joão cabral de melo neto apresenta em seu título uma antítese: morte versus vida. morte e vida...

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João Cabral de Melo Neto

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João Cabral de Melo Neto

Apresenta em seu título uma antítese: morte versus vida.

Morte e Vida Severina, o texto mais popular de João Cabral de Melo Neto, é um auto de natal do folclore pernambucano e, também, da tradição ibérica.

Foi escrito entre 1954-55.

Seguindo o padrão dramático medieval escolhido (o auto), Morte e Vida Severina compõe-se de apenas um ato, uma ação principal. Subdividida em 18 cenas, a peça assume também as características de poema narrativo de tradição popular nordestina.

Está dividido em 18 partes.

Outra divisão pode ser feita quanto à temática: da parte 1 a 9, compreende-se o périplo ( viagem em que se retorna ao ponto de origem) de Severino até o Recife, acompanhando sempre o rio Capibaribe, ou o "fio da vida" que ele se dispõe a seguir, mesmo quando o rio lhe falta e dele só encontra a leve marca no chão crestado pelo sol.

1. O RETIRANTE EXPLICA AO LEITOR QUEM É E A QUE VAI 2. ENCONTRA DOIS HOMENS CARREGANDO UM DEFUNTO NUMA REDE, AOS GRITOS DE "Ó IRMÃOS DAS ALMAS 3. O RETIRANTE TEM MEDO DE SE EXTRAVIAR POR SEU GUIA, O RIO CAPIBARIBE4. NA CASA A QUE O RETIRANTE CHEGA ESTÃO CANTANDO EXCELÊNCIAS PARA UM DEFUNTO

5. CANSADO DA VIAGEM, O RETIRANTE PENSA INTERROMPÊ-LA POR UNS INSTANTES E PROCURAR TRABALHO 6. DIRIGE-SE À MULHER NA JANELA QUE DEPOIS, DESCOBRE TRATAR-SE DE QUEM SE SABERÁ

7. O RETIRANTE CHEGA À ZONA DA MATA, QUE O FAZ PENSAR, OUTRA VEZ, EM INTERROMPER A VIAGEM

8. ASSISTE AO ENTERRO DE UM TRABALHADOR DE EITO E OUVE O QUE DIZEM DO MORTO

9. O RETIRANTE RESOLVE APRESSAR OS PASSOS PARA CHEGAR LOGO AO RECIFE  

O auto de natal Morte e Vida Severina possui estrutura dramática: é uma peça de teatro. Severino, personagem, se transforma em adjetivo, referindo-se à vida severina, à condição severina, à miséria.

Da parte 10 a 18, o retirante está no Recife ou em seus arredores e sabe que para ele não há nenhuma saída, a não ser aquela que presenciou no percurso: a morte.

10. CHEGANDO AO RECIFE O RETIRANTE SENTA-SE PARA DESCANSAR AO PÉ DE UM MURO ALTO E CAIADO E OUVE, SEM SER NOTADO, A CONVERSA DE DOIS COVEIROS

11. O RETIRANTE APROXIMA-SE DE UM DOS CAIS DO CAPIBARIBE 12. APROXIMA-SE DO RETIRANTE O MORADOR DE UM DOS MOCAMBOS QUE EXISTEM ENTRE O CAIS E A  ÁGUA DO RIO

13. UMA MULHER, DA PORTA DE ONDE SAIU O HOMEM, ANUNCIA-LHE O QUE SE VERÁ

14. APARECEM E SE APROXIMAM DA CASA DO HOMEM VIZINHOS, AMIGOS, DUAS CIGANAS, ETC

15. COMEÇAM A CHEGAR PESSOAS TRAZENDO PRESENTES PARA O RECÉM-NASCIDO

16. FALAM AS DUAS CIGANAS QUE HAVIAM APARECIDO COM OS VIZINHOS17.  O RETIRANTE CHEGA À ZONA DA MATA, QUE O FAZ PENSAR, OUTRA VEZ, EM INTERROMPER A VIAGEM18. O CARPINA FALA COM O RETIRANTE QUE ESTEVE DE FORA, SEM TOMAR PARTE DE NADA

No poema, João Cabral usa preferencialmente o verso heptassilábico, a chamada "medida velha", ou redondilha maior, verso sonoroso facilmente obtido e bastante popular.

