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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTECENTRO DE CINCIAS SOCIAIS APLICADAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO

    HERCLIA MARIA FERNANDES

    CECLIA MEIRELES E A LRICA PEDAGGICAEM CRIANA MEU AMOR (1924)

    NATAL-RN2008

  • HERCLIA MARIA FERNANDES

    CECLIA MEIRELES E A LRICA PEDAGGICA EM CRIANA MEU AMOR (1924)

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Educao da Universidade Federaldo Rio Grande do Norte como requisito parcialpara obteno do grau de Mestre em Educao.

    Orientador: Prof. Dr. Antnio Baslio NovaesThomaz de Menezes

    NATAL-RN2008

  • Diviso de Servios Tcnicos

    Catalogao da Publicao na Fonte. UFRN / Biblioteca Central Zila Mamede

    Fernandes, Herclia Maria.Ceclia Meireles e a lrica pedaggica em Criana meu amor (1924) /

    Herclia Maria Fernandes. Natal, RN, 2008.189 f.

    Orientador: Antnio Baslio Novaes Thomaz de Menezes.

    Dissertao (Mestrado) Universidade Federal do Rio Grande do Norte.Centro de Cincias Sociais Aplicadas. Programa de Ps-Graduao emEducao.

    1. Ceclia Meireles Crtica e interpretao Dissertao. 2. Lricapedaggica Dissertao. 3. Potica da maternidade Dissertao. I.Menezes, Antnio Baslio Novaes Thomaz de. II. Universidade Federal doRio Grande do Norte. III. Ttulo.

    RN/UF/BCZM CDU 869.0(81).09(043.3)

  • HERCLIA MARIA FERNANDES

    CECLIA MEIRELES E A LRICA PEDAGGICA EM CRIANA MEU AMOR (1924)

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Educao da Universidade Federaldo Rio Grande do Norte como requisito parcialpara obteno do grau de Mestre em Educao.

    Orientador: Prof. Dr. Antnio Baslio NovaesThomaz de Menezes

    Aprovada em: 17 de outubro de 2008.

    BANCA EXAMINADORA

    _______________________________________________________________

    Prof. Dr. Antnio Baslio Novaes Thomaz de Menezes Universidade Federal do Rio Grande do Norte UFRN

    _______________________________________________________________

    Prof Dr Margarida de Souza NevesPontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro PUC Rio

    _______________________________________________________________

    Prof Dr Marta Maria de ArajoUniversidade Federal do Rio Grande do Norte UFRN

  • DEDICATRIA

    Dedico o trabalho s mulheres, in memorian:

    Ceclia Meireles, me das trs Marias. Maria Soledade de Arajo Fernandes, me do meu pai.

    Herclia de Arajo Fernandes, me da minha me.

    E, quela que exemplo vivo de luta e sabedoria:Maria Ins Fernandes, a minha me.

  • AGRADECIMENTOS

    Ao Esprito Divino que nos oferece bom nimo nas horas de obstculos e indefinies.

    Aos meus pais, Joaquim Godofredo Fernandes e Maria Ins Fernandes, por medespertarem o sentido dos sonhos e o valor da educao.

    Ao meu esposo, Marcus Vincius de Vasconcelos, por fazer-se companheiro nessatrajetria, cooperando afetiva e materialmente para realizao dos meus objetivos.

    Aos meus filhos, Marcus Vincius de Vasconcelos Filho, Pedro Arthur Fernandes deVasconcelos e Joo Pedro Fernandes de Vasconcelos, pelo amor ofertado; quando a infncia ea adolescncia, em suas especificidades, reivindicam atenes devidas.

    Aos meus irmos, Maria Clia Fernandes, Jos Robson Fernandes (in memorian), Mariade Ftima Fernandes Lacerda, Telma Maria Fernandes, Gilberto Fernandes, Maria SoledadeFernandes e Hortncio Fernandes, por estimularem a continuidade de minha formao.

    Em especial irm Tnia Maria Fernandes Oliveira e ao cunhado Jos Nilson deOliveira e os sobrinhos Bruno Fernandes Oliveira, Thaze Fernandes Oliveira e HugoFernandes Oliveira por me receberem, sempre calorosamente, no seio familiar e motivarem as viagens Caic Natal.

    A todos os cunhados e cunhadas, sobrinhos e sobrinhas, parentes e amigos ntimos porproferirem palavras de incentivo e conforto.

