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Departamento de Comunicação - PUC-Rio JORNALISMO INVESTIGATIVO E INTERESSE PÚBLICO Aluna: Renata Spolidoro Orientador: Leonel Aguiar Introdução O projeto “Jornalismo investigativo e interesse público: as experiências profissionais no processo de construção social da realidade” propõe analisar os critérios de noticiabilidade e os valores-notícia presentes na produção do jornalismo investigativo, em publicações diárias da “grande imprensa”, editadas no Rio de Janeiro. A investigação contempla matérias premiadas e consideradas de maior apuração, diferindo-se da produção do dia a dia das redações. A primeira etapa da pesquisa consiste em leituras e fichamentos relativos aos textos teóricos que firmam as bases da pesquisa. Além disso, durante a disciplina optativa “Jornalismo investigativo”, ministrada pelo professor Leonel Aguiar, houve palestras com jornalistas. Uma das participantes foi Carla Rocha. Em conversa com a turma de jornalismo investigativo, da PUC-Rio, a jornalista falou sobre suas experiências profissionais, valores da cultura e das transformações contemporâneas do jornalismo. Ela é repórter do jornal O Globo há 20 anos. Trabalhou no Jornal do Comércio e Jornal do Brasil. Segundo ela, sempre teve interesse em produzir matérias de denúncia. Foi selecionada uma de suas matérias premiadas para este trabalho. Foi feita uma análise da série vencedora do 49° Prêmio Esso de Jornalismo, “Os Homens de Bens da ALERJ”, publicada no jornal O Globo, em junho de 2004, da qual a jornalista Carla Rocha participou. Além dela, uma equipe de repórteres composta por Angelina Nunes, Alan Gripp, Dimmi Amora, Flávio Pessoa, Luiz Ernesto Magalhães e Maiá Menezes foi responsável pelo trabalho, com a coordenação da jornalista Angelina Nunes. A escolha do objeto analisado se deu por se tratar de uma denúncia, com quatro meses de apuração e acesso a documentos do Tribunal Regional Eleitoral (TRE), com exaustivo trabalho dos jornalistas. A pauta surgiu como uma investigação sobre os bens acumulados pelos deputados estaduais do Rio de Janeiro no período de duas legislaturas (1996-2001). Jornalismo investigativo O termo jornalismo investigativo pode ser considerado redundante, uma vez que se pressupõe que de todo jornalismo faça parte uma investigação. Gabriel García Márquez, que exerceu as profissões de escritor e jornalista, declarou em 1966, na 52ª Assembléia da Sociedade Interamericana de Imprensa, em Los Angeles, Califórnia, que “la investigación no es uma especialidad del oficio, sino que todo periodismo tiene que ser investigativo por definición...” (SEQUEIRA, 2005). A definição do jornalista Marcelo Beraba qualifica o jornalismo investigativo como reportagens de mais fôlego, de maior investimento de apuração. Aquela que exige mais tempo e paciência de pesquisas, entrevistados, observação direta, checagem e rechecagem – a busca obsessiva por documentos e provas (FORTES, 2005). Ou seja, as matérias consideradas investigativas se diferem da cobertura do cotidiano, pois seriam de “maior fôlego”. Dessa forma, exigem do repórter dedicação, esforço e tempo para realizar um exaustivo levantamento de informação. Segundo Leonel Aguiar (2006), pode-se entender o jornalismo investigativo como uma forma de reportagem mais extensa que exige longo tempo de trabalho na apuração das

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Departamento de Comunicação - PUC-Rio

JORNALISMO INVESTIGATIVO E INTERESSE PÚBLICO

Aluna: Renata Spolidoro Orientador: Leonel Aguiar

Introdução

O projeto “Jornalismo investigativo e interesse público: as experiências profissionais no processo de construção social da realidade” propõe analisar os critérios de noticiabilidade e os valores-notícia presentes na produção do jornalismo investigativo, em publicações diárias da “grande imprensa”, editadas no Rio de Janeiro. A investigação contempla matérias premiadas e consideradas de maior apuração, diferindo-se da produção do dia a dia das redações.

