber situar-nos neste mundo como seres solidários. Hoje ainda

prevalece, por muitos lados, a tendência de situar as questões éticas num campo de

referências ou princípios distinto do campo dos princípios operacionais. Tudo o que se

refere ao agir operacional visaria a eficácia prática. E tudo que se refere ao ordenamento

geral das relações entre as pessoas e das relações sociais na sociedade estaria submetido,

numa nebulosa instância separada, a princípios éticos cuja validez, novamente em última

instância, seria de alguma forma superior aos meros princípios operacionais.

Este é um estranho dualismo entre a operacionalidade voltada para a eficácia e os

princípios éticos orientadores das relações entre as pessoas e do bem comum. É

efetivamente incrível como se possa separar as coisas dessa maneira. Esse tipo de dualismo

está de fato muito presente na mentalidade geral das pessoas, inclusive no pensamento de

muitos/as educadores/as. Recentemente ainda escutamos a seguinte ponderação de um

educador : "Os valores éticos devem ser ensinados por separado e não misturar-se com os

conteúdos formais de cada disciplina. Uma pedagogia da solidariedade só é possível se

funcionar bem essa instância ética com sua finalidade própria."

Como se pode notar, esse pedagogo aplicou coerentemente o princípio da separação

entre as disciplinas - cada disciplina confinada em seu terreno próprio - à formação em

princípios éticos. Segundo esse tipo de concepção da Educação, é impossível, além de

desnecessária, uma preocupação com a dimensão solidária no interior do próprio processo

do conhecimento. Não existiria uma questão epistemológica relacionada diretamente com a

solidariedade, posto que ela seria assunto de um compartimento separado, chamado ética.

Não basta, porém, pretender uma impregnação ética transdisciplinar. O caráter

transdisciplinar deve ser postulado em relação a todo conhecimento, como uma dimensão

presente em todas as disciplinas, e não apenas no que se refere aos princípios éticos.

Acostumar-se ao pluralismo teórico em tudo

A solidariedade deve enraizar-se na pré-disposição de nossa forma de pensar - da

nossa forma mentis - à admissão e aceitação tolerante das diferenças no interior do próprio

mundo das idéias, posto que chegamos definitivamente à era do pluralismo teórico, do

pluralismo ético e do inevitável pluralismo das preferências individuais. Ser solidário

significa, portanto, estar constantemente aberto a negociar consensos possíveis dentro de

estruturas do sentido muitas vezes discrepantes em relação a um mesmo assunto.

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178

A situação atual das ciências, das teorias de qualquer tipo, e portanto também, e dos

problemas ético-sociais é de pluralismo irredutível em muitos casos teóricos e práticos. A

questão da democracia não é apenas uma questão de ordenamento social. O princípio da

democracia deve penetrar até o fundo as nossas formas de pensar de maneira que elas se

tornem radicalmente abertas ao diálogo com posições diferente sobre um mesmo tema ou

uma mesma opção. É neste contexto que surge uma faceta bastante nova da questão da

solidariedade. É insuficiente qualquer solidariedade que seja apenas uma espécie de apelo,

ad-hoc para uma circunstância social determinada. Isso não significa que as formas

transitórias e até eventualmente oportunistas de solidariedade não possam cumprir um

papel importante em situações emergenciais.

Precisamos levar a solidariedade ao interior do pensar até aquele nível de pluralismo

que admita a impossibilidade de chegar a uma unificação do sentido enquanto vivência

pessoal de pessoas que vivem situações diferentes. Essa questão é sumamente complexa e

delicada porque implica em admitir que não existe um sentido único nem uma verdade

única das coisas em nossas vidas tão diferenciadas. A tendência para continuar agarrados à

meta nunca atingível de um sentido unificado para todos é muito forte, porque é uma

herança típica de toda nossa tradição ocidental cristã. É sumamente difícil para as pessoas,

que estruturam suas percepções do sentido a partir de verdades religiosas, admitir que é

necessário abandonar, na teoria e na prática, a obsessão pela verdade única e pelo sentido

único, para poder chegar a uma abertura solidária desde o interior de nossas formas de

pensar.

É preciso meditar sobre a nossa perda de aberturas multirreferenciais - e nesse

sentido, de radical democraticidade no modo de pensar - através de nossas uniformizações

nas línguas. A excessiva unificação das capacidades lingüísticas, já foi percebida por

Ferdinand Saussure como gênese de comportamentos fascistas. Solidariedade no pensar

significa também estar conscientes do caráter relativo e da precariedade de todas as nossas

formas de expressão.

Aprender requer uma chispa lúdica

"São os seus olhos!" Essa modéstia feminina não só nos diz que a beleza precisa do

olhar para ser percebida. A frase nos dá uma lição epistemológica: A verdade sempre

precisa do olhar. Tudo o que faz sentido - a saúde, o morar, a alegria de viver, a amizade, a

paixão e tanta coisa mais - só faz sentido porque houve a aposta enactante do olhar,

conferidor de sentido.

Nada pode ser totalmente esclarecido, se pretendermos que essa palavra tenha um

sentido radical. Nada pode ser reduzido a um feixe de pura luz. A "laserização" do

conhecimento é impossível. Aliás, seria humanamente prejudicial. Cuidemos com isso de

pensamentos afiados e verdades cortantes. A obsessão aos idiomas ocidentais (só os

ocidentais?) têm pela metáfora da luz - esclarecer, iluminar, à luz de, vir à luz, focalizar,

etc., etc. ...até o iluminismo - é uma patologia não apenas lingüística, mas epistemológica.

O reconhecimento de que existem muitas coisas não totalmente claras é um aspecto

fundamental da maneira humana de conhecer. Será que as sombras são o elo perdido entre a

claridade e as trevas? Por que inventamos nascimentos de deuses na noite mais longa (na

Europa, é claro)? A sombra não é a escuridão, mas a prova de que a pretensão da pura luz é

humanamente enganosa.

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179

Um/a professor/a que acha ter esgotado uma explicação certamente ainda não

entendeu que toda a realidade tem infinitas dobras. Ex-plicar significa desdobrar (plica é

dobra, em latim). No mundo real da nossa experiência, no qual toda realidade é realidade

construída, nada é totalmente desdobrável - ex-plicável - nem sequer nas melhores

linguagens formais da matemática e da geometria euclidiana. Tudo tem outros

endobramentos, não sabidas im-plicações. Ensinar não significa pretender ser um ex-

plicante encarregado de repassar saberes prontos. Ensinar talvez seja mostrar algumas

dobras de tal maneira que os aprendentes aprendam a desdobrar e a endobrar os assuntos

sérios e gostosos da sua vida e do mundo à sua volta. Ensinar é, também, não eliminar

nunca o momento-chave para insistir que, no mesmo assunto, ainda há outras dobras não

desdobradas. Quem disser que isso significa complicar demais as coisas não entendeu que

com-plicar (relacionar dobras) faz parte do respeito à realidade, que jamais deve ser

enrijecida ou congelada.

As coisas não nos dizem o que são. Os seres humanos, muito menos. Mesmo porque

nem saberiam dizê-lo. O poeta alemão Goethe elaborou uma famosa teoria das cores. Nela

insinua, entre muitas outras coisas divertidas, que as cores são uma atribuição nossa aos

"objetos" exteriores, e isso em pelo menos dois sentidos: primeiro, porque olhar é

construção do cérebro inteiro e não só da retina (coisa que Goethe mal sabia, mas nós bem

sabemos hoje); segundo porque existem aspectos emocionais em nossa percepção das

cores. Vamos dar um exemplo brincalhão: quão vermelhos são os verdes? (quão de

esquerda são os ecologistas?). A teoria relativista das cores do poeta Goethe inclui a teoria

recepcionista de Newton, mas a de Newton não inclui a de Goethe.

Conhecimento e esperança180

A esperança, como experiência pessoal, tem uma relação profunda com a

capacidade de aprender e com as formas que o conhecimento assume na vida de cada

pessoa. Quem perde a esperança perde também potencial cognitivo. A esperança é, entre

outras coisas. uma invasão benéfica dos outros em nossa identidade. Esperança inclui o

reconhecimento do diferente sob dois aspectos: o diferente enquanto possível e o diferente

que já existe. O diferente enquanto possível, é o diferente ainda inédito. É a esperança que

o institui como possível. A esperança inova realidades. No cerne da esperança sempre

palpita o desejo. Muitas vezes chamamos de esperança aquilo que desejamos inovar. Mas

será que o diferente inovador pode surgir para mim quando depende inevitavelmente de

tantas coisas fora de mim? Para mim só será um diferente novo na medida em que

despontar dentro de mim. Quem espera é inevitavelmente um ser criador dos "objetos" do

seu desejo.

No fundo, talvez nem importe tanto saber se os desejos podem cumprir-se

adequadamente. A sua simples existência é mais importante que esse cumprimento. Isso

também vale em parte para a esperança, embora essa precise ser um pouco mais cautelosa

que o desejo, já que é uma experiência que anseia ser compartida com outros. O desejo

evidentemente também almeja o encontro. Mas ele desponta sem fazer desse trajeto de

chegadas e acolhidas uma precondição da sua existência. A esperança é mais que um

180

Aqui gostaríamos de registrar que Paulo Freire deu muita importância ao tema da esperança na fase final

da sua vida. Ele havia visto de perto tantos esforços generosos e também não poucos equívocos. Cf. seu livro

Pedagogia da Esperança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

Page 180: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

180

simples desejo porque inclui uma aposta em trajetos de caminho compartido. O desejo

pode arriscar-se a ser, e muitas vezes é um auto-engano. Existem auto-enganos saudáveis.

O auto-engano desejante provavelmente faz parte da estratégia de auto-incremento da vida.

Não há nenhum problema em admitir que a verdade do desejo pode ser perfeitamente uma

ilusão consentida. Mas todos sabemos que não convém exagerar na dose de ilusões. A

esperança, por ser um mundo de desejos criativos compartidos, precisa vigiar um pouco

mais os seus auto-enganos.

A ligação da esperança com a solidariedade pode ser expressada em múltiplas

linguagens. Muitos preferem as das ciências humanas (a sociologia, a antropologia, a

psicologia, etc/) façamos um esforço de utilizar linguagens mais próximas às biociências.

Ter esperança solidária significa compartir ecossistemas do sentido, que têm muitas

semelhanças com os ecossistemas naturais. Os ecossistemas da esperança são habitats do

sentido. Esperar significa morar neles como quem se sente à vontade em sua casa (o

filósofo Heidegger escreveu coisas muito profundas e lindas sobre esse "morar" que faz

parte do viver).

Os ecossistemas naturais são constituídos por nichos plurais que abrigam formas

diferenciadas de vida. Os ecossistemas do sentido obedecem igualmente a esse princípio da

diversidade e da diferença dos seres que compartem um mesmo habitat do sentido. Nós

construímos nossos mundos do sentido capazes de abrigar nossas esperanças. Esperança é

como já dissemos uma apreensão do possível enquanto parte do mundo construído por nós.

Dizendo a mesma coisa em forma de pergunta: Há esperança fora de nossos constructos do

sentido, fora dos nossos campos de energização?

Esperança implica num sábio uso da energia humana disponível. Quando se torna

um desgaste excessivo dessa energia deixa de ser esperança vitalizadora. Os ideais

solidários devem respeitar este princípio para que a esperança "profetizada" (isto é

introduzida pela linguagem em ações comunicativas) não se transforme em desesperança

destruidora.

A ousadia faz parte da esperança, mas pode destruí-la quando desconhece um uso

sábio da energia humana disponível. Não basta, pois, empurrar-nos reciprocamente para

dentro de caminhos supostamente esperançadores. Ao momento do impulso e do incentivo

deverá seguir o da reflexão sábia sobre nossos desgastes e nossas disponibilidades reais.

Insistir nisso não significa desvalorizar o júbilo do começar. A vida também é um

recomeçar continuado. Trace o seu caminho, a vida se encarregará dos meandros

necessários. A parada asfixia. Olhe para longe, mas não deixe de tocar o que está perto.

Tocar é uma forma profunda de admirar. O conhecimento não se reduz à percepção sensual,

mas jamais existe sem ela.

Sonhar é preciso, sempre. Mas também nas interações sociais a coragem de sonhar

deveria preservar o sábio uso de energias que geralmente preservam os nossos sonhos

durante o sono. Se não está sonhando bem, porque estás mergulhado num pesadelo,

geralmente despertas. Também nos sonhos coletivos, se não estamos sonhando bem,

convém despertar.

Manter viva a curiosidade

O que a escola nunca deveria fazer - mas que, talvez, seja o que ela mais tem feito -

é limitar a curiosidade. Na aprendizagem personalizada a curiosidade tem um papel

fundamental. Ela mantém viva a dimensão desejante do conhecimento. Com isso, ela

Page 181: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

181

estimula a esperança para ter a coragem de ir além daquilo que é trivial ou facilmente

executável. A curiosidade e a esperança fazem que o possível aumente de tamanho, tornam

o possível elástico.

A curiosidade é fundamental para lidar com os limites do possível. Na efetivação

das esperanças humanas sempre fica omitido algo de muito importante. Podem-se omitir

coisas por querer ou por cálculo. Sejamos honestos: no convívio social sempre se

intrometem também omissões calculadas. E isso dói muito. Mas, por outro lado, há

omissões que não quisemos cometer. Simplesmente acontecem porque, no fundo, sempre

há algo importante que nos escapa.

Talvez ser humano/a também signifique precisamente isto: dar-se conta de que,

felizmente ou infelizmente, há coisas incríveis e maravilhosas que ainda nos escapam.

Saber disso pode ajudar-nos a melhorar nossos anseios. Mas obsessionar-se com isso pode

gerar desgastantes frustrações existenciais. Muitas frustrações não são outra coisa que a

não-aceitação do milagre de que há coisas importantes que ainda não foram devidamente

adivinhadas por nossa limitada curiosidade. Por isso o aprender de hoje deve ser uma

predisposição para o aprender de amanhã.

Aprender a aprender é manter acesa a curiosidade. O mero ensinar, ou a mera

entrega de saberes supostamente prontos, mata a curiosidade. É neste ponto que a escola

mais peca: ela extirpa a curiosidade, em vez de alimentá-la. É bom saber que apagar

curiosidades é despotenciar neurônios do cérebro humano.

A ousadia faz parte da esperança, mas pode destruí-la quando desconhece um uso

sábio da energia humana disponível. Não basta, pois, empurrar-nos reciprocamente para

dentro de caminhos supostamente esperançadores. Ao momento do impulso e do incentivo

deverá seguir o da reflexão sábia sobre nossos desgastes e nossas disponibilidades reais.

Insistir nisso não significa desmerecer o júbilo do começar. A vida também é um

recomeçar continuado. Trace o seu caminho, a vida se encarregará dos meandros

necessários. A parada asfixia. Olhe para longe, mas não deixe de tocar o que está perto.

Tocar é uma forma profunda de admirar . O conhecimento não se reduz à percepção

sensual, mas jamais existe sem ela.

Sonhar é preciso, sempre. Mas também nas interações sociais, a coragem de sonhar

deveria preservar o sábio uso de energias, que geralmente caracteriza os nossos sonhos

durante o sono. Quando, durante o sono, a gente não está sonhando bem, porque está

mergulhada num pesadelo, geralmente desperta. Também nos sonhos despertos, individuais

e coletivos, se não estamos sonhando bem, convém despertar. Mas despertar não tem nada

a ver com a perda da curiosidade. É um modo de reavivá-la.

Compreender a sociedade ampla e complexa

Nossa herança cultural é ainda espantosamente primitiva e inclui muito poucos

elementos relacionados com o que se poderia chamar genericamente de princípios

organizativos em sociedades amplas, complexas e urbanas. Em contrapartida, nossa

herança cultural arrasta consigo uma quantidade enorme de princípios organizativos válidos

em contextos grupais e comunitários, que se limitavam a um número bastante escasso de

membros. Somos ainda carentes de sabedoria ética para o mundo complexo no qual

vivemos, que de certa forma, nos apanhou de surpresa.

Os princípios organizativos pós-comunitários têm uma história de menos de três

séculos. Os fenômenos auto-organizativos dos processos vivos de caráter social carecem

Page 182: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

182

ainda de uma linguagem ética correspondente à sua dinâmica. Existe um descompasso entre

os princípios organizativos das sociedades complexas e seus princípios éticos. Para não

assustar-se demasiado com tão pavorosa constatação talvez seja útil compará-la com os

grandes saltos nas exigências da Educação letrada.

Faz pouco menos de um século que a humanidade começou a dar-se conta de que a

cultura letrada se estava transformando em pré-requisito cada vez mais universal para a

habilitação para o trabalho. Somente nas últimas duas décadas começamos a perceber que a

própria noção de trabalho foi transformada intrinsecamente não apenas por uma exigência

genérica de cultura letrada, mas por uma noção profundamente nova do conhecimento.

Essa nova noção do conhecimento é tão dinâmica que já nem parece comparável

com o fácil uso do plural "conhecimentos", no sentido de saberes acumulados, manejado

ainda hoje por muitos/as professores/as. A partir do momento em que conhecer passou a

significar, basicamente, estar em condições de continuar aprendendo pelo resto da vida, o

próprio conceito de cultura, assim como a própria função da Educação se transformou

completamente.

