instituto teolÓgico pio xi · o professor minucioso, o pregador da palavra, o difusor da mensagem...
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INSPETORIA DE NOSSA SENHORA AUXILIADORA
INSTITUTO TEOLÓGICO PIO XI
Alto da Lapa - São Paulo - Brasil
P. JOAQUIM SALVADOR Salesiano de Dom Bosco
Vossa Palavra é minha herança para sempre, a alegria do meu coração. ( S l . 118, 111)
* 24/01/1920 ☼ †17/05/1995
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P. JOAQUIM SALVADOR, SDB
No dia 17 de maio dc 1995, às 14h00, Deus chamou para junto de si o nosso
caríssimo Padre Salvador, aos 75 anos, após três dias de lúcida agonia vividas no
Instituto do Coração, cidade de São Paulo. A causa da morte foi o enfarto agudo no
miocárdio ocorrido ao término da Eucaristia que celebrava para as irmãs salesianas do
Instituto Anjo da Guarda, no domingo anterior, dia 14 de maio, dia das mães.
Tal vida, tal morte - uma Eucaristia: na consagração de sua vida a Deus como
salesiano sacerdote e procurando ser um sinal do Amor de Deus, especialmente aos
jovens, foi chamado para a missão da formação de futuros sacerdotes, através do
estudo e do anúncio da Palavra de Deus, através do serviço ao altar e aos jovens
salesianos, através de tantos cursos e retiros que ministrou. O enfarte o colheu
enquanto terminava a celebração da Eucaristia. Nada poderia expressar melhor a sua
comunhão com Deus e com os irmãos. Encerra, assim, com chave de ouro, sua missão
na terra. As irmãs salesianas insistem em afirmar a singularidade de sua última Ceia.
Comemorava-se o dia das mães. Depois de proclamar o evangelho sobre o
Mandamento Novo, o Amor (Jo, l, 31-35), o P. Salvador mostrou-se muito inspirado ao
falar deste Amor de um modo muito vivo e tocante, com exemplos bem concretos e
vivenciais. Sua emoção se fez sentir fortemente, retratando, em tudo isso, uma
verdadeira síntese de sua vida... Enfim, até o texto do livro do Apocalipse que foi lido
(21, 1-5) concretizou-se para ele: Vi um novo céu e uma nova terra...; Deus vai morar
com eles...; A morte não existirá mais...
Outro fato que nos sensibilizou foi que ele, internado no Instituto do Coração,
em meio às dores atrozes do enfarte, conservava sua constante, teimosa e
contagiante alegria, impressionando-nos e animando a todos.
Seus familiares nos referem ainda algo digno de nota: nos dias que antecederam
à sua morte, ele passou em visita a todos os seus parentes próximos. Era seu costume
visitar ora um, ora outro parente, todos moradores na cidade de São Paulo; desta vez,
porém, percorreu suas casas, deixando a impressão de estar se despedindo de cada
um...
O Padre Salvador, nestes últimos anos, enfim, testemunhou-nos a certeza de
uma irradiante presença de Deus conosco, na alegria. Foi o que ele partilhou conosco,
seus irmãos salesianos, seus familiares, os alunos seminaristas e cursistas, leigos.
Equipes dc N.Sra, religiosas incontáveis por ele atendidas, irmãos cristãos de outras
confissões, judeus, etc.
Que Deus lhe dê a recompensa do servo bom e fiel!
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Qual seria a lembrança mais significativa que dele podemos ter? Sua amizade e
carinho, sua fidelidade e firmeza de convicções, sua alegria e descontração...? Ah! O
seu sorriso constante que alguém chamou dc sorriso salvador! Aqui vaí reproduzido
este poema recitado na missa de sétimo dia.
SORRISO SALVADOR
Luiz Eduardo Baronto, SDB
Hoje, os passarinhos que tu alimentavas todas as manhãs estiveram no mesmo
lugar de sempre, esperando a tua chegada, mas tu não vieste e eles voltaram hoje sem
cantar.
Hoje, sentamos à mesa e teu sorriso fez falta... Tua lembrança correu nossos
olhares... Talvez tu não soubesses, mas muito mais que teus amigos, éramos teus fãs.
Queríamos nós ter a capacidade de possuir um sorriso salvador. Isso mesmo, um
sorriso salvador!
Hoje, entramos em teu quarto, vimos tua Bíblia... nela contemplamos as marcas
de teus ágeis dedos de pesquisador. Nela somos testemunhas de diversos encontros
fantásticos entre dois sorrisos: aquele que vinha da Sabedoria do Verbo e o teu
sorriso... sorriso salvador!
Hoje, olhamos nossas faces e nelas nenhum sorriso... Parece que teu sorriso é que
era a razão dos nossos sorrisos. Mas, espera! Agora, olho tua face... recordo tua vida...
lembro teus passos e encontro-te ao lado de quem era para a ti a razão de tua vida e...
que surpresa! Tu estás sorrindo! Um sorriso de salvação: Um sorriso salvador!
Como relatar fielmente os dados mais significativos sobre sua vida? Inúmeras
cartas recebidas propõem-nos aspectos interessantes de sua rica personalidade. Deste
modo, tendo em mãos as contribuições de pessoas muito ligadas ao P. Salvador,
julguei oportuno transcrever aquelas mais significativas. Trata-se dos seguintes:
1)Depoimento de Dom Hilário Moser, bispo de Tubarão, Santa Catarina, que
conviveu com ele por muitos anos, foi seu diretor e inspetor. Suas palavras constituem
a melhor apresentação do Padre Salvador.
2) Outros Depoimentos: este segundo momento consistirá em testemunhos de
amigos do P. Salvador que merecem ser aqui retratadas: salesianos - P.AIbano Slomp,
P. Fausto Santa Catarina, P. Antonio da Silva Ferreira, P. Júlio Comba, P. Geraldo
Lopes, P. Alcides Pinto da Silva, P. José Geraldo de Souza e o jesuíta Dom João
Evangelista Terra. Cada um tem seu estilo e achei conveniente apresentá-las assim
como as recebi.
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DEPOIMENTO DE DOM HILÁRIO MOSER, SDB
Sempre pensei haver certa semelhança entre o P. Salvador e São Paulo: presença
corporal pouco significativa, grande riqueza de espírito. Pequeno de estatura, titu-
beante no falar, minucioso ao extremo nos detalhes... o P. Salvador - assim preferia
ser chamado - não tinha charme pessoal. O inesperado golpe de vento de sua morte
levou pelos ares as cinzas das limitações, e o sol do ocaso de sua vida iluminou os
tesouros que carregava no coração. É com humilde gratidão que falo do P. Salvador e
de seus tesouros, do autêntico P. Salvador que agora vive e exulta na presença do
Senhor.