A primeira etapa da pesquisa consiste em leituras e fichamentos relativos aos textos teóricos que firmam as bases da pesquisa. Além disso, durante a disciplina optativa “Jornalismo investigativo”, ministrada pelo professor Leonel Aguiar, houve palestras com jornalistas. Uma das participantes foi Carla Rocha. Em conversa com a turma de jornalismo investigativo, da PUC-Rio, a jornalista falou sobre suas experiências profissionais, valores da cultura e das transformações contemporâneas do jornalismo. Ela é repórter do jornal O Globo há 20 anos. Trabalhou no Jornal do Comércio e Jornal do Brasil. Segundo ela, sempre teve interesse em produzir matérias de denúncia. Foi selecionada uma de suas matérias premiadas para este trabalho.

Foi feita uma análise da série vencedora do 49° Prêmio Esso de Jornalismo, “Os Homens de Bens da ALERJ”, publicada no jornal O Globo, em junho de 2004, da qual a jornalista Carla Rocha participou. Além dela, uma equipe de repórteres composta por Angelina Nunes, Alan Gripp, Dimmi Amora, Flávio Pessoa, Luiz Ernesto Magalhães e Maiá Menezes foi responsável pelo trabalho, com a coordenação da jornalista Angelina Nunes. A escolha do objeto analisado se deu por se tratar de uma denúncia, com quatro meses de apuração e acesso a documentos do Tribunal Regional Eleitoral (TRE), com exaustivo trabalho dos jornalistas. A pauta surgiu como uma investigação sobre os bens acumulados pelos deputados estaduais do Rio de Janeiro no período de duas legislaturas (1996-2001).

Jornalismo investigativo

O termo jornalismo investigativo pode ser considerado redundante, uma vez que se pressupõe que de todo jornalismo faça parte uma investigação. Gabriel García Márquez, que exerceu as profissões de escritor e jornalista, declarou em 1966, na 52ª Assembléia da Sociedade Interamericana de Imprensa, em Los Angeles, Califórnia, que “la investigación no es uma especialidad del oficio, sino que todo periodismo tiene que ser investigativo por definición...” (SEQUEIRA, 2005).

A definição do jornalista Marcelo Beraba qualifica o jornalismo investigativo como reportagens de mais fôlego, de maior investimento de apuração. Aquela que exige mais tempo e paciência de pesquisas, entrevistados, observação direta, checagem e rechecagem – a busca obsessiva por documentos e provas (FORTES, 2005). Ou seja, as matérias consideradas investigativas se diferem da cobertura do cotidiano, pois seriam de “maior fôlego”. Dessa forma, exigem do repórter dedicação, esforço e tempo para realizar um exaustivo levantamento de informação.

Segundo Leonel Aguiar (2006), pode-se entender o jornalismo investigativo como uma forma de reportagem mais extensa que exige longo tempo de trabalho na apuração das

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informações por parte dos repórteres. O jornalista tem como ofício reunir uma quantidade enorme de informação, seja através de entrevistas ou documentos, e apurar incansavelmente.

Portanto, sua produção difere do apressado cotidiano das redações. Além disso, pressupõe-se uma preocupação social, ao evidenciar casos de corrupção e má conduta de administradores públicos, por exemplo.

O jornalista Eugênio Bucci, um dos mais conceituados pesquisadores da imprensa em atividade no Brasil, presidente da RadioBrás, define o jornalismo investigativo como uma “modalidade especializada”, que teria se desenvolvido dentro do ofício a partir de uma imposição da burocracia e de muitas máfias nacionais que colocaram sobre o direito de informação uma cortina de fumaça, capaz de barrar o direito de saber de todo cidadão (FORTES, 2005).

A categoria jornalismo investigativo pode ser vista como um do produto da transformação das empresas jornalísticas em indústrias da comunicação, quando o consumidor passa a ser o objetivo da informação convertida em produto jornal, segundo Cleofe Sequeira.

“A reportagem ganha, então, novo sentido, passando a conter os seguintes elementos: uma dimensão comparada, a remissão ao passado, a interligação entre outros fatos (contexto) e a incorporação do fato a uma tendência e sua projeção para o futuro” (SEQUEIRA, 2005). O jornalismo investigativo se diferencia do jornalismo interpretativo pelo processo profissional e estratégias utilizadas na fase de apuração.

