investigaÇÃo etnomatemÁtica no ofÍcio do pedreiro:...

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INVESTIGAÇÃO ETNOMATEMÁTICA NO OFÍCIO DO PEDREIRO: MÉTODOS DE DETERMINAR O ÂNGULO RETO NA CONSTRUÇÃO DE UMA CASA Luiza Helena Félix de Andrade, UFERSA, [email protected] Jakson Ney da Costa Reis, UFERSA, [email protected] Andréa Maria Ferreira Moura, UFERSA, [email protected] RESUMO O presente trabalho tem como objetivo investigar a presença de uma Matemática própria no ofício do pedreiro e correlacioná-la com a matemática escolar. Para uma melhor análise, foi escolhida uma técnica comum usada nesta profissão: a formação do “esquadro”. A escolha dessa técnica não foi por acaso, teve-se a preocupação de tomar como exemplo uma prática utilizada no início e comum ao processo de construção de qualquer casa. O referencial teórico utilizado é a tendência Etnomatemática, visto que trata da investigação da matemática inerente a certo grupo sociocultural. Palavras chaves: Etnomatemática, matemática do pedreiro, ângulo reto. ABSTRACT The present study aims to investigate the presence of a mathematic itself in the job of the builder and to correlate it with school mathematics. For a better analysis, it was chosen a common technique used in this profession: the formation of the "square". The choice of this technique was not random, there was the concern to take the example of a practice used at the beginning and common to the construction of any home. The theoretical basis is the tendency Ethnomathematic, as is the research of mathematics inherent in a certain sociocultural group. Keywords: Ethnomathematics, mathematics Mason, right angle 1. Introdução Aprender é uma ação constante ao longo da vida do ser humano. O simples contato com o mundo que nos rodeia já gera uma gama de conhecimentos, que são adquiridos e ampliados tanto por meio das instituições formais de ensino, como

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INVESTIGAÇÃO ETNOMATEMÁTICA NO OFÍCIO DO

PEDREIRO: MÉTODOS DE DETERMINAR O ÂNGULO RETO NA

CONSTRUÇÃO DE UMA CASA

Luiza Helena Félix de Andrade, UFERSA, [email protected]

Jakson Ney da Costa Reis, UFERSA, [email protected]

Andréa Maria Ferreira Moura, UFERSA, [email protected]

RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo investigar a presença de uma Matemática

própria no ofício do pedreiro e correlacioná-la com a matemática escolar. Para uma melhor

análise, foi escolhida uma técnica comum usada nesta profissão: a formação do “esquadro”.

A escolha dessa técnica não foi por acaso, teve-se a preocupação de tomar como exemplo

uma prática utilizada no início e comum ao processo de construção de qualquer casa. O

referencial teórico utilizado é a tendência Etnomatemática, visto que trata da investigação da

matemática inerente a certo grupo sociocultural.

Palavras chaves: Etnomatemática, matemática do pedreiro, ângulo reto.

ABSTRACT

The present study aims to investigate the presence of a mathematic itself in the job of

the builder and to correlate it with school mathematics. For a better analysis, it was chosen a

common technique used in this profession: the formation of the "square". The choice of this

technique was not random, there was the concern to take the example of a practice used at

the beginning and common to the construction of any home. The theoretical basis is the

tendency Ethnomathematic, as is the research of mathematics inherent in a certain

sociocultural group.

Keywords: Ethnomathematics, mathematics Mason, right angle

1. Introdução

Aprender é uma ação constante ao longo da vida do ser humano. O simples

contato com o mundo que nos rodeia já gera uma gama de conhecimentos, que são

adquiridos e ampliados tanto por meio das instituições formais de ensino, como

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também das experiências vividas, que por sua vez, são os chamados

conhecimentos empíricos. É fácil encontrar exemplos em que a matemática contribui

na resolução de problemas concretos e práticos, associados à atividades cotidianas.