Homem bom, antes de tudo, rcto e honesto, em outros tempos até severo,
depois amadurecido, finalmente sábio, de largo coração.
Eu conheci o P. Salvador no colégio-aspirantado de São Joaquim, em Lorena. Foi
meu professor de português. Ainda guardo na memória sua imagem de olhos
levantados para o crucifixo da sala, enquanto nos falava de Jesus, nas proximidades da
semana santa de 1944. Talvez por isso, conservei em mim a impressão de uma pessoa
piedosa e boa.
Ao ingressar no Instituto Teológico Pio XI, 11 anos mais tarde, já conheci um P.
Salvador diferente. Coordenador dos estudos e da disciplina, vergado sob o peso das
responsabilidades que ele assumia com seriedade, era pessoa exigente, não conhecia
fugas do dever. Com ele não convinha brincar... embora não faltasse quem o fizesse,
até com maldade. Sua tendência ao detalhismo, aliada ao clima de rigor vigente nos
seminários e casas religiosas da época, fez do P. Salvador um homem minucioso e
severo. Alguns "teólogos" sofreram. Muito mais, porém, sofreu ele próprio.
Passados 40 anos, hoje temperamos com risadas compreensivas a lembrança dos
rigores de outrora. Não é lícito acusar o P. Salvador de ter sido menos humano,
quando os tempos não o ajudavam a ser mais humano. Pelo contrário, admiramos seu
esforço para moldar seu caráter. Ao partir para a eternidade, o P. Salvador já era um
homem bondoso, suave, aberto acolhedor e amigo. Ele se tomou assim aos golpes de
40 anos de vida e experiência, aos golpes dos novos rumos do Concílio e dos tempos.
Esta é a memória que dele ficará em nosso coração: um homem honesto e bom, "vir
justus".
Religioso observante, o P. Salvador encarou sua consagração com a mesma
seriedade de seu temperamento e decisão de seu caráter. Constituições e
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regulamentos pautaram sua vida. Salesiano convicto, amou a Congregação, foi filho
amoroso de Dom Bosco, bebeu avidamente de seu espírito, zelou pelas tradições
paternas, manteve-se fiel aos compromissos, confiou nos superiores, jamais lhes
recusou disponibilidade, gastou literalmente sua vida em favor da missão salesiana
que também precisa de quem lute na retaguarda da formação das novas gerações.
Muito amou também o Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora, que muito deve ao P.
Salvador. Pelas "nossas irmãs'' sempre demonstrou particular carinho e especial
dedicação. Tenho certeza de que Dom Bosco e Maria Auxiliadora lhe abriram com
alegria as portas da felicidade, reconhecendo nele o bom filho que, cumprida a missão,
retornava à casa paterna.
Padre, sempre padre, como queria Dom Bosco, o P. Salvador jamais traiu sua
identidade sacerdotal. Ele foi um ministro fiel, seu ministério foi pura fidelidade.
Quem poderia apontar nele algum deslize, uma atitude menos conveniente, uma
recusa em cumprir sua missão de representante dc Jesus? Pelo contrário, correto em
tudo, teve consciência permanente de sua unção sacerdotal. Quem o via não podia
duvidar de sua identidade. Quem o abordava, tenho certeza, partia confortado.
Quantos não confiaram a seu coração os segredos da alma, as lutas do espírito, as
dúvidas do caminho?... E ele, pacientemente, pastoralmente, ia derramando o óleo da
misericórdia sobre as fendas que lhe eram expostas, acendia a luz do Evangelho nas
mentes desorientadas. O padre Salvador foi fiel também a seu próprio nome: ele se
tornou, de certa forma, salvador de quantos, por seu ministério, encaminhou ao
encontro do Salvador de todos, Jesus.
Mas o que conferiu sentido ao seu estar-viver-trabalhar no mundo foi a Palavra
de Deus. Ela era realmente uma lâmpada para seus passos: dedicou-se a ela, viveu
para ela. gastou-se por ela. Grande semeador da Palavra, só Deus sabe onde caíram as
sementes, para onde os ventos as levaram, em que corações germinaram, em que
porcentagem produziram frutos... O fato é que sua missão, ela a cumpriu. Aprendera
de São Paulo que ao ministro toca ser fiel: o mais é com o Dono do campo.
Nesse ponto, o P. Salvador me lembra Abraão. Tudo começou com a obediência
de sua fé. Tivesse ou não pendores bíblicos, o certo é que os Superiores indicaram ao
P. Salvador o caminho da Lapa... Lá deveria lecionar Sagrada Escritura, grego bíblico e
hebraico. Como o patriarca da Caldéia, deixou para trás a Ur do Liceu Coração de Jesus
e partiu. Subiu a "colina sagrada", como se dizia. No alto do monte, porém, lhe tocou
muito mais ser Isaac do que Abraão... O sacrifício foi duro e longo. Quando eu fui feito
Inspetor, julguei que me cabia o papel de anjo... O P. Salvador tinha passado na Lapa
quase 30 anos!
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Esses anos foram benditos: geraram o amante da Escritura, o biblista estudioso,
o professor minucioso, o pregador da Palavra, o difusor da mensagem de Deus, o
animador de cursos bíblicos, o fiel secretário da LEB (Liga de Estudos Bíblicos). Aos
poucos, ele se tornou como uma esponja embebida da Palavra de Deus. Tudo o que
dizia ou fazia tinha sabor bíblico. Foi um homem sábio, da sabedoria que só o Espírito
Santo infunde. Não foi mero professor da Sagrada Escritura, foi um Mestre da Palavra
de Deus.
Com razão, em seu velório e nas exéquias, pousou aberto sobre seu peito o livro
das Escrituras e a menorá iluminou seus despojos. Ele viveu à luz dos dois
Testamentos e seu coração se impregnou da mensagem de ambos. Foi fonte a jorrar a
água límpida da Palavra da Salvação para todos os sedentos, fosse qual fosse o
caminho que percorriam. Não sem motivo o P. Salvador cultivou o espírito ecumênico.
Contanto que a Palavra de Deus pudesse iluminar os passos de quem quer que fosse,
ele estava disposto a abrir um ou outro Testamento e iluminar com a mensagem
divina o coração do interlocutor. Sabem muito bem disso protestantes e judeus.