A reportagem investigativa requer as mesmas habilidades inicias que uma cobertura factual exige do jornalista. No entanto, a interpretação por parte do jornalista investigativo deve ser maior. Segundo Cleofe Siqueira (2005), a diferença fundamental entre as duas formas de jornalismo, “é que a reportagem investigativa original revela informação inédita. A reportagem investigativa interpretativa surge como resultado de uma cuidadosa reflexão e análise de uma ideia, bem como de uma busca obstinada por fatos, para reunir informação em um novo e mais completo contexto, fornecendo ao público um melhor entendimento do que acontece. Normalmente envolve assuntos mais complexos ou um conjunto de fatos, mais do que numa denúncia clássica. Revela uma nova forma de olhar um acontecimento, uma acusação, além de novas informações sobre o assunto.”

Segundo Leandro Fortes, alguns passos são cruciais para a produção de reportagens. O que difere o cotidiano do jornalismo investigativo são as circunstâncias dos fatos, geralmente mais complexas, a extensão noticiosa e o tempo de duração, que pode passar de anos, deve ser necessariamente maior que a da cobertura factual, mas quase sempre, há pressão.

Fortes enumera fases da produção jornalística: pesquisa minuciosa, que exige paciência e concentração, insistência e perseverança; atenção especial a todo tipo de informação disponível, especialmente documentos públicos; condução de muitas entrevistas; algum conhecimento policial é desejável para ser um investigador mais seguro de suas habilidades, entender um pouco de seleção de pistas, análise de provas e indícios; estar munido de curiosidade e desconfiança; ser discreto; checar, checar e checar, quase que obsessivamente; tentar se livrar de conceitos estabelecidos anteriormente; manter os arquivos coletados bem organizados para facilitar o trabalho; não se deixar levar pela ‘emoção’, manter frieza, objetividade e precisão; ser leal ao leitor; ter coragem, as situações que um jornalista, ao investigar algo que não querem contar, podem ser muito perigosas; ter responsabilidade com o trato da informação; sempre ter respeito pelas fontes; manter a clareza e simplicidade sempre.

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Independência do jornalista

Alguns pesquisadores acreditam em uma certa descaracterização do jornalismo investigativo. O professor e jornalista Nilson Lage, reconhece que o jornalismo investigativo continua existindo, mas já não é tão mais investigativo. Isso se deve, primeiro, segundo Lage, pela profissionalização das fontes. Com assessores de imprensa, agindo como jornalistas-consultores para políticos e grandes empresário, o processo de condução de pauta, apuração e edição da informação jornalística se torna um tanto “profissionalizado demais”.

Outro aspecto importante a ser citado é quando o repórter permite que a fonte mantenha algum poder de condução no processo de produção da notícia. O material deve ser apurado pelo jornalista e fugir de “armadilhas”, sem se deixar levar pela fonte faz parte do esforço ético profissional. Cleofe Sequeira é categórica ao dizer que “a independência do jornalista é uma das condições que podem garantir o sucesso de uma reportagem investigativa. Ainda sobre isso, em Sobre Ética e Imprensa, Eugênio Bucci, escreve que ser independente da fonte é um desafio clássico e já bastante conhecido. Trata-se de não permitir que a proximidade necessária entre o repórter e sua fonte se transforme na cooptação do repórter pela fonte: sem notar, o primeiro começa a adotar os pontos de vista da segunda, começa a usar o seu linguajar e a desenvolver espontaneamente raciocínio que não são próprios nem do veículo em que ele trabalha nem do público ao qual ele se dirige, mas dela, fonte.

Além disso, há outro fator que pode colocar em risco o trabalho do jornalista, a organização de grupos interessados em se promover, utilizando a imprensa para fins econômicos, políticos, partidários, segundo Lage. A aproximação de jornalistas de pessoas “poderosas” e com vontade de fazer do jornalismo uma ponte para seus interesses pessoais pode ser responsável por modificar o caráter investigativo do jornalismo.

