hipertensao portal

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HIPERTENSÃO PORTAL PORTAL HYPERTENSION Ana L. Candolo Martinelli Docente. Departamento de Clínica Médica. Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto - USP CORRESPONDÊNCIA: Divisão de Gastroenterologia. Departamento de Clínica Médica. Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto - USP. Campus da USP - CEP 14049-900 Ribeirão Preto - SP, Brasil. Fone: 16- 602 2456/ Fax: 16-633 6695 e-mail: [email protected] MARTINELLI ALC. Hipertensão portal. Medicina, Ribeirão Preto, 37: 253-261, jul./dez. 2004. RESUMO: A hipertensão portal é uma síndrome clínica freqüente em nosso meio e acompa- nha-se de manifestações clínicas graves. Aqui são abordados alguns aspectos da hipertensão portal, com particular ênfase na fisiopatologia da síndrome e em suas manifestações clínicas. São listadas causas de hipertensão portal e discute-se a importância de informações obtidas durante a história clínica e no exame físico, que permitem o diagnóstico da síndrome e que auxiliam no esclarecimento da possível etiologia do processo. UNITERMOS: Hipertensão Portal. Sistema Porta. Veia Porta. 253 Medicina, Ribeirão Preto, Simpósio SEMIOLOGIA 37: 253-261, jul./dec. 2004 Capítulo VII 1- ANATOMIA DO SISTEMA VENOSO POR- TAL O sistema venoso portal (Figura 1) é constituí- do por veias que coletam o sangue da porção intra-abdominal do trato alimentar, baço, pâncreas e vesícula biliar. A veia porta propriamente dita tem 6 a 8 cm de comprimento e é formada pela junção das veias esplênica e mesentérica superior. No hilo hepático, a veia porta divide-se em dois ramos, o direito, que su- pre de sangue o lobo direito do fígado, e o esquerdo, que leva sangue para os lobos esquerdo, caudado e quadrado. As veias esplênicas originam-se no hilo esplênico, unem-se com as veias gástricas curtas para formar a veia esplênica principal que recebe sangue da veia gastroepiplóica esquerda e de várias tribu- tárias que drenam o pâncreas. A veia mesentérica in- ferior drena o sangue do cólon esquerdo e do reto e, geralmente, penetra no terço médio da veia esplênica. A veia gástrica esquerda, geralmente, une-se à veia porta, na sua origem, mas pode drenar para a veia esplênica. A veia mesentérica superior é formada por tributárias que drenam o lado direito do cólon, intestino delgado e cabeça do pâncreas. O sangue portal é le- vado pelos ramos terminais da veia porta até os sinu- sóides e, desses, para as veias centrolobulares que drenam para as veias hepáticas e estas para a veia cava inferior. A pressão portal normal é de 5 a 10 mmHg, de acordo com o método empregado; consi- dera-se hipertensão portal quando existe um aumento persistente da pressão portal acima desses níveis. 2- ASPECTOS FISIOPATOLÓGICOS DA HI- PERTENSÃO PORTAL A pressão (P) no sistema portal como em qual- quer outro sistema vascular, é o resultado da interação entre o fluxo sangüíneo (Q) e a resistência vascular (R) que se opõe a esse fluxo; é representada matema- ticamente de acordo com a lei de Ohm como P= Q x R. Assim, a pressão portal pode aumentar, se houver aumento do fluxo sangüíneo portal ou aumento da re- sistência vascular ou de ambos. (Figura 2).

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Page 1: Hipertensao Portal

HIPERTENSÃO PORTAL

PORTAL HYPERTENSION

Ana L. Candolo Martinelli

Docente. Departamento de Clínica Médica. Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto - USPCORRESPONDÊNCIA: Divisão de Gastroenterologia. Departamento de Clínica Médica. Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto Hospital dasClínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto - USP. Campus da USP - CEP 14049-900 Ribeirão Preto - SP, Brasil.Fone: 16- 602 2456/ Fax: 16-633 6695 e-mail: [email protected]

MARTINELLI ALC. Hipertensão portal. Medicina, Ribeirão Preto, 37: 253-261, jul./dez. 2004.

