irene machado resenha cinematismo sok amachado

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    Especulaes sobre o cdigogentico do cinema - sem cortes

    IRENE MACHADO

    Aleksndr Sokrov (lvaro Machado, org.). So Paulo: Cosac & Naify, 2002,127pp.

    Resumo Alm de apresentar o cinema do cineasta russo Aleksndr Sokrov como uma obraespiritualista da era pr-glasnost, os ensaios do livro traam um panorama das caracte-

    rsticas estticas de um cinema que revela, ao questionar, um conceito de montagem

    diferente daquele praticado pela gerao da escola da montagem, fundado, sobretudo,

    na composio. Esse o assunto fundamental analisado nessa resenha.

    Palavras-chave composio, cinema-pintura, plano-seqncia, montagem

    Abstract Alexander Sokurovs cinema is usually understood as a typical manifestation of thespiritualistic reflection of the pre-glasnost era. The essays of this book design a different

    approach by showing a specific notion of montage, far from that one praticized by

    montage school. In Sokurovs films montage is composition. This is the main subject

    discussed in this review.

    Key words composition, picture-film, sequence long shot, montage

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    A imagem reproduzida acima no apenas uma cpia da tela de Tintoretto(1518-94), O nascimento de So Joo Batista, mas um quadro da valiosa coleodo museu-palcio Hermitage, que o czarismo construiu em So Petersburgo, a par-tir do sculo XVIII, para ser a residncia de inverno. Essa reproduo tambm no o quadro propriamente dito, mas uma das imagens capturadas pela cmera do fo-tgrafo Tilman Bttner para o filme Arca russa, de Aleksndr Sokrov. Tudo issopoderia ser um mero jogo de encaixe, caso esse texto no fosse uma resenha dolivro que lvaro Machado organizou sobre o cineasta russo, lanado em outubro,quando da edio da 26 Mostra Internacional de Cinema So Paulo, em que oSokrov foi o principal homenageado.

    Da mesma forma como Sokrov convida o espectador a entrar dentro da arca-museu-palcio pelas lentes do filme, o livro convida o leitor a entrar no cinema deSokrov pela porta de seu projeto grfico. Fotografias do diretor em filmagens ouem trabalho de edio; ensaios acompanhados por imagens de filmes de qualidadeinvejvel; depoimentos do personagem-tema. Tudo isso conjugado graficamentetorna-se uma pista para o leitor atento: trata-se de um livro voltado para a anliseda obra de um cineasta comprometido, no com a filmagem propriamente dita,mas com a composio cuidadosa de todas as idias que constituem cada um deseus temas. Se a composio uma palavra-chave, nada melhor do que tom-la

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    como orientao tambm para o projeto grfico. Parece que foi essa a idia dorealizador dessa pequena obra-prima (o livro tem pouco mais de cem pginas). Di-ria, ento, que os ensaios reunidos aqui so composies de anlise, depoimentos,imagens flmicas, de modo a manter a coerncia da idia de uma coisa dentro daoutra. Atente-se que no conceito de composio est a noo de interligao departes ou elementos dispersos.

    Os trs ensaios que compem o livro parecem cumprir tal orientao. lvaroMachado investe todos os seus esforos num mapeamento temtico-composicionalda obra como um todo, discute os quase 40 filmes j realizados por Sokrov e traaum roteiro de suas caractersticas temticas, histricas, estilsticas. Laymert Garciados Santos apresenta uma anlise minuciosa de Arca russa considerando, sobretudo,o processo crtico-criativo do cineasta. Leon Cakoff relata como todo esse contatofoi feito e como foi possvel fazer circular, no Brasil, o cinema e as idias de AleksndrSokrov. O cinema, o filme, o homem: uma coisa dentro da outra.