A jornalista econômica Suely Caldas já teve muitas fontes “poderosas”. Ela aborda a preciosidade do cultivo à fonte para o exercício do jornalismo. No entanto, Suely diz não gostar da expressão “cultivar fontes”, pois afirma que cultivar a fonte significa fazer com que ela confie no trabalho do jornalista, fazendo com que o jornalista confie na fonte, acredite que a informação passada é verdadeira, mas sem se deixar levar pela fonte. Além disso, para Suely Caldas, esta relação mútua de confiança entre fonte e jornalista facilita com que a fonte procure o profissional para entregar informações relevantes.

Segundo Suely Caldas, o jornalista tem que se impor. “Confiar desconfiando” e se impor, como alguém que merece o respeito das fontes. Para merecer o respeito das fontes, ele precisa saber fazer por onde merecer. Então, falando genericamente, o que eu quero dizer é que a gente conquista as fontes de informação através da confiança. É preciso dar um tratamento de qualidade às informações que a fonte passou.

O que é notícia?

Um conjunto de elementos que serão selecionados para se tornar notícia, é como Wolf define noticiabilidade. Além disso, é por meio desses elementos que o órgão informativo controla e gera a quantia de acontecimentos. Os valores-notícia são componentes da noticiabilidade. “Segundo Wolf, os valores-notícias constituem a resposta à seguinte pergunta: quais os acontecimentos considerados suficientemente interessantes, significativos e relevantes para ser transformados em notícias?” (SEQUEIRA, 2005).

Os valores-notícias podem ser usados de duas formas: a primeira, como maneiras de selecionar elementos importantes e dignos de ser incluídos no produto (reportagem), desde a apuração até a redação da matéria; segundo, funcionam como guias para a apresentação da informação ao público, sugerem o que deve ser realçado, priorizado e o que deve ser omitido.

De acordo com Everett Cherrington Hughes, os membros de uma profissão se desenvolvem como grupo separado “com um ethos próprio”, isto implica uma dedicação

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profunda. As regras práticas, valores-notícias, fazem parte dos conhecimentos profissionais da comunidade jornalística e, muitas vezes, implícita ou explicitamente guiam os procedimentos redacionais. Segundo Gaye Tuchman, “os jornalistas tem de ser capazes de invocar algum conceito de objetividade a fim de trabalhar os fatos relativos à realidade social”.

Cada notícia seria uma compilação de fatos avaliados e estruturados pelos jornalistas, que fazem parte de uma comunidade, com um ethos comum. A avaliação leva em conta os critérios de noticiabilidade e os valores-notícia presentes em determinado fato. Se o acontecimento contemplar o interesse público, merece virar produto final da informação ordenada, ou seja, notícia.

Experiências profissionais e construção social da realidade

É impossível compreender notícia somente por fatores externos, sem compreender a cultura profissional da comunidade jornalística. A notícia é uma “construção social”, “resultado de inúmeras interações entre diversos agentes sociais que pretendem mobilizar as notícias como recurso social em prol das suas estratégias de comunicação, e os profissionais do campo, que reivindicam o monopólio do saber (o que é notícia)” (TRAQUINA, 2004).

Jornalistas interagem, em primeiro nível, com diversas fontes de informação, em segundo nível, com membros da comunidade que partilham uma identidade profissional, valores e cultura e em terceiro, os jornalistas interagem silenciosamente com a sociedade.

Dessa forma, profissionais do campo definem em última instância o que é notícia e contribuem ativamente na construção da realidade, numa profissão de enorme responsabilidade social, exigente, difícil e perigosa. Para Pierre Bourdieu, jornalistas partilham de “óculos”, que seriam estruturas invisíveis, através dos quais enxergam determinadas coisas e não outras.

O repórter investigativo busca fatos que terceiros não desejam que sejam divulgados. Nesse sentido, pressupõe-se que o repórter busque a “verdade dos fatos”. A dinâmica da verdade pode ser relacionada tanto com a busca da justiça por uma verdade, quanto com a busca do jornalista. Para Bill Kovak e Tom Rosenstiel, a verdade é um processo seletivo: “Todas essas verdades, incluindo as leis da ciência, estão sujeitas à revisão, mas, por um período, nos orientamos por elas porque são necessárias e funcionam” (SEQUEIRA, 2005).