RESUMO: A hipertensão portal é uma síndrome clínica freqüente em nosso meio e acompa-nha-se de manifestações clínicas graves. Aqui são abordados alguns aspectos da hipertensãoportal, com particular ênfase na fisiopatologia da síndrome e em suas manifestações clínicas.São listadas causas de hipertensão portal e discute-se a importância de informações obtidasdurante a história clínica e no exame físico, que permitem o diagnóstico da síndrome e queauxiliam no esclarecimento da possível etiologia do processo.

UNITERMOS: Hipertensão Portal. Sistema Porta. Veia Porta.

253

Medicina, Ribeirão Preto, SimpósioSEMIOLOGIA37: 253-261, jul./dec. 2004 Capítulo VII

1- ANATOMIA DO SISTEMA VENOSO POR-TAL

O sistema venoso portal (Figura 1) é constituí-do por veias que coletam o sangue da porçãointra-abdominal do trato alimentar, baço, pâncreas evesícula biliar.

A veia porta propriamente dita tem 6 a 8 cm decomprimento e é formada pela junção das veiasesplênica e mesentérica superior. No hilo hepático, aveia porta divide-se em dois ramos, o direito, que su-pre de sangue o lobo direito do fígado, e o esquerdo,que leva sangue para os lobos esquerdo, caudado equadrado. As veias esplênicas originam-se no hiloesplênico, unem-se com as veias gástricas curtas paraformar a veia esplênica principal que recebe sangueda veia gastroepiplóica esquerda e de várias tribu-tárias que drenam o pâncreas. A veia mesentérica in-ferior drena o sangue do cólon esquerdo e do reto e,geralmente, penetra no terço médio da veia esplênica.A veia gástrica esquerda, geralmente, une-se à veiaporta, na sua origem, mas pode drenar para a veia

esplênica. A veia mesentérica superior é formada portributárias que drenam o lado direito do cólon, intestinodelgado e cabeça do pâncreas. O sangue portal é le-vado pelos ramos terminais da veia porta até os sinu-sóides e, desses, para as veias centrolobulares quedrenam para as veias hepáticas e estas para a veiacava inferior. A pressão portal normal é de 5 a 10mmHg, de acordo com o método empregado; consi-dera-se hipertensão portal quando existe um aumentopersistente da pressão portal acima desses níveis.

2- ASPECTOS FISIOPATOLÓGICOS DA HI-PERTENSÃO PORTAL

A pressão (∆P) no sistema portal como em qual-quer outro sistema vascular, é o resultado da interaçãoentre o fluxo sangüíneo (Q) e a resistência vascular(R) que se opõe a esse fluxo; é representada matema-ticamente de acordo com a lei de Ohm como ∆P= Q xR. Assim, a pressão portal pode aumentar, se houveraumento do fluxo sangüíneo portal ou aumento da re-sistência vascular ou de ambos. (Figura 2).

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Martinelli ALC

Os fatores envolvidos no desenvolvimento e namanutenção da hipertensão portal não estão comple-tamente esclarecidos. Na cirrose, é bem estabelecidoque o fator primário, que leva à hipertensão portal, é oaumento da resistência vascular ao fluxo portal e queo aumento do fluxo se torna especialmente importan-te em fases mais avançadas da doença e contribuipara a manutenção da hipertensão portal.

2.1- Aumento da resistência

O aumento da resistência pode ocorrer em qual-quer ponto ao longo do sistema venoso, na veia porta,nos espaços vasculares dentro do fígado e nas veias ecompartimentos vasculares que recebem o fluxo por-tal após sair do fígado. Em fases posteriores as cola-

terais portossistêmicas passam a contribuir para o au-mento da resistência.

Os fatores que influenciam a resistência vas-cular (R) são inter-relacionados pela lei de Poiselle,na equação: R= 8mL/r4, onde m é o coeficiente deviscosidade do sangue, L é o comprimento do vaso e ro raio do vaso. Sendo assim, o principal fator na de-terminação da resistência vascular é o raio do vaso.