Page 183: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

183

Capítulo 9

O IMPACTO SÓCIO-COGNITIVO

DAS NOVAS TECNOLOGIAS

Este capítulo é uma introdução sumamente compacta aos novos espaços e às novas

modalidades do conhecimento ensejados pelas novas tecnologias da informação e da

comunicação. A espécie humana alcançou uma fase evolutiva inédita na qual os aspectos

cognitivo e relacional da convivialidade se estão transformando numa rapidez nunca vista.

Isso se deve em boa parte à função mediadora, quase onipresente, dessas novas tecnologias.

Junto às oportunidades enormes de incremento da sociabilidade humana surgem também

novos riscos de discriminação e desumanização.

No tocante à aprendizagem e ao conhecimento, chegamos a uma transformação sem

precedentes das ecologias cognitivas, tanto das internas da escola como das que lhe são

externas, mas que interferem profundamente nela. As novas tecnologias não substituirão

o/a professor/a, nem diminuirão o esforço disciplinado do estudo. Mas elas ajudam a

intensificar o pensamento complexo, interativo e transversal, criando novas chances para a

sensibilidade solidária no interior das próprias formas do conhecimento.

Tecnologias versáteis facilitam aprendizagens complexas e cooperativas

As novas tecnologias da informação e da comunicação já não são meros

instrumentos, mas feixes de propriedades ativas. São algo tecnologicamente novo e

diferente. As tecnologias tradicionais serviam como instrumentos para aumentar o alcance

dos sentidos e ações mais externos (braço, visão, movimento, etc.). As novas tecnologias

ampliam o potencial cognitivo do ser humano (seu cérebro/mente) e possibilitam mixagens

cognitivas complexas e cooperativas. Uma quantidade imensa de insumos informativos está

à disposição nas redes (entre as quais ainda sobressai a Internet). Um grande número de

agentes cognitivos humanos podem interligar-se num mesmo processo de construção de

conhecimentos. E os próprios sistemas interagentes artificiais se transformaram em

máquinas cooperativas, com as quais podemos estabelecer parcerias na pesquisa e no

aviamento de experiências de aprendizagem.

Para evitar mal-entendidos é importante prevenir: a crítica à razão instrumental

continua sendo um desafio permanente. Nada de redução do Lógos à Techné. Mas

doravante já não haverá instituição do Lógos sem a cooperação da Techné. As duas coisas

se tornaram inseparáveis em muitas das instâncias – não em todas, é claro - do que

chamamos aprender e conhecer. Estamos desafiados a assumir um novo enfoque do

fenômeno técnico. Na medida em que este se tornou co-estruturador de nossos modos de

organizar e configurar linguagens, penetrou também nas formas do nosso conhecimento.

Isto significa que as tecnologias da informação e da comunicação se transformaram

em elemento constituinte (e até instituinte) das nossas formas de ver e organizar o mundo.

Aliás, as técnicas criadas pelos homens sempre passaram a ser parte das suas visões de

mundo. Isto não é novo. O que há de novo e inédito com as tecnologias da informação e da

comunicação é a parceria cognitiva que elas estão começando a exercer na relação que o

aprendente estabelece com elas. Termos como "usuário" já não expressam bem essa

Page 184: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

184

relação cooperativa entre ser humano e as máquinas inteligentes. O papel delas já não se

limita à simples configuração e formatação, ou, se quiserem, ao enquadramento de

conjuntos complexos de informação. Elas participam ativamente do passo da informação

para o conhecimento.

Está acontecendo um ingresso ativo do fenômeno técnico na construção cognitiva

da realidade. Doravante, nossas formas de saber terão um ingrediente – um entre muitos

outros, é bom frisar - derivado da nossa parceria cognitiva com as máquinas que

possibilitam modos de conhecer anteriormente inexistentes.

Em resumo, as novas tecnologias têm um papel ativo e co-estruturante das formas

do aprender e do conhecer. Há nisso, por um lado, uma incrível multiplicação de chances

cognitivas, que convém não desperdiçar mas aproveitar ao máximo. Por outro lado, surgem

sérias implicações antropológicas e epistemológicas nessa parceria ativa do ser humano

com máquinas inteligentes.

Que é que muda no próprio sujeito do processo criativo do aprender, quando ele

acontece numa parceria co-instituinte e co-estruturante na qual a máquina, que é um “novo

objeto” definível como feixe de propriedades cognitivas? Como se entrelaçam o papel ativo

do ser humano e as funções não puramente passivas ou comandadas, mas parcialmente

ativas e geradas autonomamente pela máquina? Tudo indica que chegou a hora de colocar

em novas bases a própria questão do sujeito epistêmico. Ou será que isso nos parece tão

novo só porque nunca havíamos levado a sério a evolução, nunca havíamos pensado de

forma conseqüente o que implica aceitar que somos fruto dos nichos vitais que nos

acolheram, ou que construímos para nossa espécie, ao longo de toda a evolução?

Essas coisas devem parecer bastante estranhas, ou não ter nenhum sentido, para

quem usa o computador apenas como máquina de escrever com alguns recursos a mais.

Talvez já comecem a fazer sentido para quem redige textos com o recurso abundante a

deslocamentos porções de texto, recurso constante a muitos arquivos, abertura de

multitelas, etc. Creio que aumentará de sentido para quem é cibernauta, isto é, navegante

mais ou menos assíduo da Internet, pesquisando com os robôs de busca (AltaVista, HotBot

e tantos outros) no ciberespaço cada vez mais ilimitado. Mas o que eu disse só adquire um

sentido forte para quem trabalha com sistemas multiagentes, onde aparecem a relativa

autonomia e os níveis cognitivos emergentes propiciados pelo uso de algoritmos genéticos

(ou seja, programas que se auto-organizam e auto-re-programam).

Hipertextualidade: a chance do estudo criativo

Não vamos deter-nos longamente neste tópico, já que se trata de um assunto

conhecido para qualquer navegador/a da Internet. Do ponto de vista técnico, o hipertexto

foi a passagem da linearidade da escrita para a sensibilização de espaços dinâmicos. Como

conceito de conectividade relacional mediada pela tecnologia, podemos definir a

hipertextualidade como um vasto conjunto de interfaces comunicativas, disponibilizadas

nas redes telemáticas. No interior de cada hipertexto nos topamos com um conjunto de nós

interligados por conexões, nas quais os pontos de entrada podem ser palavras, imagens,

ícones e tramações de contatos multidirecionais (links). É importante destacar que o

hipertexto contém geralmente suficientes garantias de retorno para que os sujeitos

interagentes se sintam seguros em sua navegação.

Do ponto de vista diretamente cognitivo, o hipertexto não é uma simples metáfora

de novas atitudes aprendentes, que buscam criativamente novas maneiras de conhecer. É,

Page 185: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

185

também e sobretudo um desafio epistemológico, ou seja, o processo do conhecimento se

transforma intrinsecamente numa versatilidade de iniciativas, escolhas, opções seletivas e

constatações de caminhos equivocados ou propícios. Isso permite analogias diretas como as

coisas acontecem em nosso cérebro/mente, capacitado para apostas enactantes em mundos

diversificados do sentido. Mas da mesma maneira como se pode seguir numa utilização

meramente instrumental e pouco criativa das novas tecnologias, é também sinistramente

plausível que, em muitas escolas, o potencial dos aprendentes continue submetido a um

verdadeiro apartheid neuronal.

Em síntese, a tecnologia do hipertexto e a sucessiva incrementação de sua dinâmica

interna, criou uma enorme facilidade para a pesquisa criativa, porque transformou os modos

de tratar, acessar e construir o conhecimento. Dessa forma, também ensejou um novo

entendimento da própria realidade enquanto realidade discursiva, construída mediante

nossas maneiras de enactá-la, isto é, de apostar ativamente em mundos do sentido,

ingressando neles através de nossos processos do conhecimento181

.

A passagem a um paradigma cooperativo do conhecimento

Mediante o uso de memórias eletrônicas hipertextuais, que podem ser consideradas

como uma espécie de prótese externa do agente cognitivo humano

As redes funcionam como estruturas cognitivas interativas pelo fato de terem

características hipertextuais e pela interferência possível do conhecimento que outras

pessoas construíram ou estão construindo. Com isso, o/a aprendente pode assumir o papel

de verdadeiro gestor dos seus processos de aprendizagem.

Precisamos visualizar conjuntamente os agentes humanos e a tecnologia versátil de

modo a superar uma concepção demasiado maquínica da interação entre seres humanos e

ambientes cognitivos artificiais. Trata-se de entender que, embora preservando uma série de

aspectos típicos das racionalidades instrumentais e das linguagens reducionistas, as

tecnologias adquiriram tamanha versatilidade e disponibilidade cooperativa que podemos

chamá-las sistemas cooperativos ou interfaces de parceria entre o homem e a técnica.

Marvin Minsky não duvida em aplicar aos sistemas multi-agentes artificiais uma

forte característica criativa:

...o surpreendente surgimento, a partir de um sistema complexo, de um fenômeno

que não parecia inerente às diferentes partes desse sistema. Esses fenômenos

emergentes ou coletivos mostram que um todo pode ser superior à soma das

partes182

.

Aprendentes humanos podem, agora, situar-se no interior de ecologias cognitivas

nas quais a morfogênese do conhecimento passa a acontecer sob a forma daquilo que Pierre

Lévy denomina inteligência coletiva183

. A construção do conhecimento já não é mais

181

Para maior bibliografia e abordagem pedagógica do tema, ver GONÇALVES DE SOUZA, C.R. As

implicações pedagógicas de uma visão hipertextual da realidade. Piracicaba, Unimep. dissertação de

mestrado, 2000. (Orientador: Hugo Assmann) 182

Apud. LINK-PEZET, Jo. De la représentation à la coopération: évolution des approches théoriques du

traitement de l'information. Disponível na internet, cf. Solaris, Sommaire du dossier no. 5. 183

LÉVY, P. A inteligência coletiva. São Paulo: Loyola, 1998; do mesmo autor: As tecnologias da

Inteligência. Rio de Janeiro: Editora 34, 1993. Cibercultura. Rio de Janeiro: Editora 34, 1999.

Page 186: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

186

produto unilateral de seres humanos isolados, mas de uma vasta cooperação cognitiva

distribuída, na qual participam aprendentes humanos e sistemas cognitivos artificiais. Isso

implica em modificações profundas na forma criativa das atividades intelectuais. Doravante

precisamos incluir a cooperação da técnica em nossos modos de pensar184

. Segundo alguns

autores, já começou a acontecer uma experiência aprendente profundamente inovadora, na

qual já não se trata de uma relação de dependência recíproca entre o sujeito cognoscente e

seus instrumentos técnicos, mas de uma "auto-constituição ontológica de um novo sujeito a

partir dos seus objetos185

" que são agora versáteis e cooperantes.

A criação de memórias eletrônicas coletivas obedece ainda normalmente a um

esquema estrito de linguagens formais. Mas a co-presença de agentes cognitivos humanos e

artificiais, na ativação das interfaces comunicativas entre os agentes humanos e aquilo que

está disponibilizado nas, e que é ativável por máquinas cooperantes, já constitui uma

ecologia cognitiva surpreendentemente criativa. Já não cabem dúvidas de que nesse

processo cognitivo surgem fenômenos de descobertas imprevistas, cujas características não

estavam pré-programadas daquele jeito nas máquinas, nem previstas na expectativa dos

agentes humanos. É a essa versatilidade criativa que muitos autores se referem quando

usam conceitos como auto-organização e emergência186

para referir-se às inovações

criativas do conhecimento, que se tornaram possíveis mediante a cooperação humana com

organizações hipercognitivas hipertextuais nas máquinas inteligentes.

O agenciamento cooperativo dos campos do sentido

Já vimos que o hipertexto enseja uma libertação e explosão do pensamento criativo.

Vimos depois como acontece uma presença ativa de outros agentes cognitivos - humanos e

máquinas cooperantes - num mesmo processo de construção cooperativa do conhecimento.

Apontamos que essa dinâmica cooperativa do conhecimento apresenta fenômenos de auto-

organização e níveis criativos emergentes. Passemos agora explicitamente da questão das

formas sintaticamente complexas e cooperantes, na constituição dos campos semânticos,

para a questão mais de fundo, que é a do caráter igualmente cooperativo dos mundos do

sentido que emergem e do papel solidário dos agentes que interferem campos do sentido.

Comecemos com uma citação de Jo Link-Pezet:

Para Piaget, o conhecimento acontece no momento em que o pensamento lógico do

racionalismo e a experiência sensorial se encontram num processo dialético e

dinâmico do pensamento, no qual essa dualidade co-existe. Essas duas visões se co-

especificam uma à outra em um movimento de vai-e-vem, superando a rigidez do

pensamento cartesiano e pondo em evidência a relação constitutiva que existe entre

184

Lopes Guimarães Jr., M J. A cibercultura e o surgimento de novas formas de sociabilidade. Disponível na

Internet, junho/2000. 185

LINK-PEZET, Jo., Loc cit.; ALLIEZ, E. La signature du monde. Paris: Ed. Du Cerf, 1993. (Trad. port.

pela Editora 34). 186

Para uma análise mais detida do tema e ampla bibliografia conf. SKIRKE, Ulf. Technologie und

Selbstorganisation, Disponível na internet, junho/2000. Para uma história dos usos do conceito de emergência

ver STEPHAN, A. Emergenz - Von der Unvorhersagbarkeit zur Selbstorganisation (Emergência. Da

impredictibilidade à auto-organização), Dresden-München: Dresden University Press, 1999.

Page 187: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

187

o homem e o seu ambiente, entre o sujeito (que conhece) e aquilo que é conhecido

(objeto do conhecimento), entre o homem, seu corpo e sua experiência187

.

Esta é uma descrição, que julgamos bastante fiel do ponto no qual se estagnou o

construtivismo de Piaget. Ele ainda está marcado por uma visão da racionalidade

fortemente intelectualista ou, se quiserem, pela razão formalizante, preocupada

prioritariamente com os níveis de explicitação consciente das formas do conhecimento.

Dentro de uma certa continuidade, mas também com alguns lances de ruptura com o

pensamento construtivista piagetiano, surgiram várias propostas inovadoras acerca da

morfogênese do conhecimento.

É neste contexto que, a nosso modo de ver, a relevante contribuição de Humberto

Maturana e Francisco Varela188

, que supomos relativamente conhecida, nos situa num

patamar novo. Gostaríamos de enfatizar que eles nos propiciaram a visão de

entrelaçamentos fecundos entre as redes neuronais, a teia da vida em geral e as redes

telemáticas.

Cabe mencionar agora, de passagem, a direção para a qual se orientam as

contribuições do assim chamado pensamento pós-formal. Ele busca abordar certos aspectos

que rompem com as concepções racionalistas de construção do conhecimento. A ênfase é

posta, agora, nos aspectos aleatórios, nas turbulências neuronais, nas perturbações

imprevistas da atenção, nos elementos de indeterminação, enfim, na dinâmica de constante

mudança propiciada por novelos de retroalimentação, que acontecem efetivamente em

nosso sistema neuronal e que já podem ser simulados parcialmente por máquinas

inteligentes.

Muito próximo a esse tipo de problematização está o pensamento de Michel

Polanyi189

, que distingue entre os níveis tácitos e os níveis explícitos na construção tanto

dos campos semânticos, quanto, sobretudo, dos mundos do sentido. Já Merleau-Ponty

ponderava que os níveis implícitos e explícitos do conhecimento são complementares e,

portanto, tão intimamente ligados à experiência e à corporeidade que não é possível separá-

los. A novidade do pensamento de Michel Polanyi nos parece consistir na relevância que

ele atribui àquilo que denomina níveis tácitos. Torna-se, assim, evidente que, doravante, é

recomendável alinhar-se com a apreciação positiva daquilo que Michel Maffesoli190

denomina "razão sensível".

Demos ainda um pequeno passo adiante. Queremos tornar perceptível que o

agenciamento, cognitivo e experiencial, dos mundos do sentido é um processo marcado por

uma dimensão solidária ativa de vários agentes cognitivos cooperantes. Para expressar isso,

nada melhor que o conceito de enação de Varela.

187

LINK-PEZET, Jo. loc. cit. 188

MATURANA, H., VARELA, F. A árvore do conhecimento. Campinas: Editorial Psy, 1995; Para

aprofundar o conceito de enação, ver o longo prefácio de Francisco Varela à segunda edição de

MATURANA, H. VARELA, F. De máquinas e Seres Vivos. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997; VARELA,

F. et al. The Embodied Mind. Massachessetts: The MIT Press, 1991; VARELA. F. et al. A mente inclusiva:

ciência cognitiva e a experiência humana. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 2000. De MATURANA, H. A

ontologia da realidade. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1997; Emoções e linguagem na educação e na

política. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999. Os dois autores têm sites na Internet. 189

Entre a várias obras de M. POLANYI destacaríamos A dimensão tácita (The Tacit Dimension). Em

francês, Paris: PUF, 1966. 190

MICHEL, M. Elogio da Razão Sensível. Petrópolis/RJ: Vozes, 1998.

Page 188: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

188

Na esteira de Merleau-Ponty, Varela nos convida a considerar-nos como estruturas

internas e externas, biológicas e fenomenológicas, e a considerar a corporeidade

da nossa experiência como nosso verdadeiro contexto cognitivo. A enação é uma

ação encarnada que se situa nesse contexto (experiencial e corporal). Ela se refere

ao fenômeno da interpretação, entendida como "um fazer-emergir da significação

sobre o pano de fundo da compreensão". (...) A emergência das significações

acontece através de agenciamentos coletivos 191

.