Segundo Wolf, os critérios de noticiabilidade, os “filtros” para determinar se determinado fato merece ou não virar notícia, estão inseridos na cultura profissional e não são tão subjetivos como a teoria do gatekeeper de White dizia.

A teoria da ação pessoal, ou do gatekeeper, elaborada por David White, concebe o processo da produção da informação como uma série de escolhas em que o fluxo de notícia passa por diversos “portões”, que são decisões que o jornalista toma, em relação à escolha ou não de determinada notícia.

Dessa forma, o gatekeeper, ou “Mr. Gates”, seria a pessoa que toma as decisões, numa sequência delas. Para White, diferente de Wolf, o processo de produção da notícia é subjetivo e arbitrário, baseado na experiência, atitudes e expectativa do Mr. Gates.

Para Wolf, “os valores-notícia são regras práticas que abrangem um corpus de conhecimentos profissionais que, implícita e, muitas vezes, explicitamente, explicam e guiam os procedimentos operativos redacionais” (SEQUEIRA, 2005).

Objetivos da pesquisa

O objetivo da pesquisa é verificar se os critérios de noticiabilidade e os valores-notícia são os mesmos para a cobertura jornalística cotidiana e para o jornalismo investigativo. A partir da análise da série premiada, o objetivo da pesquisa é responder questões em relação

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aos interesses atendidos pelo jornalismo investigativo ao publicar determinada informação. Identificar os critérios de noticiabilidade e os valores-notícia aplicados no jornalismo investigativo.

Além disso, verificar se a imprensa atende à sua responsabilidade social ao divulgar os casos de má conduta de homens públicos e se a denúncia é, de fato, uma questão pública relevante, ou seja, se atende ao “interesse público”. Também analisar se o critério de noticiabilidade “interesse público” é determinante para a produção de reportagens investigativas.

Metodologia

Através da ótica da Teoria do Newsmaking, uma das abordagens da Teoria da Comunicação, que estuda as rotinas produtivas dos profissionais do jornalismo, analisa-se as estratégias discursivas pelas quais é construída a representação social da realidade pelo jornalismo. Segundo Hall, a notícia é uma construção narrativa da sociedade. Nesse âmbito, para Wolf, as práticas já consolidadas pelos jornalistas, rituais, estereótipos, representações sociais estão ligadas às restrições da organização do trabalho no processo de construção da informação de massa.

Os critérios de noticiabilidade que determinam se o fato merece ou não virar notícia estão inseridos na cultura profissional. As pesquisas de newsmaking utilizam a técnica da observação participante para obter dados sobre as rotinas produtivas na empresa jornalística. A pesquisa ainda é complementada com entrevistas com jornalistas envolvidos no processo de produção da reportagem.

Homens de bens da ALERJ

A série “Os Homens de Bens da ALERJ” teve origem em uma reunião de trabalho, em dezembro de 2003. A proposta da investigação era averiguar os bens acumulados pelos deputados estaduais do Rio de Janeiro no período de duas legislaturas (1996 a 2001) e traçar um perfil dos políticos que ocuparam aquele cargo.

Através de documentos entregues pelos políticos ao Tribunal Regional Eleitoral (TRE), o subsídio recebido por eles mensalmente não era condizente com o padrão de vida que muitos ostentavam, segundo a equipe de repórteres. A partir dessa premissa, os jornalistas partiram para uma busca por fontes, informações e recursos materiais.

Metodologia dos jornalistas investigativos Para realizar a investigação para a série “Homens de bens da ALERJ”, foi feita uma

coleta de dados em fevereiro de 2004. O material foi divido entre os sete repórteres. Além disso, também foram feitas pesquisas em sites e entrevistas. A equipe se reunia diariamente para trocar informações. Formularam um oficio com pedido de acesso a documentos públicos e entrevistaram o presidente do TRE, em março de 2004. Um mês depois, receberam a documentação do TRE.

Foi possível analisar a evolução patrimonial de 70 dos 113 parlamentares que ocuparam a cadeira no Legislativo no período. Do restante, 19 (candidatos apenas uma vez) só tinham uma declaração arquivada; 9 afirmaram não ter patrimônio; 4 não atribuíram valores aos bens declarados; 11 só informaram os valores dos bens em uma das duas declarações.