A resistência aumentada do fluxo pode ser pré-hepática, pós-hepática e intra-hepáticas (Figura 3). Napré-hepática, o aumento da resistência ocorre na veiaporta ou tributárias antes de alcançar o fígado. Na pós-hepática, o aumento da resistência ocorre em veias oucompartimentos vasculares que recebem o fluxo san-güíneo portal ao sair do fígado. Na intra-hepática, oaumento da resistência, tendo os sinusóides como re-ferência, pode ser sinusoidal, pré-sinusoidal e pós-sinunoidal (Figura 4). As síndromes de resistência intra-hepáticas são mais complexas e, raramente, podemser classificadas de acordo com um único sítio de re-sistência. É comum que o aumento da resistência ocorraem várias áreas, e, se a doença progride, novos sítiospodem ser envolvidos. O exemplo típico é a hipertensãoportal que ocorre na hepatopatia crônica pelo álcool,onde o aumento da resistência é intra-hepático, princi-palmente sinusoidal (aumento do volume dos hepató-citos, deposição de colágeno nos espaços de Disse) epós-sinusoidal (esclerose das veias centrolobulares) e,além disso, a presença dos nódulos de regeneraçãocomprometem a drenagem sangüínea.

Reconhece-se o importante papel da alteraçãoestrutural da microcirculação hepática (fibrose, capi-larização dos sinusóides e nódulos de regeneração)como o mecanismo mais importante para o aumentoda resistência vascular na cirrose, processo esse que,na maioria das vezes, é considerado irreversível. As-sim, por muitos anos, pensou-se que a resistência vas-cular era fixa, conseqüência mecânica da distorçãoda arquitetura da microcirculação hepática. Recente-mente (década de 80), esse conceito mudou, sendodemonstrado que, em associação com o componentemecânico da resistência vascular hepática, existe umcomponente dinâmico, que se deve ao aumento dotônus vascular (Figura 4). Como em qualquer outroendotélio vascular, a modulação da resistência depen-de da interação entre vasodilatadores e vasoconstric-tores. Portanto, o aumento do tônus vascular pode re-sultar da diminuição de vasodilatores e/ou aumento devasoconstrictores. Vale ressaltar que existem elemen-tos contráteis no fígado que são capazes de se contra-

Figura 1: Modificado de Sherlock S & Dooley J (2002).

PRESSÃO PORTAL

ÄÄ P = Q X RP = Q X R

ÄÄ P = P = gradientegradiente de de pressãopressão portal portal

Q = Q = fluxofluxo sangüíneosangüíneo

R= R= resistênciaresistência

HIPERTENSÃO PORTAL

ÄÄ P = Q X RP = Q X R

Figura 2: Pressão Portal. Lei de Ohm. Os dois componentesenvolvidos na hipertensão portal.

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Hipertensão portal

Figura 3: Locais de aumento da resistência vascular tendo o fígado como referência.

Figura 4: Classificação da hipertensão portal. Mecanismos de aumento de resistênciaintra-hepática.

HIPERTENSÃO PORTALHIPERTENSÃO PORTAL

Classificação de acordo com o local de aumento da resistência vascular (R)

R (resistência):

• pré-hepática

• pós-hepática

• intra-hepática

ü pré-sinusoidal

ü sinusoidal

ü pós-sinusoidal

intra-hepática:

• mecânica (irreversível)

ü fibrose

ü capilarização dos sinusoides

ü nódulos de regeneração

• funcional (dinâmica)

ü tônus vascular

ir de maneira reversível em resposta a agonistas cau-sando aumento da resistência vascular intra-hepática.Assim, parte do aumento da resistência pode ser dimi-nuída por agentes farmacológicos indicando que essaporção intra-hepática do aumento da resistência não éfixa e que anormalidades funcionais têm importantepapel na manutenção da hipertensão portal.

Do componente funcional participam células nãoparenquimatosas que produzem substâncias vasoati-vas ou sofrem os efeitos dessas substâncias vasoati-vas liberadas localmente ou produzidas sistemica-

mente. Os elementos contráteispodem estar localizados nos sinu-sóides (células estrelares ativa-das) ou em sítios extra-sinusoidais(vasos contendo células muscula-res lisas contráteis como peque-nas vênulas portais, vênulas pré-sinusoidais e pós-sinusoidais). Re-centemente, foi demonstrado queo endotélio vascular tem importan-te papel na regulação do tônusvascular por sintetizar substânci-as vasoativas (vasodilatadores evasoconstrictores), que agem demaneira parácrina em resposta adiferentes estímulos mecânicos equímicos. Fatores relativos à lo-calização e às características dascélulas estrelares sugerem suaparticipação na regulação dapressão portal e no aumento dotônus vascular na cirrose. Essascélulas localizam-se estrategica-mente nos sinusóides (espaço deDisse), têm extensões que envol-vem os sinusóides e os hepatóci-tos, quando ativadas adquirempropriedades contráteis seme-lhantes a miofibroblastos e têmreceptores para substâncias va-soativas.