A experiência da superação da escassez

A expetiência da abundância e da liberdade de escolha no que se refere à música, à

televisão, aos poucos também a outras tecnologias informacionais, passou a fazer parte do

cotidiano de muitíssima gente. Trata-se de um tipo de experiência da superação da

escassez. As pessoas com razoáveis ingressos estão expandindo rapidamente esta

experiência a vários outros campos.

É certamente aconselhável proceder com certa cautela nesse assunto porque, antes

de fazer afirmações contundentes acerca do caráter inédito daquilo que as novas tecnologias

propiciam, convém refazer, talvez de maneira nova, algumas perguntas antigas. Por

exemplo: será que as nossas linguagens e nossas formas de conhecimentos foram alguma

vez inteiramente nossas ou estiveram desde sempre em estado de parceria, sofrendo

variadas intervenções internalizadas em sua própria gênese e constituição? Que trazem,

então, de efetivamente novo as novas máquinas cognitivamente cooperantes? Por acaso os

mitos, os tabus, os campos do sentido embutidos em nossas linguagens e as formas da

cultura não exerceram, desde milênios atrás, uma ativa parceria genética com os seres

simbolizadores que somos? Não acontecia já isso mesmo desde quando, há milênios, a

nossa espécie conseguiu criar meios para inventar e simular mundos, vivenciados como

reais, embora apenas virtuais, como é o caso dos mitos, dos dogmas, dos campos

semânticos de nossas linguagens, do dinheiro, etc.? Estamos presenciando algo realmente

novo?

Há certamente continuidades, como sói acontecer (p. ex. a "janelização" continua

ainda tecnicamente imprescindível para estabelecer conexões (links) telemáticos). O

próprio "fim da escassez" é uma característica aplicável apenas a alguns aspectos da

cibercultura. Os mitos também fingiam uma certa superação da escassez (p. ex. o mito da

redenção). Mas as novas tecnologias nos oferecem acessos não mediatizados por terceiros

(sacerdotes, mestres, etc.) à superabundância da informação. Queremos explicitar um alerta

crítico em relação a um tecno-otimismo desvairado, que geralmente recai em visões

gnósticas ou platônicas de um mundo soberanamente auto-organizativo, com escassa

previsão de interferência ativa dos sujeitos humanos, alentados por uma sensibilidade social

conscientemente cultivada192

.

Uma certa experiência do fim da escassez - ainda tão distante em tantos outros

aspectos da vida em sociedade - se tornou possível e repetível como experiência pessoal do

aprendente no mundo da informação e dos acessos à cultura. Palavras meio esdrúxulas

191

LINK-PEZET, Jo. loc cit. 192

É a impressão que nos dá o pensamento, aliás não isento de contradições, de DELFIM SOARES, em seu

Glossário de Sociocibernética e vários outros textos seus disponíveis na internet, junho/2000.

Page 189: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

189

como hipertextualidade, conectividade, transversa(tili)dade aludem sobretudo a esse caráter

experiencial que o fim da escassez está adquirindo. Será que há, finalmente, um tópos, um

lugar experiencial, no qual a exclusão está desaparecendo?

Parcerias epistemológicas de alto nível

Passemos a um exemplo de parceria transdisciplinar de alto nível entre

pesquisadores da área das Ciências Sociais e Peritos das Ciências Computacionais. O

exemplo que se aduz presta-se para deixar bastante claro que o problema de fundo não é

juntar esforços no plano do uso de máquinas cognitivas sofisticadas (sistemas multi-agentes

com forte recursividade algorítmica). Trata-se disso também, porque o pessoal da área de

Humanas e Sociais geralmente sub-utiliza os recursos computacionais disponíveis. O

problema de fundo, no entanto, é de índole epistemológica e ética. Trata-se do problema do

controle humano (e neste sentido, “racional”) das decisões e julgamentos que – como já o

velho Kant sabia muito – aparecem no interior da própria constituição das formas (da

morfogênese) do conhecimento. De que podemos abrir mão, e que não deveríamos delegar

jamais, à parceria ativa com máquinas cognitivas?

Em 1988, nos EUA, um grupo de sociólogos e peritos da Informática mais avançada

(Inteligência Artificial Distribuída) publicou uma série de ensaios com o estranho título The

Unnamable (Aquilo que não tem nome ou O [ainda] Inominável). Os estudos versavam

sobre a região teoricamente fronteiriça – ou, se quiserem: a interface epistemológica – entre

os pressupostos filosóficos e os modelos explicativos das Ciências Sociais e das Ciências

Computacionais. A partir do momento em que se começa a usar conceitos como

Inteligência Artificial, Vida Artificial, Sistemas Multiagentes, Algoritmos Genéticos,

Sistemas Complexos e Adaptativos , e por aí afora, estamos confrontados com implicações

filosóficas muito sérias.

Dez anos depois, na Alemanha, essa região sem nome passou a ter um nome,

oficializado (precariamente) em 1998 pela DFG (Deutsche Forschungsgemeinschaft – algo

parecido ao nosso CNPq, mas com recursos bem mais vultosos). O nome, agora

oficializado, é Sozionik (Sociônica).

Assim como na Biônica se tomaram as funções corporais como modelo para novas

técnicas, na Sociônica se trata da questão de como é possível tomar exemplos da

vida social para desenvolver, a partir deles, novas tecnologias computacionais.193

O “Programa-Eixo: Sociônica” (Schwerpunktprogramm: Sozionik) destina-se a

Expertos em Informática e Sociólogos e visa apoiar projetos de parceria (“projetos

tandem”) para a pesquisa e a modelização de socialidade artificial. Anotem o conceito

aparentemente ousado: künstliche Sozialität (socialidade artificial). Cito:

Trata-se da questão de como é possível tomar exemplos da vida social e

desenvolver, a partir deles, programas computacionais inteligentes. O Programa-

Eixo: Sociônica concentra-se em dois problemas básicos quando se trata da

interface entre Inteligência Artificial Distribuída e Sociologia: 1. Emergência e

193

DFG, Edital Nº 14 de 14 de julho de 1998. cf. Internet.

Page 190: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

190

Dinâmica de sistemas sociais artificiais; 2. Comunidades híbridas de agentes

humanos e agentes artificiais194

.

Os documentos tornados públicos até o momento são muito explícitos quanto à

incorporação de conceitos-chave da discussão sobre sistemas vivos enquanto sistemas

aprendentes, sobre organizações aprendentes, sobre sistemas complexos e adaptativos ou

sistemas dinâmicos, formas de socialidade artificial e temas similares. Pelo que consigo

perceber, já se manejam como óbvios uma série de conceitos que tem sérias implicações

filosóficas, como é o caso dos conceitos emergência e auto-organização (supostamente

espontânea). O debate parece deslocar-se explicitamente do plano técnico e operacional (as

formas de programação computacional) para o campo das implicações filosóficas, éticas e

políticas, ou seja: que tipo de níveis decisórios são podem ser “delegados” à crescente

“relativa autonomia cognitiva” dos sistemas multiagentes eletrônicos.

Perspectivas acerca do "homem simbiótico"

Para encerrar este condensado capítulo transcrevemos um texto sumamente

instigante, mas não isento de pontos polêmicos, de Joël de Rosnay195

.

As dez regras de ouro do homem simbiótico - Joël de Rosnay

Estas dez regras resumem e procuram tornar viáveis os princípios fundamentais

apresentados no decorrer do livro O Homem Simbiótico. Cada um poderia, assim, traduzí-

las em ações, estratégias e políticas em diferentes níveis de organização da sociedade. 1. Fazer emergir a inteligência coletiva: numerosos agentes obedecem a regras simples, e ligados por redes

de comunicação, podem resolver coletivamente problemas complexos. A inteligência coletiva é

catalisada pelas interconexões, criatividade individual, aceitação de regras e códigos, participação em um

projeto de conjunto, transmissão de uma cultura.

2. Fazer co-evoluir as pessoas, sistemas e redes: as relações que se estabelecem no quadro de uma co-

evolução entre indivíduos, organizações e máquinas favorecem as adaptações mútuas de estruturas e

funções. O ajuste e a regulação das evoluções por um conhecimento mais profundo da dinâmica dos

sistemas, assim como a sincronização e coordenação das operações, criam condições favoráveis a uma

co-evolução.

3. Garantir simbioses em diferentes níveis de organização da sociedade: inspirando-se em mecanismos

naturais da simbiose, convém procurar as condições que favoreçam o equilíbrio e o desenvolvimento

harmonioso de associações constituídas para benefício mútuo dos parceiros. Por exemplo, graças à

distribuição das tarefas segundo as competências, à economia dos metabolismos ou à partilha das redes

de comunicação.

4. Construir organizações e sistemas por camadas funcionais sucessivas: uma das regras de base da

evolução biológica é a estratificação das estruturas e das funções. Se um sistema funciona corretamente

em seu nível e confere ao organismo (ou organização) uma vantagem evolutiva, é conservado pela

seleção natural. Em vez de construir de novo sistemas complexos que implicam homens, máquinas e

redes a partir unicamente dos planos dos engenheiros, convém fazê-los crescer e complexificá-los por

empilhamento de funções e estruturas interdependentes. Se um subconjunto é satisfatório, a camada

superior e construída a partir dessa base.

5. Garantir regulação dos sistemas complexos por um controle descendente(hierárquico) e

194

DFG, Loc. cit. 195

ROSNAY,J.de. O Homem Simbiótico. Petrópolis: Vozes, 1997. (p. 391-394). Vale a pena conferir

também, de KISHO KUROKAWA, The Philosophy of Symbiosis, Disponível na Internet, mai/00.

Page 191: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

191

ascendente(democrático): as microiniciativas não coordenadas podem levar à anarquia; as diretrizes

impostas de cima, à ditadura. O compromisso necessário à governança do futuro baseia-se na

complementaridade entre controle descendente(top-down) e ascendente (bottom-up). O primeiro garante

as grandes orientações simbióticas , tais como a manutenção e desenvolvimento de parcerias; o segundo

faz emergir a inteligência e a criatividade coletivas.

6. Pôr em prática as regras da subsunção: a arte da subsunção consiste em integrar a individualidade em

"algo maior do que a própria pessoa" para que esta tire partido de tal situação e dê sentido à sua

existência. Ao abandonar uma parte do individualismo (ou soberania) que inibe as relações entre as

pessoas e entre as nações, torna-se possível criar associações simbióticas equilibradas. Cada um se

beneficia de regras conhecidas por todos e, assim, pode ter acesso a um nível superior de liberdade e

responsabilidade.

7. Saber manter-se à beira do caos: a simulação em computador da auto-organização de sistemas

complexos e respectiva evolução no tempo faz sobressair a importância de uma fase de transição entre a

turbulência estéril e a ordem rígida. A arte da condução de tais sistemas baseia-se na capacidade do piloto

de mantê-los "à beira do caos", isto é, um equilíbrio entre a Caribde da Desordem e a Cila da esclerose.

É nessa zona frágil e instável que podem surgir as estruturas, funções e organizações do mundo de

amanhã. O segredo de tal pilotagem: aceitar os riscos da mudança, embora conservando a estabilidade

das estruturas e funções.

8. Favorecer as organizações em paralelo: à semelhança do mundo vivo, convém pôr em prática o

paralelismo de tarefas nos processos de criação, produção e regulação. A abordagem analítica e taylorista

herdada do século XIX inibiu o desenvolvimento de redes humanas que funcionam como

multiprocessadores. Com o advento dos computadores pessoais poderosos e das redes mundiais de

telecomunicação, torna-se possível a colocação em paralelo de múltiplas funções societais. Esfuma-se a

compartimentação entre setores e aumenta a segurança com a redundância das operações. 9. Pôr em prática círculos virtuosos: a economia tradicional concentrou-se, sobretudo, na análise dos

mecanismos que determinam os rendimentos decrescentes: saturação de um mercado, redução das

margens, efeitos de concorrência... No entanto, os mecanismos que levam à auto-seleção de uma espécie

ou à criação de um mercado são de natureza autocatalítica. São círculos virtuosos. Para favorecê-los, é

necessário criar "nichos" de desenvolvimento, indispensáveis para a respectiva ampliação, assim como as

redes de comunicação que multiplicam os efeitos de sinergia. 10. Fractalizar os saberes: daqui em diante, comunicação, educação e culturas modernas não podem basear-

se em uma concepção linear e enciclopédica do conhecimento. A produção e transmissão de saberes

complexos e interdependentes têm necessidade de uma abordagem fractal e hipertextual da organização

das informações. A fractalização desses saberes cria germes de conhecimento reconstruíveis por cada um

segundo sua abordagem pessoal.

Page 192: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

192

Capítulo 10

MÍNIMA PAEDAGÓGICA

Este capítulo foi elaborado para servir como instrumento de trabalho em situações

nas quais se necessita de um apanhado breve e condensado, que ajude a refrescar a

discussão sobre o papel da educação numa perspectiva animadora, mas ao mesmo tempo

reflexiva e crítica.

Desejo e conhecimento

1. Que é para nós humanos o "real"?

Só se conhece aquilo que tem nexo com o mundo do desejável. Com variações

circunstanciais, a porção maior de nossos mundos desejáveis é bordada por linguagens que

borbulham desde o imaginário, e apenas uma parte menor delas obedece a costuras mais

exatas do nosso intelecto. Para os seres humanos o real não se reduz nunca a coisas ou

objetos. Para nós, o real - o real "mesmo"! (como enfatizamos dentro da idiossincrasia

lingüística típica do nosso português) - é aquilo que pode ser afirmado enquanto percepção

desejante, ou seja, como aquilo que vale a pena. O mais real para nós é sempre aquilo que é

o mais intensamente desejável e desejado. As mais recentes teorias da aprendizagem frisam

muito este ponto.

Como educadores/as, a nossa preocupação mais permanente tem que ser: como criar

- através da educação e por muitos outros meios - um intenso desejo compartido que aponte

para um Brasil solidário para todos? Sob muitos aspectos, ainda hoje vivemos imitando o

mau exemplo do primeiro suposto "descobrimento": decepcionados por não acharem de

cara o que buscavam, os portugueses nos desconsideraram e adiaram por muitas décadas. E

hoje ainda somos um país que está sendo adiado, já que nele se continua postergando a

qualidade de vida, e até a simples sobrevivência, de multidões de brasileiros.

A força de sonhar, que precisamos para não seguir nessa postergação, vai ter que

passar fundamentalmente pela educação. Seremos um país desejado e valorizado, pelos "de

fora" e por nós mesmos, se nos tornarmos um Brasil aprendente, para o qual o conhecer

esteja imbuído de desejos intensos.

Os humanos nos caracterizamos como seres desejantes, já no plano biofísico, mas

sobretudo enquanto seres-com-linguagem. Isto significa que nossos desejos se constituem,

comunicam, realizam ou frustam via símbolos e linguagens, numa unidade indissolúvel

entre os aspectos biofísicos e os sócio-lingüísticos. Embora os possamos distinguir para

efeito de análise, na prática esses aspectos são inseparáveis.

O termo corporeidade busca abarcar conceitualmente esta multiplicidade de

aspectos do nosso “estar imersos” no entrejogo de necessidades e desejos mediado por

linguagens. Sempre estamos jogados na água dos desejos e paixões, porque tudo o que nos

sucede e tudo o que fazemos acontece nessa corporeidade. Não existem processos

puramente mentais, sem a mediação dessa corporeidade.. Nadamos, a todo momento, em

processos comunicativos de toda índole – biofísicos, sócio-lingüísticos, multimidiáticos

(imersos nas modernas tecnologias da comunicação).

Existir-em-corporeidade implica, portanto, estar imersos em pactos simbólicos (para

usar uma expressão de Lacan). Não existe comunicação “descorporeizada”, como

Page 193: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

193

movimento comunicativo puramente espiritual de mente a mente. Toda comunicação,

mesmo a mais refinadamente reflexiva – por exemplo, quando se discutem conceitos,

distinções, definições – está submetida a condições biofísicas e sócio-lingüísticas, ou seja, a

condições – favoráveis ou adversas – de comunicabilidade.

Podemos lançar duas hipóteses fascinantes sobre este assunto. Uma se apoia

naquilo que os inter-comunicantes têm a ganhar (vitalmente, e enquanto fruição) com seu

processo comunicativo. Trata-se da hipótese de que sempre está em jogo um possível plus

ou ganho enquanto fruição ou gozo. A hipótese da "fruição aumentada" (vamos chamá-la,

como Lacan, de “plus-gozo”) refere-se apenas a um aspecto do processo inter-comunicativo

dos seres desejantes. Fazendo eco ao conceito de maisvalia (plusvalia) de Marx, Lacan

chega a afirmar que é a busca desse plus-gozo que, de certo modo, determina e comanda a

estrutura dos significantes. Em outras palavras, segundo essa visão lacaniana, a própria

materialidade das linguagens – isto é, sua gramática de sons, imagens, grafias – estaria

embebida e conformada por um dinâmica de plus-gozo.

Este é apenas um aspecto, porém fundamental. Convém pensá-lo juntamente com

todos os demais elementos, arbitrários e até calculistas, das linguagens formalizadas. Por

isso mesmo convém explicitar, de imediato, uma outra hipótese complementar, que Lacan

explicita mediante seu conceito de “pactos simbólicos”. Ele supõe como óbvio algo que

nem sempre temos presente: toda comunicação ocorre sob a égide de acordos, tácitos ou

convencionais, acerca de como convém comunicar-se. A busca da mais-fruição está

condicionada pela flexibilidade ou rigidez dos pactos simbólicos. Uma hipótese

complementa a outra. Lacan nos recorda que, junto à busca do plus-gozo, existe o mal-estar

próprio de todo pacto simbólico.