Profissões como: comerciante, agricultor, costureira, rendeira, carpinteiro,

pedreiro, entre outras, apresentam cálculos elaborados, regras e procedimentos

aceitos e suficientes para as necessidades cotidianas. Vale ainda salientar que na

grande maioria das vezes essas atividades são desempenhadas por pessoas com

baixo grau de escolaridade ou até sem nenhuma escolaridade.

Ao observar a atividade do pedreiro, percebemos que, mesmo tendo um

déficit em sua base escolar, muitos pedreiros apresentam técnicas sofisticadas de

construção que demandam todo um embasamento matemático, embora essa

Matemática não seja notada por eles mesmos. Nesse sentido, pensou-se em

desenvolver uma pesquisa que teve como produto final um trabalho de conclusão de

curso, intitulado: Uma visão Etnomatemática: a Matemática usada no ofício do

pedreiro. O presente artigo é fruto deste trabalho e busca elencar os processos

matemáticos do cotidiano dos pedreiros, sendo o foco central entender esse

processo sob a ótica desse profissional e, posteriormente, analisar seu raciocínio

com um olhar científico.

Ao analisar os dados coletados percebeu-se que, na execução profissional de

um pedreiro existem diversas práticas que satisfazem nosso objetivo. Optou-se pela

determinação do ângulo reto, ou em linguagem coloquial “bater o esquadro” por ser

uma das práticas que todo pedreiro deve possuir, já que é a etapa inicial de qualquer

construção.

2. Objetivos e Metodologia

2.1. Objetivos

Este estudo teve os seguintes objetivos: Identificar a Matemática empregada

no ofício do pedreiro; mais especificamente na determinação do ângulo reto;

correlacionar esses saberes com a Matemática estudada em sala de aula e por meio

desta, averiguar cientificamente, a sua veracidade; identificar como e onde o

pedreiro obteve esses saberes utilizados na sua profissão.

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2.1. Metodologia

A metodologia adotada na realização deste trabalho consiste numa pesquisa

de campo, e por se tratar de uma observação que visa o entendimento do

comportamento de um grupo social. A abordagem metodológica terá caráter

qualitativo de forte influência etnográfica (VIÉGAS, 2007).

A coleta de dados foi por meio de entrevistas exploratórias, observações e o

registro audiovisual do cotidiano de um pedreiro no exercício de sua atividade

profissional. As entrevistas consistiram em duas etapas: a primeira voltada às

questões referentes ao início de carreira, com quem ele aprendeu a profissão, o

grau de escolaridade e as possíveis relações dos conhecimentos matemáticos com

a profissão; a segunda etapa, foi formada de questões voltadas ao exercício de sua

função profissional, onde o objetivo foi levantar informações sobre quais

conhecimentos matemáticos são utilizados por eles em seu fazer profissional, na

determinação do ângulo reto.

A pesquisa culminou com a análise dos dados coletados durante as

entrevistas e dos registros audiovisuais, considerando o raciocínio do pedreiro por

uma ótica científica, em busca de compreender e interpretar os dados colhidos e

interligar as relações entre os saberes matemáticos ali presentes e os saberes

matemáticos tradicionalmente estudados na escola.

3. Etnomatemática e a profissão do pedreiro

A Etnomatemática é uma das importantes tendências dentro da Educação

Matemática, que tem como um dos seus principais defensores o autor Ubiratan

D’Ambrósio e tem sua obra atualmente reconhecida e respeitada mundialmente.

Esta tendência chama a atenção para o relativismo cultural na Matemática.

Segundo D’Ambrósio:

A dupla necessidade da espécie homo sapiens de ter que lidar com situações que a realidade propõe para poder sobreviver e o ao mesmo tempo procurar transcender a sua própria existência através de explicações e de criação (ou criatividade como comumente se diz), está presente em todas as civilizações e sistemas culturais através dos tempos. Isso determina o aparecimento de ticas de matema, em todas as culturas (D'AMBRÓSIO, 2002 , p.10).