As substâncias vasoati-vas produzidas pelo endotéliovascular como vasodilatadores(prostaciclinas e óxido nítrico) evasoconstrictores (endotelinas eprostanóides) agem de formaparácrina na musculatura lisa devasos e nas células estrelares ati-

vadas e modulam o tônus vascular normal, o qual émantido pelo balanço entre substâncias vasodilatadorase vasoconstrictoras. A perturbação desse balançoleva a anormalidades no tônus vascular. Dentre assubstâncias produzidas localmente pelas célulasendotelias, merecem destaque o óxido nítrico – NO -(potente vasodilatador) e as endotelinas (potente va-soconstrictor). Vários estudos têm reforçado o pa-pel das endotelinas na determinação da hipertensãoportal. Por outro lado, o papel do NO, vasodilatadorendógeno com importante papel na regulação fina do

HIPERTENSÃO PORTALHIPERTENSÃO PORTALLocaisLocais de de aumentoaumento dada resistênciaresistência vascularvascular

FígadoFígado

SinusoidesSinusoidesVEIASVEIAS

MesentéricaMesentérica Superior Superior

EsplênicaEsplênica

MesentéricaMesentérica Inferior Inferior VEIAVEIA PORTAPORTA

VeiasVeias HepáticasHepáticas

VeiaVeia CavaCavaInferiorInferior

CoraçãoCoração

PRÉPRÉ--HEPÁTICAHEPÁTICA

PÓSPÓS--HEPÁTICAHEPÁTICA

INTRAINTRA--

HEPÁTICAHEPÁTICA

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Martinelli ALC

tônus vascular local, tem sido extensamente investi-gado. Estudos sugerem que na cirrose ocorre diminui-ção intra-hepática de NO e que esse seria o principalfator responsável pelo aumento da resistência vascu-lar intra-hepática. Os mecanismos envolvidos na di-minuição do NO intra-hepático ainda não estão total-mente elucidados.

Ressalta-se ainda o papel de vasoconstrictorescirculantes como norepinefrina, angiotensina e vaso-pressina, usualmente aumentados na circulação decirróticos.

Embora o fator primário no desencadeamentoda hipertensão portal na cirrose seja o aumento daresistência vascular, o aumento do fluxo contribuipara o aumento da pressão portal e para sua manu-tenção em níveis altos, aspecto que será discutido aseguir.

2.2- Aumento do fluxo sangüíneo

Na década de 80, a partir de trabalhos envol-vendo modelos experimentais de hipertensão portal, oaumento do fluxo sangüíneo, como componente dahipertensão portal, passou a ser valorizado. O aumen-to do fluxo sangüíneo portal é conseqüente à vaso-dilatação em órgãos esplâncnicos, que drenam o san-gue para a veia porta. A vasodilatação também ocor-re na circulação sistêmica. Ressalta-se que a vasodi-latação é o evento iniciador da circulação hiperdinâ-mica que é observada em estágios avançados de hi-pertensão portal (Figura 5). A circulação hiperdinâmi-ca é caracterizada por diminuição da resistência vas-cular periférica, diminuição da pressão arterial média,expansão do volume plasmático, aumento do fluxo san-güíneo esplâncnico e aumento do débito cardíaco (Fi-gura 6).

Os fatores envolvidos na determinação do au-mento do fluxo sangüíneo não estão totalmente escla-recidos. Três mecanismos podem contribuir para avasodilatação periférica, como aumento dos vasodila-tadores circulantes, aumento da produção endotelialde vasodilatadores locais e diminuição da resposta avasocontrictores endógenos, o último, provavelmente,sendo efeito dos dois primeiros.

2.2.1- Aumento dos vasodilatadores circulantes

Alguns estudos favorecem o papel de vasodila-tadores esplâncnicos, cujos níveis podem estar aumen-tados em conseqüência ao aumento da produção ou àdiminuição da metabolização hepática quer pela pre-sença de shunt portossistêmico ou por disfunção he-

pática. Acredita-se que possam ter participação oglucagon, os ácidos biliares e peptídeos vasodilatado-res. Os níveis de glucagon estão aumentados na cir-rose experimental e humana, e várias evidências su-gerem sua participação na hiperemia esplâncnica.

