jubileu da terra

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Welinton Pereira da Silva pós alguns contatos da Visão Mundial e outras organizações sociais com a ativista ambiental, irmã em Cristo e agora ministra do Meio Ambiente Marina Silva, fomos desafiados a pensar numa ação articulada da igreja evangélica na questão do meio ambiente. Assumimos com prazer esse desafio, primeiro, por causa do nosso compromisso com o Deus da criação e da vida, e, segundo, por causa do nosso compromisso com a igreja brasileira, no sentido de cooperar para que a missão que Deus nos deu seja de fato integral. Estamos convencidos de que a igreja evangélica tem um papel importante na luta pela preservação do meio ambiente, e temos base bíblica suficiente para o engajamento nessa luta como parte de nossa agenda. Ao iniciarmos esse movimento, surpreendeu-nos o grande número de irmãos e irmãs que estão envolvidos com a causa ambiental, seja nas universidades, nas escolas dominicais de suas igrejas, nas empresas públicas de saneamento, em ONG’s etc. Em reunião ocorrida em São Paulo, no dia 16 de dezembro de 2004, foi formado um grupo de trabalho, composto por Movimento Evangélico Progressista, Sociedade Bíblica do Brasil, Visão Mundial, Instituto Cristão de Estudos Contemporâneos, FALE e A Rocha Brasil – Associação Cristã de Pesquisa e Conservação do Meio Ambiente. O grupo se reuniu diversas vezes para pensar e discutir as ações do movimento Jubileu da Terra. Entre essas ações, destaca-se uma oficina com o professor Milton Schwantes e a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, com a mediação do professor Gedeon Freire, realizada no Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, no dia 28 de janeiro. Aproximadamente quatrocentas pessoas de várias partes do Brasil participaram do evento. A publicação deste suplemento é mais uma ação! E para o segundo semestre de 2005 planejamos um encontro nacional sobre o tema “Igreja e meio ambiente”, a se realizar em São Paulo, com a participação de especialistas e militantes evangélicos. O Dia Mundial do Meio Ambiente, 4 de junho, é uma excelente ocasião para se estudar a questão ambiental nas igrejas. Veja na página 16 as indicações de recursos e receba gratuitamente estudos bíblicos para adultos, jovens e crianças. Por fim, vale citar as palavras do sociólogo Alexandre Brasil Fonseca, um dos colaboradores deste encarte: “A pobreza é um problema para a sociedade e para a natureza em geral. Em vários bolsões do mundo temos prejuízos decorrentes da falta de saneamento ou do recolhimento inadequado do lixo. Logo, parte de uma postura de preservação do meio ambiente passa, necessariamente, pelo combate à pobreza.” Welinton Pereira da Silva é pastor metodista e assessor de relações eclesiásticas da Visão Mundial. A A PRESENTAÇÃO Fazendeiro, de Hyatt Moore (In the Image of God, Wycliffe Bible Translators) jubileu da terra ultimato 1

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Artigos publicados na revista Ultimato (edição Mai.-Jun., 2005) pelo movimento Jubileu da Terra.

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jubileu da terra — — — — — ultimato 1

Welinton Pereira da Silva

pós alguns contatos da Visão Mundial eoutras organizações sociais com aativista ambiental, irmã em Cristo eagora ministra do Meio AmbienteMarina Silva, fomos desafiados a pensarnuma ação articulada da igrejaevangélica na questão do meioambiente. Assumimos com prazer esse

desafio, primeiro, por causa do nosso compromisso com oDeus da criação e da vida, e, segundo, por causa do nossocompromisso com a igreja brasileira, no sentido decooperar para que a missão que Deus nos deu seja de fatointegral. Estamos convencidos de que a igreja evangélicatem um papel importante na luta pela preservação domeio ambiente, e temos base bíblica suficiente para oengajamento nessa luta como parte de nossa agenda.

Ao iniciarmos esse movimento, surpreendeu-nos ogrande número de irmãos e irmãs que estão envolvidoscom a causa ambiental, seja nas universidades, nasescolas dominicais de suas igrejas, nas empresas públicasde saneamento, em ONG’s etc.

Em reunião ocorrida em São Paulo, no dia 16 dedezembro de 2004, foi formado um grupo de trabalho,composto por Movimento Evangélico Progressista,Sociedade Bíblica do Brasil, Visão Mundial, InstitutoCristão de Estudos Contemporâneos, FALE e A RochaBrasil – Associação Cristã de Pesquisa e Conservação doMeio Ambiente.

O grupo se reuniu diversas vezes para pensar e discutiras ações do movimento Jubileu da Terra. Entre essas ações,destaca-se uma oficina com o professor Milton Schwantes ea ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, com a mediaçãodo professor Gedeon Freire, realizada no Fórum SocialMundial, em Porto Alegre, no dia 28 de janeiro.Aproximadamente quatrocentas pessoas de várias partesdo Brasil participaram do evento.

A publicação deste suplemento é mais uma ação! E parao segundo semestre de 2005 planejamos um encontronacional sobre o tema “Igreja e meio ambiente”, a serealizar em São Paulo, com a participação de especialistas emilitantes evangélicos.

O Dia Mundial do Meio Ambiente, 4 de junho, é umaexcelente ocasião para se estudar a questão ambiental nasigrejas. Veja na página 16 as indicações de recursos e recebagratuitamente estudos bíblicos para adultos, jovens ecrianças.

Por fim, vale citar as palavras do sociólogo AlexandreBrasil Fonseca, um dos colaboradores deste encarte:

“A pobreza é um problema para a sociedade e para anatureza em geral. Em vários bolsões do mundo temosprejuízos decorrentes da falta de saneamento ou dorecolhimento inadequado do lixo. Logo, parte de umapostura de preservação do meio ambiente passa,necessariamente, pelo combate à pobreza.”

Welinton Pereira da Silva é pastor metodista e assessor derelações eclesiásticas da Visão Mundial.

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Marina Silva

uidar do meio ambiente é, para mim, umcompromisso de vida, um ministério. Nãoum ministério no sentido eclesiástico outeológico, mas um ministério que tem suasraízes no cristianismo.

É claro que falar de fé cristã e meioambiente não é tarefa simples. Minhaformação acadêmica é em história. Não

sou teóloga. Converti-me há oito anos. Como muita gente,eu me converti pela dor. Tinha sofrido uma contaminaçãocom mercúrio, que estava me fazendo perder a visão, acapacidade de movimentos, a memóriamatemática e espacial.

Ao converter, meu desejo eracarregar comigo, durante todo o tempo, aminha Bíblia. Mas, por ter um graveproblema de visão, tive que optar poruma Bíblia de letras grandes e minhasfilhas me criticaram, dizendo que aquelaera uma Bíblia usada por idosos. Fiz,então, o design dessa Bíblia produzidaem couro vegetal, que levo semprecomigo.

Muitas vezes, nas igrejas, nós temosa idéia de que os ambientalistas, os quedefendem o meio ambiente, são pessoasque prestam culto à natureza ou quefazem isso porque têm algumaparticipação em movimentos esotéricos.É claro que isso pode acontecer. Mas adefesa do meio ambiente para nós,cristãos, não é uma questão política, ou utilitária; é umaordenança divina.

Quando me converti, comecei a ver a Bíblia com outrosolhos. Passei a ver exatamente o que havia de ensinamentopara o meu trabalho. Eu era senadora, lidava com temascomo meio ambiente, direitos humanos, educação, questãosocial, violência...

O texto de Isaías 11.6 (“O lobo habitará com o cordeiro,e o leopardo se deitará junto ao cabrito...”) sugere quehaverá uma vida em que naturezas, aparentementeopostas, se encontrarão. Isso tem um sentido espiritual.

Certa vez, ouvi o pastor Jesse Jackson dizer que o meioambiente é o primeiro espaço, a primeira casa, o primeiroethos, onde essa profecia se cumpre. Sabem por quê?Porque o lobo precisa de água potável, o cordeiro também.O lobo precisa de alimento; portanto, tem necessidade deterra fértil. O cordeiro também precisa dela. Se pensarmosque ambos precisam do ar puro para que possam respirar,vamos perceber que tanto os países ricos como os paísespobres, na questão do uso dos recursos naturais, têm de

estar praticamente no mesmo espaço.A Bíblia nos apresenta várias passagens

nas quais encontramos Deus se reportando àquestão do cuidado com a natureza. Umadelas está em Gênesis 2.15: “Tomou, pois, oSenhor Deus ao homem e o colocou no Jardimdo Éden para o cultivar e guardar”. Nessemesmo versículo, o Senhor acrescenta: “parao cultivar e guardar”. Guardar, no sentido decuidado, de zelo. Por que cultivar? Porque aterra era e permanece sendo algo como umjardim abundante, com toda espécie deanimais, de frutos...

Quando desrespeitamos a natureza, nãoutilizamos de forma sustentável os rios, asflorestas, o solo, o ar, aquilo que é necessáriopara a vida do planeta, demonstramos a faltade importância dada às gerações futuras,transmitindo a idéia de que nós precisamosextrair tudo agora porque pensamos apenas,

no máximo, nos nossos netos. Essa é uma visãocompletamente fora do propósito de Deus na relação dohomem com a natureza.