A análise do processo comunicativo - por exemplo da relação pedagógica - pode

deter-se mais num ou mais noutro desses dois aspectos: o lado gostoso ou o lado regrado da

comunicação. A sabedoria pedagógica consiste em saber fundi-los. Mas quando prevalece

um contexto de pessimismo pedagógico, porque predomina no ambiente um clima pesado

de ter que cumprir com desagradáveis imposições, a inchação arbitrária do pacto simbólico,

com seu mal-estar próprio como Lacan ressalta, tende a impedir a mais-fruição, ou seja, o

prazer de estar aprendendo.

2. Um alerta para não banalizar as linguagens motivacionais

Quanto ao conjunto de linguagens mais incentivadoras e otimistas que estão

surgindo, pensamos que se trata de um fenômeno interessante quando comparado com o

negativismo azedo de muita literatura acadêmica sobre a educação. Neste sentido, creio que

se trata de um saudável contrapeso. O problema que estamos tocando evidentemente não se

resolve pela magia de palavras alternativas. O que está em jogo é muito mais que a

renovação da linguagem. A mudança deve ocorrer na maneira de criar as estruturas de

sentido ou campos de significação, que precisam ter nexos e interfaces com o que os

aprendentes percebem como algo que faz sentido para a sua vida. Precisa haver esse elo

entre os campos de significação daquilo que se ensina e os campos de sentido da vida dos

envolvidos (docentes e alunos/as). Precisamos de linguagens pedagógicas que ajudem os

aprendentes (professores/as e alunos/as) a se sentirem bem no meio dos mais árduos

esforços de aprender.

Não se trata, de forma alguma, de “baratear” as exigências de estudo ou de nivelar

por baixo. Na educação, existem muitos níveis de campos do sentido. Cada disciplina ou

Page 194: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

194

matéria implica em campos conceituais, ou seja, em construções do conhecimento. Mas

esses campos particulares do sentido de cada assunto só se articulam com as experiências

pessoais de cada aprendente quando eles são jogados num campo do sentido vitalmente

envolvente e maior: o das próprias perguntas pessoais e existenciais de cada pessoa.

Quando falta este campo semântico maior, ou quando nele faltam as referências com sabor

a vida, então surge inevitavelmente aquela sensação de um grande vazio, mesmo em meio a

um acúmulo aparentemente bem estruturado de saberes formais.

Falar, por exemplo, de "reencantar a educação"196

não deve ser jamais um discurso

irresponsável e superficial, que não saiba dar conta de si mesmo, de suas implicações, seus

usos e abusos. Existe, sem dúvida, o risco de um marketing esvaziador e banalizante dessa

linguagem sobre o encanto de educar. Mas, por outra parte, precisamos de linguagens

afirmativas e antipessimistas sobre o agir pedagógico. Há certamente muitas maneiras de

fundamentá-las. Da nossa parte, preferimos geralmente instaurar a argumentação a partir de

um diálogo exigente com as ciências da vida (biociências), os estudos sobre o

cérebro/mente e os novos espaços do conhecimento propiciados pelas novas tecnologias da

informação e da comunicação. Como alguns vêm entendendo corretamente, essa

abordagem visa um "sentido sobretudo político" (como adverte Pedro Demo197

). Mas dado

o risco de “sonsas banalizações”, insistimos neste alerta prévio.

As palavras nos enfeitiçam facilmente. Os humanos somos seres simbolizadores.

Existimos não apenas porque nos alimentamos, mas porque estamos imersos em

significações. Sem isso não sobreviveríamos enquanto animais simbolizadores. Ora, assim

como o alimento pode ser pouco e ruim, ou abundante e bom, também os fluxos

comunicativos podem criar bem-estar ou mal-estar. Mas até nessa questão dos alimentos e

fluxos do sentido pode infiltrar-se o auto-engano.

Nossa hipótese de base é que o ser humano vive e se comunica melhor quando

consegue romper o complô lingüístico das linguagens patogênicas. Aprender também

significa melhorar nosso sistema imunológico mediante linguagens saudáveis. Pensar é

lutar contra o feitiço de racionalidades que aprisionam a nossa mente; pensar é curar nossos

jeitos de falar sobre a vida e o mundo.

Educar é, fundamentalmente, criar condições para e acessos a experiências de

aprendizagem. O fruto da educação não pode resumir-se a alguns saberes formalizados.

Hoje isso evidentemente não basta para a vida de ninguém, e a escola nem poderia

transmitir todos os saberes requeridos ao longo da vida. Portanto, não basta a

disponibilidade funcional e burocrática da educação (o mero acesso à escola).

Para que surjam e se desenvolvam experiências de aprendizagem, os aprendentes

devem ser atingidos por um envolvimento que não seja apenas algo que se lhes oferece

como lição a aprender, matéria a ser incutida e absorvida. Requer-se uma transação

comunicativa de envolvimentos pessoais no processo de aprendizagem enquanto sinônimo

de processos de vida possível e felicidade possível. Por isso, a escola deve preocupar-se

com criar e recriar as condições para que docentes e aprendentes se sintam em estado de

196

Ver ASSMANN, Hugo. Metáforas Novas para Reencantar a Educação: Epistemologia e Didática.

Piracicaba, SP: Editora UNIMEP, 1996, 2ª ed. 1998; Reencantar a Educação: Rumo à Sociedade

Aprendente. Petrópolis, RJ: Editora Vozes,1988, 3ª ed. 1999; Id. “Paixão pela educação com os pés no chão”,

na Revista de Educação AEC, ano 28, nº 110, 199, p. 9-24; Id. "A dimensão estética do conhecimento: A

aprendizagem como experiência da beleza" em: Comunicações - Caderno do Programa de Pós-graduação em

Educação, UNIMEP. ano 6, nº 2, nov. 1999, 29-41). 197

DEMO, Pedro. Educação e Desenvolvimento. Campinas, SP: Papirus, 1999, p. 40.

Page 195: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

195

apaixonamento por aquilo que irá proporcionar-lhes vida, ou seja, a unidade – em sua

própria vida e no convívio com os demais – entre processos vitais e processos de

aprendizagem. Esta é, no meu entender, a lição maior que temos que aprender das

biociências.

Mas convém prevenir mal-entendidos e confusões. A linguagem sobre o desejo e a

paixão, quando é usada neste sentido amplo e aplicada à educação, precisa formar parte de

um campo do sentido com o qual as pessoas possam também identificar-se em suas vidas

concretas. Deve ser, por exemplo, uma linguagem não descolada da valorização efetiva da

carreira profissional do/a professor/a no que se refere a melhorar as condições salariais,

incentivar o aperfeiçoamento, reconhecer os esforços e prover os meios para uma

continuidade profissional que possibilitem uma opção razoavelmente tranqüila no sentido

de “é isto mesmo que eu gosto de fazer‖.

As linguagens sobre a motivação, o desejo e a paixão ficam artificiais e se

pervertem, sem chances de constituir um campo vivenciável do sentido, quando são usadas

como uma espécie de chantagem moralista (os direitos dos alunos exigem que vivas

“apaixonada/o” por tua nobre missão...) ou, pior ainda, como chantagem descaradamente

mercadológica (“ou te apaixonas por teu trabalho ou outros tomarão teu lugar...). Cobranças

à consciência do dever exigem contextos propiciadores da satisfação em cumpri-lo. Isto

vale especialmente quando nos referimos a milhares de profissionais com histórias de vida

muito diferentes, como no caso do professorado. Normas excessivamente rígidas e

interpelações agudas à consciência do dever só funcionam em grupos pequenos e bastante

fechados.

Parece que, entre os seres humanos - especialmente na era das sociedades

complexas e prevalentemente urbanas - as convergências em comportamentos coletivos

funcionam melhor com doses relativamente altas de satisfação (contentamento, entusiasmo

e até certa euforia) e doses baixas de cobranças impositivas. As modernas teorias de

administração e gerenciamento falam muito de ambientação e clima organizacional. O

contágio motivacional passou a formar parte do conceito de liderança.

“Dá prazer trabalhar com quem trabalha com prazer”, repete, com freqüência,

Deming, um dos gurus no assunto. Mas, ao mesmo tempo, costuma-se deixar claro que as

fascinações de indivíduos isolados em relação a suas tarefas específicas, embora

importantes, não bastam para constituir “organizações aprendentes” (learning

organizations). Para tanto requer-se a disseminação articulada de todo um clima no qual,

junto à “reengenharia” técnica, se vá dando uma re-alocação dos potenciais de eficiência

nos recursos humanos no plano das disposições psíquicas, das motivações e, no plano da

renovação das linguagens cotidianas.

Convém, por isso, enfatizar que a literatura de nível mais sério sobre “organizações

aprendentes” não se pauta por propostas de indução de entusiasmos artificiais e sem base

sustentável. As novas teorias gerenciais, embora abordem com muita insistência o tema da

satisfação no trabalho, não desconhecem que as fascinações pelas tarefas, que exigem

árduo esforço, não são o mais “normal”.

A referência básica é que as novas formas de trabalho incluirão, doravante,

aprendizagem permanente e flexibilidade adaptativa. Isto implica um investimento

permanente de energias humanas. Para esse esforço se requerem condições ambientais

favoráveis, porque para um problema de tal porte seria ingênuo apostar apenas nos aspectos

facilmente manipuláveis da sensibilidade. e emocionalidade das pessoas.

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196

3. Pano de fundo: a luta contra a exclusão passa pela educação

De alguns anos para cá, assistimos à intensificação de linguagens mais animadoras e

motivadoras acerca da educação e acerca da profissão de educador/a. Por décadas haviam

prevalecido, no Brasil e na América Latina, as linguagens críticas e denunciatórias acerca

do descalabro da educação e do vilipêndio do trabalho educativo. A carreira docente havia

baixado a uma das menos apetecíveis no mercado de trabalho. Não poucos acusavam os

poderes públicos de serem culpados de um sucateamento, aparentemente intencional, da

educação pública. A expansão vertiginosa da educação privada era vista por muitos como

uma espécie de queima dos credos constitucionais, tantas vezes reiterados, de que a

educação é um direito de todos e um dever do Estado.

Que foi que mudou para que surgisse essa efervescência de linguagens menos

negativistas, quando tão pouco mudou no descaso das políticas educacionais públicas?

Teria havido um desgaste das análises meramente críticas, um cansaço crescente e até um

início de aberta rejeição no que se refere ao torrencial de eternas denúncias e

reivindicações, carentes de alternativa plausível? Este é um terreno de quase inevitáveis

mal-entendidos, mas a quem interessam polêmicas estéreis?

Creio que não é fantasioso afirmar que, no Brasil, a maioria do povo não se dá bem

com o mal-estar que gera o negativismo centrado na "consciência infeliz". A "consciência

infeliz" não pega no Brasil. Em termos gerais, só a pequena burguesia intelectual se deixa

contaminar pelo negativismo eternamente amargurado. Talvez por isso mesmo, e a partir

desse pendor para o positivo, somos também presa fácil de visões ingênuas. No Brasil, até

os miseráveis lutam não apenas para sobreviver, mas para sobreviver na alegria. Num plano

profundo de nossa capacidade desejante, vida e alegria são para nós radicalmente

inseparáveis.

Esta é uma temática exigente que aqui apenas podemos bordejar, pois nela está em

jogo um aspecto básico que atravessa toda a cultura ocidental: o da "consciência infeliz".

Suas raízes filosóficas e religiosas e suas múltiplas manifestações no chamado "pensamento

progressista" exigiriam uma análise detida, que não é possível nesta brevidade. Valha uma

citação:

Todas as culturas produzem algum mal-estar, mas a nossa é a única que está

fundada no mal-estar. Se sentir inadequado, sofrer com a distância entre nós e os

ideais culturais é indispensável para o funcionamento social. Sem esse mal-estar

cotidiano, nosso mundo pararia.198

4. Estabelecer uma relação entre competência e sensibilidade solidária

Falar em campo do sentido significa entender que nossas linguagens são algo

parecido a casas ou lugares que se podem habitar. Queremos educar para um mundo

habitável, porque solidário. No panorama educacional, muitas das palavras que mais se

usam não se prestam para morar nelas. Não criam espaços vitais. Não servem enquanto

espaços do conhecimento. Enfim, não formam uma ecologia cognitiva (como diriam Edgar

198

CALLIGARIS, Contardo. Folha de S. Paulo de 05/11/1999, p. 3/8.

Page 197: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

197

Morin e Pierre Lévy). Com palavras ruins para habitar só se podem criar ambientes ruins

para ter experiências de aprendizagem.

Para os jovens, parte maior da humanidade e deste nosso país, qualquer sobrevida

desejável depende em muito do acesso à educação. Eles sabem que as novas tecnologias da

informação e da comunicação, assim como a globalização, que é basicamente um projeto

político de mundialização do mercado, vieram para ficar. Adivinham também que terão de

conviver com os mecanismos cruelmente competitivos dessa configuração da economia de

mercado e suas tendências excludentes. Não há à vista nenhuma alternativa completamente

distinta. Ajudá-los a preparar-se para atuar num mundo com esse feitio, e manter viva, ao

mesmo tempo e a todo transe, a sensibilidade solidária - eis o que deveria ser a meta maior

da educação hoje.

Ninguém é ingênuo ao ponto de acreditar que esse ideal maiúsculo se encarna de

maneira espontânea e óbvia nas instituições educacionais existentes no Brasil. Por outra

parte, poucos duvidam da primazia da educação em meio às nossas urgências sociais. As

esperanças socialmente possíveis, enquanto politicamente negociáveis em consensos

democráticos, requerem embasamentos sólidos e muita energia e motivação ética. Aos

poucos chegamos a entender que, nessa direção, já não convém desgastar-se em meras

denúncias. Estas se revelam estéreis e contraproducentes quando não acompanhadas de

uma visão estratégica acerca das melhorias plausivelmente implantáveis, suposta a

articulação da requerida vontade política.

A brevidade não nos permitirá explicitar aqui todos os alertas críticos necessários

em relação a muitos dos conceitos que estarei usando. Quando falamos de tecnologias da

comunicação é bom não esquecer que nelas, e nos conceitos que tramitam, aparece

inseparável o que Lucien Sfez denomina "tecnologias do espírito"199

. Nesta nossa conversa

nos ocuparemos de alguns elementos que talvez sirvam como ingredientes de um cauteloso

e prudente otimismo pedagógico.

No panorama da mundialização do mercado, com a marca do predomínio

praticamente descontrolado do capital financeiro sobre o capital comprometido com o

crescimento e a melhoria das condições de vida da população, a educação se transformou

em recurso de sobrevivência. Não se vislumbram, nem no cenário mundial e menos ainda

no brasileiro, potenciais políticos para reverter esse quadro assustador. Com isso, tornou-se

aguda a consciência de que a luta contra a exclusão e por uma sociedade onde caibam todos

passa fundamentalmente pela educação. Creio que este é o verdadeiro pano de fundo sobre

o qual vale a pena articular a discussão sobre muitos novos desafios para a educação.

Elementos para um quadro de valores educacionais solidários

1. Sociedade do Conhecimento / Sociedade Aprendente

Conhecimento virou assunto obrigatório. Conhecimento passou a ser a nova matéria

prima principal (e a nova forma de "capital"?). Sabemos que o conceito de trabalho mudou

muito. Hoje trabalhar significa basicamente estar aplicando e/ou gerando conhecimentos.

Portanto, a transformação do trabalho tem tudo a ver com o conhecimento. A expressão

199

Cf. art. de L. Sfez em: MENEZES MARTINS, Francisco . e MACHADO DA SILVA, Juremir (Orgs.).

Para Navegar no Século XXI - Tecnologias do Imaginário e Cibercultura. Porto Alegre: EDIPUCRS / Sulins,

2ª ed., 2000; ver também MARQUES, Mário Osório. A Escola no Computador. Ijuí, RS: Ed. Unijuí, 1999.

Page 198: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

198

Sociedade do Conhecimento quer dar a entender que entramos na era das redes de

interconexão entre ecologias cognitivas. Refere-se, pois, ao aspecto cognitivo e educacional

da globalização, que, por sua vez, é fundamentalmente a mundialização do mercado.

Portanto, um fenômeno econômico e político, e não meramente tecnológico. Este é o

enredo amplo, e não isento de ambigüidades, no qual devemos situar a relação entre novas

tecnologias e mudanças profundas na educação.

Do conceito de Sociedade da Informação passou-se, por vezes sem as convenientes

cautelas teóricas, ao de Knowledge Society e Learning Society. Em francês prevalece, por

ora, Societé Cognitive. Nas teorias gerenciais avança o discurso sobre learning

organisations (organizações aprendentes - cf. Peter Senge e outros). A incrível abundância

e variedade de linguagens acerca desse processo tecnológico e, ao mesmo tempo,

ideológico-político é um fenômeno deveras impressionante.

2. As novas tecnologias transformam os modos de aprender

As novas tecnologias interativas (computador, multimeios, Internet, etc.) já não são

meros instrumentos como o lápis, o giz, a máquina de escrever. Seu caráter versátil e

interativo as eleva a co-estruturadoras das formas do saber. Tornaram-se máquinas

ativamente colaboradoras nos processos de aprendizagem. Com isso a formatação

predominante dos conhecimentos mudou bastante. Surgem, assim, novos espaços e novas

formas do conhecimento. A paixão de aprender pode contar, agora, com novas formas de

criatividade. O prazer de aprender acessos para o aprender. O prazer de navegar na

versatilidade e interatividade.