Contém sete sílabas: — Des1/de2 /que es3/tou4 /re5/ti6/ran7/do

só1/ a 2/mor3/te4/ ve5/jo a6/ti7/va,só1/ a2 /mor3/te 4/de5/pa6/rei7e às1 /ve2/ze3/sa4/té5 /fes6/ti7/va;

(Parte 5- CANSADO DA VIAGEM O RETIRANTE PENSA INTERROMPÊ-LA POR UNS INSTANTES E PROCURAR)

Auto: de forma alegórica, traduz um ensinamento religioso ou moral.

Sua linha narrativa segue dois movimentos que aparecem no título: "morte" e "vida".

Caminho ou Fuga da Morte Temos o trajeto de Severino, personagem-protagonista, para

Recife, em face da opressão econômico-social, Severino tem a força coletiva de uma personagem típica: representa o retirante nordestino.

O Presépio ou O Encontro com a Vida O autor não coloca a euforia da ressurreição da vida dos

autos tradicionais, ao contrário, o otimismo que aí ocorre é de confiança no homem, em sua capacidade de resolver os problemas sociais.

O retirante vem do sertão para o litoral, seguindo a trilha do rio Capibaribe. Quando atinge o Recife, depois de encontrar muitas mortes pelo caminho, desengana-se com o sonho da cidade grande e do mar.

Resolve então "saltar fora da ponte e da vida", atirando-

se no Capibaribe. Enquanto se prepara para morrer e conversa com seu José, uma mulher anuncia que o filho deste "saltou para dentro da vida" (nasceu).

Severino assiste ao auto de natal (encenação comemorativa do nascimento). Seu José, mestre carpina, tenta demover Severino da resolução de "saltar fora da ponte e da vida".

O texto altera sua estrutura entre monólogos, trazendo reflexões e constatações de Severino, diante das suas observações ao longo da viagem, e diálogos, alguns com a participação de Severino, outros apenas presenciados por ele.

Para lembrar:

É comum também a presença da falas em coro, isto é, vozes em conjunto, reproduzindo, com muita intensidade dramática, cantigas, rituais, lamentações de um povo que se identifica, que se torna uma massa uniforme por levarem todos a mesma vida severina.

De ambos os lados, tanto da cultura medieval quanto da nordestina, surge a influência do mundo religioso, como notamos no subtítulo da obra: Auto de Natal Pernambucano.

Não é, porém, um texto alienado na religião ou que fuja do retrato severo da realidade

A religiosidade é uma característica da cultura nordestina, mas a poesia assume seu aspecto o mais participante possível quanto à temática social.

A riqueza de símbolosEm todo o texto, as figuras de linguagem asseguram a força dramática do poema.

São frequentes as metáforas, que surgem já na construção do próprio Severino, alegoria dos marginalizados. Sua viagem, que por sua vez é metáfora da vida dos retirantes na sua luta por sobrevivência.

Há roupagens metafóricas na imagem do rosário com suas contas – a estrada com suas vilas.

Cabe ao retirante rezar todas as contas, ou seja, passar por todas as vilas, para atingir o seu objetivo, Recife (ou a sobrevivência).

O rio Capibaribe é metáfora do curso da vida, por vezes, míngua, assustando o retirante, provocando nele o medo de perder-se do caminho certo, o medo de perder o tênue fio que o liga à vida.

A violência do sistema latifundiário contra o pequeno trabalhador do campo, por ele explorado e ameaçado, aparece metaforizada na "ave-bala" que mata o Severino lavrador.

(Parte 2)

A fala final de um dos coveiros no cemitério, em Recife, é mais uma metáfora para a viagem de Severino, atribuindo-lhe um novo sentido, ainda mais severo.

"– Não é viagem o que fazem,vindo por essas caatingas, vargens;aí está o seu erro:vêm é seguindo seu próprio enterro."