Abraão também nos apresenta um interessantetestemunho, pois foi enviado para uma terra que nãoconhecia, a fim de ser pai de uma grande nação, umageração tão grande que nem poderia ser contada. Ele se

C

j u b i l e u d a t e r r a ATUALIDADE

Fé cristã e meio ambiente

O CUIDADOCOM O MEIO

AMBIENTENÃO É

RESPONSABILIDADESÓ DOS

AMBIENTALISTAS,MAS DE TODO

CRISTÃO

jubileu da terra — — — — — ultimato 3

preocupou com as gerações futuras. Esta é uma partemuito bonita na Bíblia: “Plantou Abraão tamargueirasem Berseba e invocou ali o nome do SENHOR, Deus Eterno”(Gn 21.33). Quantos anos tinha Abraão quando plantouaquele bosque de tamargueiras? 80 anos? 100 anos? Porque um homem de idade tão avançada haveria de sepreocupar em plantar um bosque de tamargueiras, se elenão comeria do fruto daquelas árvores, se não usaria assuas sombras para descansar? Ele plantou as tamargueirassimbolizando a sua aliança, o seu cuidado com asgerações futuras.

Há vários momentos na Bíblia em que Deus nosensina claramente a respeito do cuidado com anatureza. Ainda no Pentateuco, na elaboração daConstituição do povo judeu, Ele nos chama acuidar do meio ambiente. Em Deuteronômio22.6, Ele nos ensina a cuidar dos animais,quando diz: “Se de caminho encontrares algumninho de ave, nalguma árvore ou no chão, compassarinhos, ou ovos, [...] não tomarás a mãe com osfilhotes”. Matar a mãe com os filhotes é comprometer areprodução dos animais. E, comprometida a suareprodução, as espécies entrarão em extinção.

Deus é cuidadoso, também, com as espécies, com avariedade de alimentos. No mesmo capítulo deDeuteronômio, no versículo 9, Ele proíbe a mistura dediferentes espécies de sementes, para que não sejaprofanado o fruto da vinha. E, no versículo 8, do mesmocapítulo, o Senhor nos ensina a segurança no trabalho:“Quando edificares uma casa nova, far-lhe-ás, no terraço,um parapeito”. Sempre que eu passo na frente deconstruções que têm aqueles tapumes de proteção, eu melembro dessa passagem, pensando em como Deus, jánaquele tempo, recomendava que se colocasse a proteção,para se evitarem os acidentes e, segundo Ele, não houvesse“culpa de sangue”.

Há muitas outras passagens em que Deus fala arespeito do cuidado com a natureza, mas estas sãosuficientes para despertar e incentivar os cristãos arefletirem sobre sua atuação nesse aspecto.

É claro que o homem foi feito para dominar o meioambiente. Mas, tomemos, como exemplo, o domínio divino.Por acaso o domínio de Deus é tirano? Por acaso édescuidado? Por acaso éirresponsável? Não. O domínio deDeus é perfeito. E se ele fez ohomem à sua imagem esemelhança e lhe disse que deveriadominar a terra e tudo o que nelahá, é no seu referencial e não noreferencial humano, utilitarista,oportunista e, muitas vezes,exclusivista, que o homem devedominar a natureza. Tenhocerteza absoluta de que o nossopaís pode ser ricamente abençoado.

Oremospor isso.

Nossa fé devecaminhar seguindo avontade de Deus. Deve tersempre como alvo aedificação. Deve ser coerente com onosso desejo de que os governantes nãobusquem a sua própria prosperidade, mas estejaminteressados em conhecer e buscar o cumprimentodos propósitos de Deus para o país. Com certeza, issoresultará na alegria do povo e no júbilo divino.

Peço que orem por mim, que orem pelos nossosgovernantes. Para que não cometamos erros e, se ostivermos cometido, sejamos capazes de nos corrigir epassar a evitá-los.

O Ministério do Meio Ambiente está trabalhandocom políticas integradas, controle social,desenvolvimento sustentável, fortalecimento da políticaambiental, e a questão de uma política que contemple osvários segmentos da sociedade. Não tenho dúvida de quea igreja pode ajudar. Eu até penso que poderíamosencetar um grande movimento, dentro das igrejas,chamado “Jubileu Ambiental”. Todos aprenderiam que o

cuidado com o meio ambiente não éresponsabilidade só dos ambientalistas, mas detodo cristão. Deus no colocou no jardim não sópara cultivá-lo, extrair dele o nosso sustento, mastambém para cuidar dele.

NotaTexto adaptado do capítulo 8 do livro Missão Integral –proclamar o reino de Deus, vivendo o evangelho deCristo, publicado pela Editora Ultimato e VisãoMundial (www.ultimato.com.br).

Marina Silva é ministra do Meio Ambiente.

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4 jubileu da terra — — — — — ultimato

Milton Schwantes

s escritos bíblicos enfatizam a idéia de umamplo acesso à terra e de uma vida dignanela. Alguns diriam que essa é umacompreensão apenas do PrimeiroTestamento; no Segundo, no NovoTestamento, essa já não seria uma ênfaseimportante. De fato, embora no SegundoTestamento a terra continue a ter sua

função, esta já não é decisiva como no PrimeiroTestamento. Com a economia grega, o problema daescravização dos corpos tornou-se o assunto principal davida. Aliás, em torno dele se trava a Guerra dos Macabeus,no início do segundo século antes de Cristo, e a GuerraJudaica, de 66 a 70 depois de Cristo. A rigor, a questão daescravidão, especificamente, não é, por assim dizer, aterra, mas o corpo. E nesse sentido, sim, o SegundoTestamento, em termos hermenêutico-sociais, não trata deum assunto distinto do Primeiro; trata-o em outro contextosocial.

Mas não é possível aqui tratar de questões tão amplascomo a que acaba-se de apontar. É preciso justamenterestringir. Este texto aborda tão-somente uma passagembíblica específica: Levítico 25. Por meio dela introduz-se eevoca-se algumas perspectivas interessantes, inclusive ada escravidão, tão relevante uma vez que o contexto é omundo persa e a passagem às condições da economiagrega. Afinal, a temática de Levítico 25 não está muitodistante de Neemias 5!

A INSISTÊNCIA NO DESCANSO AOS SÁBADOS

O descanso é um assunto central na Bíblia. No decorrerdos séculos, tornou-se típico para a experiência do povo deDeus.

Pode-se dizer que Jesus também “descansou” em umdia específico. Ressuscitou no primeiro dia da semana, quepara nós tornou-se o domingo. Ao vencer o poder da morte,Jesus venceu os poderes contrários ao descanso da criaçãode Deus, das pessoas. O trabalho incessante tende àescravidão. Domingos e sábados são ocasiões para sereativar a memória da liberdade.

Nesse sentido, é muito significativo que o AntigoTestamento tenha interpretado o sábado radicalmentecomo dia de descanso. O dia do Senhor tornou-se diaespecial de descanso e liberdade para pessoas, animais eplantas. A Bíblia não o interpreta como dia de atividadesreligiosas. Antes, porém, o entende como dia da “preguiça”,sem atividade, nem mesmo religiosa, muito menossacrificial.

As formulações literárias mais antigas, entre as quaisÊxodo (23.12-13), incluem no descanso sabático animais,escravos e filhos de escravas. Os socialmente maisfragilizados também participam do descanso aos sábados,que torna-se um tempo de festa de experiências deigualdade.

Em Êxodo (34.21) há uma interessante atualização danorma sabática. Valida-se a exigência de descanso tambémpara os sábados que caem nos períodos da aradura e dacolheita, embora nessas atividades possa havernecessidade de trabalho também no sábado, para terminaralgum serviço iniciado.

Enfim, em Gênesis (1.1-2, 4) a própria criação efetiva osábado como descanso; aliás, ele é parte da própriacriação. É partilhado pelo Deus criador e por suascriaturas, pessoas e animais.

Nestes e em outros textos das Escrituras, o sábado écentral. Torna-se marca de Israel e de sua vivência comDeus. Para uma vida digna em meio aos jardins criados porDeus, é preciso “viver de modo sabático”. Ao se descansarabrem-se as janelas de novos mundos, para a sociedade, afim de se superar a espoliação de pessoas e animais.

É também nesse âmbito que se situa o tema do ano

sabático e do ano do Jubileu da terra em Levítico 25.

OS SÁBADOS E O SÉTIMO ANO

Os sábados se tornaram dias de identidade. E, nomínimo, a partir do exílio do povo de Israel setransformaram em um sinal cada vez mais importante.Embora antes já fossem relevantes (Am 8.4-6), são ostempos exílicos que aprofundam a identidade judaíta emrelação ao dia de descanso.

A experiência do sábado foi se ampliando na históriado povo de Israel e depois também nos caminhos das

O descanso e as terras livres(Levítico 25)

O

j u b i l e u d a t e r r a TEOLOGIA

jubileu da terra — — — — — ultimato 5

comunidades messiânicas/cristãs. Parte dessa influênciasão os anos sabáticos (de sete em sete anos) e o ano dojubileu.