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Ideias semelhantes às defendidas por D’Ambrósio no Programa

Etnomátemática podem ser encontradas anteriormente em Zaslawsky (1973) na

Sóciomatemática, Posner(1982) com a Matemática Informal, Caraher (1982)/

Kane(1987)- Matemática Oral , Mellin/ Olsen (1986)- Matemática Popular, Sebastiani

Ferreira (1987)- Matemática codificada no saber-fazer, Sebastiani Ferreira (1993)-

Matemática Materna, o próprio D’Ambrosio (1998)- Matemática Antropológica.

Ubiratan D'Ambrósio consegue sintetizar todas essas ideias quando cria o termo

Etnomatemática, utilizado pela primeira vez no seu livro: “Etnomathematics and its

Place in the History of Mathematics”, em 1985. Em uma de suas publicações

posteriores, podemos encontrar o próprio autor definindo Etnomatemática como

sendo:

Numa mesma cultura, os indivíduos dão as mesmas explicações e utilizam os mesmos instrumentos materiais e intelectuais no seu dia a dia. O conjunto desses instrumentos se manifesta nas maneiras, nos modos, nas habilidades, nas artes, nas técnicas, nas ticas de lidar com o ambiente, de entender e explicar fatos e fenômenos, de ensinar e compartilhar tudo isso, que é o matema próprio ao grupo, à comunidade, ao etno. Isto é, na sua etnomatemática. (D'AMBRÓSIO, 2009, p.35).

Nesse sentido, a Etnomatemática interpreta a matemática como um

conhecimento diretamente relacionado à cultura, a construção social e vincula seu

surgimento e desenvolvimento às necessidades do homem, assim como qualquer

outro conhecimento a matemática e, está intrinsecamente ligada a grupos culturais e

seus interesses. Com esse enfoque, a Etnomatemática contrapõe-se a concepção

de matemática como ciência neutra, livre de valor e desvinculada de como as

pessoas a usam.

Dessa forma pode-se dizer que existem várias “matemáticas” e que todas

elas tem seu grau de importância, não havendo assim a supremacia de nenhuma

delas. Isso significa que, a Matemática escolar e "as matemáticas" produzidas em contextos

sociais diversos são aqui entendidas não como diferentes matemáticas, mas sim, como

diferentes manifestações da Matemática.

Ao buscar identificar a matemática presente no ofício do pedreiro percebe-se

que, esta prática encontra-se impregnada de saberes e fazeres próprios à sua

realidade e ao seu contexto sociocultural e, consequentemente, aproxima esta

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pesquisa das ideias defendidas por Ubiratan D’Ambrósio. Para ilustrar melhor esse

fato citemos como exemplo a preenchimento do alicerce. Nesta etapa embora os

pedreiros se utilizem da noção de volume, trabalham com unidade de medida

própria, no caso, a lata de querosene de 20 litros ou o carro de mão. Sem saber

explicar detalhadamente o porquê, eles fazem a seguinte relação “1m3 vale 50 latas”

ou “1m3 vale 20 carradas de carro de mão”.

No decorrer da pesquisa constatou-se que estes profissionais utilizam

diariamente na execução de suas tarefas, um amplo número de conceitos

matemáticos como: proporção, importante na mistura da massa (cimento e areia),

cálculo de área e volume, utilizados na estimativa de compra de material,

porcentagem, empregada na inclinação do telhado. Porém, identificou-se também

que na maioria das vezes tais conceitos não se apresentam claros para eles, o que

fortalece ainda mais a hipótese de que estes profissionais fazem uso de uma

matemática aprendida empiricamente1 e própria de seu grupo, nesta perspectiva,

podemos dizer que o pedreiro tem sua Etnomatemática.

4. Caracterização: do ambiente e dos profissionais estudados.

4.1. O ambiente de investigação

O local escolhido foi a construção de uma casa situada no município de

Icapuí2 no Ceará, com 70m2 de área, composta de dois quartos, uma sala, um

banheiro, uma área de serviço e uma cozinha. No entanto, para efeito de

simplificação da análise, considerou-se apenas um croqui com alguns elementos

apresentados, elementos estes que fazem parte do estudo em questão. O croqui

apresenta elementos suficientes para estudar as técnicas utilizadas pelos pedreiros.