    Quem folheia o livro tem a impresso de que os depoimentos de Sokrov emitlico so o corpo do texto uma vez que eles foram diagramados para ocupartodo o espao da linha. Na verdade, tais depoimentos no passam de citaes dentrodo texto dos ensastas. O projeto desenha graficamente a idia de discurso den-tro de discurso, dialogando com a pintura dentro do cinema, o cinema dentro dapintura, a entonao dentro da imagem, a imagem dentro do som, a cor dentro daluz, o museu dentro do palcio, o palcio dentro do mar. E isso, repito, no umjogo de encaixe. Por um lado, trata-se de uma estratgia de busca do cdigo ge-ntico do cinema. Por outro, um exerccio, muito provavelmente inconsciente, deum princpio terico consolidado na tradio do pensamento semitico dos rus-sos: a formulao de que todos os produtos culturais so sistemas modelizantesgraas capacidade de interao, de incorporao, de transformao, de conta-minao de um pelo outro. Iri Ltman se dedicou ao estudo do texto dentro dotexto; Viacheslav Ivnov examinou o filme dentro do filme; Valentin Volochinove Mikhail Bakhtin, a enunciao dentro da enunciao ou o discurso dentro dodiscurso base de toda a concepo do dialogismo. Nem mesmo Sergui Eisensteinficou fora dessa linhagem. Quando procurou entender o que existe de cinema emoutras artes, ele estava indagando sobre a condio modelizante do cinema emseu dilogo possvel com outros sistemas de signos. Em seus estudos sobre ocinematismo mostrou o cinema dentro dos quadros de El Greco, dos romances demile Zola, dos ideogramas chineses, do teatro chins, da arquitetura de Piranesi,das esculturas de Rodin. Tudo onde houvesse possibilidade de compreender a mon-tagem serviu para o exerccio crtico de Eisenstein. Para Eisenstein, a montagem

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    52era o cdigo gentico do cinema. Sokrov no nada favorvel a essa idia. Mas

    no quero me precipitar.Seguindo essa linha de raciocnio, vale dizer, de uma coisa dentro da outra,

    dentro de qual cinema seria possvel situar o cinema de Sokrov?lvaro Machado, organizador do livro em questo, traou, no ensaio que abre o

    livro, um panorama minucioso dos filmes do mestre russo cuja exuberncia lhe per-mitiu compor a imagem de um planeta Sokrov iluminado pela escola russa damontagem, pelo construtivismo russo, pelo futurismo, pelo expressionismo alemo;por D.W. Griffith, Vsvolod Pudvkin, Dziga Virtov, Sergui Eisenstein, LeonidTrauberg, Grigori Kozntsev, Aleksndr Dovjenko, Elem Klimov e pelo seu mestreAndrei Tarkvski. To importante quanto todos esses nomes foi a contribuio daliteratura, da dana, do teatro n e do teatro radiofnico fonte das peas imagin-rias e da engenharia sonora da fase de formao de quem cresceu distante dos mu-seus e teatros (p. 16). Essa seria a configurao bsica do planeta Sokrov, segundoMachado. So essas as fontes da munio de que o cinesta lanou mo para compor,j no primeiro filme, A voz solitria do homem (Odinki golos tcheloveka, 1978),um cinema de observao, baseado na semntica das imagens (p. 19).

    Observao e semntica seriam, assim, os harmnicos composicionais docinema de Sokrov. Capacidade de ver e capacidade de buscar o sentido nas inter-relaes algoritmos que os vrios ensaios vo explicitando ao longo das anlises.Como se pode ver, essa resenha no vai insistir no carter espiritual ou transcen-dental que normalmente so a porta de entrada para a obra de Sokrov. Outra sua resistncia nomenklatura sovitica da era pr-glasnost.

    Machado recupera a trajetria dos filmes de Sokrov situando suas idias e ostemas de sua paixo crtica: o exlio, o sonho, a morte dentro da vida tudo issoformatado pelo gnero que lhe serve de alfabeto bsico: a elegia (p. 25). No me-nos importantes so os filmes inspirados em episdios e personagens histricos:Taurus (Tielits, 2001, sobre os ltimos momentos da vida de Ilich Lnin) e Moloch(Mlokh, 1999, sobre o romance de Hitler com Eva Braun), que, segundo Machado,so filmes de fico sobre a vida ntima dos lderes polticos, em formato dedocudrama (p. 39). Nesse sentido, o texto de Machado um mapeamento analticominucioso e valioso do cinema de Sokrov. Um raro exemplar. Afinal, a obra docineasta mereceu, at agora, uma coletnea publicada na Rssia e um catlogo re-alizado por ocasio de uma mostra em Lisboa.