Mencionam-se aqui três formulações do ano sabático:

1. Em Êxodo (23.10-11) há uma formulação bastanteantiga do ano sabático. Esse ano se refere à “tua terra”,a ser plantada por seis anos (v. 10). Esses seis anos sãopara “ti” — o pronome de segunda pessoa refere-se aopequeno lavrador israelita que vive de sua pequenagleba de terra, herança de seus antepassados. Mas nosétimo ano (v. 11) o fruto da terra já não será para “ti”;destina-se aos “pobres de teu povo” e aos “animais docampo” — tanto o que cresce na roça, quanto o fruto dasvinhas. No sétimo ano não há plantio, mas ainda assimos frutos são colhidos. Ao não se arar nem se plantar aterra, caracteriza-se a sua existência nesse ano comode descanso. Em descanso, a terra continua criativa,aliás, como também as pessoas.

2. Deuteronômio 15.1-11 é um texto magnífico e detalhadosobre o sétimo ano. Esse trecho deve ser do sétimoséculo. É significativo que nele a referência seja aoempréstimo financeiro, cujo pagamento a partir dosétimo ano já não pode ser exigido: “Não o exigirá doseu próximo” (v. 2). A orientação básica é: “Ao fim decada sete anos, farás remissão” (v. 1). Os onzeversículos do texto defendem essa medida do perdão dedívidas. Tanto a radicalidade quanto a insistênciaargumentativa são típicas do deuteronomismo. Nãobasta exigir; é preciso convencer o coração:“Livremente abrirás a mão para o teu próximo” (v. 10).

3. Em Levítico (25.1-7) tem-se uma versão exílica do usosabático da terra. Pode ser que se trate de um texto pré-exílico ou, mais provavelmente, pós-exílico. O certo éque refere-se a uma época em que o território de Israelestá anexado pelos assírios, babilônios e, talvez,persas, e Judá está muito fragilizado. Um novo começoe uma chance para o futuro exigem medidas de reformae de verdadeiro recomeço. Para tais reinícios é precisoretomar o melhor do passado e lançar sonhos jásonhados para o futuro, em direção a práticasinovadoras. E a questão da terra aparece aí comocentral, como indica todo o capítulo 25. O ano dedescanso (v. 1-7) começa a expressar o antigo-novo queprecisa ser implementado. Basicamente essesversículos reafirmam o que já está dito em trechosanteriores: “A terra guardará um sábado ao Senhor” (v.2), isto é, descansará, ou, como expressa o capítulo 25:“Haverá um sábado de descanso solene”. Estão outravez em questão as plantas, que, embora sem plantio,crescem e dão colheita no campo, e as árvoresfrutíferas (v. 3). É interessante que o primeiro a sebeneficiar com o produto do “sábado solene” seja um“tu”, isto é, o próprio agricultor judaíta/israelita! Essaestranha (à primeira vista) destinação do que frutifica

“naturalmente” no sétimo ano tem a ver com ascondições vividas por Judá e Israel. Em 701, seusterritórios foram arrasados e só em Judá 46 cidadesforam queimadas. No sétimo século, os assírios eoutros povos continuamente invadiam as terras e asespoliavam de tudo. Os tempos do exílio foram deextrema pobreza. Logo, torna-se claro por que ocapítulo 25 reverte os “benefícios” do ano de descanso(o sétimo ano) para o “tu” (v. 6), para os do próprio povode Deus. Os demais nomeados no texto são ossocialmente enfraquecidos, mas sempre relacionadosao “tu”: “teu servo” e “tua serva”, “teu diarista” e “teuestrangeiro”. Importa, pois, aqui maisque em outros textos, que essesempobrecidos sejam “os filhos de Israel”(v. 1); também o gado e os animais são“teus”, diretamente relacionados ao “tu”.Essa ênfase, peculiar de Levítico 25,merece um destaque especial,considerando-se também o novo conceitopeculiar de Israel — servo! —, que emergedos tempos e da sociedade exílica. (VejaIsaías 52–53.)

Sim, o sábado e o ano sabático (ano dedescanso) tiveram grande importânciana vida social de Israel.

O ano do Jubileu se situa nessastradições. Em um contexto peculiar e nodesenvolvimento dessas tradições do dia desábado e do ano sabático, desdobra-se comvitalidade outra antiga tradição de Israel.Ainda que antigo, esse costume jubilar sóveio a florescer em tempos de exílio e pós-exílio, mas então com redobrado vigor erigor. Só haverá futuro se houver nova lidacom a terra. Eis a questão!

UM DESAGUADOURO E UM PROJETO PARA ORECOMEÇO — LEVÍTICO 25.8-55

Na tentativa de realçar o sentido e a própria atualidadede Levítico (25.8-55), devem-se considerar vários aspectos.Comecemos pelo Novo Testamento, com o texto de Lucas 4.Afinal, há quem possa ter a impressão de que anseiosconcretos como os de “reforma agrária” não caberiam naproclamação de Jesus. É importante perceber a concretudede seu evangelho, de seu sentido em favor de alimento e deterra para o povo de Deus. As palavras do capítulo 4 sãocentrais no evangelho de Jesus em Lucas (veja também oMagnificat de Maria em Lucas 1.46-55).

O ano aceitável — Lucas 4.16-30Na verdade, esse texto de Lucas se baseia

especificamente em Isaías 61.1-4, mas situa-se também noâmbito de Levítico 25. Particularmente interessa oversículo 19, que se refere claramente ao Jubileu: “E

A TERRA DO“ANOACEITÁVEL”— DOJUBILEU —ANSEIA PORCORPOS COMSAÚDE, PORROÇASACESSÍVEIS ATODA GENTE,POR POVOSSEMDIVISÕES

6 jubileu da terra — — — — — ultimato

apregoar o anoaceitável do Senhor”.Essa é, à luz do verso18, a última edecisiva tarefamessiânica. Esse“ano aceitável”celebra o direito detodas as pessoas aosbens sociais, emespecial à terra. Vidadigna tem a ver comacesso à terra; semterra a vida sedesumaniza. Atragédia brasileira demilhões de pessoassem nada é a da terrade poucos; 500 anosde vida sem chão sobos pés resultam natristeza de nossasfavelas e malocas.Deus nos dá o ano dagraça! Abre portões eapodrece cercas!

O ano da graça é abem-aventurançasuprema (v. 18).Quatro detalhes orealçam: doisafloram por palavrase dois, por atos, oque, em sentidobíblico, são dois

lados do mesmo. Esse ano da graça se faz evangelizando eproclamando. Pobres são evangelizados, pois na graça suadesgraça se desfaz. Aos cativos será proclamadalibertação! Cada um desses propósitos é mais lindo que ooutro em seu afim de nova vida. O ano da graça se faz

também na “restauração da vista” e na “libertação doscativos”. Esse ano da graça vale a pena, porque suaspalavras são maravilhosas e suas ações libertadoras sãoencanto, são “palavras de graça” (v. 22).

A profecia já o dizia. Por toda a Bíblia o lemos. NosSalmos o rezamos. A sabedoria bíblica o incute. Pois semlugar para viúvas e oprimidos não há povo que seja deDeus. Isaías 61 é apenas um dos textos que o confirmam.Todo o livro de Isaías grita-o aos quatro ventos:criancinhas, viúvas e pobres são “meu povo” (3.15); e “oescravo” é seu sinal, presença de Deus (42.1-4; 52-53). Sim,a própria esperança tem sua raiz nas frágeis crianças,“maravilhas” do Senhor (8.16-18; veja também 7.10-17;9.1-6; 11.1-5).

Isaías 61 constitui povo em meio ao dilaceramento, aum exílio que a todos tornara um vale de ossos secos

(Ezequiel), escravos de rostos golpeados, feridos,torturados (Isaías 40-55), natureza sem vida(Lamentações). É daí que emerge o povo novo, saído deescombros e canseiras (Isaías 40). Não há como não leresse Isaías, passado pelo exílio na Babilônia, sem nossaprópria história. Afinal, não raro achamos mais aprazívelviver de costas para nossas “veias abertas”. Sonhar com as“Europas” é mais educado e alegra nossos corações.Nossas chagas são demasiadas e como que sem solução.Índias e negras ainda choram seus lamentos. Não é boa aAmérica Latina e Caribenha.

E eis aqui o alento da graça! Os corpos ungidos ecoroados, libertos, serão chamados “carvalhos da justiça”(Is 61.3). A profecia impulsiona o sonho por uma novacriação. A vida se recria a partir da vivência e prática dajustiça, e, a partir dessa justiça, as pessoas são recolocadasna teia das relações sociais. Os jardins da justiça são olugar onde se inserem as novas criaturas.

A terra do “ano aceitável” — do Jubileu — anseia porcorpos com saúde, por roças acessíveis a toda gente, porpovos sem divisões, como explicam Lucas 4.20-30.

A terra precisa voltarO trecho de Levítico 25.8-55 é longo e diversificado. Por

isso, observá-lo por partes facilita a percepção de algumasde suas peculiaridades: v. 8-12; v. 13-19; v. 20-24; v.25-28; v.29-34; v. 35-38; v. 39-46; v. 47-54; v. 55. Nos comentários aseguir, dá-se preferência a alguns aspectos dassubdivisões.