Seu amor à Palavra de Deus se alimentava também das raízes do solo pisado
pelos patriarcas e profetas, por Jesus e pelos apóstolos. Passou parte do tempo de
seus estudos na Terra Santa, em repetidas viagens visitou minuciosamente todo o
Oriente Médio, conheceu lugares santos, sítios arqueológicos, museus, monumentos,
tudo o que pudesse ter algum interesse bíblico. Percorreu os mesmos caminhos de
São Paulo e... também aqueles que São Paulo não teve tempo de pisar. Tornou-se
assim uma espécie de Bíblia ambulante. Feliz com esse destino, viajou muito pelas
terras bíblicas, não sem que o avião deixasse para trás algum sorriso irónico de quem
tinha outro destino e devia ficar... Que fazer, se o mundo bíblico marcara um encontro
com o P. Salvador.
Suas viagens o levaram a percorrer também muitas terras brasileiras, de modo
especial para dar cursos e atender solicitações de religiosas, a quem tanto ele queria
bem. Aliás, sem as religiosas, o P. Salvador seria impensável!
Dessa forma, bem antes que, na morte, o livro das Escrituras pousasse sobre seu
peito, carregou-o, o P. Salvador, em seu coração ao longo da vida, dele haurindo
alimento, sabedoria, força e salvação para si e para quantos junto a ele vieram matar a
sede de Deus.
Dentre as muitas tarefas que o P. Salvador cumpriu, duas lhe ocuparam grande
parte da vida, as de professor e formador. Nesse campo, porém, penso que colheu
mais espinhos do que louros... A tendência a ser minucioso, favorecida por uma
exegese que não escondia sua preferência por detalhes e por questões controversas: a
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dificuldade que ele tinha na comunicação oral, uma dose de insegurança pessoal, o
temor imposto por uma quase centena de teólogos sempre prontos à crítica mais
sutil... criaram para o P. Salvador uma série de sofrimentos que ele pacientemente
enfrentava, procurava superar com o esforço, afogava na sua proverbial alegria, mas
que certamente algumas vezes também lhe encheram os olhos de lágrimas... De modo
especial nos primeiros anos de magistério todos viam e sabiam que o P. Salvador
preparava suas aulas até de madrugada. Dizia-se então, brincando, mas com boa dose
de verdade, que ele apagava a luz para deitar quando o P. Cerratto a acendia para
levantar... Na verdade, sentia-se, por vezes, nas aulas que o professor estava poucas
páginas na frente dos alunos... Só Deus sabe pesar na balança da verdade o valor de
quem teve que lutar desse modo, escondendo o sofrimento, cumprindo o dever,
amenizando com piadas a dura vida de cada dia e de cada noite.
As dificuldades do magistério foram também as da formação. Homem reto e
disciplinado, não conhecia caminhos tortuosos na observância religiosa, na obediência
às normas, no cumprimento do dever. O método preventivo, então cedera lugar a um
tipo de formação de cunho autoritário, cujo cerne era mais a disciplina do que o
espírito. Coisa dos tempos. Nesse contexto, o P. Salvador não pestanejava: tinham-lhe
dito que o caminho era por ali, ele exigia que o caminho fosse percorrido sem desvios.
Quantos problemas, quantos sofrimentos teve que suportar. Entretanto, na
profundidade de seu coração o que havia era só vontade de que cada "teólogo" fosse
bom religioso, salesiano coerente, padre bem formado. A casca era dura, mas o fruto
era doce. Não era, porém, a maioria dos "teólogos" que sabia dessa diferença e que a
aceitava...
O fato é que não se pode falar do Instituto Pio X I sem falar do P. Salvador.
Quem, mais do que ele trabalhou tanto tempo na Lapa? As gerações de padres que
formou, as turmas de alunos de quem foi mestre, as responsabilidades que cumpriu, o
amor que devotou à casa, à comunidade salesiana e à instituição, o interesse pelo
crescimento qualitativo do Pio XI, o esforço para que correspondesse às expectativas
formativas de todo o Brasil salesiano, os cursos de férias aos quais deu vida e pelos
quais deu boa parte de sua vida, a alegria com que voltou ao Instituto após uma dúzia
de anos de ausência... tudo isto é parte viva da história do próprio Pio XI. A morte do
P. Salvador representa uma perda irreparável para o Instituto. Tanto mais que, de for-
ma particular nesses últimos anos, o P. Salvador se tornara para a comunidade ponto
de união, fonte de alegria, reserva de sabedoria, testemunha da Palavra de Deus. Até
as paredes do Pio XI estão impregnadas de sua presença.
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No esforço para fazer do Instituto um ponto de irradiação da Palavra de Deus, o
P. Salvador deu início a uma série dc cursos de férias, o primeiro deles foi o famoso
CAT (Curso de Atualização Teológica), que depois se desdobrou em outros cursos
afins. Ele vivia para eles. Durante o ano já mandava suas circulares, uma montanha de
correspondência. E quando chegava janeiro, o P. Salvador se transformava. Em meio à
multidão de freiras, religiosos, leigos e leigas, o P. Salvador era outro, falava fluen-
temente, as piadas lhe brotavam da língua aos borbotões, desfazia-se em sorrisos, era
todo atenções. Foi numa dessas ocasiões que uma religiosa FMA, sua fã incondicional,
não se conteve e escreveu num cartaz que expôs no corredor do "triênio": o P.
Salvador é isso, é aquilo, ele é... "divino"! Pode-se desejar qualificação maior?... Vinda
de quem veio, certamente não. O fato é que o bem que o Pio XI realizou e continua a
realizar com os cursos de férias é fantástico: por todo esse Brasil se encontram pes-
soas que fizeram tais cursos. Pergunte-se a elas se esqueceram do P. Salvador.
O severo e exigente P. Salvador de outrora tornou-se brando, amigo e acolhedor
também porque ele se abriu ao apostolado da família, de modo especial da ENS
(Equipes de Nossa Senhora). A convivência com homens e mulheres, pais e filhos,
jovens e adultos, ajudou-o a ter uma visão menos formal da realidade, a ser menos
rigoroso, a compreender melhor os problemas, a tornar-se mais humano E como foi
correspondido nesse seu amor à família! E como lhe fez bem essa abertura! E como
fez bem aos teólogos a mudança! No dia de seu sepultamento, ao vê-lo rodeado por
seus familiares, pude notar como lhe queriam bem. Foi quando alguém me disse que o
P. Salvador era como o centro de sua própria família. Em torno dele todos os parentes
se reuniam em determinadas ocasiões, como se todos reconhecessem nele seu
tronco, sua raiz.