    Vamos compondo, assim, o quadro de um estilo que no dispensa o ritual, sejana performance do ator (p. 29-30), seja na composio das imagens. O que est emjogo a capacidade de transformao de uma coisa em outra. Ainda que Sokrov

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    nos seja apresentado como cineasta-pintor, o exame da obra, realizado por Ma-chado, vai revelando aos poucos um cineasta-interventor. E aqui me parece residiro centro de sua to discutida concepo de montagem, que prefiro no contrapors concepes de Virtov ou Eisenstein, mas simplesmente dizer que uma formu-lao que avana numa direo no explorada pela gerao dos anos 20. Monta-gem aqui composio de um fluxo, de um continuum. Um tipo de intervenonos algoritmos de composio dos signos audiovisuais. Sokrov um manipuladorde signos, no de partes, de elementos de unidades. No na interfererncia direta,por exemplo, na performance do ator (como provavelmente fez Eisenstein ao diri-gir Nikolai Cherkssov em Ivan, o terrvel), mas no ator editado1: num primeiromomento, a intuio e o convite para que o ator faa sua personagem relacionar-se com o ambiente de modo burlesco ou at grotesco (p.29); depois,

    o diretor sempre submeter esse receiturio pessoal de interpretao ... a um tratamento estticoposterior filmagem (tanto nas fices como nos documentrios), o que se mostrar decisivo parao significado ltimo de cada cena. Assim como recria as imagens da natureza com lentes especi-ais, Sokrov constri em estdio um universo sonoro complexo, de pouco ou nenhuma conexocom a representao realista (p. 30).

    Diante de signos especficos, o cineasta pensa possibilidades de compor, nouma unidade, mas uma seqncia, um sistema j modelizado semioticamente, oque mais difcil pois precisa ter muito claro qual a capacidade relacional dossignos envolvidos.

    A primeira Elegia notvel, ainda, por reafirmar de maneira magistral um procedimento dodiretor tanto na fico como no documentrio: a montagem no-cronolgica de arquivos histri-cos em fotos ou filmes, com resultados de enorme pungncia. Elegia alterna planos da Petrogradops-revolucionria (incio dos anos 20), devastada pela fome, com filmagens de um music hallocidental da mesma poca, e assim por diante. Essa habilidade de transformar materiais de arqui-vo em manifestos urgentes, de grande atualidade, reconhecida at mesmo pelos crticos menossimpticos ao diretor (p. 24).

    Por conseguinte, a habilidade de alterar materiais, modelizando-os em siste-mas de signos, transforma-se numa capacidade de interferir no trabalho do ator,na composio das imagens, nas falas, na trilha sonora, no quando est apenas noset de filmagem, mas quando est compondo o filme no trabalho de edio (p. 68).

    1 Ator editado um conceito formulado por Regiani Camini Pereira em sua dissertao de mestradoO ator televisual nos trnsitos do tecido cultural miditico. So Paulo: PUC-SP, 2002.

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    52A interveno assim operacionalizada define a ao do cineasta-compositor.

    Os passos dessa composio-interveno foram examinados por Laymert Garcia dosSantos em sua anlise de Arca russa o segundo ensaio do livro.

    Um cineasta da observao, que busca na contemplao o encontro de novosngulos de viso, que compe elegias com essas vises inusitadas e imprime nelasuma entoao bastante singular, de fato, no adotaria o partido de uma monta-gem em ritmo de videoclipe, caso do cinema de Virtov. Tambm, no me parece,que ele defenderia a montagem por conflito (por mais que tenha sido receptivo aoprocesso de criao do grupo FEKS a Fbrica do Ator Excntrico cuja performanceprocedia de movimentos de uma gesticulao grotesca). A montagem de Sokrovtende a interferir nos detalhes do plano de algo que, talvez, nossa viso nemconsiga alcanar. Afinal, no se pode esquecer que o filme a que assistimos foi re-gistrado por uma cmera digital e s depois virou cinema, quer dizer, s depoispassou pelos processos de interveno criativa do cineasta-compositor. Essa nosparece ser a orientao para a composio de Arca russa, plano seqncia de 96minutos, um filme sem nenhum corte, rodado numa nica tomada (p. 66). Umfilme sem montagem, na concepo de Laymert Garcia dos Santos um eventonico na histria do cinema:

    Mesmo que a hiptese tivesse sido aventada, a tecnologia existente no autorizava tamanhaautonomia de vo; agora, porm, com as cmaras digitais de alta definio e a possibilidade degravar a imagem diretamente num disco rgido, tornava-se factvel juntar a tecnologia ultramo-derna com os valores eternos que o Museu do Hermitage simboliza (p. 66).