A matriz do texto: liberdade e terra andam de mãos dadas— v.8-12

ESTES SÃO VERSÍCULOS fundamentais destasorientações, de seus mandamentos e de suas proibições.São, por assim dizer, a matriz de origem do que segue.

De acordo com o verso12b, “o produto do campo”destina-se a “vós”. Aí há que lembrar que no sétimo ano, noquadragésimo nono ano, pois, já tivemos um “ano dedescanso”, quando os produtos ficaram destinados,principalmente, aos animais e aos empobrecidos (v. 6-7).Não se estranhe, pois, que agora, no ano subseqüente(qüinquagésimo ano), os produtos crescidos por contaprópria sejam de “vós”, sem que haja definição maior.Contudo, neste particular o verso 11 tende a ser maisrestritivo, excluindo esses mesmos “vós” da colheita.

Em todo caso, o mais relevante está no verso 10,segundo o qual no qüinquagésimo ano “proclamareisliberdade na terra”, quando “tornareis cada um à suapossessão, e cada um à sua família”. Esse é o ano doJubileu: da volta à terra e à família! Da volta à terra e àfamília nascerá a liberdade. Liberdade e terra andam demãos dadas. Sem o chão não há caminho próprio. Cadaqual, voltando à origem de sua família, estará regressandoàs terras originárias da família, onde encontrará a terraem liberdade, desocupada de quem a tenha “adquirido” atéa chegada do ano do Jubileu.

Quadro de Hyatt Moore (In The Image of God,Wycliffe Bible Translators)

jubileu da terra — — — — — ultimato 7

Detalhamentos: a terra não tem preço,só empréstimo — v.13-19

ESSES VERSÍCULOS JÁ entram em detalhamentos. Oassunto é o que se vende ou se compra ao vender oucomprar uma “possessão”. Pois, afinal, ao se vender,vende-se a possessão, não a terra, que não há como servendida (1 Rs 21).

A compra de uma terra, a rigor, é a compra do direito deplantio e de uso da terra até o próximo Jubileu: à vendasomente está, pois, “o número dos anos das messes” (v. 16).Nesse caso, oprimir o próximo seria desconsiderar essanorma. Trata-se de uma cessão por tempo, por no máximocinqüenta anos. Logo, o preço varia de acordo com essetempo de cessão e não é relativo à terra, de acordo com omercado, como acontece hoje. Pois terra não tem preço, jáque é dom, dádiva de Deus, que libertou seu povo do Egito(Js 1-11, 12-24); logo, não tem preço, só empréstimo.

Para que a terra não seja feita mercadoria, para quepossa ser cedida, porém não vendida, é preciso observar“leis” e “direitos” (v. 18). Aí, sim, se pode “habitar” na terra(v. 19). Tais promessas condicionadas pressupõem o exíliode Judá, a partir de 587 antes de Cristo. Explicam tambémpor que Judá e Israel perderam suas terras e foramdeportados ao exílio e submetidos a trabalhos forçados naAssíria e na Babilônia: porque não se ativeram às “leis” emprol dos indefesos e aos “direitos” do povo. Quando a terrafoi feita mercadoria, quando os pobres dela foramroubados, começou o fim, o exílio, a deportação. Por isso,agora, no exílio e no pós-exílio, faz-se necessário começarde novo, retomando as antigas tradições de que terra não émercadoria, de que ela não tem preço.

Superando os argumentos racionais de medo da lei —v. 20-24

NÃO FALTARÁ ALIMENTO PARA aquele que cumprir a leido ano do Jubileu, ainda que ele observe o ano sabático (osétimo ano), resultando assim em dois anos seguidos decelebração de descanso. Essa é a clara ênfase dosversículos. O texto quer superar as argumentaçõesracionais de medo da lei, de que a própria observância dalei possa resultar em fome. Ele vai apresentando umabrilhante formulação teológica cujo objetivo é afastarquaisquer inseguranças de parte da população. Aespiritualidade é a que se propõe superar em uma teseaguda quaisquer incertezas. É o que se lê no verso 23:“Também a terra não se venderá em perpetuidade, porque aterra é minha; pois vós sois para mim estrangeiros eperegrinos”.

À luz dos versículos anteriores, a rigor se diria que aterra é da família, da herança (veja 1 Reis 21). Justamentepor isso é que não pode ser vendida, considerando-setambém que na roça ficam a sepultura dos antepassados(veja Gênesis 23). Esse é, por assim dizer, o argumentomais antigo em relação à terra como bem familiar. Aqui, noverso 23, temos um argumento mais teológico e recente:não se pode vender a terra porque ela é doação de Deus.

À luz do êxodo, a terra foi “dada” ao povo. Deus Javé, comodoador, é também seu dono, eternamente. Por isso nãocabe preço ao solo, já que uma doação não pode serrepassada em contrato de compra e venda. Assim, Israel éfeito, em termos mais teológicos que sociais, “estrangeiro”(não “estranho”!) e “peregrino” na própria terra. Por ser“possessão”, é como se fosse de “peregrino”! Eis o sentidoda terra.

A remissão da terra — v. 25-28

AGORA O ENFOQUE MUDA novamente: trata-se daremissão da terra (veja Deuteronômio 15). Já foimencionado que as subdivisões passam a assumirconteúdos próprios, vinculados ao Jubileu, mas que, arigor, têm suas próprias ênfases. Nos versículos 13-19 e 20-24 foi assim. Agora, nos versos 25-28, acontece o mesmo. Oeixo central permanece, de certo modo, o Jubileu, mas oque a ele se agrupa não tem relação originária com ele.

Os versículos 25-28 tratam do caso de “irmãos”empobrecidos que tenham de pôr à venda suas possessõesou algo delas e da função do resgatador, um parente seu (v.25) que faça o resgate, caso suas condições lhe permitam(v. 26-27). De todo modo, todas as possessões sobre as quaisrecaiam dívidas serão resgatadas. Isso pode ocorrer pormeio daquele que tiver direito à possessão, ou de outrapessoa, ou, enfim, por meio do próprio ano do Jubileu — noqüinquagésimo ano acontece a libertação da terra.Nenhuma terra permanecerá, pois, alienada para sempreem Israel.

Há que considerar que o resgate de dívidas quepesassem sobre a terra era uma instituição, em si,específica. O resgate não se aplicava apenas a questões deterra, se bem que aí ele tivesse seu sentido peculiar. Aqui,esse assunto é associado ao tema da terra, porque a elepertence, assinalando os diversos costumes e direitos quedefendem a terra sob controle do Javé exodal e dotribalismo, cuja instituição central é a terra na mão dequem a trabalha.

A remissão das casas — v. 29-34

AQUI TAMBÉM SE TRATA de resgate, mas o ângulo éoutro. Estão em questão as casas, sob dois enfoques: ascasas nas aldeias e as casas em cidades com muro.

Casas em aldeias, onde justamente moravam oscamponeses, também fazem parte da lei do resgate (v. 31).Após cinqüenta anos retornam a seus “proprietários”originais. O mesmo vale para as casas dos levitas (v. 32-34),seja em aldeias, seja em cidades muradas. Portanto, agrande maioria das casas é excluída da venda perpétua.Somente casas em cidades com muros podem ser vendidasapós um ano de desocupação (v. 29-30). Há que considerarque na época cerca de 90% da população vivia em aldeias.

Basicamente, as casas são vistas à luz dos costumes einteresses do campo. Aliás, a ótica camponesa é a queprevalece no capítulo 25, o que se percebe, por exemplo,nos versículos em questão. Em geral, as casas, mesmo as

8 jubileu da terra — — — — — ultimato

de centros urbanos, são submetidas às condiçõesrurais. E os levitas são focalizados na perspectivade sua pertença ao campesinato. Pensa-se, pois, oano do Jubileu como senso de costumes rurais, dejurisprudência aldeã.

O sustento de pessoas empobrecidas — v. 35-38

ESSES VERSÍCULOS tratam de pessoasempobrecidas que têm de ser sustentadas. Tem-sea impressão de que refere-se não apenas apessoas empobrecidas pela violência da opressãoe espoliação (veja Amós), mas também a gentegolpeada por doenças e incapacidade para otrabalho. De acordo com o verso 35, “sua mão”está decaída. Essa “mão” pode ser a própria vida,porém é mais provável que seja, maisespecificamente, as forças de vida da pessoa. Aodar-lhe ou emprestar-lhe alimento, não há queesperar que ela o devolva (v. 36-37). Também nãose podem cobrar juros (v. 36-37), o que, aliás,aplica-se a qualquer irmão (Dt 15.1-11).

Por fim, o trecho insiste em considerar tais irmãosempobrecidos na lógica da história da salvação. No Egito,Deus escolhera os mais empobrecidos, os próprios escravos(v. 38). Acima, no verso 36b, o argumento provém do “temora Deus”, do seguir a ele.

Pela quantidade e variedade de argumentos, percebe-sequão aguda era a situação desses “irmãos empobrecidos”.Essas são condições pós-exílicas, semelhantes àquelasencontradas em Lamentações ou em Ageu.