Do P. Salvador pode-se dizer tudo o que se quiser, mas não se terá dito tudo se
não se falar de sua alegria, daquela virtude que os antigos chamavam de "eutrapelia",
a capacidade de manter alegres os outros. Suas piadas, quase todas velhas e
conhecidas de todos, repetidas à saciedade, enfeitadas sempre com novos detalhes,
com momentos de suspense que irritavam os afoitos, interrompidas no melhor
momento porque o riso lhe arrebentava pela boca e o fazia chorar... eram a marca
registrada do P. Salvador. Conhecia centenas delas, inventava muitas, anotava as mais
interessantes, divertia-se rindo sozinho, como mais de uma vez me confessou, ao
lembrar-se de alguma especialmente original. Que o digam os alunos do CAT. que
faziam tremer o "triênio" quando estourava a risada da enésima piada. Rimos anos a
fio na Lapa ao ouvir o P. Salvador contar as histórias do P. Cerratto., do P. Brenno, de
Mons Heládio! Quantas risadas à mesa, na hora em que algumas piadas eram
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literalmente encenadas e dialogadas, suscitando os comentários murmurados entre os
dentes, mas finos e ferinos do P. Brenno.
Assim foi o P, Salvador: um homem alegre, contente, sorridente, que fez sorrir
muita gente. Como ele faz falta! Que exulte de alegria entre a multidão dos anjos e
dos santos!
Como guardar a memória de um irmão assim? Penso poder resumi-la biblica-
mente nas palavras do salmo que diz: "O justo florescerá como a palmeira, crescerá
como o cedro do Líbano, plantado na casa do Senhor, florescerá nos átrios do nosso
Deus; mesmo na velhice dará o seu fruto, cheio de seiva e de vigor" (SI 91, 13-15).
O P. Salvador me lembra as esbeltas tamareiras do deserto, exatas na disposição
simétrica de suas folhas, abertas em leque a luz do sol e ao sopro do vento, carregadas
de cachos ubertosos e maduros. Na maturidade de seus frutos. Deus o colheu. O P.
Salvador "deixará memória eterna" (SI 111,7). P. Joaquim Salvador, "vir justus".
OUTROS DEPOIMENTOS
P. ALBANO SLOMP: - Eu tive a felicidade de tê-lo como companheiro e amigo
desde o longínquo 1935. Confesso que sempre admirei a serenidade dele e nunca o vi
alterado. Foi um exemplo de humildade e bondade. - Queria salientar a atenção do
Padre Salvador para com os salesianos. Como diretor, dava gosto encontrá-lo no
escritório. Era de um delicadeza verdadeiramente paterna. Apenas via o salesiano
aparecer na porta do escritório, se levantava, ia ao encontro e deixava qualquer
trabalho e era todo atenção. Exemplo digno de ser imitado pelos diretores. - Não
queria ver ninguém triste: irradiava alegria e paz. - Foi um verdadeiro salesiano, digno
de ser posto como exemplo.
P. FAUSTO SANTA CATARINA: - Em fevereiro de 1938, encontrei no aspirantado
de Lavrinhas o jovem Joaquim Salvador. Não tardou descobrisse nele o aspirante bom,
sorridente, feliz consigo mesmo, feliz com os colegas, feliz com o ambiente que lhe
oferecia a oportunidade dc crescer intelectual e humanamente e ao mesmo tempo
assimilar a espiritualidade espontânea e simples que envolvia os habitantes daquela
casa de formação. Era uma alma boa, receptiva, consciente de estar no seu lugar, com
horizontes bem definidos e amados. Foi assim, tal e qual, que sempre o vi ao longo da
vida: noviço, estudante, sacerdote.
O contato com ele foi sempre um contato de alegria, todo transparência e
bondade. Contava suas historietas, algumas delas reais (ah, o bondoso P. Cerrato, a
quem tanto queria!), outras ouvidas em suas muitas andanças ou recolhidas em suas
leituras. Não cansava ouvi-las repetir (e quantas vezes), não tanto por elas mesmas,
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mas pela satisfação que víamos iluminar-lhe o rosto aberto em franco sorriso, pela
vibração que parecia estremecer-lhe o físico, o seu tantinho atarracado. Vê-lo
contente fazia bem. Deixava-nos contentes também: não desconhecíamos que o exato
cumprimento do que julgava um dever, particularmente em determinada fase de sua
vida, havia cravado agudos espinhos em seu bom coração. E admirávamos a
conformidade, para não dizer a uniformidade com que se abraçava à cruz dc Jesus.
O sorriso menino que lhe floria no rosto resultava de sua fidelidade ao
compromisso religioso e sacerdotal. Fidelidade vocacional que o tornou apóstolo
autêntico e lhe permitiu, em que pesem as limitações congênitas a todos os mortais,
fazer muito bem a muita gente.
Por isso, o P. Joaquim tornou-se para todos um 'sinal', de modo especial para
seus irmãos salesianos e para as tantas comunidades religiosas às quais transmitiu
com amor a Palavra de Deus. E esse 'sinal' que guardamos em nossa lembrança
edificada e nos leva a dizer saudosos: 'Obrigado, P. Salvador, sua vida valeu a pena!'
P. ANTONIO DA SILVA FERREIRA: - Ele foi meu assistente de noviciado em 1943.
Gostávamos dele porque sabia exigir e corrigir, mas sobretudo, porque respeitava as
pessoas e evitava humilhá-las.
P. JÚLIO COMBA: - Quando, em 1952. o P. Charbel foi para Roma a fim de
escrever sua tese de doutoramento, o P. Salvador foi chamado para substituí-lo no
ensino do grego bíblico, do hebraico e da Sagrada Escritura. Tratava-se de 10 (dez)
aulas por semana e de assuntos para os quais só eram convidados indivíduos que
tivessem especializações no Instituto Bíblico. O P. Salvador que, nessas matérias só
tinha o currículo comum, aceitou a incumbência e conseguiu cumpri-la bastante bem,
até o retorno do P. Charbel. (Ele sempre respondia satisfatoriamente às perguntas que
se lhe faziam sobre assuntos bíblicos).
P. GERALDO LOPES: - Ele foi meu companheiro de mais de 12 anos de
convivência no trabalho quotidiano. Com ele eu vi nascer o CAT, que ele carregou nas
costas com carinho e garra por vários anos. Escrevia as circulares, batia os endereços
nos envelopes, colava tudo e enviava... como organizava os professores e como se
transformava no período de sua realização! P. Salvador esteve na base do CESB... e
para ele conseguiu trazer sempre exegetas de peso; foi o idealizador e organizador do
CTL. Com que alegria, seus dentes de ouro brilhavam e seus olhinhos miúdos luziam,
quando ele recebia às terças e quintas, os leigos que chegavam para os cursos. P.