    Para Sokrov, no entando, o plano-seqncia foi apenas uma tela que o ci-neasta, tal como um pintor, preencheu com sua composio de cor e luz (p.68).Um plano-seqncia que toma, em tempo real, imagens das 35 salas do museu e ossculos da histria do Hermitage, suas memrias, seus fantasmas. Imagens-sonho,imagens-movimento, imagens-tempo. E a surge o centro da abordagem de Santos:as vrias temporalidades, o tempo em sua inteireza, como confessa o cineasta(p.82). Ao que, na continuidade de seu raciocnio, acrescenta Santos:

    S no sonho os tempos se misturam com naturalidade, as pessoas podem cruzar-se sem ver-se, podem at pertencer a diferentes dimenses sem que isso parea estranho; s no sonho ononsense no precisa explicitar-se como tal e nada do que acontece exige explicaes (p. 83).

    Conduzindo seu pensamento pela anlise dos quatro elementos fundamentaisdo processo de criao de Sokrov memria, imaginao, movimento, pintura

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    (p.90) , Santos recorre a Diderot para compreender a composio do plano-se-qncia, o cinema-pintura, que Arca russa. Vale dizer, da produo das imagensque j so cinema, o que permite que o espectador do filme seja, igualmente, aque-le que contempla as pinturas (p.92). Novamente, a idia de que a composio deuma instncia uma forma de interferir em outra, e oferec-la a partir de um ou-tro modo de percepo, conduz a anlise.

    Se, por um lado, a compreenso do filme como fluxo, sem corte, uma possibi-lidade de alcanar, na composio pictrica do filme-quadro, seus vrios movimen-tos (temporais, emocionais, imagticos), por outro no deixa de propagar um pro-blema mal resolvido. Para Santos, no s Arca russa um filme sem montagem (p.66), como o cinema de Sokrov se contrape diretamente ao de Eisenstein, atra-vs da recusa radical da montagem (p. 75). Esse pensamento levanta algumas sus-peitas: como um cineasta-compositor, que produz imagens operando interfernci-as na luz, na cor, na granulao da pelcula; que distorce as imagens com lentesespeciais; que constri um universo sonoro completamente anti-realista; enfim, quecredita edio a conduo de todo o processo como pensar tudo isso fora danoo de montagem?

    Em primeiro lugar, a escola de montagem russa nunca criou um modelo nico.Se para Virtov o movimento era o eixo da montagem dos intervalos, para Eisensteino plano era o espao de montagem dos conceitos. Montagem no interior do plano algo que certamente Eisenstein aprendeu com a pintura de El Greco (vide a mon-tagem de formas geomtricas, linhas, luz e sombra nos planos que constituem astomadas do castelo de Ivan, o terrvel). Evidentemente, Sokrov tempera os ingre-dientes de modo diferente porque o seu plano todo um continente. Ousamos, porconseguinte, dizer o contrrio: h montagem, sim, no plano-seqncia de Arca rus-sa; sem ela seria impossvel ver o continuum da passagem de uma dimenso a ou-tra, de um tempo a outro, de um espao a outro. Ou seja, no seria possvel a com-posio que, por sua vez, esboaria uma alternativa para se pensar sobre o cdigogentico do cinema.

    Reconheo que aqui o cineasta diz uma coisa e seus filmes dizem outra.Em conversa com o criador-realizador da Mostra Internacional de Cinema de So

    Paulo, o jornalista Leon Cakoff, o cineasta fala sobre a eliminao do conceito demontagem no cinema (p. 117) e esse depoimento j faz parte do terceiro ensaio dolivro. Na verdade, o que ele eliminou foi a montagem como tcnica que identifica oalgoritmo da linguagem cinematogrfica. Para ele, o cinema j nasceu dentro docinema, muito embora confessa, no consigo definir o cdigo gentico do cinema(p. 118). E isso no tem nada a ver com o tempo, prova disso que a Arca russa

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    52navega acima de todos os tempos histricos que percorre (p. 118). Tambm no tem

    a ver com o movimento das coisas visveis (Virtov), nem como atrao (Trauberg-Kozintsev), nem com o conceito (Eisenstein). Tem a ver com qu? Talvez seja arriscadopropor uma resposta; o pior, contudo, seria omiti-la. No posso, por conseguinte,deixar de apresentar minhas especulaes sobre o cdigo gentico do cinema quearrisco ver no cinema de Sokrov, sobretudo porque esse o ttulo da resenha.