    Ao Orientador deste estudo, Prof. Dr. Antnio Baslio Novaes Thomaz de Menezes, porcompartilhar, generosamente, os seus saberes e domnios metodolgicos; e apresentar umesprito potico nos momentos de inquietaes e buscas.

    Prof Dr Margarida de Souza Neves por sua vasta colaborao cientfica,favorecendo diretamente investigao do objeto e concretizao da dissertao.

    Prof Dr Marta Maria de Arajo, a quem guardo enorme apreo e admirao, pordespertar-me o gosto pela investigao, fornecendo bases para o reconhecimento do objetodesta pesquisa.

    Prof Dr Marlcia Menezes de Paiva por compartilhar os seus conhecimentos,contribuindo para o entendimento dos fundamentos da nova educao.

    Prof Dr Maria Arisnete Cmara de Morais por cooperar para o esclarecimento dasrelaes paternalistas existentes na sociedade brasileira e o processo de feminizao domagistrio.

    Ao Prof. Dr. Jos Antnio Spinelli Lindoso por sua significativa contribuio terica compreenso do materialismo histrico-cultural.

    Gersoneide Venceslau, bibliotecria documentalista, e a todas as especialistas daBiblioteca Central Zila Mamede pela ateno concedida e orientaes tcnicas.

  • Aos professores Valter Canuto de Oliveira e Mrcia Karina Arajo Soares pela versoem ingls do resumo da dissertao.

    A todos os professores e funcionrios do Programa de Ps-Graduao em Educao daUFRN.

    Aos colegas das linhas de pesquisa: Fundamentos da Educao e Prticas Culturais, eGnero e Prticas Culturais, pelas reflexes e saberes compartilhados.

    Secretaria Estadual de Educao do Rio Grande do Norte e Secretaria Municipal deEducao de Caic-RN por permitirem o afastamento ao trabalho, oportunizando a dedicao pesquisa.

    E, aos amigos virtuais, especialmente da comunidade Ceclia Meireles Educadora,que, mesmo distantes geograficamente, forneceram expresses de afeto, informaes,imagens e sugestes de leitura.

    Os meus sinceros agradecimentos,

    Herclia Maria Fernandes.

  • Quando nasci um anjo esbelto,desses que tocam trombeta, anunciou:

    vai carregar bandeira.Cargo muito pesado pra mulher,

    esta espcie ainda envergonhada.Aceito os subterfgios que me cabem,

    sem precisar mentir.No sou to feia que no possa casar,

    acho o Rio de Janeiro uma beleza eora sim, ora no, creio em parto sem dor.Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.

    Inauguro linhagens, fundo reinos-- dor no amargura.

    Minha tristeza no tem pedigree,j a minha vontade de alegria,

    sua raiz vai ao meu mil av.Vai ser coxo na vida maldio pra homem.

    Mulher desdobrvel. Eu sou.

    (Adlia Prado)

  • RESUMO

    O trabalho de pesquisa Ceclia Meireles e a Lrica Pedaggica em Criana meu Amor(1924) consiste em uma anlise crtica, numa abordagem histrico-cultural, dasintencionalidades pedaggicas e funcionalidades scio-educativas expressas na produoliterria infantil da poetisa e educadora Ceclia Meireles (1901-1964), no Brasil, durante asprimeiras dcadas do sculo XX. No trabalho examinam-se as concepes de arte literria daautora, fundamentos filosfico-educacionais, valores e ideologias liberais crists pertinentes sua produo para crianas e as relaes de seus textos com os ideais dos intelectuaisbrasileiros para efetivar modificaes no cotidiano a partir da formao da criana e doprocesso de feminizao do magistrio. O estudo realiza uma anlise de contedos, buscandooferecer significao obra Criana meu amor (1924) conforme a investigao de categoriasespecficas: criana, maternidade e escolarizao; por meio da explorao de palavras-chavesinnimas e bipolares identificveis nos documentos de Ceclia: criana/adulto,professora/me, escola/lar, ignorncia/inteligncia. A pesquisa busca compreender como aautora articula, em sua ao pedaggica no-formal na Literatura Infantil, os saberes dacincia, da literatura e da f crist, a fim de expandir seu iderio scio-educacional centradona criana, guiado pela mo materna e voltado construo de um Novo Homem, NovaCivilizao e Nova Ordem Social.