Salvador era a alma da LEB, que tanto deve a ele...; foi o dinamizador das semanas
bíblicas ecumênicas e das amizades profundas e fraternas com rabinos e pastores de
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todas as tendências. P. Salvador tinha capacidade de inventar siglas que ele preenchia,
posteriormente, de sentido e de vida: CAT, CMC, CESB, CTL...; era o irmão com quem
se convivia gostosamente os momentos dc fraternidade. Não havia tristeza à mesa,
pois ele não temperava o seu feijão com os problemas que devia enfrentar, era a
alegria de nossos passeios e saídas de férias: Caraguá, Praia Grande, Itajai, Campos do
Jordão. Como me recordo dos seus dribles no futebol, quando cheguei à Lapa... Havia
teólogos que diziam explicitamente: "Hoje eu pego o baixinho!"... pois que ficavam
lixados com os dribles que recebiam... Como me recordo dos seus dribles à doença!...
quando de uma operação feita na Santa Casa, ele me recebeu com a mesma alegria
que ele demonstrava a todas as pessoas nos demais momentos da vida.
O homem da Bíblia: fiz vários cursos com ele. Não tinha a profundidade de outros
professores, mas possuía o entusiasmo de quem vivenciava, por seu trabalho, a
Palavra de Deus. Nas aulas, perdia-se um pouco nos detalhes, mas completava pela
sua garra em buscar responder todas as questões que lhe eram propostas. Ele levou o
amor à Bíblia a todos os recantos do Brasil, era conhecido de Norte a Sul, de Leste a
Oeste. A herança que deixa à gerações futuras é de fazer a Palavra de Deus voltar a ser
a alma de toda a teologia.
P. ALCIDES PINTO DA SILVA: - Entre outros testemunhos constantes do P.
Salvador, quero destacar: I) Sua retidão: - sempre procurava seguir o que era certo.
Não se arriscava a fazer qualquer coisa que sua consciência recriminasse. E, com muita
delicadeza, sabia discordar dos que eram mais liberais e ousados. Foi um homem fiel.
Fiel ao seu sacerdócio; fiel à sua vocação religiosa e salesiana, fiel à Palavra de Deus;
fiel a seu dever. 2) Sua delicadeza: - tão gentil que parecia jamais faltar ao respeito.
Mesmo quando devia corrigir ou repreender alguém, por injunção de seu cargo, o
fazia com extrema fineza. Não me lembro de tê-lo visto ou ouvido jamais dizer uma
palavra que pudesse ofender a alguém. 3) Sua piedade: - dava gosto vê-lo rezar a sua
missa e outras orações. Compenetrado, consciente, imerso em Deus, impressionava
pela sua profunda concentração, embora exteriorizasse simplicidade e naturalidade.
Foi um homem de grande interioridade, alimentada pelo sério compromisso com a
Palavra de Deus e, ao mesmo tempo, irradiava tudo isso com seu constante sorriso e
sua bondade atraente e cativante.
DOM JOÃO EVANGELISTA TERRA, SJ: - Na missa de réquiem do P. Joaquim
Salvador tentei dar um testemunho pessoal e só consegui chorar. Era o amigo mais
querido que eu perdia: amizade cimentada por profunda empatia espiritual, pela
convergência de ideais e por longos anos de iniciativas e trabalhos juntos. Durante 18
anos partilhamos juntos aulas de Sagrada Escritura no Pio XI. Juntos fundamos o CAT e
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o CAR. Quando fundei o Instituto Bíblico São Luis em 1977, ele foi o principal
colaborador. Quando ele fundou o curso noturno de Sagrada Escritura para leigos no
Instituto Pio XI, tive a alegria de estar sempre ao seu lado. Durante 30 anos
organizamos juntos as semanas bíblicas, cada dois anos, que se realizaram por todo o
Brasil do Norte ao Sul, desde São Leopoldo até Recife. Juntos viajamos de ônibus de
Recife a Salvador, Vitória, São Paulo, para encontrarmo-nos com nossos colegas
biblistas, nessas nossas frutuosas semanas de estudos bíblicos, que a cordialidade do
P. Salvador sabia transformar em encontros inesquecíveis de fraternidade sacerdotal
condimentada por exuberante alegria. P. Salvador deu cursos intensivos em
numerosos seminários do Brasil, desde o Sul até o Norte do país, Natal, Recife, Brasília,
Araxá. Ilhéus, etc. Além disso promoveu inumeráveis semanas bíblicas populares
sobretudo nos estados do Centro-Sul, São Paulo, Rio, Minas-Gerais e outros.
P. Salvador vai coroar agora a galeria heróica desses mestres queridos cujas
presenças inconfundíveis marcaram nossas semanas de estudos bíblicos: Mons.
Heládio, Mons. Skrzypczak, D. Mehjlmann, P. Charbel, P. Kipper, P. Nércio e tantos
outros cujas bibliografias formariam um panorama perfeito dos estudos bíblicos no
Brasil nesta última metade de nosso século.
P. Salvador foi aluno diligente e entusiasta do Pontificio Instituto Bíblico de Roma
(1956-1957) e da École Biblique de Jerusalém (1957-1958). Licenciado em Ciências
Bíblicas pela Pontifícia Comissão Bíblica (Roma 1959). Desde 1960 (1952) foi professor
de Sagrada Escritura e Língua hebraica no Instituto Teológico Pio XI, São Paulo.
Durante três décadas foi secretário da LEB e secretario ou conselheiro de
Redação da Revista de Cultura Bíblica. Na década de 70 fez um ano sabático de
reciclagem bíblica no Mosteiro da Flagelação dos Franciscanos de Jerusalém.
Juntamente com o P. Charbel e Mons. Heládio organizou ou participou de todos
os eventos relacionados com a Bíblia no Brasil. Foi membro da World Calholic
Federation for lhe Bíblical Apostolate, com sede cm Stuttgart. Viajou várias vezes
com Mons. Heládio por vários países do Próximo Oriente: Egito, Jordânia, Israel, Síria,
Líbano, Iraque, Turquia, Grécia, Chipre e Irã. Aí, gostava de hospedar-se nas
acolhedoras comunidades salesianas e nunca deixava de visitar as autoridades
ortodoxas. Ele narrava com prazer a visita que fizeram, em 1971, ao Patriarca
Atenágoras em Istambul. O Patriarca os recebeu com extraordinária fidalguia.