O croqui rudimentar segue na Figura 1:

1 O termo empiricamente refere-se a empirismo que denota Doutrina filosófica que encara a

experiência sensível como a única fonte fidedigna de conhecimento. O filósofo empirista baseia-se na observação e na experimentação para decidir o que é verdadeiro. Chega a conclusões através do emprego do método indutivo, baseado no que observou. 2 Município situado no litoral leste do Ceará à 208 km de Fortaleza.

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Figura 1-Croqui da casa estudada.

4.2. Caracterização dos pedreiros

A profissão de pedreiro exige muitas ações intimamente ligadas com a

Matemática, tais como: medir, calcular, misturar, cortar, etc. Tais ações implicam na

utilização de técnicas empíricas da Matemática.

A matemática praticada pelo pedreiro e a estudada na escola, são

conhecimentos interligados, mas com perspectivas diferentes. Assim, o pedreiro

possui sua “identidade” etnomatemática própria, que se distancia da Matemática

estudada pelo aluno em sala de aula. No entanto, não podemos esquecer que na

perspectiva da etnomatemática não se pode desvalorizar os saberes de um grupo

em detrimento de outro. Sobre isso D’Ambrosio (2009, p.42) afirma que “Reconhecer

e respeitar as raízes de um indivíduo não significa ignorar e rejeitar as raízes do

outro, mas, num processo de síntese, reforçar suas próprias raízes (...)”.

Apresentaremos a seguir o perfil dos profissionais investigados:

Nome: Francisco Vladimir da Silva

Apelido: Menena

Idade: 43 anos

Grau de escolaridade: 6ª série do ensino fundamental

O Senhor Vladimir é nativo do município de Icapuí, trabalha no ramo da

construção desde os 18 anos de idade, inicialmente ele trabalhou como ajudante de

pedreiro, função conhecida como “servente”. Suas atividades eram simples, como

preparar a argamassa, carregar os tijolos, levar as telhas para cima da coberta,

limpar os instrumentos de trabalho do pedreiro, entre outras. Com tempo,

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observando o dia a dia da profissão e aproveitando as horas vagas da função de

servente, ele começou a realizar outras atividades mais sofisticadas, segundo o

próprio, “não queria trabalhar de servente a vida toda, tinha que aprender alguma

coisa pra mudar, pra pegar uma profissão melhor”. Com isso, o Sr. Vladimir

considera que a base de conhecimento da sua profissão vem totalmente de suas

experiências de vida, como diz o próprio, “aprendi com meus esforços, e um pouco

de inteligência ajudou, e a vontade, né?”. Perguntado na entrevista se ele usa

alguma coisa que ele estudou em sua profissão, o Sr. Vladimir foi enfático e

imediato: “Não, nada, não uso é nada, o estudo foi pouco”.

Nome: Raimundo Nonato dos Reis

Apelido: Nonato

Idade: 63 anos

Grau de escolaridade: 5ª série do ensino fundamental

O Senhor Nonato também é nativo do município de Icapuí. Sua profissão teve

início ao observar o pai, Epifânio Domingos, no exercício do ofício de carpinteiro,

sendo assim, sua profissão inicial foi carpinteiro naval, porém, com a diminuição da

atividade pesqueira na região e por consequência a diminuição da construção de

embarcações, ele se enveredou há vários anos na área da construção,

principalmente na etapa da coberta e instalação de portas e janelas, tendo também

experiência em todas as etapas de construção de uma casa. Suas experiências na

construção foram frutos de muita observação, inicialmente ele atuava apenas na

realização das cobertas, porém, com o tempo, observando os colegas pedreiros,

sentiu-se na necessidade de ampliar sua área de atuação e assim começou a

praticar as atividades essenciais do pedreiro, como “sentar tijolos”, medir o traçado

de massa, “bater esquadro”, entre outras.