(Parte10)

Diante da desesperança com relação à própria vida, Severino pergunta para Seu José, mestre carpina: 

"– que diferença fariase em vez de continuartomasse a melhor saída:a de saltar, numa noite,fora da ponte e da vida? "

( Parte 12) "– não sabeis que vosso filho

saltou para dentro da vida? Saltou para dentro da vida ao dar seu primeiro grito; "

( Parte 13)

Ora retratam as contradições da vida severina, marcada pela luta contra a seca e contra a morte:

"– essa gente do Sertãoque desce para o litoral, sem razão,fica vivendo no meio da lama,comendo os siris que apanha;pois bem: quando sua morte chega,temos de enterrá-los em terra seca. "

(Parte 6)

E belo porque com o novotodo o velho contagia,– Belo porque corrompecom sangue novo a anemia.– Infecciona a misériacom vida nova e sadia"

(Parte 17)

Também o paradoxo surge realçando a violência e a tragicidade da curta expectativa de vida do nordestino:

  "– que é a morte que se morre

de velhice antes dos trinta" (Parte 17)

As figuras sonoras, aliterações e assonâncias, que valorizam, respectivamente, sons consonantais e vocálicos, distribuem-se pelo poema reforçando sua musicalidade

"– E foi morrida essa morte, irmão das almas, essa foi morte morrida ou foi matada? "

(Parte 2)

O monólogo de abertura, composto por 64 versos, pode ser dividido em três partes.

Nos 30 primeiros versos, Severino tenta apresentar-se ao público/leitor, mas esbarra na

falta de individualidade, na despersonalização do sertanejo pobre.

 Nos 28 versos seguintes, Severino apresenta a descrição dos severinos, iguais na forma e no destino de morrer.

Já nos 6 últimos versos, Severino anuncia o início de sua peregrinação, desistindo de se individualizar, e apresentando-se como o severino que se vê, portanto aquele que representa todos os outros que os leitores/espectadores devem sempre ter em mente ao acompanhá-lo.

Esse diálogo é composto por 112 versos.

A ilusão de Severino com a Zona da Mata é logo quebrada quando se aproxima do cemitério e ouve o que dizem sobre o morto os seus amigos.  

Trata-se da mesma morte severina, que persegue o lavrador onde ele esteja. Isso lhe oferece a percepção de que o problema não é a seca, mas a distribuição de renda.

Esse diálogo é composto por 96 versos.

 Severino está por se atirar ao rio quando dele se aproxima José, o mestre carpina, oriundo de Nazaré da Mata.  O retirante faz-lhe uma série de perguntas, todas respondidas com sabedoria, realismo e prudência.

Anote! É clara a referência a José, pai de Jesus. Seu

José, que levava uma vida tão difícil quanto a do retirante, não sabe explicar a razão, mas discorda da atitude desanimada de Severino.

  A conversa é interrompida quando Severino faz a questão crucial:  

 -  Seu José, mestre carpina, que diferença faria se em vez de continuar tomasse a melhor saída: a de saltar, numa noite, fora da ponte e da vida?

( Parte 12)

Esse monólogo é composto por 29 versos.

As cinco cenas anteriores (13 a 17)apresentam o Presépio dentro da peça. Todas elas foram extraídas, quase literalmente, do folclore pernambucano, mais especificamente do livro de Pereira da Costa, ‘Folk-lore Pernambucano: subsídios para a história da poesia popular em Pernambuco’, publicado originalmente em 1908.  

Terminado o Presépio, o mestre carpina está pronto para responder à pergunta de Severino.

Curiosamente, a peça se encerra sem qualquer resposta de Severino. Em algumas montagens os encenadores colocaram a última estrofe na boca de Severino e não, como está claro no texto, na do mestre carpina.

Esse procedimento vem apenas  reforçar a mensagem final da peça: a de que mesmo a vida _ quase morte_ severina, aparentemente sem saída  ou esperança, pode e deve ser vivida.

Para lembrar: Após tantos encontros com a morte, finalmente

o retirante depara com a vida, num verdadeiro "esbarrão". O nascimento da criança, se não representa mudança no sistema vigente, pelo menos renova com esperança o espírito cansado do homem que já não via razão para continuar seu caminho seco. Com o nascimento da criança, Seu José, mestre carpina, deixa a própria vida responder à pergunta de Severino: por que não "saltar fora da ponte e da vida"?

1. BARBOSA, Frederico. Morte e Vida Severina no Folk-lore Pernambucano, de Pereira da Costa" (projeto de mestrado) São Paulo; Universidade de São Paulo; 1989. 2. MENDES, Nancy Maria. Ironia, Sátira, Paródia e Humor na Poesia de João Cabral de Melo Neto (mestrado); Belo Horizonte; Universidade Federal de Minas Gerais; 1980. 3. NADAI, José Fulaneti de. A Voz Alta de João Cabral (doutorado); São Paulo; Universidade de São Paulo; 1994.