Procurava conhecer a psicologia oriental, a fim de melhor dialogar com Cristãos
Ortodoxos. Ele foi um lutador infatigável pela causa do ecumenismo. Prolongou seu
ecumenismo dando colaboração ao Conselho da Fraternidade Cristã-Judáica, do qual
era membro ativo.
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Interessou-se vivamente pelo entendimento judeu-cristão. Em 1961 e 1962
escreveu dois artigos sobre os judeus e em 1963 voltou a escrever na RCB sobre a
"questão palestinense".
Foi um dos membros mais ativos na tradução da Bíblia da LEB. Colaborou na
tradução da Bíblia mais bela do mundo e em 1978 fez a revisão para a 2ª edição e
colaborou na revisão da Bíblia da LEB para uma nova edição dc Edições Loyola.
Por delegação da CNBB ele foi encarregado da revisão católica da tradução de A
Bíblia na linguagem de hoje.
P. Salvador foi o biblista que mais lutou pela sobrevivência da LEB. A Liga de
Estudos Bíblicos foi no mundo inteiro a primeira associação nacional de professores de
Sagrada Escritura. Ela foi criada em 1946 por iniciativa do P. Antônio Charbel, seu
amigo e irmão de comunidade. Recebeu calorosa aprovação da Pontifícia Comissão
Bíblica e do P. Agostinho Bea, então reitor do Pontifício Instituto Bíblico. Os estatutos
da LEB serviram de inspiração e modelo para a criação da Associação dos biblistas
italianos. A LEB chegou, nos seus tempos áureos, quando vivia ainda a plêiade dos
grandes Mestres que citei antes, a atingir uma influência luminosa em todo o território
nacional, congraçando todos os professores e sacerdotes interessados pelo estudo e
ensino da Palavra de Deus no Brasil.
Infelizmente a unidade da LEB foi rompida por fatores imponderáveis. A criação
do CEBI veio abrir alternativas de exegese ligada à pastoral bíblica mais engajada com
questões sociais, com a Teologia da Libertação e os problemas latino-americanos.
Além disso, a liderança exercida por Mons. Heládio, aliado com os dois grandes
biblistas salesianos, P. Charbel e P. Salvador, davam uma orientação à LEB. Sem essa
liderança, dc fato, a LEB não teria sobrevivido.
A nova geração dos exegetas brasileiros formados em Roma ou em Jerusalém
não se sentiu fascinada pela LEB. A CNBB também não deu apoio a LEB. A Bíblia ficou
subordinada à catequese. Agora, com a perda irreparável do P. Salvador, a LEB
encontra-se numa encruzilhada decisiva. Ou os novos exegetas assumem com
entusiasmo o ideal da LEB de reunir numa unidade revitalizada e diversificada os
estudos bíblicos e a pastoral da Palavra de Deus em todo o Brasil, ou então será
realmente a morte da LEB. O sonho do P. Salvador, renovado em todas as semanas
bíblicas, era poder transmitir os encargos de direção da LEB a novos biblistas dispostos
a assumi-los com entusiasmo e coragem.
Mais uma vez repete-se na história da Igreja a despedida de Paulo transmitindo
seu encargo ao discípulo Timóteo: "Eu te conjuro diante de Deus e de Cristo Jesus:
proclama a Palavra... faze o trabalho de um evangelista... Quanto a mim, combati o
bom combate, terminei a minha carreira, guardei a fé" (2 Tm 4,1-7).
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Artigos do P. Joaquim Salvador na Revista de Cultura Bíblica: - Quem é Judeu?
(1961/19) 353-358; - Quem é Judeu? (1962/21) 6-33; - A Cerâmica na Palestina
Amiga (1962/21) 71-73: - A Questão Palestinense (1973/23)18-35; - O Salmo 119
(1963/24) 5-9; - O mais curioso dos mares (1963/23) 19-46; - A solução dum
famoso enigma (1963/25-26) 45-59; - Introdução aos Evangelhos (1964/26) 45-59;
- São os judeus de ontem e hoje responsáveis pela morte de Jesus? (1964/27)
109-153; - Páscoa judaica, a festa do êxodo (1963/28) 105-118; - Penas, Castigos
e Suplícios no AT (1066/29) 89-149; - Alguns acenos à Constituição Dogmática
"Dei Verbum" (1967/30) 22-23; - Alianças e Alianças no AT; - Algumas notas
sobre a Edição conjunta do NT em português (1970/33) 5-15; - O Querigma nos
Atos dos Apóstolos (1972/35) 105-134; - Bíblia e Meios de Comunicação Social
(1974) 58-67; - A Liga de Estudos Bíblicos - LEB. História da fundação e algumas
de suas iniciativas (1975/40) 50-58; - E Autêntico o "Testimonium Flavianum"?
(1978/6) 137-151; - Mons. Heládio Correia Laurini: Biblista e Ecumenista pioneiro
no Brasil (1979/9-10) 3-10; - A Dimensão Catequética do Livro dos Atos e a
Catequese hoje (1982/21); - A Mulher em Lucas e nos Atos (1986/39-40) 55-74; - A
Liga de Estudos Bíblicos - LEB (1987/43-44) 44-51; - "In Memoriam" do P. António
Charbel,. SDB (1987/43-44) 236-243; - Mons. Heládio Correia Laurini e o
Movimento Bíblico no Brasil (1988/45-46) 180-183; - As imagens e comparações
divinas na Bíblia, sobretudo nos Salmos, um argumento a favor da repre-
sentação de Deus nas artes? (1989/49-50) 124-141.
P. JOSÉ GERALDO DE SOUZA: - Despetalar rosas sobre a campa dos meus Irmãos-
heróis, ainda não o pudera. Hoje, porém, a lousa sepulcral ajustou-se sobre o espólio,
sacerdotalmente consagrado, de um daqueles a quem o Senhor convocou para habitar
no mesmo Santuário do seu Templo, no santuário do seu Coração Divino! Este é o P.
Salvador.
Foi meu aluno no Instituto Teológico Pio XI – Lapa, de História Eclesiástica, de
Patrologia, de Canto Gregoriano e Polifônico. Mais tarde, já sacerdote, fomos, ali,
colegas com diversos cargos. Convivemos, como vizinhos, em Roma e Instituto Dom
Bosco – Mooca, sendo ele, então, o Diretor de toda a complexa obra da Editora
Salesiana.