Segundo o mesmo, os conhecimentos adquiridos na escola não se aplicam a

sua profissão, de acordo com o Sr. Nonato, a educação de antigamente era muito

diferente da de hoje, praticamente só se aprendia a ler, escrever e contar. Para ele,

o que mais contribuiu na sua profissão de pedreiro foi os anos que passou como

balconista de um comércio, pois com isso ele adquiriu um bom domínio das

operações básicas da Matemática que o ajudam na realização de seus trabalhos.

Atualmente, ele encontra-se aposentado por idade, entretanto ainda atua

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como pedreiro.

Diante do exposto, fica claro que o perfil dos entrevistados condiz exatamente

com os objetivos desta investigação.

5. A prática utilizada: a formação do “esquadro”.

Nesta seção serão apresentadas detalhadamente as entrevistas realizadas in

loco, sobre a prática da formação do esquadro na construção de uma casa. O

objetivo desta prática é encontrar ângulos de 90 graus que dão forma às paredes, já

que estas podem ficar tortas caso o “esquadro” não seja realizado adequadamente.

Tudo começa com a demarcação do alicerce utilizando-se uma linha e

estacas fincadas no chão. Na linguagem dos pedreiros, é feita a “marcação do

baldame de fora”. Caso o quadro principal do alicerce esteja em “esquadro”, a

construção das paredes divisórias no interior da casa serão facilitadas.

Existem duas técnicas para a obtenção destes ângulos retos. De acordo com

os entrevistados, por muitos anos eles usaram uma forma que descrevem como

mais difícil e, hoje em dia, usam uma técnica que consideram mais fácil e com a

mesma eficiência. Vamos descrevê-las de acordo com a explicação do senhor

Vladimir sem nos preocuparmos inicialmente com a sua eficiência.

5.1. Modo 01- Modo atual (mais fácil)

Entrevistador: Sr. Vladimir, como o senhor faz para obter o esquadro de uma

casa?

Entrevistado: Primeiro determinamos o tamanho da casa, colocamos os

quatro “piquetes” que marcam o quadro de fora do “baldame”, colocamos a linha de

fora e usamos a escala para “bater” os pontos. O esquadro da gente a gente bate de

canto a canto (diagonal) e a mesma medida que de um canto a outro, tem que ser a

mesma nos outros cantos. Terminou de bater esse esquadro aqui a gente começa a

cavar o alicerce. (sic) (O Sr. Vladimir mostrou o procedimento em um desenho na

folha de caderno. Para entender melhor, vamos ilustrar conforme a Figura 2).

Entrevistador: Vamos supor agora que eu queira fazer um quarto, qual

procedimento?

Entrevistado: Como eu já estou no esquadro, para fazer um quarto é fácil.

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Vamos supor que eu quero um quarto com 3,5m por 3,5m, assim basta eu medir

daqui do esquadro por essa linha 3,5m, ai eu marco e boto um piquete, na parede

oposta eu tenho que medir os mesmo 3,5m e botar outro piquete, assim eu passo a

primeira linha (Linha C, Figura 3) e já sei que ele também tá no esquadro, o mais

importante de uma casa é o primeiro esquadro, depois fica tudo mais fácil; pronto,

agora pra fazer a outra medição é do mesmo jeito e colocar outra linha (Linha D,

Figura 4), assim eu vou ter mais quatro pontos do mesmo jeito que o esquadro e sei

que o quadro tá no mesmo esquadro. Como já tá feito o alicerce, não tem

dificuldade, é só medir e colocar outra linha. (sic)

Figura 2-Marcação do alicerce da casa

Figura 3-Marcação do alicerce das paredes internas

5.2. Modo 02- Modo antigo (mais difícil)

Entrevistador: Como era a outra maneira?