A terra precisa estar livre, e as pessoas também — v. 39-46

O “IRMÃO EMPOBRECIDO” (v. 34-38) tende a tornar-se“escravo” (v. 39-46), no caso de seu nível de espoliação eexpropriação ser aumentado (v. 39). O escravo é o assuntodesta subdivisão, cuja parte final (v. 44-46) trata do escravoestrangeiro. É permitido que se tenha tal escravo emperpetuidade. Contudo, muito poucos terão sido os homensricos em Judá que tinham tais escravos em tempos pós-exílicos, pois a grande maioria do povo de Deus era muitopobre e dependente. O problema maior, aos olhos do povo(veja Neemias 5), era a pobreza e a escravização, que estãoem foco nos versos 39-42.

É preciso atentar para o verso 42, semelhante ao 36a. Aescravidão vivida no Egito e a libertação dela são,novamente, padrões de argumentação em favor do escravoirmão.

O “irmão empobrecido” não pode ser chamado de“escravo” (v. 39), mas é “jornaleiro e peregrino” (v. 40),ainda que sua realidade seja a de pessoa até cinqüenta anosa serviço de seu credor (portanto, um “escravo”).

Esse “jornaleiro” ou “escravo” retornará à suapossessão no qüinquagésimo ano.

Percebe-se nessa parte do capítulo 25 de Levítico oquanto se deseja evitar a escravidão no meio do povo deDeus. A terra precisa estar livre, mas na mesma intensidadetambém as pessoas. (Em Êxodo 21.1-11 ainda não se percebiaessa ênfase cada vez mais antiescravagista da memória

bíblica. Há que lembrar que a Guerra dos Macabeus, em 176antes de Cristo, ou mais tarde a Guerra dos Zelotes, de 66até 70 depois de Cristo, foram, por excelência, levantesantiescravagistas. O horror à escravidão já está formuladoem um trecho como o dos versos 39-42.)

Os escravos estrangeiros em Israel — v. 47-54

COM RELAÇÃO AO TEMA da escravidão é preciso entenderque esta refere-se àquela pessoa que tenha sido vendidacomo escrava a um “estrangeiro ou peregrino” que vive emIsrael. Nos versículos 44-46, nota-se uma situação mais oumenos inversa: a escravidão de pessoas vindas das nações.Nesse sentido, os versos 47-54 completam os versosanteriores. A diferença está em que as pessoas(escravizadas) nos versos 44-46 não tenham em comumcom os filhos de Israel e Judá a mesma terra, mas terrasdistintas. Já os “estrangeiros e peregrinos”, nos versículos47-54, estão escravizando “teu irmão” em terra dada porDeus. Em terra dada por Javé libertador as leis sãodiferentes daquelas em terras das nações. Nas terras dadasaos ex-escravos libertos da casa da escravidão no Egito nãopode haver escravos nem escravas!

O “irmão” em mãos de estrangeiro pode ser resgatado(v. 48-49), e o resgate pode dar-se em qualquer momentonos anos anteriores ao do Jubileu ou, ao mais tardar,naquele “ano da graça” (v. 54). O “estrangeiro” fica, pois,submetido às leis de Israel ao morar nas terras do povo deDeus. Esse terá sido um motivo de não poucos conflitos,considerando que naqueles tempos Judá não passava deuma província persa.

A assinatura final: “Eu sou o Senhor, vosso Deus” — v. 55

ESTE VERSÍCULO PODERIA agregar-se somente à últimasubdivisão dos versos 47-54. Mas parece que sua função vaialém em relação ao que vem imediatamente antes. Ele temo capítulo 25 como um todo em sua perspectiva.

“Eu sou o Senhor, vosso Deus” equivale a umaassinatura final. O que nesse capítulo 25 de Levítico se dizem favor das pessoas, dos escravos e das escravas, e dosanimais brota da fé em Javé, o Deus de Israel. Esse Deus,Javé, e os cuidados com irmãos e irmãs são confluentes. EmDeus Javé é preciso passar a viver nas perspectivas daliberdade, do fim do acúmulo da terra e do fim daescravidão.

Além disso, “os filhos de Israel” têm relação especialcom o Senhor Javé: são-lhe “escravos”. É interessante queem um texto como o de Levítico 25 se conclua realçando arelação de “escravidão” com “Eu Sou”. O ser de Deus nostira da escravidão, fazendo-nos seus escravos e escravas,adoradores somente dele, de seus caminhos de libertação ede liberdade. É nesse sentido, de adoradores exclusivos doDeus da libertação, que somos escravos dignos, porquepessoas livres.

Milton Schwantes, pastor luterano, é especialista em AntigoTestamento e leciona na Faculdade Metodista de SãoBernardo do Campo, SP. É casado e tem três filhos.

NÃO SEPODEVENDER ATERRAPORQUEELA ÉDOAÇÃODE DEUS

jubileu da terra — — — — — ultimato 9

CARTA DA LIBERDADE:JUBILEU DA TERRA

AOS 15 DIAS DO MÊS DE DEZEMBRO DE 2004, REPRESENTANTES DE VÁRIAS ORGANIZAÇÕES CRISTÃS,DE DIVERSAS DENOMINAÇÕES RELIGIOSAS EVANGÉLICAS, REUNIRAM-SE NO BAIRRO LIBERDADE,

EM SÃO PAULO, SOB A COORDENAÇÃO E INICIATIVA DA VISÃO MUNDIAL.*

Discutimos sobre meios e estratégiasque possam permitir uma constantee efetiva participação dosevangélicos na proteção ambiental no

Brasil, assolado com a progressiva degradação domeio ambiente a que assistimos. Essas ações serãochamadas de Jubileu da Terra.

Reconhecemos nossa inexpressiva edesarticulada atuação na questãoambiental do país. É nossaresponsabilidade contribuirpara a solução de tão sérioproblema, tanto pelos plenosdireitos de exercício dacidadania, quanto pelodever de cumprir omandato cultural deservirmos na terra comoadministradores deDeus, preservando oambiente e todos os seusrecursos naturais. Temosum potencial detécnicos, educadores,simpatizantes etc., alémde grupos já envolvidosdireta e indiretamentecom a questãoambiental.

Reconhecemos que o assunto é de altacomplexidade, que muitos danos ambientaisocorridos e em progresso no Brasil são irreversíveis eque esses problemas têm assumido conseqüênciasmais drásticas nos países em desenvolvimento, comsérios prejuízos à saúde das populações.

Reconhecemos a necessidade de uma visãointegral do problema, principalmente no que dizrespeito à rígida observação das políticas públicas edas desigualdades sociais.

Acreditamos em nossa capacidade de mobilizaçãoe conscientização em âmbito nacional, como

contribuição em um tema de tamanha importância.Essa contribuição poderá ser efetivada de

várias formas: com o uso dos mecanismosde mobilização e conscientização por

meio da mídia nacional e dosrecursos didáticos disponíveis; pormeio da proposta (aos governos)de modelos apropriados degerenciamento técnico; e,finalmente, por meio demedidas locais que permitamo resgate da cidadania e ainclusão social nas áreas e nosaglomerados populacionaisde baixa renda.Paralelamente a essas ações,seriam criados fórunspermanentes de debates pormeio de publicaçãoespecífica, oficinas temáticas,seminários, congressos etc.

Como um movimentoque visa contribuir com a

igreja e o país, o grupo terá caráterinterdenominacional.

* A Visão Mundial é uma ONG humanitária cristã que, hámais de cinqüenta anos, atua em mais de noventa países,assistindo a cerca de 1,5 milhão de crianças eadolescentes.

O SUPLEMENTO JUBILEU DA TERRA É UMA REALIZAÇÃO DA VISÃO MUNDIAL E DO CLAI – CONSELHO LATINO-AMERICANO DE IGREJAS, EM PARCEIRA COM A ROCHA BRASIL,ICEC – INSTITUTO CRISTÃO DE ESTUDOS CONTEMPORÂNEOS, MEP – MOVIMENTO EVANGÉLICO PROGRESSISTA E SBB – SOCIEDADE BÍBLICA DO BRASIL.

TIRAGEM: 45.000 EXEMPLARES (35.000 ENCARTADOS NA EDIÇÃO 294 (MAIO-JUNHO 2004) DA REVISTA ULTIMATO E 10.000 DISTRIBUÍDOS PELAS ORGANIZAÇÕES PARCEIRAS)

Os desenhos que ilustram as páginas 2, 4, 10, 12 e 15, da autoria de Christina Balit, foram retirados da Bíblia para Crianças, com autorização da Editora Sinodal.

E X P E D I E N T EE X P E D I E N T EE X P E D I E N T EE X P E D I E N T EE X P E D I E N T E

Marcello Casal Jr. — ABr

jubileu da terra — — — — — ultimato 9

10 jubileu da terra — — — — — ultimato

Alexandre Brasil Fonseca

pobreza é um problema para a sociedade epara a natureza em geral. Em váriosbolsões do mundo temos prejuízosdecorrentes da falta de saneamento ou dorecolhimento inadequado do lixo. Logo,parte da postura de preservação do meioambiente passa, necessariamente, pelocombate à pobreza.

A preocupação com a preservação da natureza érealidade para poucos, o que torna difícil imaginar-se ummovimento abrangente, que inclua aqueles que não têmcondições mínimas de sobrevivência. Em contextos demiséria, desestruturação familiar eviolência, falar de ecologia não passa deum luxo ou devaneio.