Para me introduzir nestas notas, sirvam estes 40 a 50 anos de relacionamento,
quando pude objetivar nele as seguintes constâncias da personalidade: - P. Salvador
foi um individuo positivamente sadio. Foi-o na aceitação franca de todos os que se lhe
aproximavam: na espontaneidade deste relacionamento humano; na motivação lógica
de um camaradismo singular; pela aproximação interessada para o contacto pessoal e
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grupal; num gostoso humor tolerante; era franco e de atitudes democráticas; num
pleno otimismo positivo: numa cristã, religiosa e salesiana valorização do próximo.
Como aprazer-me-ia, neste momento, tornar-me um joalheiro! Recolho,
contudo, neste memorial, os tópicos probantes dessas facetas da sua personalidade,
já acima citadas. Piedoso, de uma religiosidade profunda, humilde, simples e
recolhido; com o seu santo Rosário, a recitá-lo nas aléias internas, de pinheiros, do Pio
XI; nas da Floresta-Negra nos pré-Alpes bávaros.
Daqui - de uma cabana - Alm-Hütte - pertencente ao Estudantado Teológico e
Filosófico dc Benediktbeuern, Alemanha - ascensionávamos até 1800 a 2000 metros,
numa escalada religiosa, pois ele a entremeava, de tanto em tanto (vencendo os
paredões rochosos, ainda bloqueados de neve dura, seca e gelada), de meditações
bíblicas e ascéticas. Na Capelinha anexa a essa rústica cabana, sem iluminação elétrica,
celebrávamos o Ofício Divino e a santa Missa, com a única participação do irmão Herr
Ludwig Sopp. Com este, por falar somente o dialeto bávaro, o P. Joaquim dirigia a
conversa com esforço; isto lhe custava renunciar a seus difíceis estudos bíblico-
exegéticos. Mas... não deixava de aliviar-se, com sua característica graça, pois, nas
paredes laterais que ladeavam o altar nesse ambiente minúsculo, estava transcrito o
Cântico das Criaturas de S. Francisco de Assis, mas em alemão... em que o sol é
feminino e a lua, masculino; daí resultar para nós, o nosso irmão, o Lua, com todas as
graciosas inversões seguintes.
Ainda o vejo recolher-se, inclinar-s abaixando a cabeça, apertar ao peito a
medalha de N. Senhora, quando das fragorosas descargas elétricas, raios, sobre as
coníferas, faias e freixos, que amantam todas as orlas e relevos dos espigões
intermináveis das montanhas pré-alpinas.
O forte desequilíbrio da pressão atmosférica circunstante vaporiza os elementos
úmidos dentro do cerne desses gigantes verdes; daí, suceder-se a explosão de uma
onda acústica que emite um estalo forte, picante, seco, assustador, pois sucede ao
outro, mais rouco, da fase relâmpago-trovão. Eles racham-se ao longo do caule, e
desabam... às tardinhas e bocas-da-noite!
Continuamos a bosquejar a sua figura humana. O aspecto do seu recato
comparecia em mil-e-uma atitudes diárias. A alimentação, ali no alto - onde
transcorremos os dois períodos de férias, 1960-1961, que coincidiam com os mesmos
dos Institutos Eclesiásticos de Roma - era escasso e frugal: leite, queijo seco, maçãs
secas e fungos (cogumelos): isso o fazia sorrir, totalmente superior, como...
desencarnado, diria.
E sua gentileza c magnanimidade! Um dia planejamos chegar, de bicicleta até
Oberammergau, é a cidadezinha onde se celebra o Mistério da Paixão de Cristo, o qual
se renova há mais de 300 anos, de 10 em 10 períodos, desde a epidemia de peste e da
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guerra de 1633. Estamos hoje a 22 de julho de 1960. Esse soberbo espetáculo, famoso
no mundo todo, é como o da nossa Nova-Jerusalém, em Caruaru, no agreste
pernambucano. Meditar o texto tradicional de D. A. Daisenberger, e saborear as
harmonias, corais e instrumentais - 60 musicistas e 100 executantes vocais, na criação
original de P. Decler, para 400 atores. Assistir ao profundo Mistério era o sonho do P.
Salvador, sacerdote-biblista! Mas, ao retornarmos, ao longo de uma extensa estrada
por aquelas planícies verdejantes, a minha bicicleta, simplesmente, rebentou. E o meu
querido amigo desceu da sua e, a pé, continuou ao meu lado por vários quilómetros
ainda.
A sua piedade se abeberava nos sólidos estudos da exegese bíblica e, conse-
quentemente, numa contínua meditação mística: a 29 de junho de 1961, Solenidade
dos Apóstolos Pedro e Paulo, encontramo-nos na Praça de S. Pedro, em Roma; às
portas monumentais da Basílica Vaticana, adornadas de festões com cedrinhos verdes,
representava-se a Rede do Pescador (Pedro); a estátua de bronze do Apóstolo
revestida de paramentos pontificais, em rubro, com tiara. Processionamos até ao altar
da Confissão; aí. recitamos o Credo tradicional. E, quando menos o poderia esperar, o
P. Salvador orou, recolhido e piedoso, sotto voce, a genial síntese de S. Agostinho: Tu
enim Petrus. A petra Petrus, non a Petro petra. - Sic a petra Petrus, quomodo a Christo
christianus (Sermão 295). Como ele fora meu aluno de Literatura Patrística, senti-me
emocionado, pois sempre foi estudioso e apreciava muito as figuras de retórica, como
as da antítese e da metáfora, e os excertos que se fornecia.
Ao retornar de Roma, após a defesa de uma tese de láurea, com a aprovação
máxima, Summa cum laude, um nosso irmão teve a surpresa indizível de receber um
presente artístico e poético do P. Salvador: um tríptico composto por ele, em que o
poemeto tinha todas as sílabas finais, sem exceção, rimadas em aude - do termo
laude, ou louvor.
Estamos restaurando neste esboço os traços pessoais de um Sacerdote Salesiano
de D. Bosco, que, como o referíamos atrás, é uma pessoa admiravelmente positiva e
sadia. Farei, a seguir, mais algumas rápidas alusões ao seu espírito de trabalho e de
criatividade literária e artística.
Nas longas pernadas que dávamos durante as férias de verão em Campos de
Jordão - Vila Dom Bosco - especialmente naquelas até ao maciço granítico da Baú, ou
até as grimpas altaneiras do pico do Itapeva, ele nos entretinha com sua prosa
comunicativa e seu companheirismo sadio; nas partidas de futebol, em um campinho
acanhado, ou mesmo no arriscado Vale dos Marmelos, ele suportava valentemente,
como ponteiro ágil, ou centro-avante, o tranco dos zagueiros adversários (que o diga
eu...); nas tardes menos agressivas, ele se demorava a plantar, horas, os pinhões, na
orla das aléias internas; estes pinheiros-araucária ainda lá estão a frutificar; compunha
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sempre algum texto, em prosa ou em verso, para nossos teatrinhos domingueiros,
num palco mitológico?