É fundamental que se entenda que as novas tecnologias da informação e da

comunicação rompem, até certo ponto, com a submissão a espaços pré-configurados e

instauram uma versatilidade que não existia na folha de papel, na lousa, no giz e no lápis. O

jogo criativo tem agora muitas novas possibilidades. Isso é óbvio para quem elabora textos

no computador com o uso de várias telas, múltiplos arquivos, recursos gráficos, pesquisa na

Internet, etc. Não é exagerado dizer que os novos recursos tecnológicos têm um papel ativo

e constitutivo da própria morfogênese do conhecimento no que se refere às suas formas de

criação, expressão e comunicação. A extraordinária versatilidade dos multimeios os

transforma em “agentes cooperativos” das formas de aprendizagem.

3. Redes telemáticas e teia da vida

As tecnologias informáticas buscam replicar, simular e até produzir processos

cognitivos artificiais (Inteligência Artificial, Vida Artificial, Robótica). Com isso nos

brindam, pela primeira vez na história evolutiva da nossa espécie, a chance de entender

melhor a relação intrínseca entre processos vitais e processos de aprendizagem. Hoje se

tornou possível aprofundar reflexões - filosóficas, éticas, pedagógicas - sobre as

características únicas da teia da vida "natural", já que é possível confrontá-la e compará-la

com os produtos mais avançados da tecnologia. Tanto as semelhanças quanto as diferenças

nos possibilitam enxergar, de maneira nova, muitos aspectos do agir pedagógico.

Paradoxalmente, as tecnologias informáticas e as ciências da vida, dois campos

outrora academicamente distantes, convergem hoje, na teoria e na prática, compartindo

muitos de seus conceitos (emergência, auto-organização, sistemas aprendentes, evolução

cognitiva, aprender, etc.). A própria tecnologia nos impele a levar a sério, no plano da

Page 199: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

199

educação, a lição das biociências de que todos os seres vivos são "sistemas aprendentes".

Mantêm-se vivos e crescem em vitalidade na medida em que continuam aprendendo. Existe

uma unidade básica entre processos vitais e processos cognitivos. As ciências da vida e as

ciências computacionais usam o termo cognição para todos os níveis de aprendizagem,

desde a ameba até Einstein. Que tal inventar para isso o termo aprendência (como

apprenance, em francês)?

As novas tecnologias já começam a simular aquilo que as biociências tardaram em

reconhecer: a constância básica de que a vida “se gosta” naturalmente. Só deixa de querer-

se quando sofre bloqueios e é reprimida em sua dinâmica vital. Existe um nexo profundo

entre dinâmica da vida e dinâmica do prazer. Por isso a prazerosidade é um aspecto

vitalmente importante da aprendizagem. O objetivo da educação é criar experiências da

paixão de aprender, ou seja, da paixão de viver. Nesta mesma linha é preciso enfatizar que

a dimensão estética do conhecimento é um tema pedagogicamente importante porque nos

leva a entender a aprendizagem como experiência da beleza.

4. Enfrentar conjuntamente os vários analfabetismos

Os analfabetos de amanhã não serão os que não sabem ler; serão os que não tiverem

aprendido a aprender.

O pior analfabetismo é a falta de curiosidade de aprender. Encontram-se em

situação análoga os que foram alfabetizados, mas perderam a curiosidade de ler e continuar

aprendendo.

A alfabetização "instrumental" deve estar a serviço da alfabetização vital, isto é, a

experiência gostosa de poder aprender e estar aprendendo. Por isso a atividade escolar, em

todos os seus aspectos e participantes, deveria visar, como fruto, experiências de

aprendizagem.

A alfabetização "instrumental" inclui hoje a superação conjunta de vários

analfabetismos:

da lecto-escritura (o sentido clássico do termo) – incluído, aí, o “funcional”;

analfabetismo em novas tecnologias (info-analfabetismo -> computer (i)literacy);

analfabetismo sociocultural (ignorar os mecanismos que funcionam na sociedade na qual se vive, p. ex., mercado);

analfabetismo emocional (-> corporeidade.; lihar com os temas “inteligência

emocional” e “razão sensível”)..

Professor/a é alguém que a ajuda a olhar, e não só a abrir os olhos. - ―Mãeêê, me

ajuda a olhar!", gritou a criança ao correr pela primeira vez até a praia.

5. Do repasse de saberes às experiências do aprender a aprender

Hoje a educação não deve ser mais entendida como transmissão de conhecimentos e

saberes prontos. A educação, aliás, nunca foi boa quando foi apenas instrução, transmissão

de saberes. Educar significa criar experiências de aprendizagem e não transmitir coisas já

prontas, saberes já supostamente definidos. Ninguém aprende se não cria junto com aquele

que ensina o conhecimento. Aprender significa construir experiências de aprendizagem. As

Page 200: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

200

mudanças mais profundas que eu vejo que estão acontecendo hoje na educação têm a ver

com este novo conceito de aprendizagem que efetivamente muitas escolas ainda não têm.

Muitas escolas continuam pensando que ensinar é transmitir saberes prontos. O fruto da

escola deve ser aprender a aprender, aprender a acessar formas de aprender. Aprender a

fazer experiências de aprendizagem. Aliás, hoje é impensável que a escola dê conta de

repassar (mesmo que já estivessem disponíveis) todos os conhecimentos que os/as

alunos/as precisarão em suas vidas.

Chegamos a um tempo pedagógico peculiar no qual a educação deverá concentrar-

se primordialmente na ambientação das experiências de aprendizagem. Educação passa a

significar empenho carinhoso na criação de ecologias cognitivas - para empregar essa bela

expressão cunhada, pelo que me consta, por Edgar Morin e profusamente empregada por

Pierre Lévy. Ecologia é o conjunto das circunstâncias propícias a nichos vitais, onde seres

vivos possam sobreviver e incrementar-se em mais e melhor vida. Os novos espaços do

conhecimento não devem ser encarados, nem única nem primordialmente, como

reconfigurações tecnológicas, mas como ecologias cognitivas que propiciem o salto do bom

ensino - imprescindível - à efetiva experiência de aprendizagem, com processo

personalizado de construção do conhecimento.

Nós estamos em uma época na qual a escola já não consegue passar toda o

“conteúdo” ou a "matéria" necessários para a vida das pessoas. Seria uma tarefa

inabarcável, um sonho impossível. O volume dos conhecimentos aumenta tanto e tão

rapidamente que a escola se torna cada vez mais formadora de um colchão básico de

aptidões (competências cognitivas e competências sociais, na linguagem do MEC). No

mais, a escola deve iniciar processos de descoberta e propiciar ensaios do aprender formas

de acender ao conhecimento.

6. A relação entre educação e empregabilidade se complicou muito

Hoje a educação já não representa uma garantia para o acesso ao emprego, mas é

uma condição indispensável tanto para o trabalho como para o lazer. Não há mais previsão

de pleno emprego no sentido tradicional de trabalho. A nova empregabilidade está ligada à

flexibilidade na capacidade de aprender. Só mesmo uma visão reacionária, conservadora e

excludente aborda este aspecto real do mundo de hoje sem fazer uma análise crítica da

ideologia de abandonar tudo aos mecanismos do mercado, supondo que eles conduzam

automaticamente ao bem comum. O papel das políticas públicas é fundamental no que se

refere à educação, saúde e todos os direitos humanos básicos. Mas nas hodiernas

sociedades amplas, complexas e urbanizadas o mercado veio para ficar.

7. Educação como forma destacada de compromisso social

Sobre o pano de fundo da Sociedade Aprendente com economia de mercado e

formas mutantes de empregabilidade, não cabe dúvida que educar é lutar contra a exclusão

Nesse contexto, educar significa realmente salvar vidas. Por isso, ser educador/a é hoje a

mais importante tarefa social emancipatória. Mas se o/a educador/a não se atualiza, o que se

atrasa é a vida de seres humanos concretos. O agir pedagógico é, hoje, o terreno mais

desafiador do agir social e político, e isso num sentido bastante diferente, e provavelmente

mais exigente do ponto de vista ético e humano, do que o clássico reclamo do primado do

Page 201: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

201

político. Gravemos fundo em nossa consciência: hoje educar significa salvar vidas; hoje

educar é engajamento social de avançada. Os educadores devem orgulhar-se disso.

8. Educar para a iniciativa e a solidariedade

Os "pais fundadores" ou clássicos da economia de mercado (Adam Smith. David

Ricardo, etc.) elaboraram uma visão do ser humano que não é fácil refutar. Ela é uma

espécie de acordo faustiano com a coexistência do bem e do mal. O assunto é complexo,

mas resumo a provocação básica. Os humanos seríamos, nessa visão, inevitavelmente

feixes de paixões e interesses. Em sociedades amplas e complexas, a melhor saída seria, por

isso, apostar num "pacote antropológico" resumível em: apostar no interesse-próprio, na

iniciativa, na industriosidade (industry: empenho, esforço), na criatividade e no respeito

mútuo (respeito aos contratos). O bem-comum e, portanto, a solidariedade decorreriam de

"mecanismos de mercado" engendrados espontaneamente pela adoção de semelhante visão

da convivência social.

Todos sabemos que há nisso uma série de falácias, mas também há um fundo de

verdade (ou seja, não somos naturalmente solidários e não costumamos renunciar a ser

tomados em conta). Sabemos também que a suposta solidariedade congênita dos

mecanismos de mercado é uma idolatria200

porque diviniza uma suposta mão oculta

providencial. Por outra parte, será que sabemos realmente como juntar, no conceito de

cidadania, a educação para a iniciativa e para a solidariedade? Dessa tarefa crucial não se

escapa com festejos de palavras altissonantes ou arroubos revolucionários.

―Nos han enseñado tantas cosas, pero no nos enseñaron lo que significa tomar la

iniciativa‖ - confidenciava-nos um casal cubano (que vive em Cuba). Os apelos à

solidariedade têm – compreensívelmente – pouca ressonância quando as pessoas, a serem

amparadas, não dão mostras de que aprenderam a tomar iniciativas. Pode parecer estranho,

mas – com exceção de situações emergenciais onde todos devem ajudar (e elas são muitas

na situação atual do Brasil) – a educação para saber tomar iniciativa faz parte das condições

de possibilidade de uma educação para a solidariedade. Esta simplesmente não funciona,

como constante social, onde falta a criatividade e a disposição para tomar iniciativas.

9. Resgatar a alegria do ser educador/a

Transformar a escola em organização aprendente. As novas teorias da gestão

empresarial falam muito em clima de aprendizagem. Enxergam a empresa como

“organização que está aprendendo”. Ora, isto deveria valer muito mais para a escola. A

empresa produz bens ou serviços. A escola visa um “produto” diretamente humano: ela visa

criar experiências de aprendizagem. Na escola tudo deveria estar voltado para esse objetivo.

Transformar a sala de aula em ecologia cognitiva. Ecologia significa nicho vital.

Ecologia cognitiva quer dizer nicho vital para as experiências cognitivas. A sala de aula

deve ser um nicho vital para experiências de aprendizagem. Um espaço de construção do

gosto de estar aprendendo. Aprender a aprender, e aprender vida e mundo. Hoje, estudar

significa aprender caminhos e acessos. O objetivo da escola é criar: experiências de

200

ASSMANN, Hugo & HINKELAMMERT, Franz. A idolatria do mercado - Ensaio sobre economia e

teologia. Petrópolis, RJ: Ed. Vozes, 1989 (traduzido a vários idiomas).

Page 202: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

202

aprendizagem; não mero acúmulo de saberes. Convém meditar sobre o que tarefas a escola

já não pode cumprir (nem precisa).

Conceitos/lembretes - Uma boa teoria vale mais do que muitos conceitos isolados.

Tente integrar numa teoria pedagógica os seguintes conceitos:

unidade entre processos vitais e processos cognitivos

a auto-organização do vivo

aprender é um processo emergente que se auto-organiza

novos conhecimentos como níveis emergentes

organizações aprendentes como sistemas dinâmicos

a escola como organização aprendente

ecologia cognitiva; nichos vitais do conhecimento

pensamento complexo que não fique preso a causalidades lineares

Perceber a relevância social do resgate da subjetividade - Quando levado a sério -

e não banalizado como em muita literatura de "auto-ajuda" -, bem-vindo seja o retorno dos

temas que servem para unir, de maneira nova e desafiadora, o resgate da subjetividade com

o engajamento social irradiante:

auto-estima, auto-apreço, auto-confiança

incentivo à capacidade de tomar iniciativas

ensinar a inovar (pedagogia da criatividade)

despertar aspirações, motivações

aumentar os níveis de expectativa

10. Aprender a sonhar com horizontes amplos

"Educar é acreditar na perfectibilidade humana, na capacidade inata de

aprender e no desejo de saber que anima os seres humanos; ...acreditar que

os seres humanos nos podemos melhorar uns aos outros através do

conhecimento..."

(Fernando SAVATER. El valor de educar).

Para jogar tudo isso em horizontes motivadores retomamos aqui o texto da

contracapa do livro Reencantar a Educação: rumo à sociedade aprendente:

A evolução da humanidade chegou a uma fase na qual nenhum poder econômico ou

político é capaz de controlar ou colonizar inteiramente a explosão dos espaços do

conhecimento. A Internet é apenas um exemplo sinalizador do que se pretende dizer com

essa hipótese. É por isso que a dinamização dos espaços do conhecimento pela educação

tornou-se uma tarefa social tão importante.

Doravante só será possível sonhar com uma sociedade onde caibam todos se

também nossos modos de conhecer conduzirem a uma visão do mundo no qual caibam

muitos mundos do conhecimento e do comportamento. A educação se confronta com essa

apaixonante tarefa de formar seres humanos para os quais a criatividade, a ternura e a

solidariedade sejam ao mesmo tempo desejo e necessidade.

Reencantar a educação significa, também, vivenciar as implicações pedagógicas dos

avanços científico-tecnológicos, o fato de que os processos cognitivos e os processos vitais

Page 203: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

203

são no fundo a mesma coisa. Trata-se de um encontro desde sempre marcado do viver com

o aprender, enquanto processo de auto-organização, desde o plano biofísico até as esferas

societais.

Page 204: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

204

HORIZONTES

RECONTRUIR NOSSOS CAMPOS DO SENTIDO

No final deste livro não temos conclusões, mas horizontes. Nosso texto pretende ser

um convite a continuar a reflexão sobre a gravidade e a beleza do desafio de participar

numa verdadeira virada civilizatória. Aludiremos de passagem, à Primeira Neotenia - a da

Hominização - para transformá-la em metáfora para uma "Segunda Neotenia": a da

Humanização. Ousamos falar de uma dimensão profunda dos nossos desejos enquanto

abertura relacional. E nos despedimos com um quasi-poema meditativo sobre a esperança

que nos habita.

Estamos numa virada civilizatória

No planeta Terra se intensificaram vários processos que têm uma relação direta com

a continuidade e a qualidade da vida que nele é viável. Qual é o choque maior, a

mundialização do mercado, sob a égide do capital financeiro, ou a explosão científico-

tecnológica? Não há como separá-los. Ambos estão vinculados a uma determinada visão do

ser humano e a um conjunto de valores. Este vínculo é de mútua sustentação, ou seja, eles

se engendraram e agora se reforçam reciprocamente. É este todo sistêmico que se revela

cada vez mais em dissintonia com praticamente todos os sistemas vivos do planeta.

As regras de funcionamento desse conjunto tecnológico, econômico e político

usurparam para si a definição dos mundos do sentido. E será a partir da reconstrução de

nossos mundos do sentido que poderemos perceber o caráter histórico dessa usurpação. A

crise civilizatória, que enfrentamos, se refere a crenças muito enraizadas em grande parte

da cultura mundial de hoje de que esse é um sistema de coerências dificilmente

desmontável. Mas isso não é verdade.

É provavelmente ilusório querer construir mundos alternativos do sentido, que não

levem em conta a necessária triagem dos benefícios e dos malefícios do mercado. Não faz

muito sentido pretender situar-se num suposto pólo alternativo exterior ao sistema

capitalista mundial por duas razões muito simples: primeiro, porque semelhante pólo

exterior se tornou (não que o tenha sido sempre) algo ficcional; segundo, porque há

igualmente muito de ficcional na suposta adesão planetária à visão do ser humano e aos

valores em que o sistema se apoia. O neo-liberalismo se está revelando como uma vitória

de Pirro,: barulhenta e transitória.

Está acontecendo, embora lentamente, algo de verdadeiramente inédito quanto aos

mundos do sentido na atualidade. Pela primeira vez na história humana um sistema sócio-

econômico-político, depois de haver alcançado o auge de sua mundialização, começa a ser

questionado - de forma pública e razoavelmente democrática - em seus pressupostos

antropológicos e éticos. Isso teria sido inimaginável nos socialismos, como continua

praticamente impossível no interior da maioria das igrejas. O radicalismo neo-liberal tem

poucas chances de persistir. E isso significa que existem algumas chances de retomada de

um trabalho significativo em direção a metas solidárias.