Para o diretor-executivo do Programadas Nações Unidas para o MeioAmbiente, Klaus Toepfer, “o elementomais tóxico para o meio ambiente é apobreza”. Diante dessa constatação, asolução sugerida pelos organismosinternacionais seria o combate àpobreza por meio do desenvolvimento,graças ao incremento do comércio entreas nações.

Tudo poderia transcorrer nessa linhade argumentação que, ao mesmo tempoque fica indignada com a pobreza, exigeuma postura responsável para com todaa criação de Deus. Porém, se optasse poresse caminho, este não seria um artigocompleto e honesto.

O principal elemento tóxico não é a pobreza, mas sim ariqueza e a busca desenfreada pelo maior lucro possível.Eu diria que é exatamente nessa imbricação entre pobrezae riqueza que mais perdemos. A desigualdade, que a cadadia avança no mundo, salienta as diferenças entre osgêneros, as etnias, os ricos e os pobres. O modo de vida queescolhemos, fruto do afastamento do ser humano de Deus,tem por princípio a exclusão do outro e assume na

sociedade capitalista a coisificação da natureza e daspessoas. Tudo tem seu preço e é preciso obter sempre omaior lucro.

No livro A Grande Transformação, Karl Polanyi falasobre o estabelecimento do capitalismo na Europa e gastaum bom número de páginas naquilo que define como“mercadorias fictícias”. Com o advento do regimeeconômico, que hoje é praticamente o único no mundo —curiosamente numa época em que se defende o pluralismopara tudo, menos para a gestão econômica —, as pessoas eas terras se tornaram elementos que podem gerar riqueza.Porém, com o tempo, os próprios empresários perceberama fraqueza dessas mercadorias, ora com o esgotamento daterra, ora com a morte dos empregados. Foi nesse terrível

contexto social que se desenvolveu aestrutura de bem-estar social, uma respostaà degradação vivida na sociedade do século19.

Em relação ao ser humano foram criadasuma série de leis de proteção social queregularam o tempo de serviço e garantiramelementos mínimos para que fosse possível areprodução do trabalho. Em relação às terrastambém foram criadas leis que passaram aregular o seu uso. Nessas questões tem-se deforma recorrente novas propostas e avançosque visam garantir a preservação dessasduas “mercadorias fictícias”, as quais sãoalvo da ganância e do desejo deenriquecimento de alguns.

Nessa luta, a questão ecológica é a quemais tem avançado graças à mobilização devários setores da sociedade e às propostas deregulação que têm sido debatidas emconferências internacionais como a Rio 92

ou a Rio +10. Outro passo importante foi o estabelecimentodo Protocolo de Kyoto, que propõe uma série de avanços eque não contou com a adesão dos Estados Unidos. A naçãoque mais danos traz ao meio ambiente se nega a assinar oacordo.

O artigo “As raízes históricas de nossa crise ecológica”,do historiador Lynn White Júnior, publicado em 1967 pela

j u b i l e u d a t e r r a POBREZA

O poder tóxico da desigualdade

A

ENTRE OSPOBRES, ASDOENÇAS

INFECCIOSAS,MUITAS

CAUSADAS PELAMÁ QUALIDADE

DA ÁGUA,MATAM DUASVEZES MAIS DOQUE O CÂNCER

jubileu da terra — — — — — ultimato 11

revista Science, motivou o pensador cristão FrancisSchaeffer a escrever o livro Poluição e a Morte do Homem –

uma perspectiva cristã da ecologia, lançado em 1970. Adiscussão proposta parte de uma afirmação do historiador:“A atitude das pessoas para com a ecologia depende do quepensam de si mesmas em relação a tudo que as rodeia. Aecologia humana está profundamente condicionada ao quecremos acerca de nossa natureza e destino, isto é, àreligião”.

Nessa linha de raciocínio, o autor argumenta que a“visão ortodoxa” do cristianismo dissemina acompreensão de que o homem deve dominar a natureza, oque cria condições para a destruição humana. O quedevemos considerar é que o texto bíblico define a relaçãodo homem com a natureza a partir da lógica do mandatocultural. É nosso dever cuidar da criação dentro daperspectiva da mordomia. Embora possamos identificarcertos momentos da história em que o cristianismotenha contribuído para a degradação do meioambiente, hoje não cabe uma associação entre ele e adestruição da natureza.

Voltemos ao fato de Lynn White Jr. ter acertado emsua argumentação sobre o papel das crenças e dosvalores no dia-a-dia da sociedade. Esse é um elementocentral que precisamos considerar em nossas ações ediscussões. Nessa direção, percebemos que a questãoecológica tem no capitalismo – e em sua lógica deriqueza a qualquer custo – o seu principal opositor. Osrecursos naturais não são suficientes para se manter onível de consumo vigente entre os mais ricos domundo. A atual situação só é possível graças àdesigualdade social, pois, se todos tivessem o padrãode consumo de combustível, alimentação ou energiaelétrica existente em boa parte dos lares americanos,o mundo já teria entrado em colapso.

É preciso esclarecer que, nestes anos deglobalização, para que a tão aclamada “América”exista também é preciso que tenhamos o continenteafricano. Em outro registro, Ipanema não sesustentaria se não existisse a Rocinha. Essa é adinâmica que sustenta este mundo injusto e cada vezmais desigual. Em meio a essa realidade o meioambiente padece, seja pela ausência de pobres, sejapelo excesso de ricos.

Entre os pobres, as doenças infecciosas, muitascausadas pela má qualidade da água, matam duasvezes mais do que o câncer. No Brasil apenas 60% dolixo coletado tem tratamento adequado e somente 35%do que é captado pelo sistema de saneamento étratado. Já entre a minoria rica há uma crescenteconcentração de bens e capital. Além disso, porexemplo, apesar de os Estados Unidos possuíremmenos de 5% da população mundial, lá se consome26% do petróleo, 35% do carvão mineral e 27% do gásnatural mundial. E as conseqüências disso recaemsobre os países pobres, mais vulneráveis às mudanças

climáticas que ocorrem no globo devido a fenômenos comoo efeito estufa.

Se é certo que a pobreza traz danos ao meio ambiente,também são gritantes os problemas que os excessos dosmais ricos representam para a natureza. Estamos diantede uma iminente crise no abastecimento de água eprecisamos de uma postura distinta da lógica capitalistaquando se trata dos recursos do planeta. Ao clamarmospela vinda do reino de Deus, somos chamados a umapostura de mordomia, de misericórdia e de solidariedadepara com o próximo e a criação.

Alexandre Brasil Fonseca é sociólogo e professor daUniversidade Federal do Rio de Janeiro. Participa daSecretaria Executiva da ABUB e da Coordenação Nacionaldo FALE — Unindo Vozes pela Justiça.

Compassion Internacional

12 jubileu da terra — — — — — ultimato

Carlos Caldas

oltar ao passado é progredir” — estaexpressão, que tem se tornado proverbial,revela algumas vezes profunda verdade:em determinadas situações, por maisestranho que pareça, voltar ao passadosignifica progresso, não retrocesso. É ocaso da vivência da espiritualidade apartir do modelo do cristianismo celta

antigo. Diante de tal afirmativa, alguém poderia pensar:“mas o que cristãos do século 21 poderiam aprender comcristãos que viveram em pleno período medieval?”Certamente o cristianismo contemporâneo tem a aprendercom o cristianismo celta, entre muitasoutras possibilidades, também no que dizrespeito a uma vivência da espiritualidadeem harmonia com a natureza, entendidacomo criação de Deus.

O cristianismo conhecido como “celta”floresceu na Irlanda, na Escócia, no País deGales e mesmo em partes da Inglaterra,grosso modo, do quarto ao décimo séculos.São conhecidos os nomes de missionáriosceltas como Patrício, Columba eColumbano, que evangelizaram o norte dasIlhas Britânicas e vastas partes docontinente europeu. Mas o cristianismocelta floresceu, humanamente falando, nãoapenas devido ao trabalho dos missionáriosmais conhecidos, mas também devido aoesforço de incontáveis anônimos, pessoassinceras em sua fé, que viviam ocristianismo com “alegria e singeleza decoração”. Foi um cristianismo quedesenvolveu características próprias, que o tornavamdistinto do cristianismo de inspiração romana queflorescia na Europa continental no mesmo período. Ocristianismo celta tinha muitas características notáveis.Entre tantas, destaca-se aqui apenas a que interessa

diretamente aos propósitos desta breve reflexão: ummodelo de espiritualidade centrado na criação.

Os celtas desenvolveram uma teologia que enfatizavauma visão de Deus como Senhor da criação. Ainda que nãohaja nada de original nesta perspectiva — os cristãos celtasnão foram os inventores desta teologia —, não se podedeixar de mencionar que há diversas implicações práticasdessa visão. Uma dessas conseqüências é exatamente teruma atitude constante de júbilo e regozijo na criação, querevela Deus. Como os celtas eram um povo com forteinclinação à poesia, produziram muitas poesiascomoventes, louvando a Deus pela obra da criação. Umpoema datado do século nono, escrito na antiga língua doPaís de Gales, tem início com as seguintes palavras:

Todo Poderoso Criador, que fizeste

todas as coisas;

O mundo não pode expressar toda a

tua glória,

Ainda que a grama e as árvores

possam cantar.