Para relembrar-lhe os dotes de escritor e poeta, basta sua criação numerosa de
hinos de ocasião, para festas e para outras celebrações: eu próprio, tive a felicidade de
compor melodias para um álbum de hinos e brindes sobre poemas seus, como Flores
d ' alma, Gratidão, Esmeralda Divina, Entusiastas Cantares, etc (hoje, a maior parte em
edição da Casa Editora Ricordi, S. Paulo, 1958).
Como Diretor do Instituto Salesiano Dom Bosco (S. Paulo - Mooca), P. Joaquim
convidava para reuniões conviviais os antigos alunos do Pio XI, inclusive alguns colegas
nossos que se separaram da nossa vida comunitária; tudo, então, corria com um calor
de carinho alegre e comunicativo.
Para celebrar as Bodas dc Prata, em 1965, ele ofereceu-me, como presente
especial, o Hino das Vocações, Quantas almas se perdem no mundo, (composto para a
concentração de 1000 vocações religiosas em Pindamonhangaba e Sagração do
Templo anexo ao Noviciado) com uma sua recriação elaborada sobre o texto clássico
do nosso célebre Dom Aquino Correa. Arcebispo, da Academia Brasileira de Letras,
mas com o sentido temático dos novos textos das Constituições do concílio Ecumênico
Vaticano.
Uma última chamada: participando juntos dc duas Páscoas Hebraicas, admirei-
me da maneira respeitosa e reverente como Exmo. Rabino Sobel, da Congregação
Israelita Paulista, tratava o meu colega.
Morrer pouco a pouco, saboreando o cálice do termo final do seu ser corpóreo!
A partir do altar do Senhor, até o altar do seu sacrifício final! Unum petii a Domino,
hoc recquiram - Uma só coisa ele pediu sempre ao seu Senhor, e o que ardentemente
desejou: Habitar no seu Santuário todos os dias da sua vida... (SI. 26). Morrer no altar!
Que divino abraço o do Pai para este seu Anacoreta e Místico, que voluntariamente e
santamente, como um Levita Consagrado, habitou no seu Santuário todos os dias da
sua vida!
Moisés desceu do Monte Sinai, depois de 40 dias e 40 noites junto a Javé... P.
Salvador ficou mais de 40 anos tendo o Senhor diante de seu rosto, nas suas mãos!
Vestindo a sua túnica de linho, mil vezes, para oferecer a Vítima pelo pecado:
comungando-a no Lugar Sagrado, após consumir seu Sangue no altar!
CONCLUINDO
Ao encerrar esta homenagem ao nosso querido Padre Joaquim Salvador, a
comunidade do Pio XI eleva o seu louvor e sua ação de graças a Deus convidando para
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isso, todas as pessoas que o conheceram, que com ele viveram, que o amaram e a que
ele soube amar.
Obrigado, Senhor, pelo dom da vocação salesiana e sacerdotal do P. Salvador,
tão bem vividas. Obrigado, pela liberdade e amor que ele testemunhou, em um
caminho de desapego e superação de seus limites próprios de quem opta pelo Reino
de Deus, surpreendendo a todos nós pela manifestação de tantos sinais de vida, de
esperança e de alegria.
A tantas pessoas que nos escreveram, telefonaram e testemunharam seu
carinho para com ele, solidarizando-se conosco, agradecemos de coração e pedimos a
Deus que os recompense. A todos pedimos uma prece por esta comunidade de
formação sacerdotal!
Que o P. Salvador interceda por todos nós. Que o exemplo que ele nos deixou
seja nossa herança: a alegria contagiante, o trabalho incansável, a oração simples, o
ouvido atento, o carinho paterno.
Que Deus lhe dê a vida em plenitude, no Amor, junto a Dom Bosco, Nossa
Senhora Auxiliadora e a todos os seus caros que já o precederam.
P. Antonio Emídio Vilar, SDB
Diretor do Instituto Teológico Pio XI
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CURRICULUM VITAE
Nascimento: 24.01.1920, em São Paulo.
Seus pais: Manoel Paulo Salvador e Josefina Amália Salvador
Aspirantado de Io grau - Lavrinhas (1935-1938)
Aspiraniado de IIo grau - Lavrinhas (1940-1942)
Noviciado - São Paulo (1939)
1a profissão - São Paulo (31.01.1940)
Filosofia - Lavrinhas e Lorena (1940-1942)
Tirocínio - Lorena (1942 e 1944). São Paulo e Pinda (1943), São Paulo (parte
de 1942 e 1945)
Votos perpétuos - Campinas (03.01.1946)
Teologia - São Paulo, Lapa (1946-1949)
Ordenação Sacerdotal - São Paulo (08.12.1949)
Conselheiro curso Científico e Faculdade - Liceu Coração de Jesus, SP (1950)
Conselheiro escolar. Internato e professor - Liceu Coração de Jesus, SP (1951)
Aluno da PUC SP (1952 a 1956)
Professor no Pio XI (1952 a 1956)
Licenciado em Teologia - PUC SP (1956)
Estudos Bíblicos: Pontifício Instituto Bíblico - Roma (1956-1957)
Estudos Bíblicos na École Biblique, Jerusalém (1957 a 1958)
Licenciado em Sagrada Escritura: Pont. Inst. Bíblico - Roma (1959-1960)
Conselheiro escolar e professor no Pio XI (1960 a 1961)
Catequista e professor no Pio XI (1962)
Conselheiro escolar e professor no Pio XI (1963 a 1971)
Estudos Bíblicos no Studium Biblicum Franciscanum, Jerusalém (1971 -1972)
Professor e vice-diretor no Pio XI, SP (1972 a 1980)
Diretor na Editora Salesiana, Mooca, SP (1982 a 1987)
Professor, Editora Salesiana, Mooca, SP (1988 a 1989)
Diretor no Educandário de São Carlos (1990 a 1992)
Professor, capelão, confessor no Pio XI (1993 a 1995)
Falecimento: 17.05.1995. em São Paulo.
DADOS PARA O NECROLÓGIO
P. Joaquim Salvador nasceu em São Paulo, Brasil, no dia 24 de janeiro de
1920 e faleceu em São Paulo, no dia 17 de maio de 1995, com 55 anos de
profissão religiosa e 45 de sacerdócio.
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Rua Pio XI, 100 – 05060-001 Alto da Lapa – São Paulo (SP)
11-3649-0200
www.sdblapa.com.br