Os campos do sentido voltaram a flexibilizar-se um pouco mais. E - como julgamos

haver mostrado, de alguma forma, neste livro - a educação (UNESCO, PCNs, etc.) está

Page 205: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

205

entrando nessa brecha com razoável faro político. Sem entregar-nos a otimismos

exagerados, cremos que é demonstrável que as políticas educacionais de diversos países

europeus, e do próprio Conselho da União Européia, assim como setores dos Ministérios de

Educação de vários países latino-americanos, inclusive do Brasil, estão alguns passos na

frente em relação ao resto das políticas. Isto nos parece ser, no mínimo, uma hipótese

bastante sugestiva.

***

Em seu livro Os Sete Saberes Necessários à Educação do Futuro201

, Edgar Morin

nos convida a levar muito a sério o fato de que o desenvolvimento histórico das formas de

conhecimento e de acumulação de saberes humanos carrega consigo uma profunda

deformação anti-solidária, que ele volta a denunciar como "as cegueiras do conhecimento".

Morin sugere que, para conseguirmos dar a virada para formas de conhecimento e de

comportamento intrinsecamente solidários, será preciso partir do reconhecimento das

cegueiras e das lacunas da concepção tradicional de conhecimento.

A trajetória que Morin sugere para a profunda conversão a um modo de conhecer e

a uma visão ética radicalmente solidários incluiria rever nossos pressupostos acerca da

condição humana, levar a sério o caráter terreno da nossa identidade, aprender a lidar com

incertezas, tornar-nos seres compreensivos e acolhedores e, despedir-nos de éticas do

absoluto para aderir a uma ética do gênero humano. Como é fácil perceber, esta é uma

linguagem secular que se move em direção a uma radicalidade espiritual superior inclusive

a muitos discursos religiosos historicamente deteriorados.

***

Nas últimas décadas nos fomos acostumando a doses fortes de símbolos

relacionados com ameaças de destruição global da vida no planeta. Começamos a tomar

consciência, mas já não sob a pressão de velhos mitos apocalípticos, de que somos

precários e contingentes neste mundo. Embora talvez ainda predominem, no imaginário

coletivo, os temores relacionados com causas advindas de fora da órbita terrestre, ou de

alguma loucura nuclear, aos poucos começamos a entender a fria dureza da advertência do

Clube de Roma, em seu documento A Primeira Revolução Global, de 1991: "O inimigo

comum da humanidade é o próprio homem"202

. Um tom semelhante teve a "Advertência à

Humanidade" de um grupo de mais de 200 cientistas, em 1992203

.

É duvidoso que advertências desse tipo mobilizem as consciências para as

mudanças profundas de índole global, quando não acompanhadas de perspectivas

esperançadoras acerca da viabilidade das mesmas. Que elas urgem, isso já foi dito e redito à

saciedade. Como encaminhá-las? - esta é a agenda cuja definição, além de sempre de novo

escamoteada e adiada, continua sem consensos significativos. Existem sinais que alentem

nossa esperança? A própria possibilidade de visualizá-los provavelmente depende da nossa

maneira de olhar o mundo e encarar o futuro. Se apostarmos apenas em cintilações de

consciência dos assim chamados "poderosos", posicionando-nos como meros espectadores,

nosso olhar ficará frustrado. Eles - que nem sequer existem como entidades isoláveis e

201

MORIN, E. Os Sete Saberes Necessários à Educação do Futuro. São Paulo: Cortez, 2000. 202

CLUBE DE ROMA, The First Global Revolution (Ed. Alexander King & Bertrand Schmeider). New York;

Bantam Books, 1991, p. 115. 203

Cf. World Scientists' Warnung to Humanity (da Union of Concerned Scientists), 1992. - Texto disponível

da Intrnet, junho/2000.

Page 206: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

206

inculpáveis por separado - , assim como nós, estão envoltos em campos de sem-sentido e

campos de sentidode acordo aos referenciais específicos que invocarem.

Só nesse lance de reflexão inicial, já vão para três ou mais as questões relacionadas

com a esperança possível. Um, as consciências não existem, como responsáveis ou

inculpáveis, se não forem concebidas como vetores dependentes de seus campos de sentido

e falta de sentido. Poderosos são os campos do sentido em que todos, de alguma forma,

estamos imersos. Dois, que é que se nos afigura como atratores benéficos para vislumbrar o

que realmente faça sentido para a humanidade de hoje? Três, quais são as nossas

conviccões pessoais sobre atratores sinistros da ausência ou negação do sentido no mundo

de hoje?

Por onde começar? Talvez pela criação inicial de um clima sensível. Retomemos a

frase já citada de Teilhard de Chardin :

O progresso de uma civilização se mede

pelo aumento da sensibilidade para o outro.

Para melhor interiorizá-la, talvez ajude o sério hom-humor de Caetano Veloso:

:

Cada um sabe

a dor e a delícia

de ser o que é.

***

O que está ocorrendo hoje, no planeta Terra, provavelmente é algo mais decisivo do

que a simples passagem a uma nova época ou simplesmente um novo período histórico. É

provável que se trate de desafios tão sérios que, em termos comparativos, todas as

anteriores crises tenham tido proporções menos globais. Foram crises na co-evolução das

diferentes formas de vida, todas em seus respectivos nichos vitais, mesmo quando já

afetavam nichos vitais tão amplos como a geografia de nações e continentes inteiros. Hoje,

porém, estamos diante da primeira crise civilizatória com amplidão realmente planetária.

E ela é terrivelmente desproporcional. Há vastos bolsões onde as "baixas sociais" se

intensificam. E um pouco por toda parte reina uma gélida indiferença.

Já lá atrás, nos anos setenta, Marvin Gave dizia na canção "Salvem as crianças":

I just want to ask a question: - Wo really cares?

(Eu só quero fazer uma pergunta: - Quem é que realmente se importa?)204

Pois, nós nos importamos, porque - como educadores/as - acreditamos que a

educação tem a missão de criar acessos para a construção de campos do sentido para a vida

e o desmantelamento dos campos do sem-sentido da anti-vida. A educação é chamada a ser

a fronteira avançada do salvamento concreto de vidas humanas concretas. É a frente de

avançada mais relevante do engajamento social solidário.

Isto não são frases de consolo ilusório num mundo lançado em reta para o abismo.

Só onde a educação se omitir o desastre humano pode tornar-se irreversível. Onde ela

204

Marvin Gave, na canção Save the Children, do album What's Going On, 1971.

Page 207: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

207

atuar, com criatividade e esperança, emergirá a efervescência das buscas de um sentido

solidário para nossas vidas. Só a educação pode levar-nos a entender que a humanidade já

não pode postergar a pergunta: como passar da Hominização para a Humanização?

Um cenário futurológico

Observação: Não endossamos acriticamente, nem concordamos com todos os

detalhes do Cenário que o quadro abaixo apresenta. Nele se refletem vários elementos

típicos da futurologia dos anos 80 do século XX. Há alguns "atrasos" e não pouca

especulação, especialmente sobre a segunda metade do século XXI. A reprodução

(parcialmente adaptada) desse quadro tem o propósito de deixar entrever algo bastante

usual nos cenários futurológicos e cuja razão deveria ser decifrada em termos de

sensibilidade social: há um evidente pessimismo acerca do presente, seguido de décadas de

sufoco pessimista, desembocando - como era de esperar - numa fase posterior menos

apocalíptica, mas com rasgos de um estranho otimismo que prevê a assimilação "realista"

de pessimismos inevitáveis. Isso fica sintomaticamente evidenciado no seqüenciamento da

suposta característica dominante da sociedade: produção, consumo, espetáculo, educação,

criação. Os/as educadores/as certamente torcem para que as etapas projetadas lá para a

frente, em termos cronológicos, se antecipem desde já, e que a educação seja desde agora

verdadeiramente criativa, e não o pesadelo dos controles retardados, que o esquema nos

apresenta. Vale a pena perguntar-se: que significa, do ponto de vista antropológico e de

sensibilidade solidária, semelhante Cenário e quais de seus elementos representam deveras

desafios incontornáveis?

CENÁRIO DE PREVISÕES - Quadro de Supervisão

205

Data 1900-1940 1940-1980 1980-2020 2020-1960 2060-2100

Habitantes do

planeta Terra

De 1-6 a 2.4

bilhões de hab.

De 2.4 a 5.0

bilhões de hab.

De 5.0 a 8.0

bilhões de hab.

De 8.o a 8.5

bilhões de hab.

De 8.5 a 7.0 (!)

bilhões de hab.

Contexto Geral

Característica

Predominante

da Sociedade

A Sociedade de

Produção (Production

Society)

A Ssociedade

de Consumo (Consumption

Society)

A Sociedade do

Espetáculo

(Show Busi-

ness Society)

A Sociedade da

Educação (Education

Society)

Sociedade da

Criação (Creation

Society)

Tendências de-

mográficas;

quem dá o

"tom"?

Dominação

européia dobre

um mundo

colozidado

Crescimento no

"Sul";

diminuição no

"Norte".

Migração Sul-

Norte; popul.

aumenta nas ex-

colônias;

anticoncepcio-

nais se espalham

pelo "Sul

Controle

sistemático da

matalidade;

inversão da

pirâmide

demográfica

Redução

demogáfica

global;

envelhecimen-

to; opções

reprodutivas

genéticas

Saúde

Começa a

vacinação

massiva

Antibióticos;

redução da

mortalidade

infantil nos

países pobres

Doenças

moleculares;

cancer, doenças

cardiovascula-

res, AIDS

Auto-medicação

e prevenção de

psicopatolo-gias

Biotecnologia:

órgãos bio-

compatí-veis,

"reincarnação"ar

tificial

Urbanização

Rede de grandes

cidades dos

países ricos

Crescimento

urbano em vol-

ta de centros

industriais

Cidades

gigantes; mais

da metade da

humanizada

Inicia-se a

relocalização;

cidades de porte

médio,

Nomadism;

acomodações

emergenciais;

cidades

205

Resumido e adaptado de 2100.org - Disponível na Internet, junho/2000.

Page 208: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

208

urbanizada;

favelização

tecnópolis,

cidades no mar

"verdes";

"bioesferas"

Transportes

Ferrovias;

hidrovias

Automévil.

ônibus, avião

Trens de alta

velocidades,

metro, yates,

começa o carro

híbrido

Moradias

móveis;

aerotransporte

de residências;

teletrabalho

desterriitorili-

zado

Turismo em

planetas

artificiais;

explorações fora

do sistema solar

Meio-ambien-te,

agricultura

Mercados locais

tradicionais

Industrializa-

ção, superpro-

dudução em

países ricos

Começa o

reflorestamen-

to; diversifica-

ção, qualidade;

produtos mais

compactos

Retorno à

"natureza"; bio-

dinâmica;

turismo

ecológico

Polícia ecoló-

gica mundial;

jardins

planetários in-

clusive no mar

Comércio,

Indústria

Taylorismo-

fordismo;

comércio por

distribuição

setorial

Indústrias com

muito emprego;

deslocamento de

indústrias;

eomeça a

automação

Economia de

serviços;

diminui

gigantismo,

empresas

menores com

alta tecnologia;

shopping

centers e

hipermercados

Indústrias

educacionais,

culturais, de

lazer; design:

forma é produto;

telecompras

Expansão das

bio-indústrias;

robótica no

cotidiano;

corpos vivos

artificiais

Energia,

matérias primas

Carvão,

minerais

Petróleo,

eletrificação das

cidades ricas

Conservação de

energia;

aumenta uso

dehidrogênio

Força elértrica

no mundo

inteiro;

diversifica-se a

energia, energia

solar

Exploração da

lua e asterói-des

para maté-rias

pri-mas e

energia do e

para o espaço

Comunicação

Rádio popular;

telefone para a

elite

Televisão se

generaliza;

telefone

profissional

Fax, telefone

portátil se glo-

baliza; Inter-net;

memória a laser;

começa o

videofone

Bases globais de

dados; tu-rismo

intenso;

multimeios

educativos

portáteis

Telepatia

artificial; uso de

sonhos vir-tuais;

terapia

comunicativa

Finanças

Padrão ouro;

crise de 1929

Padrão dólar;

fusão de bancos

Sistema tripolar:

dólar, yen, euro

moeda de in-

terconexão

mundial; etno-

bancos (múl-

tiplas moedas)

sistema "han-

seático" ("por-

tos" financei-

ros); moedas

privadas se

difundem

Conflitos

Duas guerras

mundiais entres

estados-nação;

força aérea;

tanques

Guerra Fria en-

tre dois blocos;

intimidação

nuclear

recíproca

Conflitos tri-

bais e religio-

sos; terrorismo e

sequestros;

influência de

máfias

Lutas pela inf-

luência e com-

trole psíquico;

virus de com-

putador

Conflitos acerca

da "ad-

ministração"do

esquecimento;

combates

cibernéticos

Educação

Educação

fundamental

pública (Europa,

EUA, Japão)

Desenvolvi-

mento das uni-

versidades;

institucionali-

zação da pes-

Desordem e

competição na

mídia; falta de

conhecimento

prático no coti-

Vigorosa reto-

mada do com-

trole; educação

secundária pa-ra

todos; mun-dos

Desenvolvi-

mento pessoal

através do

edutainment;

manejo de

Page 209: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

209

quisa diano virtuais tecnologias de

sobrevivência

Espiritualidade

e Religião

Cristianismo dos

coloniza-dores

Domina o

"cientismo";

ascenso do Islã

Fundamentalism

os versus

Espitualidade da

Nova Era

Ciências

cognitivas;

racionalização

do irracional

Três vias do

conhecimento{R

acionalidade,

Transe,

Criatividade

Cultura

Globalização da

cultura eu-ropéia

Cultura popu-

lar; predomí-nio

do inglês

Ressurgem as

culturas locais;

vídeo popular;

jogos eletrôni-

cos

Tradução

transcultural

estandarizada

Criação artís-

tica mediante

vida virtual

O mal-estar da civilização está dentro de nós

Atraso civilizacional

Sensação de comiseração, de atraso civilizacional.

Mas por quê? Não me falta casa, comida e banho

(ainda tenho emprego, trabalho numa escola

as crianças e os jovens sonham em chegar aonde cheguei.

Vou ter que dizer-lhes...)

Tenho ainda colchão (multi-uso, por ora)

frigorífico, microondas, carro, tv e vídeo

e navego na Internet.

Usufruo do «melhor da "civilização

onde as premissas para o sucesso são:

ter, possuir, acumular, não partilhar para subir

e continuar a ter mais e mais pois quem não tem

não é pessoa, é vadio, pobre, mendigo, louco…

(até lhes ateiam fogo mas lamentam se for um índio...)

Sou acordado pelo despertador (deperta a dor!)

Passo o dia correndo e não sobra tempo

nem para mim, nem para os outros.

Será que fez sol? Senti o perfume de uma flor?

Identifiquei o canto de um passarinho?

Deslumbrei-me com alguém? Tive gestos cordiais?

Pude parar e deixar o tempo fluir? Pude eu fluir e fruir?

- Não!

(É, vou ter que contar para eles...)

Mahatma] Ghandi :

SABER VIVER E CONVIVER

Um amor radical à paz e a convivência cordial eram, para o grande líder indiano Mahatma Ghandi valores máximos de civilização que a espécie humana precisa ainda aprender. Seu neto Arun Ghandi nos conta: Para [Mahatma] Ghandi, quem não sabe conviver também nunca saberá qual é a sua própria filosofia da vida. Contou-me várias vezes a história de um colega, brilhante nos estudos, sempre com as notas mais altas. Passou em tudo com distinção, arranjou logo um bom emprego. Só que nunca achou tempo para aprender a viver. Não soube conviver com sua mulher, nem com seus filhos, nem com ninguém. Acabou amargurado e na miséria. Saber viver e conviver - dizía ele - é o que mais se precisa aprender

206.

Tem cego que enxerga mais que a gente

Um massagista cego da Praça Benedito Calixto me falou: - Pôxa, como custa desbloquear os meridianos de energia

Cegos massagistas

Aos sábados funciona um mercado "Tem de Tudo" na Praça Benedito Calixto de

206

Prafraseado de O'DOHERTY, Stephen . Educating for hope - Texto disponível na Internet, juno/2000

Page 210: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

210

de intelectual e professor...

Generoso e benevolente, acrescentou:

- Graças a Deus que não é o seu caso.

Acho que entendi. Não vou esquecer mais.

São Paulo. Lá existe um posto de massagem anti-stress. Os massagistas são cegas e cegos. Praticam de preferência massagens orientais.

***

A Neotenia Humana

1. Que vem a ser neotenia?

Neotenia.é noção científica de espesso conteúdo desafiador. De neotenia humana se

fala há mais de meio século e, ultimamente, com um leque de analogias cada vez mais rico,

para aludir ao fato de que a espécie humana reteve e incorporou ao seu cadedal genético

uma série de características juvenis para poder permanecer extremamente flexívef e

aprendente pela vida afora. Somos uma espécie que se viu obrigada, evolucionariamente, a

preservar uma huvenilidade adaptativa. Cerebralização e juvenilização evoluíram juntas.

Em 1926, o anatomista holandês Louis Bolk publicou a sua teoria

sobre."fetalização" e "juvenilização" na evolução humana. Fez estudos comparativos com

vários outros animais, que retêm e prolongam aspectos juvenis, como o axolotl, um anfíbio

do Golfo do México Constatou que o crânio de um chimpanzé jovem e de um homem

adulto possuem várias características em comum, um crânio globuloso, face sem arestas

proeminentes, etc. Mas enquanto o crânio do chimpanzé mudará quando adulto, o do ser

humano conserva um aspecto juvenil. A partir desse fato Bolk presumiu que o crescimento

das formas do ser humano se tornou mais lento no decurso da evolução. Essa teoria,

chamada de Neotenia conta hoje com muito interesse especialmente nos Estados Unidos e

na Europa.