Outro poema escrito no século oitavo,na antiga língua irlandesa, declara:

Somente um tolo não seria capaz de

louvar a Deus pelo seu poder,

Quando as pequeninas aves incapazes de

pensar

O louvam com seu vôo.1

Estes versos expressam o lugar dedestaque que a natureza ocupava namaneira como os cristãos celtas antigosviam a vida e pensavam sua relação comDeus. A visão da criação como reveladorade Deus está profundamente enraizada naBíblia. Os fragmentos poéticos citados

revelam influência de textos bíblicos como Salmos 98.7-8ou Isaías 55.12. De fato, muito da poesia e das oraçõesdaqueles cristãos denotam influência da visão bíblica arespeito da natureza. Textos como o de Salmos 19.1eramparticularmente queridos pelos cristãos celtas. Para eles, o

V

j u b i l e u d a t e r r a ESPIRITUALIDADE

“Voltar ao passado é progredir”Os cristãos celtas e um modelo de espiritualidadecentrado na criação

DOS CRISTÃOSCELTAS

MEDIEVAISAPRENDEMOS

A TER UMAESPIRITUALIDADE

QUE NÃO ÉDESCOLADA

NEMDESLOCADADA CRIAÇÃO

jubileu da terra — — — — — ultimato 13

mundo criado é uma teofania, isto é, uma manifestaçãode Deus. Nesse sentido, deve-se observar que os celtascontrastavam com os cristãos do mesmo período naEuropa continental — enquanto estes tinham suavivência de espiritualidade na escuridão de seusconventos, aqueles viviam uma espiritualidade ao arlivre, em meio à natureza. Não se importavam com o friotão característico das Ilhas Britânicas! Antes,regozijavam-se no Senhor pelo cenário dedeslumbrantes belezas naturais daquelas ilhas. Nocontinente europeu prevaleceu uma visão influenciadapela antiga filosofia platônica, que via as coisasmateriais como sendo inferiores às espirituais — nadamais distante do pensamento celta! Aliás, nada maisdistante do pensamento bíblico!

Outro aspecto admirável da teologia desenvolvidapelos cristãos celtas é a sua concepção da soteriologia,isto é, da doutrina da salvação. Eles criam firmementeem Jesus Cristo, o Filho de Deus, que morreu na cruzpara a salvação e libertação de todo aquele que crer. Acruz celta, que era esculpida em pedra, tornou-se umafigura conhecida em praticamente todo o mundo. Ascaracterísticas básicas da cruz celta são: ter o braçohorizontal tão largo quanto a sua base vertical, eser circundada por um círculo, queprovavelmente representa umavisão unificada das obras dacriação e da redenção. Hátambém o aspecto de que tantoo poste como a trave da cruzcelta são marcados porfiguras esculpidas. Emmuitas dessas cruzes hárepresentações de animais.Desse modo, aquelescristãos representavamesteticamente sua leitura deRomanos 8.19-23, que afirma aglobalidade da obra de Cristo Jesusna cruz. Tal obra tem efeitossalvíficos para o povo de Deus e para orestante da obra das mãos de Deus, suascriaturas não-humanas. Os cristãosceltas demonstravam, dessa maneira,uma sofisticada teologia, holística emsua maneira de encarar a criação e aredenção. Assim, o cristão celta daIdade Média ficaria horrorizado sepudesse viajar no tempo e ver adestruição desenfreada da naturezaque acontece em nosso tempo.

Há relatos documentaisimpressionantes de antigos santosceltas que tinham um relacionamentotodo especial com os animais,criaturas não-humanas de Deus.

Talvez alguns desses relatos sejam exagerados, masmesmo assim deixam claro que eles levavam a sério, nosentido literal, a expressão “não fazer mal a uma mosca”.Columbano, por exemplo, chegou a afirmar: “Entenda acriação se desejas conhecer o Criador... pois aqueles quedesejam conhecer as grandes profundidades precisamprimeiro perceber o mundo natural”. Ian Bradley, professorde teologia prática e história da Igreja na Faculdade deTeologia da Universidade de Saint Andrews, na Escócia,afirma que esses relatos demonstram que os celtas serelacionavam com os animais no mesmo estilo de Jesus.Marcos afirma que Jesus estava com animais selvagens nodeserto, mas eles não o feriam (não há como ler Marcos 1.13e não se lembrar de passagens como Gênesis 2 ou Isaías11.6-8). Neste sentido, o cristianismo celta antecipa emséculos uma ênfase que só viria ser encontrada emFrancisco de Assis, tido em nossos dias como “patrono” domovimento ecológico. Bradley afirma também que hácomprovação de que Francisco visitou uma comunidademonástica em Bobbio, na Itália. Essa comunidade (assimcomo outras nas vizinhanças de Assis) fora fundada pelo

próprio Columbano. Bradley defende a teoria de que,nesses mosteiros de origem irlandesa, Francisco

aprendeu o amor à natureza, que o tornoutão conhecido.

Portanto, dos cristãos celtasmedievais podemos aprender a ver anatureza com espírito de alegria,

gratidão e louvor a Deus. Aprendemoscom eles a ter uma espiritualidade

que não é descolada nemdeslocada da criação.

“Voltar ao passado éprogredir”; no que dizrespeito à prática daespiritualidade centradana criação, este provérbio éabsolutamente verdadeiroe necessário para o nossotempo.

Nota1. Os versos citados e asreferências a Bradley foramextraídos do livro The Celtic Way,de Ian Bradley (London: Darton,Longman & Todd, 2003).

Carlos Caldas é pastor da IgrejaPresbiteriana do Brasil. Leciona naEscola Superior de Teologia e noPrograma de Pós-Graduação emCiências da Religião daUniversidade PresbiterianaMackenzie em São Paulo.

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14 jubileu da terra — — — — — ultimato

Hernani Ramos

COM A CRESCENTE PREOCUPAÇÃO MUNDIALem relação à degradação do meio ambiente, cristãos aoredor do mundo, cada vez mais, se apegam à idéia de que oambiente também faz parte da nossa responsabilidade,como mordomos, no cuidado da criação de Deus. Há mais de20 anos, tendo em mente essa base de trabalho, um grupo depesquisadores cristãos, sensibilizados pela causaambiental, iniciou um projeto chamado A Rocha. Esseprojeto pode ser melhor conhecido por meio do livro ARocha — uma comunidade evangélica lutando pela

conservação do meio ambiente (ABU Editora), escrito porPeter Harris, que conta a história da fundação da primeirabase de campo do projeto, Cruzinha, localizada na região doAlgarve, em Portugal.

No prefácio, John Stott atenta para a responsabilidadeambiental do cristão. Segundo ele, “nós não podemos amare servir verdadeiramente ao nosso próximo se estivermosao mesmo tempo destruindo o meio ambiente no qual elevive, sendo coniventes com a destruição deste ou até mesmoignorando as circunstâncias ambientais esgotadas nasquais tantas pessoas são obrigadas a viver. Assim comoJesus Cristo se encarnou a fim de entrar em nosso mundo,também a missão verdadeiramente encarnada implicaentrar no mundo das outras pessoas, inclusive no mundo dasua realidade social e ambiental”.

Os projetos A Rocha são desenvolvidos com base emcinco compromissos:

1. cristão, pois cremos na revelação bíblica de que Deuscriou e ama o mundo;

2. de conservação, baseado na investigação, planejamento eexecução de projetos científicos;

3. de comunidade, pois é fundamental relacionar-se comDeus, uns com os outros e com toda a criação, bem comoenvolver as comunidades locais nesse processo e buscar nósmesmos sermos bons exemplos de comunidades;

4. transcultural, pois nenhuma cultura apresenta todas assoluções para os problemas ambientais; por isso a necessidadede compartilhar idéias e práticas entre países e culturasdistintas;

5. de cooperação, pois é fundamental somar os esforços,trabalhar em rede e estabelecer parcerias com outrasorganizações e indivíduos que partilham dos objetivosambientais, independentemente de suas crenças, pois nissotambém consiste a missão evangelística.

Os projetos A Rocha estão presentes em quinze países. NoBrasil, está em processo a fundação de um novo ramo, e nossaexpectativa é a implementação de alguns centros de pesquisa apartir da primeira unidade, que servirá como referêncianacional, assim como Cruzinha é referência internacional. Emnosso projeto nacional elegemos a cidade de São Paulo para darinício a toda essa jornada.

Nossa oração é que o Senhor nos ajude a fundarprimeiramente um escritório que servirá de apoio para osaspectos logísticos e administrativos de nossas pesquisas e paraas ações práticas de conservação e de educação ambiental. Osprocessos diretivos da organização e as reuniões do comitê sãosempre acompanhados de orações e de alguma reflexão bíblica.As reuniões são abertas a todos os interessados em conhecer, seenvolver ou se associar ao projeto A Rocha Brasil.

Hernani Ramos é médico veterinário em São Paulo.