2.2.2- Aumento da produção endotelial de vaso-dilatadores locais

Recentemente, importante papel de fatores va-soativos produzidos pelo endotélio vascular tais comoNO e prostaciclinas, tem sido demonstrado na pato-gênese de anormalidades circulatórias associadas àhipertensão portal. Evidências apóiam o papel do NO,potente vasodilatador derivado do endotélio, na vaso-dilatação esplâncnica e sistêmica. Vários estudos têmdado suporte também à participação das prostaglan-dinas na vasodilatação que acompanha a hipertensãoportal.

Figura 5: Hipertensão portal. Aumento do fluxo sangüíneo (Q).

HIPERTENSÃO PORTALAUMENTO DO FLUXO SANGÜ ÍNEO

ÄÄ P =P = Q X RQ X R

Q (Q (fluxofluxo): ): secundáriosecundário à à vasodilataçãovasodilatação esplâncnicaesplâncnica

vasodilatação esplâncnica vasodilatação esplâncnica vasodilatação sistêmicavasodilatação sistêmica

Circulação Hiperdinâmica Circulação Hiperdinâmica

Figura 6: Componentes da circulação hiperdinâmica.

HIPERTENSÃO PORTAL

CirculaçãoCirculação HiperdinâmicaHiperdinâmica::

resistênciaresistência vascular vascular periféricaperiférica

pressãopressão arterial arterial médiamédia

volume volume plasmáticoplasmático

fluxofluxo sangüíneosangüíneo esplâncnicoesplâncnico

débitodébito cardíacocardíaco

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Hipertensão portal

A vasodilatação esplâncnica é associada à va-sodilatação periférica e à manifestação de circulaçãosistêmica hipercinética. É provável que os mesmosmecanismos estejam envolvidos na circulação hiper-cinética de ambas, circulação esplâncnica e circula-ção sistêmica.

2.2.3- Diminuição da resposta a vasoconstricto-res endógenos

A hiporresponsividade a vasoconstrictores en-dógenos como norepinefrina, angiotensina e vasopres-sina, é provavelmente mediada pelo NO.

Em resumo, podemos concluir que, na hiperten-são portal de cirróticos os dois fatores, aumento deresistência vascular e aumento do fluxo sangüíneocontribuem para a hipertensão portal, em fases maisprecoces com predomínio do primeiro e em fases maistardias com a participação dos dois. O tônus vascularestá comprometido de maneira oposta comparando-se com a circulação sistêmica e esplâncnica e a mi-crovascularização hepática. Enquanto na sistêmica eesplâncnica o tônus está diminuído, na microvascula-tura hepática o tônus está aumentado.

3- OUTRAS CONSEQÜÊNCIAS DA HIPER-TENSÃO PORTAL

a- Retenção de sódio e ascite

Em cirróticos, o aumento da pressão hidrostáti-ca nos vasos esplâncnicos associado à diminuição dapressão oncótica, secundária à hipoalbuminemia, re-sulta em extravasamento do fluido para a cavidadeperitoneal. Uma vez ultrapassada a capacidade de re-absorção do fluido pelos vasos linfáticos forma-se aascite (Figura 7). A vasodilatação esplâncnica e a pe-riférica atuam como ativador de sistemas neuro-humorais provocando retenção de sódio e ascite (Fi-gura 8).

b- Colaterais porto-sistêmicas (Figura 9)

A comunicação entre a circulação portal e asistêmica, na tentativa de descomprimir o sistema portalocorre em vários níveis. Os vasos tornam-se dilata-dos e tortuosos. Os locais onde mais comumente ocor-rem as colaterais porto-sistêmicas são: submucosa doesôfago e estômago, submucosa do reto, parede ab-dominal anterior e veia renal esquerda.

Figura 7: Fatores envolvidos na formação da ascite.

HIPERTENSÃO PORTALHIPERTENSÃO PORTAL

A s c i t eA s c i t e

FATORES ENVOLVIDOS NA FATORES ENVOLVIDOS NA FORMAÇÂOFORMAÇÂO DA ASCITEDA ASCITE

HipoalbuminemiaHipoalbuminemia HipertensãoHipertensão portalportal

Figura 8: Mecanismos de ascite na cirrose hepática.