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Entrevistado: Era mais complicado porque a gente tinha que bater o

esquadro em cada canto. Era assim, eu pegava um canto e media 80cm pra um lado

e 60cm para outro, fazia a marcação e depois com a trena tinha que dá 1m de

marcação a marcação, tinha que fazer isso nos quatro cantos pra poder bater o

esquadro, era muito trabalhoso, demorava muito e era comum ter erros, e o pior de

tudo era que a gente esquecia as medidas. (sic)

Enquanto o Sr. Vladimir explicava o procedimento, ele utilizou uma folha de

caderno onde descrevia cada etapa para se obter o esquadro, podemos perceber

melhor o processo através da Figura 4.

Figura 4-Marcação do alicerce pelo modo 02.

Entrevistador: O senhor já ouviu falar no Teorema de Pitágoras?

Entrevistado: Não, não sei nem o que é. (sic)

Analisando os dados colhidos na entrevista, notamos que para a obtenção do

ângulo de 90 graus, o pedreiro utilizou de duas técnicas, duas maneiras distintas

para se obter o mesmo resultado, e é importante frisar que a eficácia de ambas as

técnicas está baseada única e exclusivamente na prática, sendo portanto puramente

empírica. Notamos também que esta é a etapa primordial na construção de uma

casa, portanto merece uma atenção especial por parte do pedreiro.

6. Aspectos matemáticos envolvidos

6.1. Modo 01- Modo atual (mais fácil)

O procedimento consiste em demarcar os vértices de um quadrilátero e traçar

duas diagonais, sendo que para que os ângulos internos deste quadrilátero sejam

retos, ou seja, para que tenhamos um retângulo, é necessário que as duas

diagonais tenham a mesma medida. Para demonstrar tal propriedade, vamos utilizar

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o conceito de vetor e a Lei dos Cossenos.

Teorema 1 - Um paralelogramo cujas diagonais são iguais é um retângulo.

Prova: Dado um paralelogramo cujos lados são os vetores , portanto com

diagonais e . Queremos demonstrar que se as diagonais são iguais,

então o paralelogramo é um retângulo. Para tal, iremos utilizar a Lei dos Cossenos.

Vem que:

Lei dos cossenos

Diagonal maior

Diagonal menor

Condição para a igualdade das diagonais

Então . Como são ângulos suplementares, pois são os ângulos

da base de um paralelogramo, vem que,

Demonstramos assim que os ângulos internos do paralelogramo são retos

(90°). Paralelogramo com ângulos retos são retângulos. Portanto, está provada a

eficácia matemática do modo 01 que consiste na igualdade das diagonais do

retângulo. Fica claro que não se trata de um conceito trivial. Sua demonstração

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demanda técnicas avançadas que requerem um conhecimento aprofundado, no

entanto, o que importa para o pedreiro é a sua veracidade e eficiência, por isso eles

utilizam este método.

6.2. Modo 02- Modo antigo (mais difícil)

Este procedimento trata-se claramente da recíproca do Teorema de

Pitágoras, mais especificamente, de uma terna pitagórica (60cm, 80cm, 100cm).

Todo triângulo cujos lados formam uma terna pitagórica é um triângulo retângulo.

Para um maior rigor matemático, vamos demonstrar a recíproca do Teorema de

Pitágoras:

Teorema 2 – Um triângulo possui lados medindo a, b e c. Se a² = b² + c²,

então o triângulo é retângulo e sua hipotenusa é o lado que mede a.

Prova: Consideremos então um triângulo ABC com AB = c, BC = a e CA = b.

1° caso: BÂC < 90º. O ponto D é projeção de C sobre o lado AB. Dividindo

AB em dois seguimentos, onde AD = x e DB = c – x, sendo essa projeção CD = h.

Como o triângulo ADC é retângulo, temos b² = h² + x². Como o triângulo BDC

também é retângulo, substituindo vem que:

ou seja, a² < b² + c², o que contradiz a condição inicial.