Em síntese, para poder continuar sua evolução a espécie homo teve que transpor os

desafios-limite implicados no aumento da capacidade cerebral (o processo de

cerebralização), nascimento prematuro, epiderme nua, total dependência do acolhimento

("útero externo") pelos cuidados maternos ou de outros, retenção de características fetais e,

depois, juvenis, extrema capacidade adaptativa. O prolongamento da infância e os cuidados

maternos prolongados favoreceram a complexificação neurnal e social.

Um aspecto fundamental da neotenia: o cérebro desenvolveu simultaneamente sua

complexificação interna e sua complexificação social. Os automarismos instintivos foram

sendo deixados para trás, substituídos pela aprendizagem.

Outros aspectos importantes da neotenia: a coesão do grupo, o alento à ludicidade

("filhotes" humanos brincalhões, consensos sociais mínimos acerca da fragilidade e do

inacabamento dos recém-nascidos e das crianças, preservação da curiosidade, o papel

fundamental da adolescência, enfim: a "ecologia da ternura", isto é, o reconhecimento de

responsabilidades e "cuidados neotênicos". O resultado dessa "opção" pode ser resumido

nas seguintes frases:

O homem é, ao nivel corporal, um feto de primata que alcançou a maturidade

sexual (Bolk)

Os etólogos mostraram que os seguintes são alguns traços da neotenia humana: o

homem é um ser aberto ao mundo, um especiaista da não-especialização, um ser

Page 211: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

211

lúdico que aprende por curiosidade ativa, (...) um ser da álea, do acaso, do risco,

do perigo e da crise, em aprendizagem permanente a demandar que se desenvolva

uma flexibilidade e uma plasticidade comportamentais.

...os animais não-especialistas como os seres humanos desenvolveram um antídoto

contra as opiniões pré-concebidas da aprendizagem por imitação: a curiosidade.

Trata-se de mais uma faceta de nossa evolução neotênica207

.

2. A neotenia foi uma superação de limites evolutivos

Parece inegável que o aumento gradual do cérebro dos primatas, ao longo de

milhões de anos. levou invitavelmente a um impasse relacionado também com a facilitação

do parto. Limitados pela forma da pélvis feminina, os humanos evoluímos de um modo que

permitisse a continuação do crescimento do cérebro após o nascimento. Já que o cérebro

cumpre um papel fundamental no desenvolvimento do resto do corpo, é compreensível que

também se tenha chegado evolutivamente a um adiamento, para a fase após o nascimento,

de boa parte de nossas pré-disposições biofísicas, de nossas capacidades relacionais e da

própria percepção e sensoriamento do entorno através dos sentidos.

Enquanto muitos animais manifestam a capacidade perceptiva de seus sentidos num

tempo extremamente curto após o nascimento, os sentidos da criança precisam de longos

períodos adaptativos para aprenderem o seu próprio potencial, por exemplo, o olhar da

criança humana precisa de vários meses para enfocar com maior nitidez as pessoas e os

objetos.

Uma das hipóteses mais fantásticas é a de que a construção das formas percebidas

pela criança não acontece, como no adulto, a partir de parâmetros configurativos das

formas-limite, ou seja, dos contornos externos; ela acontece - diz a hipótese - a partir da

cosntrução perceptiva da boca, do olhar e do mamilo da mãe, num processo complexo de

sensações agradáveis de atendimento de expectativas da corporeidade da criança.

Refletindo sobre detalhes desse tipo, a gente se dá conta de quão equivocados estão

aqueles que se imaginam o relacionamento humano como comunicação mental de

propósitos conscientes e lingüisticamente expressados numa espécie de ponte transmissiva

entre um pólo emissor e um pólo receptor.

A construção do espaço e das temporalidades é igualmente um processo lento. Os

nexos causais dos acontecimentos são construídos pela criança mediante uma lenta e

complexa rede de relacionamentos, na qual os fatores propícios ou impeditivos podem ter

conseqüências determinantes.

Outro exemplo: parece que o sorriso da criança nasce, num primeiro momento,

como rictus facial e manifestação orgânica relacionada com o bem-estar derivado da

sensação de satisfação por ter recebido alimento. Ao ser percebido pelos pais e

circunstantes como expressão de satisfação, estes o interpretam espontaneamente como elo

207

Cit, de L. BOLK, apud MORIN, Edgar. O Enigma do Homem. Rio de Janeiro. Zahar, 1975, p. 89 ( ver aí

todo o cap. sobre "cereblralização" e "juvenilização". A segunda frase é de PAULA CARVALHO, J.C.de. A

hermenêutica da ética de "photos" e da antropolítica da "neotenia humana". Revista Reflexão. Campinas,

no.70, p.106-117, janeiro/abril/1998, auto-citação (resumida) de Id., Antropologia das organizações e

educação: um ensaio holonômico.RJ: Imago, 1990). A terceira frase é de MORRIS, D. O macaco nú. São

Paulo: Ed. Edibolso. 1975..

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comunicativo. Na própria criança, porém, o sorriso é construído lentamente como forma de

comunicação imbuída de esperança e alegria. Em outras palavras, o sorriso da criança é

uma construção tipicamente inscrita no desenvolvimento neotênico da fase inicial da vida.

Sua riqueza expressiva nos deveria servir de base para inúmeras reflexões acerca do papel

instituinte do relacionamento lúdico e alegre na conformação peculiar da identidade de cada

ser humano.

Em outras palavras, as carências peculiares desse "prematuro" levaram à

necessidade da criação de prolongamento do útero, enquanto contexto de acolhida e amparo

após o nascimento...Esse contexto sócio-generativo tornou-se a base para a preservação dos

elementos de juvenilização em vários sentidos do termo: no sentido estritamente biofísico e

- aspecto que jamais se poderá exagerar - no sentido relacional humano. Uma teoria da

ludicidade, enquanto dimensão essencial da espécie humana, pode encontrar apoio

fundamental na descoberta da Neotenia Humana.

Como se pode ver o fenômeno da neotenia tem ressonâncias muito mais amplas do

que aquilo que é captado por biólogos que se limitam a um ou outro elemento parcial da

neotenia, por exemplo, à retenção de características de imaturidade para além do

nascimento, já que a criança nasce prematuramente, e seu cérebro permanece nessa

condição por muito tempo por exigência das próprias condições da gestação e do parto.

Sem o fenômeno evolutivo chamado neotenia, a nossa espécie jamais teria evoluído

para seu complexíssimo potencial cerebral e lingüístico-cultural. Fica evidente que a

Neotenia Humana tem, como implicação básica, o "útero continuado" da ecologia cognitiva

e comunicativa, que esse ser prematuro carece para desenvolver-se. O fenômeno da

neotenia deve, portanto, ser compreendido como a base antropológica mais evidente da

exigência de um contexto solidário para a saúde física e psicológica dos seres humanos.

A neotenia não é uma teoria sem aspectos ainda não devidamente explicados. Por

exemplo, como entender a retenção de formas juvenis não apenas na fase inicial da vida

humana, dadas as condições peculiares do parto, mas ao longo da vida inteira? E ainda:

como pensar conjuntamente a incrível aceleração da capacidade perceptiva do ser humano

nos seus primeiros anos de vida com a persistência - quando não destruída pelo entorno -

de uma juvenilidade lúdica e uma capacidade adaptativa neotênica, isto é, incrivelmente

aberta à complexidade e como que exigindo uma constante superação de explicações

obsessionadas com a causalidade meramente linear? O desafio pode ser resumido em dois

pontos: neotenia humana e teia complexa da vida relacional dos seres humanos208

.

3. O papel da mulher na Neotenia Humana

No contexto deste livro, o tema da Neotenia Humana é evocado por três motivos

Primeiro, para recordar que a espécie humana já conseguiu realizar uma vez, na fase

evolutiva da Hominização, uma fantástica ultrapassagem de limites, que leva o nome de

208

Além da longa análise de Morin (loc. cit.), o tema "neotenia" aparece em muitos outros autores: Stephen J.

GOULD disponibiliza, num site da Internet, uma extensa análise bibliográfica, com centenas de autores, que

tratam do assunto cf. Library of Excerpts [www.neoteny.org/a/stephenjgould.html]. Cf. tamném Fritjof

CAPRA (A teia da vida. São Paulo: Cultrix, 1997, p. 204s.), Stephen Jay Gould (O Sorrisoo flamingo, A falsa

medida do Homem). Ashley Montagu, Tocar, o significado humano da pele. SP:Summus Editorial, 1988 e

outros livros de Montagu; DEAG, J. M. O comportamento social dos animais. SP: Edusp/EPU,1981;

THEVOZ, Michel. The Painted Body. New York: Rizzoli International Publications Inc.. 1984; JOHNSON,

D.R. Retardation and neotony in human evolution - Disponível na Internet, junko/2000.

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213

neotenia.

Segundo, para enfatizar que novamente nos defrontamos com desafios-limites e que,

para encarar a virada civilizatória da atualidade, poderíamos inspirar-nos em algumas

lições já uma vez aprendidas por nossa espécie, em contextos evidentemente bem

diferentes dos de hoje

Terceiro, para destacar a urgência de retomarmos, hoje, sobretudo, três "re-atualizações neotônicas": 1. A "rejuvenilização", lembrando que a maior rejuvenilização foi, e há de

ser novamente, a do nosso cérebro/mente; leia-se: o papel dos jovens desta e das

próximas gerações deve ser uma referência forte do futuro da educação. 2. O papel da

mulher, que foi decisivo na Primeira Neotenia e não o será ainda mais na "Segunda

Neotenia". 3. A complexificação neuronal neotênica e a "solidariedade neotênica" de

outrora podem servir de analogia inspiradora para a urgência do pensamento complexo

e da solidariedade, hoje e no futuro.

A neotenia oferece elementos explicativos para o crescimento exponencial da massa

cerebral nos hominídeos, o desenvolvimento surpreendentemente rápido da linguagem, o

desenvolvimento ideosincrático de diversos traços humanos incluindo, sobretudo, os da

sexualidade. Alguns sugerem uma espécie de estrutura evolutiva matrifocal (constituída

primordialmente por influências maternais e femininas) na consolidação genética da

neotenia humanam.Aliás, já na formação da célula-ovo, a mulher contribui com mais de

50% dos genes, já que o óvulo fornece todo o citoplasma celular e não só o núcleo, como o

faz, ao que parece, o espermatozóide

Em relação à neotenia, algumas feministas vem apresentando idéias sugestivas sobre

como reler evolutivamente o surgimento das características da sexualidade especificamente

humana. As visões patriarcais e masculinas da evolução sexual costumam omitir aspectos

relacionais e comunicativos da sexualidade, não redutíveis a uma visão como a de Freud e

menos ainda a uma visão de análise puramente anatomista das formas sexuais. A

persistência da sexualidade como característica comunicativa ao longo de toda a vida

humana, desde a infância até a velhice, exige uma "leitura" neotênica da evolução da

sexualidade humana, ou seja, requer que se dê atenção à juvenilização constante do

erotismo ao longo da vida inteira.

Vários outros aspectos: o papel da mulher no imprinting da ludicidade, da

curiosidade e "juvenilização" dos gestos comunicativos da espécie humana. Parece também

fora de dúvida que houve uma importante contribuição feminina na preservação ou

recuperação da neotenia nos animais domesticados. Por exemplo, os cães são lobos

neotenizados209

. A maior proximidade e peculiar influência das mulheres na domesticação

de certos animais contribuiu para acelerar e diversificar as raças e variantes

comportamentais dos animais domesticados.

Os homens saíam para caçar e talvez por isso mesmo, nem teriam sido capazes de

desenvolver as formas de tratamento carinhoso dos bichos, que as mulheres, que ficavam

mais próximas dos animais domésticos, desenvolveram normalmente no seu

relacionamento com eles. As mulheres se compadeciam dos filhotes e ajudavam a garantir a

sua sobrevivência. A domesticação dos animais se deu sempre como um ato solidário,

relacionado principalmente com a preservação da vida e a garantia de crescimento dos

filhotes. Nesse sentido, a domesticação dos bichos só foi possível mediante

comportamentos solidários e de compadecimento. Enquanto os machos se exercitavam no

209

P. ex. o documentário O enigma dos cães transmitido pelo Discovery Channel de 12/junho/2000.

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214

arremesso certeiro de pedras, paus, flechas, etc., as mulhers desenviam a ternura. Cuidemos,

porém, de não imaginar cenários excessivamente idílicos. A vida sempre foi uma luta.

4, Neotenia Humana e Solidariedade

O ser humano nasce e se desenvolve como um ser carente de solidariedade. A

metáfora da neotenia serve, pois, para falar dos desafios atuais da solidariedade. A espécie

humana está precisando de uma espécie de SEGUNDA NEOTENIA, desta vez

conscientemente assumida como desafio da complexidade e da solidariedade. Nosso

problema já não é o da sobrevivência quantitativa, mas o da humanização relacional.

Em termos amplos, as carências vitais dos excluídos em geral, crianças e adultos,

não encontram acolhida solidária no mundo de hoje como um todo. A exclusão não é

apenas econômica. Trata-se de uma exclusão social, ligada à econômica, mas que a escede

em muitos aspectos. É uma exclusão da acolhida e do reconhecimento. Eles são seres que a

espécie já não precisa para se preservar enquanto espécie. Incluí-los numa acolhida

solidária, que represente a afirmação concreta de todas as vidas ameaçadas pela desatenção

e falta de reconhecimento requer o desenvolvimento urgente de uma Segunda Neotenia, à

qual se vem aludindo com expressões como: cultura solidária, justiça e solidariedade, etc

As próprias linguagens emergentes, que se referem a essa exigência de uma acolhida

neotênica e solidária, já parecem estar insinuando que não haverá tempo suficiente para que

a espécie humana desenvolva geneticamente predisposições para a solidariedade requerida.

Portanto, trata-se de uma exigência que deverá ser atendida, de forma urgentíssima, por

meio de uma transformação sócio-cultural de nossos comportamentos.

Como realizar essa "Segunda Neotenia" num contexto de mercado mundializado e de

extremas resistências à retomada de projetos de economia social de mercado, quando esta

foi testada com êxito somente por alguns próprios países europeus e por cima ainda, de

maneira tímida e transitória?

A "Segunda Neotenia": da Hominização à Humanização

1. Nossa esperançada socialidade inicial

Nossos sonhos crescem mais sadios quando entendemos como eles se originam.

Somos animais desejantes de mundos interativos porque interativa foi a evolução da nossa

espécie. Como animais neotênicos, nosso truque foi nascer prematuros, confiantes de que o

útero materno teria continuidade lá fora. Nascer tão dependentes em tudo foi um ato de

confiança ilimitada no acolhimento necessário para terminar de nascer e poder crescer.

O nascimento teve um lado traumático porque saltamos despreparados para um

útero externo com fluxos de energia mais complexos. Daí para frente os gestos e os sons, as

verdades e mentiras das linguagens fariam parte da nossa percepção do mundo. Depois de

um começo de dependência total do carinho, nascemos para buscas próprias, com o sentir

dos sentidos e os sentidos das linguagens. Enredos vitais e enredos de aprendência se

tornbaram inseparáveis pelo resto da vida.

Cada um de nós é uma mistura diferente de abertura e fechamento a energias,

cautelas e ousadia, anseios e desconfianças. À medida que fomos crescendo, o que sobrou

da confiança inicial prosseguiu num desdobramento de curiosidades. E o desejo de confiar

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215

teve que achar suas muitas veredas. Como nunca estivemos sozinhos, nos fomos tornando

aos poucos a busca de ser aquilo que imaginamos que os outros pensam a nosso respeito.

Por puro divertimento, vamos tentar dizer isso de um jeito intelectualoso. Nossa

identidade subjetiva se constitui mediante um desejo mimético, que nos impulsiona, ao

mesmo tempo, a "negociar", com o nosso nicho vital, sonhos e ações interativas e a

competir com coisas e sonhos. Mas competir com quem ou com quê? Pois, a competir com

a visão que supomos - por alguns indícios ou signos percebidos como ingredientes da troca

recíproca de gestos e linguagens - que os outros (especialmente alguns outros

determinados: os das nossas ambiências, tangíveis ou imaginárias) tenham do mundo em

que convivemos, de nós e deles mesmos.

No fundo, se trata de um entrejogo de construções (simulações) de mundos do

sentido ou em processo de construção, mas que sempre ainda se podem "renegociar" e

descontruir. Um certa desconstrução criativa - o economista Schumpeter falou de

"destruição criativa" - faz parte do nosso jeito humano de criar mundos, que sonhamos

como acolhedores. As dinâmicas identitárias subjetivas estão constituídas por um entrejogo

mimético competitivo de constructos de mundos com seus respectivos constructos de

habitantes desses mundos. A competência de sonhar se tornou inseparável do sonho de

competir.

Mas é plenamente legítimo e até aconselhável conferir os palpites de variadas

teorias, e não de uma só, acerca dessa complexa tramação de identidades, cuja "realidade" é

construída em planos tão impressionantemente abstratos, embora essas abstrações mexam

concretamente com nossos hormônios e neurônios.