MECANISMOS DE ASCITE NA MECANISMOS DE ASCITE NA CIRROSE HEPÁTICACIRROSE HEPÁTICA

HIPERTENSÃO PORTALHIPERTENSÃO PORTAL

fatores neuro-humorais

retenção de sódio e águaretenção de sódio e água

fluxofluxo

resistência vascular, intra-hepática

circulação hiperdinâmica hipotensão arterial

ASCITEASCITE

vasodilatação esplâncnica

Figura 9: Locais de formação de colaterais porto-sistêmicasna hipertensão portal.

HIPERTENSÃO PORTALPRINCIPAIS LOCAIS DE COLATERAIS

PORTO-SISTÊMICAS

• Submucosa do esôfago (varizes de esôfago)

• Submucosa do estômago (varizes gástricas)

• Parede abdominal (circulação colateral (periférica)

• Submucosa do reto (varizes retais)

• Veia renal (shunt esplenorrenal e outros

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Martinelli ALC

medusa (caput medusae) sendo que o que mais fre-qüentemente se observa é o componente supra- umbi-lical. As colaterais na parede abdominal anterior ocor-rem quando existe hipertensão no ramo esquerdo daveia porta.

b.4- Veia renal esquerda

O sangue venoso, portal pode ser drenado paraa veia renal esquerda diretamente pela veia esplênicaou pelas veias diafragmática, pancreática, gástrica eadrenal esquerda.

A extensa comunicação da circulação portalcom a circulação sistêmica pode ser responsávelpor manifestações de encefalopatia hepática, umavez que grande proporção do sangue portal é des-viado do fígado e não tem contacto com as célulashepáticas.

c- Gastropatia hipertensiva

A hipertensão portal pode se acompanhar dealterações na microcirculação, em qualquer parte dotrato gastrointestinal. No estômago podem ser obser-vados vasos dilatados edema e espessamento damuscularis mucosae, comunicações arteriovenosasna submucosa, mas sem significativo infiltrado infla-matório. Essas alterações compõem o que se denomi-na gastropatia hipertensiva.

Ectasias vasculares têm sido descritas em ou-tras partes do trato gastrointestinal como intestino del-gado e cólon.

d- Esplenomegalia

A esplenomegalia reflete alterações fibrocon-gestivas do baço.

4- CLASSIFICAÇÃO DA HIPERTENSÃO POR-TAL

O aumento da resistência ao fluxo portal e, por-tanto, causador de hipertensão portal pode ocorrer emvários níveis do sistema venoso portal e de suas viasde drenagem.

Na Tabela I são listadas algumas das causasde hipertensão portal classificadas de acordo com olocal do aumento da resistência vascular.

Vale salientar que, em algumas situações, aobstrução pode ocorrer em mais de um local. Na cir-rose alcoólica, o aumento da resistência intrahepáticapode ser decorrente da distorção do lóbulo hepático e

b.1- Submucosa do esôfago e do estômago

O maior componente das varizes de esôfagoforma-se como conseqüência a anastomoses entre tri-butárias da veia gástrica esquerda, parte do sistemaportal, e a veia ázigos, que drena para a veia cavasuperior. Pode haver anastomose entre os vasos peri-esplênicos (componentes do sistema portal) e as veiasgástricas curtas que drenam para a veia cava superiorconstituindo a principal fonte para as varizes do plexosubmucoso do estômago.

b.2- Submucosa do reto

As varizes retais formam-se como conseqüên-cia de anastomoses entre as veias hemorroidárias su-perior e média (fazem parte do sistema portal) e aveia hemorroidária inferior que drena para a veia cavainferior.

b.3- Parede abdominal anterior (Figura 10)

A repermeabilização da veia umbilical e da para-umbilical permite a comunicação do ramo esquerdoda veia porta com a veia epigástrica que drena para asveias cava superior e inferior. A comunicação da veiaumbilical com a veia epigástrica leva à dilatação devasos na parede abdominal os quais drenam, a partirdo umbigo, cranialmente para a veia cava superior ecaudalmente para veia cava inferior. Raramente es-ses dois componentes são exuberantes a partir do um-bigo e adquirem o aspecto semelhante à cabeça de

CIRCULAÇÃO COLATERAL SUPERFICIAL

tipo porta tipo cava inferior

Figura 10: Circulação colateral superficial no abdômen tipoporta (A) e tipo cava, inferior. Modificado de Sherlock S &Dooley J (2002).