Ao todo, foram analisadas cerca de 800 folhas de documentos (do TER e de cartórios) e gastos R$2 mil para custas cartoriais. Além disso, foram feitas viagens a outros municípios,

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entrevistas com cerca de 120 pessoas, pesquisas em sites oficias e entidades, tabelas e gráficos do Excel.

A apuração da série de reportagens durou quatro meses, com rodízio de repórteres. A equipe relata alguns dos problemas enfrentados durante esse tempo, por exemplo, a falta de disponibilidade de sites oficiais, números incompletos de CPFs e CNPJs das empresas e pressões por parte de advogados que tentaram criar obstáculos para dificultar a investigação.

Em busca da “verdade jornalística”, segundo Cleofe Sequeira (2005), a equipe de jornalistas lançou mão de técnicas que ajudam no processo de investigação e a informação é publicada, em forma de texto escrito, com respaldo em documentos, dados, entrevistas e números.

Dados da reportagem

Após investigar os bens acumulados pelos deputados do Rio de Janeiro (1996-2001), os jornalistas revelaram que 27 parlamentares tiveram aumento de mais de 100% em seus patrimônios. Quase 80% dos parlamentares que forneceram ao Tribunal Regional Eleitoral pelo menos duas declarações de renda no período, segundo o levantamento apresentado, tiveram algum crescimento nos bens. Vale notar que a casa do milhão foi atingida por um grupo de 8 deputados.

Dessa forma, ao fim de quatro meses de investigação, foi possível demonstrar que muitos deputados rapidamente mudavam de status. Dezessete deputados conseguiram superar todos os investimentos do mercado financeiro no mesmo período. Os valores de bens informados pelos parlamentares ao tribunal totalizam R$ 49,1 milhões.

Desdobramento do caso

O direito de resposta, direito de defesa, foi dado aos acusados. Em entrevista, os deputados “novos ricos” admitiram que, ao se tornarem notórios, era mais fácil se firmarem como empresários. Eles tentaram justificar o crescimento rápido justamente em um período difícil da economia brasileira, um período de crises financeiras que o país enfrentou quando se fez o levantamento (entre 1996 e 2001).

Para se resguardar e apurar a informação, também foi necessário averiguar os dados daquele período. A renda média do trabalhador, segundo o IBGE, caiu 8,7%. Os 5% mais ricos do país caíram 9,9%. O Produto Interno Bruto (PIB) cresceu pouco mais de 10%, um número ínfimo, devido ao fraco desempenho do setor produtivo - os deputados alegaram ter ganho dinheiro nesse setor.

Após a denúncia publicada no jornal O Globo, a Receita Federal iniciou uma investigação. Foram detectados sinais de irregularidades em 40 declarações de renda de deputados e ex-deputados com domicílio tributário no Rio de Janeiro. Em dezembro de 2004, foi criada uma força-tarefa entre a Receita Federal, Ministério Público Federal e Estadual para trocar informações sobre as investigações e agilizar o trabalho.

Conclusões

A análise da reportagem premiada realça aspectos determinantes do jornalismo investigativo. O modo de produção da série, a longa apuração, o extenso trabalho em equipe, buscas por documentos e análise dos mesmos pelos jornalistas configuram o resultado final como um trabalho de jornalistas investigativos. Além disso, ao denunciar os bens acumulados pelos deputados do Rio de Janeiro no período de 1996 a 2001, revelando que 27

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parlamentares tiveram aumento de mais de 100% de seus patrimônios, os jornalistas explicitam o critério de noticiabilidade interesse público presente na produção da informação.

Sabe-se que o jornalismo investigativo deve permanecer comprometido com o interesse público, ou seja, está “demarcado como um esforço político da categoria profissional dos jornalistas para evidenciar casos de corrupção e injustiças sociais, descrevendo esses acontecimentos em linguagem jornalística” (AGUIAR, 2006).

No caso dos “Os Homens de Bens da ALERJ,” o interesse público envolvido está relacionado à transparência das ações de deputados e à quebra de uma espécie de compromisso deles para com a sociedade em geral. Os desvios de conduta dos “homens de bens da ALERJ” afetam a sociedade e são prejudiciais para a esfera pública, sendo, portanto, uma informação de interesse público, não fere a vida particular dos políticos investigados.