2. Nossa difícil transformação em animais sociais

Educação vem de educere, educare, em latim. O termo grego correspondente é

êxodo, de ek-hodos (caminho para fora). A educação implica um "sair de si". O fundamento

profundo do sair-de (êxodo) é, por uma parte, a capacidade de estranhamento do seu

próprio eu (atenção consciente em/para si mesmo) e, por outro lado, a capacidade para a

alteridade, para pensar o/a outro/a em sua radicalidade, enquanto algo mais que um

semelhante ou um "igual", Ele/ela é um ser radicalmente diferente.

Como desenvolver nossa sensibilidade para o/a outro/a? Não se trata de elaborar

uma teoria abstrata, mas de uma espécie de "exercício espiritual". É claro que há muitos

caminhos possíveis para desenvolver semelhante sensibilidade. Mas um deles certamente é

o que se refere à capacidade de prestar conscientemente atenção na riqueza experimental -

positiva ou negativa, esperançadora ou até, por vezes, repelente. Saber prestar atenção no/a

outro/a implica, antes de mais nada, tomar consciência de que nós mesmos estamos

precisando, a cada momento, desse carinho ao qual estamos aludindo com a palavra

atenção.

Nunca chegaremos a ser atentos aos demais se não tivermos capacidade de estar

atentos a nós mesmos. Só que é preciso entender que nosso desejo/necessidade de atenção

já é, no que tem de mais vital, uma abertura para conexões com a natureza e a vida.

Desejamos e esperamos, no mais fundo do nosso ser enquanto sistema vivo e aprendente,

que sejamos tomados em conta e que aquilo e aqueles que nos envolvem - que constituem

nosso nicho vital - saibam como cuidar da preservação e da alegria de viver em cada um de

nós.

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216

Sabemos muito bem que isso não acontece "naturalmente" em muitos contextos.

Esses contextos estão prejudicados enquanto nichos vitais propícios para aquilo que lateja

dentro de cada um de nós sob a forma de desejo de atenção e cuidado210

.

Estar à espera de que se nos envolva com cuidado é uma dimensão aparentemente

ingênua e ilusória dentro de um mundo cheio de agressividade e indiferença. No entanto,

todos nós sabemos que qualquer ser vivo, pelo menos na fase inicial da sua vida, grita para

dentro da sua ecologia essa sua esperança de ser respeitado em sua dinâmica vital. Convém

meditar seriamente sobre as razões que explicam a tragédia, lamentavelmente tão freqüente,

do arruinamento emocional de muitas pessoas nos seus níveis de expectativas e na sua

capacidade desejante.

3. Sensibilidade social e esperança mínima Só saberás quem és se tiveres sido amado

Pierre Lévi / Darcia Labrosse211

Feitas essas considerações, desde a perspectiva do ser vivo individual em direção a

seu meio ambiente e aos demais seres vivos, podemos agora perguntar-nos mais claramente

até que ponto nem sequer se trata de uma expectativa unilateral. A característica talvez

mais fascinante dessa expectativa de cada ser vivo consiste na dimensão de diálogo, de

interpelação e contato, de abertura e conectividade que lhe é inerente e que caracteriza, na

sua dinâmica mais profunda, isso que chamamos sede de acolhida.

Pelo fato de ser uma sede de algo que o indivíduo não possui em si, nem pode

preencher por si mesmo, não se trata de uma simples busca de resposta a um

desejo/necessidade do indivíduo, mas de uma demanda de envolvimento em reciprocidades.

A ausência de percepção disso, ou a aberta negação disso constitui a grande lacuna e

distorção (ou como se queira chamar) que vicia todas as teorias do desejo obsessionadas

pela dimensão competitiva do entrejogo dos desejos entre os seres humanos (desde Adam

Smith, passando por Hegel, Freud e até Lacan, inclusive). É preciso apontar, positiva e

afirmativamente, e não apenas sob o aspecto concorrencial, um aspecto constitutivo

fundamental da própria pulsão que move as interfaces desejantes das pessoas em direção a

uma reciprocidade na busca de uma construção historicamente plausível do sentido.

Trata-se de uma dinâmica desejante cuja referência final é, em última instância,

convergente e não-confrontativa ou competitiva, precisamente porque não apenas aceita a

inclusão do/a outro/a nessa parceria de busca do sentido, mas está potencialmente aberta a

admitir que os campos do sentido possam - ou até devam - ser articulados a partir do

"sentido impedido" nas capacidades desejantes que foram historicamente anuladas, porque

vitimadas enquanto capacidades desejantes.

A pobreza e a miséria humana mais radical talvez consista na anulação da

capacidade de afirmar a própria vida, Não é fácil falar disso com as velhas linguagens

lineares (evidentemente insuficientes), mas tentemos. No cerne mais radical da dinâmica

desejante, que se ativa em direção à construção de mundos do sentido compartidos, já não

se trata de uma simples flecha que parte do indivíduo em direção a seu entorno. A própria

210

Embora Leonardo BOFF não mencione explicitamente a neotenia, salvo engano, ele entendeu

profundamente este assunto. Cf. BOFF, Saber Cuidar; A águia e a galinha; O despertar da águia (todos da

Ed. Vozes) - livros que, no seu estilo intencionalmente simples, mexem com temas humanos e sociais de

grande alcance. 211

LÉVY, P./ LABROSSE, D. O fogo libeador, p. 12.

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217

comparação com a flecha apenas nos serve aqui para mostrar que não é possível entender

os desejos/necessidades do ser humano como demandas unidirecionais.A própria

capacidade desejante inclui em si o envolvimento de atendimentos extra-individuais na

constituição da capacidade desejante.

A capacidade de atenção aos demais implica, portanto, uma consideração

constitutiva de nossa própria expectativa de acolhida, enquanto busca e expectativa

(frustrável, é claro) de respostas advindas da nossa ecologia vital. É nesse conjunto

interrelacional que se devem situar os dois aspectos do "saber cuidar", isto é a esperança de

que se cuide de nós, que, por sua vez, fundamenta nossa sensibilidade possível para cuidar

dos/as outros/as e da natureza.

Seres vivos nos quais ficou mutilada ou praticamente extinta a expectativa de que

haja uma envoltura de acolhida existencial para eles, dificilmente poderão desenvolver uma

disponibilidade básica constante para a sensibilidade solidária.

A dimensão profunda dos nossos desejos

Todo processo vivo inclui tendencialmente sua continuidade e seu desenvolvimento.

Isso parece fenomenologicamente inegável. Mas sabemos que essa expectativa de vida

continuada e mais vida não sempre se cumpre e, do ponto de vista da evolução,

provavelmente nem sempre poderia cumprir-se. A perecibilidade da vida iniciada faz parte

da própria evolução da vida.

Pode parecer uma reflexão excessivamente fria, mas é de perguntar-se por que a

vida humana deveria distinguir-se do resto dos seres vivos por um conjunto de direitos e

garantias vitais mais asseguradas ou reclamáveis com um direito naior do que o simples

"direito de querer sobreviver", impresso no próprio comportamento orgânico-vital de

qualquer ser vivo. Existe um "direito ao amor" ou já estamos entrado, com tal "direito" num

mundo onde as leis da autopoiése da vida são apenas uma pré-condição, mas não uma

garantia suficiente? Entramos no campo da conversão a algo mais?

Se estivermos dispostos a agüentar humildemente essa "igualdade biológica" com

todos os demais seres vivos, não há por que adjudicar ao ser vivo humano qualquer

privilégio especial, no plano dos direitos a garantias de sobrevivência e expansão da

vitalidade. Esse pensamento, que pode parecer brutal, só o é desde o ponto de vista de um

antropocentrismo já consagrado por muitos inventos simbólicos e míticos da nossa espécie.

Depois se tomar "consciência" de nossa filiação à Mãe-Terra ou Mãe Natureza,

fomos postulando, aos poucos, direitos especiais frente aos demais seres vivos. Começamos

a traçar fronteiras de distinção e referências demarcatórias da nossa "superioridade" em

relação ao resto do reino animal. Chegamos ao ponto de achar-nos tão diferentes dos

demais seres vivos que, sem haver-nos dado conta, de repente estávamos sozinhos.

Terrivelmente sozinhos entre nós mesmos, os do ramo filogenético homo sapiens sapiens.

E demorou muito - até ontem, diríamos - até que descobréssemos que também somos

homo demens e homo complexus (para usar expressões de Edgar Morin).

Fomos tomando distância - até hoje, efetivamente sabemos muito pouco sobre tudo

isso - do homo afarensis, o bicho humano sem fala. Como sem fala? Não gesticulava, nem

emitia sons, nem se comunicava com seus pares? Nós o inventamos, para poder inventar-

nos como seres-com-linguagem. Desde que nos descobrimos como falantes e gesticulantes,

proclamamos petulantemente a nossa superioridade. Superioridade em quê, para falar a

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218

verdade? Em sensibilidade, em carinho, em potencial de ternura e fraternura? Isso não

parece nada evidente, nos poucos milênios de memória conservada da nossa história.

Mas uma coisa é certa: fomos excelentes inventores de deuses, planos divinos e

mitos os mais variados acerca da nossa "eleição" como seres vivos "muito especiais". E

quem ousaria pôr em dúvida essa nossa "superioridade" em multiplicar, enfeitar e

racionalizar nossas teorias acerca de nós mesmos? Chegamos a colocar quase todos os

nossos inventos na boca de deuses. Nós inventamos até o direito de atribuir a nossa

destrutividade a instâncias superiores, às quais obedecíamos devotamente.

As razões para brigar entre nós e maltratar-nos uns aos outros foram adquirindo o

tamanho de fantásticos sistemas explicativos de nossos auto-enganos. Esses sistemas de

dissimulação foram muitas vezes maiores e mais fascinantes do que nossos sonhos acerca

da beleza, da ternura e do amor. Mas todas essas coisas sempre estiveram muito misturadas

em nossos mundos do sentido.

Mundos do sentido? Mas por que chamá-los assim? Por acaso os demais seres vivos

inventaram igual solenidade para suas fantásticas inclinações para gostar de sons, cantos,

ritos, galanteios, anseios, desistências, acomodações e surpreendentes retomadas da

vitalidade, que parecia extinguir-se em momentos? Pelo visto, nós estamos muito pouco

preparados para esse tipo de atrevidas comparações. Dá-nos vertigem pensar nos golpes

que o antropocentrismo já recebeu nos últimos breves 500 anos.

Deixemos a outras instâncias e momentos de reflexão o mergulho mais corajoso na

teoria evolucionária do aprender, do conhecimento e dos comportamentos da nossa espécie.

Uma coisa parece fora de discussão: a mania da busca do sentido incorporou-se em nossos

hormônios e neurônios. Não nos largará mais e nós tampouco temos a menor vontade de

largá-la. Sigamos, pois, em frente. Somos, ao que tudo indica, animais doentes da

necessidade do sentido pelo resto da nossa história futura. Essa história só se tornará

previsível na medida em que o desdobramento da nossa busca do sentido se tornar, de

doença que parece ser (ao olharmos para trás), uma promessa de um mundo saudável (ao

olharmos para a frente).

Talvez convenha distinguir -ao menos para adquirir uma visão mais abrangente do

que significa sensibilidade social - os aspectos dessa nusca do sentido que se referem a

hábitos que fomos adquirindo, dos demais aspectos dependerão, em cada momento, de

nossa atenção consciente. Essa distinção serve apenas para visualizar melhor os diversos

níveis nos quais devemos exercitar a nossa sensibilidade social. Não estamos sugerindo, de

forma alguma, uma espécie de separação entre comportamentos de socialização já

adquiridos e opções inovadoras em cada momento, sob um suposto comando central da

consciência. As coisas sempre se dão juntas e seria equivocado imaginar-se uma

consciência aguda da abertura aos demais como fenômeno separável dos hábitos

adquiridos.

Aquilo que chamamos atitude consciente em geral é apenas uma discreta "melhoria

possível" no interior do conjunto de nossos hábitos de socialização e relacionamento já

adquiridos. Em outras palavras, é difícil imaginar-se ou querer comprovar uma ativação de

níveis conscientes de sensibilidade social sem tomar em conta o potencial de sensibilidade

já adquirido em nossos comportamentos anteriores ao longo de nossa vida.

Os parâmetros da nossa memória não estão limitados ao neo-córtex. Isto é, a parte

evolutivamente mais recente do nosso cérebro triádico. A memória está distribuída pelas

diversas regiões do nosso cérebro e até em nossa corporeidade inteira... As pernas sabem

como andar mesmo quando a cabeça está distraída...

Page 219: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

219

Portanto, educação para a ensibilidade social significa, ao mesmo tempo, aquisição

de hábitos comportamentais pró-sociais e desenvolvimento da capacidade de prestar

atenção na alteridade que nos interpela desde nossos contextos (nossos nichos vitais) e até,

como vimos, desde o próprio interior de nossas vibrações neuronais.

Talvez precisemos ainda de palavras novas e conceitos novos para expressar -

holograficamente - como é que acontecem nossas "conversões ao sentido" dentro de

processos de construção do sentido. Não podemos esquecer que essa imersão nunca é uma

imersão em águas cristalinas, posto que - em meio à construção de mundos do sentido -

sobrevivem também - e quanto! - os mundos do sem-sentido.

Mas é fundamental que reconheçamos, em nós e nos outros, a nossa fome comum

do sentido e que e lutemos para que ela seja reconheciada como um desejo que virou

necessidade.

Vivenciar a esperança

Já não haverá mais redentores, nem messianismos plausíveis.

A esperança será obra nossa, nosso trabalho principal, nosso mais energizante lazer.

A tarefa, doravante é nossa. Nesta vida, neste mundo.

Amaremos o presente,

que não é a incidência imperial da eternidade em nossos instantes fugazes.

É tão somente o presente-finitude,

feito para ser aceito, já que a vida é um presente.

O presente-duração (dur-ação), intensa, processual, embora finita e transitória.

É nossa existencial inserção no limiar do caos e da ordem, onde a vida acontece

como revolvência, en-dobramento e desdobramento

(ex-plicação, im-plicação, com-plicação)

dos mais estranhos atratores do sentido, num mundo evolutivo que não pára.

Dele somos parte e participantes

e sua saúde e suas patologias agora dependem também de nós.

Sobretudo de nós, neste planeta por nós colonizado.

Após tantas violências e equívocos, já é hora de despertar para a esperança ainda possível.

Vamos torná-la elástica e maior

construindo valores-pão (bens que nos sirvam, serviços que nos avivem)

valores-brinquedo, brinquedos para comer,

brinquedos para pensar (filmes, livros, canções, danças e esporte).

valores-poesia, valores-ternura, valores-paixão, valores-loucura, valores-fruição.

Pelo simples fato de estarmos vivos,

com vida que se quer expandir em mais vida, vida em abundância e alegria de viver,

já lateja em nós o desejo da imersão

na aventura de construir campos do sentido,

mundos do desejo-valor e do valor-desejo: cenários da esperança.

Cenários imbuídos de todos os mistérios:

os gozosos, os dolorosos e os gloriosos.

De mistérios quem mais entende são certamente as mulheres,

nossas supremas sacerdotisas.

Por isso precisamos tanto que elas nos olhem sempre de novo,

com carinho e misericórdia infinita.

Page 220: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

220

Porque se elas não nos olharem, como chegaremos a perceber-nos a nós mesmos

e encantar-nos por elas, pela vida e pelo mundo?

Como aprenderemos a "saber cuidar"

dos sonhos frágeis dos nossos filhos,

que hão de ser nossos melhores sonhos

e que farão amanhecer um futuro solidário?

Queremos aprender a celebrar juntos o estado de graça de acreditar

que nossas energias saberão entrelaçar-se, na dor e na alegria,

para que siga em seu fluxo o rio do mais-sentido.

O rio que os nossos sentidos

- os muitos sentidos da corporeidade viva inteira,

corpo/mente e irradiação de desejos -

já sabem que nunca é o mesmo rio,

mas que é o rio das nossas esperanças

com as quais fecundaremos o futuro.

Page 221: Jung Mo Sung - Competencia e sensiblidade solidária

221

Uma breve bibliografia sobre SOLIDARIEDADE

Obs: Inclui apenas textos explicitamente relacionados com solidariedade. Para as outras referências

bibliográficas, consultar as notas de rodapé.

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Perspectives. Solidarity: Theoretical Perspectives for Empirical Research; H. Thome. Social

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224

Sobre os co-autores

Hugo Assmann - Brasileiro. Filósofo, sociólogo e teólogo. Durante os 12 anos que se viu

obrigado a viver fora do país, foi professor visitante na Universidade de Münster, na

Alemanha, e lecionou em universidades do Uriguai, do Chile e da Costa Rica. Desde 1981

é professor no Programa de Pós-graduação da Faculdade de Educação da UNIMEP. Autor

de mais de 20 livros, alguns traduzidos para vários idiomas. Entre os mais recentes:

Metáforas novas para reencantar a educação (Ed. Unimep) e Reencantar a educação -

rumo à sociedade aprendente (Vozes). E-mail: [email protected]

Jung Mo Sung - Coreano de nascimento, brasileiro naturalizado. Estudou Administração

de Empresas. Formado em Filosofia e Teologia, com doutorado em Ciências da Religião.

Leciona atualmente no Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião da PUC-SP e

na UMESP. É também pesquisador do IFAN-USF. Autor de diversos livros, alguns

traduzidos para vários idiomas, entre eles Desejo, mercado e religião (Vozes) e Teologia e

Economia (Vozes). E-mail: [email protected]