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Hipertensão portal

de estruturas vasculares nele contidas por fibrose, ci-catrizes e nódulos; do edema de hepatócitos; do depó-sito de colágeno nos espaços de Disse (capilarizaçãode sinusóides); da deposição de colágeno ao redor daveia centrolobular; além de mecanismos ativos de au-mento da resistência vascular intrahepática, determi-nados por atividade nervosa e contração miofibrilar,sujeitas à intervenção farmacológica.

5- MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS (Figura 11)

As principais manifestações clínicas da hiper-tensão portal são as que vêm a seguir.a- Esplenomegalia: é uma manifestação comum da

hipertensão portal, entretanto, o tamanho do baçopode ser normal. Não foi observada correlaçãoentre o tamanho do baço e o grau de hipertensãoportal. A esplenomegalia pode ser responsável pormanifestações de desconforto abdominal, dor noquadrante superior esquerdo do abdômen, além deaumentar o risco de rompimento do órgão após trau-ma. Pode se acompanhar de manifestações con-seqüentes ao hiperesplenismo, como leucopenia,trombocitopenia e anemia, e ser responsável porqueixas relacionadas à anemia e sangramentos.

b- Colaterais portossistêmicasb1. Circulação colateral abdominal superficial: a cir-

culação colateral tipo porta é detectada na pa-rede abdominal anterior e é reconhecida quan-do observamos vasos ingurgitados que se irra-diam da cicatriz umbilical e tem fluxo ascen-dente acima da cicatriz umbilical e descenden-

te abaixo da cicatriz umbilical. Mais freqüente-mente se observa o componente ascendente, oqual é mais facilmente detectado no epigástrio.Quando colocamos o estetoscópio sobre os va-sos dilatados é possível ouvir-se um murmúrio(sinal de Curveilhier-Baumgarten), conseqüen-te ao fluxo aumentado e turbilhonamento desangue nesses vasos. Circulação colateral tipoporta na parede abdominal nos indica que exis-te hipertensão no ramo esquerdo da veia porta.

A circulação colateral deve ser diferenciada dacirculação colateral tipo cava inferior, quando osangue é desviado para o território da veia cavasuperior. Nesse caso, são observados vasos comcalibre aumentado, que drenam o sangue emsentido cranial desde a região infra-umbilical e,portanto, com fluxo invertido nessa região (Fi-gura 10).

b2. Varizes de esôfago, estômago e reto: vasoscalibrosos podem ser observados no trato gas-trointestinal, particularmente no esôfago, estô-mago e reto. A manifestação mais comum é osangramento abrupto pela ruptura das varizes.Em não cirróticos, é, freqüentemente, a primei-ra manifestação clínica de hipertensão portal.O sangramento das varizes esofagogástricaspode se manifestar por hematêmese e/ou mele-na e sinais de anemia, enquanto o das varizesretais, como enterorragia. As varizes anorretaisdevem ser diferenciadas das hemorróidas, cujafreqüência é semelhante em portadores e nãoportadores de hipertensão portal.

b3. Varizes ectópicas: podem ser observadas emcicatrizes cirúrgicas no abdômen e em enteros-tomias (íleo ou colostomia) e podem sangrar.Quando muito exuberante, a circulação portos-sistêmica pode ser responsável pelo desvio degrande parte do sangue portal para a circula-ção sistêmica e provocar manifestações de en-cefalopatia hepática, que são aliviadas quandoessa comunicação é interrompida.

c- Gastroenteropatia hipertensiva: a manifestação maisimportante é o sangramento digestivo.

d- Manifestações sistêmicas: manifestações do tipocirculação hipercinética, como taquicardia de re-pouso, íctus impulsivo e redução nos níveis da pres-são arterial, podem ser observadas.