2° caso: BÂC > 90°

Nesse caso o ponto D é projeção do ponto C de forma que D encontra-se fora

do seguimento AB. Gerando assim os seguimentos DA = x + c e AB = x, sendo essa

projeção CD = h.

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Analogamente ao processo anterior,

ou seja, a² > b² + c², novamente contradizendo a condição inicial.

Demonstramos então que em um triângulo ABC, de lados a, b e c,

BÂC < 90º → a² < b² + c², BÂC > 90º → a² > b² + c²

Assim, a condição a² = b² +c² implica necessariamente que BÂC = 90°.

(REIS, 2011,p.41).

Mais uma vez o pedreiro utilizou um conhecimento matemático avançado na

sua prática cotidiana, mesmo sem ter a noção da existência desse Teorema, fica

claro que é um método eficaz.

7. Considerações Finais

Inicialmente, o objetivo do estudo foi identificar a Matemática empregada no

ofício do pedreiro e, descobrir como e onde esses profissionais adquirem os saberes

específicos à profissão, além de correlacionar esses saberes com a Matemática

estudada em sala de aula.

No decorrer da pesquisa, percebeu-se que o ofício do pedreiro encontra-se

impregnado de saberes matemáticos. Por exemplo, na construção das paredes, ele

necessita estimar a quantidade de tijolos e de massa. Já na fabricação desta, ele se

utiliza fortemente da ideia de proporção. Na construção do telhado fazem uso de

geometria para determinar a inclinação. Devido a esta gama de possibilidades,

optou-se por apenas uma prática, a determinação do ângulo reto na construção de

uma casa, ou como designado pelos pedreiros “bater o esquadro”.

De modo geral, observou-se que o pedreiro precisa conhecer as operações

básicas, e necessita ter conhecimento de proporção, deter um grande senso

estatístico, e geométrico. No caso específico do esquadro, percebeu-se que no

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primeiro modo, é encontrado o ângulo reto ao igualar as diagonais, para eles

“cantos”, de uma figura de quatro lados. Neste caso, a matemática escolar

relacionada a esse saber é a propriedade geométrica, que diz que todo quadrilátero

cujas diagonais são iguais é um retângulo, um quadrilátero com os quatro ângulos

retos.

No segundo modo, exposto por eles como mais trabalhoso, temos a recíproca

do teorema de Pitágoras, onde faz se o uso de uma terna pitagórica (0,8m, 0,6m e

1m) para garantir a existência do ângulo reto. Foi comentado que lembrar as

componentes dessa terna era uma tarefa difícil, por este fato não ter um

embasamento teórico e uma explicação lógica, visto que quando perguntado sobre o

teorema de Pitágoras a resposta obtida foi: não saberem do que se tratava.

Outro fato importante a destacar, é que os próprios profissionais consideram

a observação a principal arma do pedreiro, pois a maioria deles, em início de

carreira, fez o papel de ajudante de pedreiro. Eles observavam atentamente as

técnicas empregadas e como alunos, em uma espécie de curso profissionalizante,

absorviam o conhecimento que outrora será usado em sua profissão.

Diante do exposto, concluiu-se que todo esse conhecimento foi adquirido de

forma empírica, dentro do seu grupo social.

8. Referências

D´AMBRÓSIO, U. Etnomatemática- Elo entre as tradições e a modernidade. -3ed- Belo Horizonte: Autêntica Editora, (Coleção Tendências em Educação Matemática), 2009. (______.), U. Etnomatemática: um programa. Educação Matemática em Revista, ano 9,nº 1,p. 7-12, 2002 . REIS, J. N. C. Uma visão etnomatemática: A Matemática usada no ofício do pedreiro. Trabalho de Conclusão de Curso. Mossoró: UFERSA, 2011. VIÉGAS, L. S. Reflexões sobre pesquisa etnográfica em Psicologia e Educação. Diálogos Possíveis, 2007. Disponível em: <www.fsba.edu.br/dialogospossiveis>. Acessado em: 27 de Maio de 2012.