A ROCHA BRASIL –Associação Cristã de Pesquisa e Conservação do Meio Ambiente

A ROCHA BRASILwww.arocha.orgE-mail: [email protected]: 11 9836-2420

Equipe de basede Cruzinha, em

Portugal

jubileu da terra — — — — — ultimato 15

Verde-espaçoVerde-encantadoVerde-em-contatoComO azulSideral

VerdeEspaçoVer-teUsurpadoVerdeAgredidoVer-teTombado

Máquina estranhaFora do compassoDesabitandoHabitantesViolandoSoloSagrado

EsdrúxuloAto

Verde-infinitoVermelhoSe agitaSubindoSumindoVolátilEspiral

FaunaEx-caçaFloraExtintaGeoeconomiaGeoegomaniaTriste geografiaGeoutopia

FloraEscassaFaunaExtinta

O homemMais pobreProgressoDo norteVerde-sonhoVer-te tombandoVermelho-escuro

ÍndioCansadoPensante-caladoAtônito-triste(Trans) amazônico

ExtraditadoExpelidoJogado

HumanoSem rumoHúmus estranhoEstranho estrume

Geoutopia (O Sonho da Terra)Certo de que não é vã a resistência Arara, numa noite calma meuspensamentos tomaram formas e as mãos registraram o sonho daterra nesta terra de sonhos, nesta geoutopia.

Issac Costa de Souza é missionário entre os Arara, próximo a Altamira, PA, e consultor ediretor de cursos na Associação Lingüística Evangélica Missionária (ALEM), em Brasília.

Publicado em maio de 1992 na revista Ultimato.

AmbiçãoDesenfreadaDe genteTão desumanaConstruindoHumanidade

RestoDe verdeGostoDe VidaResistemHéroisHomemMulher

À Shirley Miclae Leisa, famíliaminha.Aos Arara,nossa outrafamília.

JÁ QUE É PASTOR ETAMBÉM ORNITÓLOGO, oinglês Peter Harris fundou umcentro de pesquisa de campoem Portugal para promover aconservação ambiental e oevangelismo.

Este livro é a história dosúltimos nove anos que ele, suaesposa, Miranda, e seus quatrofilhos passaram no Algarve,contada com modéstia, paixãoe graça e intercalada comprofundas reflexões teológicascom respeito à questãoambiental.

O envolvimento ecológicopode ser apropriadamenteincluído sob a bandeira da“missão”? Não só pode, comodeve. Afinal, missão abrangetudo o que Cristo manda o seupovo fazer no mundo, tantoserviço quanto evangelismo.[Na verdade,] os cristãosdeveriam estar na vanguardado movimento em prol daresponsabilidade ambiental.

A Rocha, em seu ministério,veio dar vida a uma formaempolgante e contemporâneade missão cristã.

John Stott, no prefácio do livroA Rocha.

LLLLLIÇÕESIÇÕESIÇÕESIÇÕESIÇÕES PPPPPARAARAARAARAARAEEEEESCOLASCOLASCOLASCOLASCOLA D D D D DOMINICALOMINICALOMINICALOMINICALOMINICAL

O Mundo de Deus [Criação, Ecologia],kit completoUnidade I: O Mundo Criado por Deus – O que aBíblia diz sobre a criação; Deus criou cada um denós; Os cientistas e a criação; Em busca dosdinossauros; Os dinossauros e outros animaisUnidade II: O Mundo Cuidado por Nós – Quemdeve cuidar do mundo de Deus?; Como cuidardo mundo de Deus?; Cuidando dos lugares ondevivo; Cuidando do nosso corpoUnidade III: O Mundo Usado por Deus – ComoDeus usou os animais; Como Deus usou as aves;Como Deus usou os peixes; Como Deus usou ascriançaswww.editoracristaevangelica.com.br

LLLLL IVROSIVROSIVROSIVROSIVROSA Criação e a Ação Humana; Vilmar Berna;Paulus, 31 pág.O autor mescla o texto bíblico da criação cominformações atuais sobre o atual estado dascoisas. Indicado para crianças a partir de 8 anos.www.planetanews.com/produto/L/37571

Criação e Graça – reflexão sobre as revelações deDeus; Russel Shedd; Vida NovaUma análise não apenas da revelação especialencontrada na Bíblia, mas acerca das revelaçõesde Deus pela criação e pelas leis, por um lado, ea revelação de sua graça, por outro”.Teologia do Desperdício;Russell Shedd; Vida NovaAjuda o leitor a perceber anecessidade de se viver de formaque glorifique a Deus,desafiando-nos a aproveitar aomáximo cada oportunidade quetemos.www.vidanova.com.br

Uma Vida com Propósito; RickWarren; VidaUm manual para se viver noséculo 21 um estilo de vidafundamentado nos propósitoseternos de Deus e não emvalores culturais.Sete Mitos sobre o Cristianismo;Dale & Sandy Karsen; VidaNeste livro os autores respondem à “acusação”:o cristianismo provocou a crise ecológica.www.editoravida.com.br / Tel.: 0800 172 085

A Dança do Novo Tempo – o novo milênio, ojubileu bíblico e uma espiritualidade ecumênica;Sinodal, CEBI, Paulus.Uma espiritualidade de jubileu pede que nosenchamos de gratidão pela misericórdia querecebemos de Deus e de solidariedade comnossos irmãos e irmãs, com animais, plantas ecom todo o universo que saiu do coração de Deus.www.editorasinodal.com.br

Antropoceno – iniciação à temática ambiental;Genebaldo Freire Dias; GaiaExame instigante das causas, conseqüências edas possíveis saídas para o atual impasse daespécie humana.E-mail: [email protected]

Almanaque Brasil Socioambiental;Beto Ricardo e Maura Campanili, ed.;Instituto Socioambiental; 480 pág.A incrível diversidade brasileira, as principaisameaças e possíveis soluções. Elaborado por 82autores e 16 consultores; 75 verbetes, além demapas, fotos, ilustrações e ensaios fotográficos.E-mail: [email protected] / Tel.: 11 3660-7949 O Homem e o Mundo Natural; Keith Thomas;Companhia das LetrasEste livro “explica tudo – por que comemos o quecomemos, por que plantamos isso e não aquilo,por que gostamos de certos animais e não deoutros, por que matamos as coisas que matamos eamamos as que amamos”.www.companhiadasletras.com.br

A Criação Redimida;Van Dyke et al.;Cultura Cristã; 272 pág.Quatro biólogos cristãosenfatizam que, à luz da Bíblia,há esperança para a criseecológica.Cristãos em Uma Sociedadede Consumo;John Benton; Cultura Cristã;160 pág.O consumismo produziu umforte impacto negativo nasáreas da ecologia, justiça eespiritualidade. Uma igreja de

consumistas não tem uma mensagem salvadorapara a sociedade.Criação e Consumação, vol. 1; Gerard VanGroningen; Cultura CristãO plano e a estratégia de Deus para a criação,desde o seu começo até a sua consumação.

16 jubileu da terra — — — — — ultimato

AQUI VOCÊ ENCONTRA INDICAÇÕESDE LIVROS, LIÇÕES PARA ESCOLA DOMINICAL E SITES SOBRE O MEIO AMBIENTE

j u b i l e u d a t e r r a RECURSOS

Poluição e a Morte do Homem;Francis A. Schaeffer; Cultura Cristã; 96 páginasA resposta cristã à depredação humana do jardimde Deus. “Quando nós tivermos aprendido a visãoda natureza, então poderá haver uma ecologiaverdadeira: a beleza fluirá, a liberdadepsicológica virá, e o mundo parará de sertransformado em um deserto.” www.cep.org.br / Tel.: 11 3207-7099

Cristianismo Genuíno; Ronald Sider; HagnosEm especial o capítulo 10, intitulado “Cuidando dojardim sem adorá-lo”.www.hagnos.com.br / Tel.: 0800 772 6272

Vocabulário Básico de Recursos Naturais,2ª ed.; IBGEVerbetes técnicos relacionados à área ambiental. Sãomais de 2.800 definições. Disponível em formatoimpresso com CD-ROM interativo, a 30 reais. Umaversão em pdf pode ser baixada gratuitamente pelainternet, no site do IBGE:www.ibge.gov.br/home/presidencia/vocabulario.pdf

Trabalho, Descanso e Dinheiro; Timóteo Carriker;Ultimato; 80 pág.O autor expõe a espiritualidade encarnada nasáreas rotineiras da nossa vida: o tempo quegastamos no nosso emprego, o nosso lazer e algobem material mesmo — o uso do nosso dinheiro.www.ultimato.com.br / Tel.: 0300 313 1660

SSSSSITESITESITESITESITESRede brasileira de educação ambiental:www.redeambiente.org.br

ISA – Instituto Socioambiental:www.socioambiental.org

Instituto Akatu: www.akatu.netMinistério do Meio Ambiente: www.mma.gov.br

+ + + + + RRRRRECURSOSECURSOSECURSOSECURSOSECURSOSwww.arocha.org ou www.cbe2.com.br/jubileu

Ou escreva paraA Rocha BrasilA/C Hernani RamosAlameda Nhambiquaras, 711 – Moema04090-011 São Paulo, SPTelefax: 11 5051-7964Tel.: 11 9836-2420E-mail: [email protected]