    Penso que Sokrov recusa a unidade isolada em nome da percepo noautomatizada, ou, como diriam os formalistas russos, em nome da ostraninie (oestranhamento). Uma percepo que radiografa relaes profundas ou elos de umacadeia para oferecer no as coisas, mas os signos. No toa que falamos, inicial-mente, em cinema como um sistema modelizante aquele que, irremediavelmente,pressupe um outro. No caso do cinema, uma outra percepo, aquela que vemde dentro. Nos ensaios de Machado e de Laymert essa preocupao aparece emvrios depoimentos e anlises. Todos os temas que se materializaram em meusfilmes nascem de idias que existiram em mim, o autor, por longo tempo (p. 33). Eo tema em que essa declarao ganha propriedade inigualvel o tema da morte, amorte como um fato da vida: Aquele que morre est vivo, no est morto (p.35).No ltimo ensaio, tal preocupao se torna explcita, quando ele afirma a impor-tncia de ver o detalhe, as trivialidades do cotidiano (p. 118). O detalhe que estdentro de coisas do cotidiano, capaz de criar os elos que, acontea o que aconte-cer, nunca deixaram de imprimir identidade ao cinema. para valoriz-los eengrandec-los que ele interfere na luz, na cor, na textura, no ator editado. O deta-lhe tem de ser visto como um signo.

    Se queremos falar de coisas srias, devemos nos ater a detalhes aparentemente desimpor-tantes. Caso contrrio, engrossaremos a humanidade que se deixa cair em armadilhas, que se tor-na incapaz de perceber mesmo os detalhes mais triviais de uma paisagem do campo. precisoestar muito atento aos detalhes do cotidiano e perceber que eles so muito mais intensos e im-portantes do que nossa capacidade de assimilao. H sempre mais detalhes do que o observador capaz de assimilar. esse exerccio que devemos aplicar para evitar novas catstrofes e permitirque os homens voltem a ser personagens da Histria (p. 119).

    O detalhe , para mim, o lugar onde se pode encontrar elementos formadoresdo cdigo gentico do cinema.

    *

    Alm de convid-lo para a 26 Mostra e discutir acertos sobre sua vinda para oBrasil, Leon Cakoff procurou Sokrov em maio de 2002, durante o Festival de Cannes,

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    com a misso de solicitar-lhe a produo do cartaz para a mostra em que ele seriahomenageado (So Paulo, outubro de 2002). Chamado para uma conversa particu-lar com o cineasta, Cakoff lhe entrega-lhe um presente: um embrulho com pedrasbrasileiras que constituem o que se chama rvore da felicidade. Confessa Cakoff,

    Fico frustrado quando ele no abre o presente. Mas o leva delicadamente para o seu quarto.Dois meses depois, Sokrov cumpre o trato e me devolve o presente, digo, a rvore da felicidade,na forma do cartaz-tema da 26 Mostra. Com a arte recebida em arquivo digital, uma rvore aovento, completa-se tambm uma das trs entrevistas com Sokrov: Um filme como uma rvo-re; s plantar e esperar crescer (p. 110).

    Claro que a rvore o que vemos no cotidiano, ao passo que o que se lana nosolo para ver crescer a semente que, de dentro, transforma-se em rvore. Numaautntica composio de quem est acostumado com as edies contnuas da vidacomo signo maior do existir um plano-seqncia sem cortes que, tal como naarca russa, continuamos sem saber quanto tempo vamos continuar navegando asalvo de tempestades (p. 120). Esse apenas um detalhe que est quase no fim do

    Cartaz da 26o Mostra de Cinema,ilustrado por Sokrov

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    52livro. Contudo, se quisermos pedir o socorro de Edgard Allan Poe em uma de suas

    geniais formulaes sobre o conto a semente nada mais do que aquilo que abreo espao para a reflexo no final de toda histria. E a especulao dessa resenha apenas um pensamento que lano como uma pequena semente para refletirmossobre as contribuies dos russos para a leitura dos signos.

    IRENE MACHADO professora do PEPG em Comunicao eSemitica da PUC-SP. Publicou, dentre outros, Analogia do dissimi-lar: Bakhtin e o formalismo russo (So Paulo, 1989) e O romance e avoz: a prosaica dialgica de Mikhail Bakhtin (Rio de Janeiro, 1994).

    [email protected]

    Resenha agendada em outubro de 2002 eaprovada em janeiro de 2003.