O levantamento feito pelos repórteres do jornal O Globo, que foi apresentado na série de reportagens, mostrou que 80% dos parlamentares que forneceram ao TRE pelo menos duas declarações de renda no período (1996-2001), tiveram algum crescimento nos bens.

No Código de Ética do Jornalismo Brasileiro, lê-se como dever de todo jornalista: “combater e denunciar todas as formas de corrupção, em especial quando exercida com o objetivo de controlar a informação”. Outros incisos e outras letras, atrás e adiante, falam em defesa livre do exercício da profissão, da defesa dos direitos humanos, do “prestígio” à democracia e, finalmente, do respeito do direito à privacidade do cidadão (FORTES, 2005).

O trabalho investigativo dos jornalistas não feriu o direito à privacidade de nenhum cidadão, uma vez que se tratava de um assunto “público” e de uma busca por documentos que, ainda que de difícil acesso, não eram sigilosos. A série de reportagens serviu à democracia e prestou um serviço à comunidade, divulgando uma série de informações prejudiciais à sociedade e que afetam o interesse público.

Segundo a tipologia dos valores-notícia de Galtung e Ruge, estão presentes na série de reportagens “Os Homens de Bens da ALERJ”:

●Amplitude, já que o número de deputados envolvidos era grande e, mais que isso, afetava à sociedade em geral, por serem homens “públicos”;

●Frequência, pois a duração da investigação do caso durou bastante tempo, considerando o tempo normal de fechamento de matérias cotidianas e, além disso, o período de tempo analisado para se chegar às conclusões também foi longo (1996-2001);

●Negatividade, já que a notícia era “ruim”, associava nomes de parlamentares ao mau comportamento;

●Caráter inesperado, nunca havia sido noticiado, nunca havia feito uma investigação como foi feita pelos jornalistas do O Globo;

●Clareza, os documentos, números, entrevistas foram organizados em planilhas do excel e gráficos, comparando os ganhos dos parlamentares.

Ao publicar “Os Homens de Bens da ALERJ”, os jornalistas cumprem o papel social da mídia, denunciando mau comportamento de homens públicos que interferem na sociedade como um todo. A questão é relevante o suficiente para ser veiculada em jornais. A iniciativa do jornal O Globo, teve também como conseqüência levantamentos feitos por jornais de outros estados brasileiros durante eleições para prefeito.

Produto decorrente da pesquisa

O principal produto, até o presente momento, são fichamentos das referências bibliográficas, indicadas pelo orientador. Com estes textos, são produzidos slides (PowerPoint) para uso didático nas aulas da disciplina optativa de graduação “Jornalismo Investigativo”.

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Referências

1- AGUIAR, Leonel Azevedo de. O jornalismo investigativo e seus critérios de noticiabilidade: notas introdutórias. Alceu, Rio de Janeiro, v. 7, n. 13, p. 73-84, jul./dez. 2006. 2- ____; NEDER, Vinícius. Práticas jornalísticas e políticas públicas: estudo dos indicadores de análise das coberturas sobre crianças e adolescentes. Estudos em Jornalismo e Mídia, Florianópolis, v. 7, n. 2, p. 226-236, jul./dez. 2010. 3- ____. Objetividade jornalística: a prática profissional como questão política. Comunicação & Sociedade, São Bernardo do Campo, v. 32, n. 54, p. 103-126, jul./dez. 2010. 4- DUARTE, Jorge; BARROS, Antonio (orgs.). Métodos e técnicas de pesquisa em Comunicação. 2ª edição. São Paulo: Atlas, 2011. 5- FORTES, Leandro. Jornalismo investigativo. São Paulo: Contexto, 2005. 6- SEQUEIRA, Cleofe Monteiro de. Jornalismo investigativo: o fato por trás da notícia. São Paulo: Summus, 2005. 7- TRAQUINA, Nelson. Teorias do jornalismo: porque as notícias são como são. Florianópolis: Insular, 2004. 8- TRAQUINA, Nelson (org). Jornalismo: questões, teorias e “estórias”. Lisboa: Vega, 1993. 9- WOLF, Mauro. Teorias da comunicação. Lisboa: Presença, 1999.