e- Ascite: a ascite pode ser uma das manifestaçõesda hipertensão portal e é freqüentemente associa-da a edema de membros inferiores e da paredeabdominal. Pode provocar desconforto abdominal

latropoãsnetrepihedsasuacsiapicnirP:IalebaTadotnemuaedlacolomocodrocaedsadacifissalc

ralucsavaicnêtsiser

acitápeh-érP)aacinêlpseaievadesobmorT

atropaievadesobmorTatropaievadesotamonrevaC

acitápeh-artnI)besomossotsiuqsE

atinêgnocacitápehesorbiFacitápehesorriCacinôrcetitapeH

acitápeh-sóP)ciraihC-dduBedemordníS

roirefniavacaievansatinêgnocseõçamroflaMavitcirtsnocetidracireP

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Martinelli ALC

ou dor abdominal vaga ou ainda, dificuldade respi-ratória. Se houver contaminação bacteriana do flui-do ascítico (peritonite bacteriana espontânea), o pa-ciente pode experimentar queixas de dor abdomi-nal mais intensa, algumas vezes com dor à des-compressão brusca e febre. A infecção pode pre-cipitar quadros de encefalopatia hepática e de in-suficiência renal.

f- Encefalopatia hepática: a encefalopatia hepáticapode ser manifestação conseqüente à extensa cir-culação colateral e/ou à insuficiência hepática.

g- Outras manifestaçõesg1. Baqueteamento dos dedos/unhas em vidro de

relógio: acredita-se que seja manifestação dehipoxemia arterial conseqüente à extração pre-judicada do oxigênio na periferia, à presençade comunicações arteriovenosas, além de di-minuição da afinidade da hemoglobina pelo oxi-gênio.

g2. Manifestações pulmonares: podem estar pre-sentes manifestações como taquipnéia e disp-néia de esforço, conseqüentes à síndrome he-patopulmonar, caracterizada por vasodilataçãofuncional da circulação pulmonar por respostadefeituosa à hipóxia. Pode haver ainda queixade dispnéia de esforço relacionada à hiperten-são pulmonar.

6- HISTÓRIA CLÍNICA

Alguns dados da história clínica, além das quei-xas relacionadas aos sintomas discutidos anteriormen-te, podem auxiliar na detecção do possível agenteetiológico envolvido na indução da hipertensão portal.

Os antecedentes podem indicar uma das possí-veis etiologias da hipertensão portal, tais como:a- hepatopatias crônicas: nesses casos é importante a

informação de uso excessivo de álcool, de contacto

com portadores de vírus da hepatite antecedentede hepatite e transfusões de sangue e/ou deriva-dos procedência de locais considerados endêmicospara hepatite viral, uso de drogas injetáveis endo-venosas, uso de drogas hepatotóxicas ehomossexualismo. Nessas situações, podem serdetectados estigmas de doença hepática crônica,como aranhas vasculares, eritema palmar, icterí-cia, ginecomastia e atrofia testicular;

b- história de infecção umbilical, perinatal ou sépsisabdominal ou estados de hipercoagulabilidade po-dem indicar uma possível causa de hipertensão por-tal por obstrução da veia porta ou de veias hepáti-cas;

c- procedência de zona endêmica de esquistossomosepode sugerir a causa da hipertensão portal. Nosdois últimos casos (b,c), comumente, observam-semanifestações de hipertensão portal, sem os estig-mas de doença hepática crônica.

MARTINELLI ALC. Portal hypertension. Medicina, Ribeirão Preto, 37: 253-261, july/dec. 2004.

ABSTRACT: Portal hypertension is a common syndrome with serious clinical consequences.Some aspects of pathophysiology, causes and clinical features are discussed. The importance ofmaking the diagnosis of the syndrome and determining the possible etiological factors involvedwere also discussed.

UNITERMS: Portal Hypertension. Portal System. Portal Vein .

HIPERTENSÃO PORTALHIPERTENSÃO PORTAL

EsplenomegaliaEsplenomegalia com com ouou semsem hiperesplenismohiperesplenismo

CirculaçãoCirculação colateralcolateral tipotipo portaporta

VarizesVarizes de de esôfagoesôfago ((sangramentosangramento))

AsciteAscite e e peritoniteperitonite bacterianabacteriana espontâneaespontânea

VarizesVarizes de de retoreto ((sangramentosangramento))

EncefalopatiaEncefalopatia hepáticahepática

PRINCIPAIS MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS PRINCIPAIS MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS

Figura 11 : Principais manifestações clínicas na hipertensãoportal.

Page 9: Hipertensao Portal

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Hipertensão portal

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