    PALAVRAS-CHAVE: Ceclia Meireles. Lrica Pedaggica. Potica da Maternidade.

  • ABSTRACT

    The research Ceclia Meireles and the Pedagogical Lyric in Children My Love (1924)consists in a critical analysis, a cultural and historical approach to the pedagogicalintentionalities and to the social and educational functionalities expressed in the childishliterary work of the poetess and educator Ceclia Meireles (1901-1964), in Brazil, during thefirst decades of XX century. The authors conceptions of the literary art, the philosophical and educational foundations, the Christian and liberal ideologies and values pertinent to her workfor children and the relations between her texts and the ideals of the Brazilian intellectuals toeffect changes in the every day life based on the child formation and on the teachingfeminization process were examined in the work. This paper shows a content analysis with the intention of offering signification to the work Children My Love (1924) according to theinvestigation of specific categories: child, motherhood and schooling; through the explorationof synonymous and bipolar key-words found in Ceclias documents: child/adult,teacher/mother; school/home, ignorance/intelligence. The research intends to understand howthe author articulates, in her informal pedagogical action in Childrens Literature, science,literary and Christian faith knowledge, in order to expand her social and educational idealconcentrated in children, guided by the maternal hand and aimed at constructing a New Man,New Civilization and a New Social Order.

    KEY-WORDS: Ceclia Meireles. Pedagogical Lyric. The Poetics of Motherhood.

  • SUMRIO

    1 INTRODUO.............................................................................................................. 12

    2 O LIRISMO POTICO-PEDAGGICO EM CECLIA MEIRELES (1901-1964).................................................................................................................................... 282.1 EM BUSCA DE SIGNIFICADOS: CECLIA MEIRELES E O LIRISMOMODERNISTA.................................................................................................................... 32

    2.1.1 A Parceria da Pedagogia com a Literatura Infantil............................................... 362.2 A PAIXO PELO POSSVEL: CECLIA MEIRELES E A EDUCAO................. 392.3 A LRICA PEDAGGICA DE CECLIA MEIRELES NAS PRIMEIRASDCADAS DO SCULO XX............................................................................................. 492.3.1 A Institucionalizao da Literatura Infantil no Brasil e as Duas Fases daLrica Pedaggica de Ceclia Meireles............................................................................. 55

    3 CECLIA MEIRELES E A AO PEDAGGICA NA LITERATURAINFANTIL........................................................................................................................... 623.1 CINCIA E ARTE: PRINCPIOS DA LRICA PEDAGGICA DE CECLIAMEIRELES........................................................................................................................... 663.1.1 Difcil e fcil: A Dualidade da Atividade............................................................. 733.1.2 Os Valores Ideolgicos na Literatura Infantil Brasileira: do Entre-Sculos sVsperas do Modernismo................................................................................................... 803.2 CECLIA MEIRELES E OS LIVROS DE FORMAO............................................. 873.2.1 Do Real para o Ideal: O Processo Criativo nos Livros para Leitura............... 893.2.2 Uma linguagem comum: Humanismo, Universalismo e Tradio................... 953.2.3 Mundos de Prazer Espiritual e Alto exemplo: Moralismo e ManiquesmoDogmtico............................................................................................................................ 993.2.4 Alfabetizar, Sanitarizar e Civilizar: Os Valores e os Contedos de Instruo.... 101

    4 A POTICA DA MATERNIDADE: A LRICA PEDAGGICA DE CECLIAMEIRELES EM CRIANA MEU AMOR (1924)...................................................... 1104.1 CECLIA MEIRELES E A PEDAGOGIA MATERNAL............................................. 1134.1.1 Criana, Maternidade e Escola na Potica da Educao Moderna...................... 117

  • 4.2 CECLIA MEIRELES E A PEDAGOGIA MATERNAL EM CRIANA MEUAMOR (1924)...................................................................................................................... 1254.2.1 Ceclia Meireles e a Escola Normal do Rio de Janeiro........................................... 1284.3 A CRIANA EM CRIANA MEU AMOR: TESOURO DE CARINHO EAMOR................................................................................................................................ 1334.4 A PROFESSORA EM CRIANA MEU AMOR: ME, PROTEO E GUIA...... 1444.5 A ESCOLA EM CRIANA MEU AMOR: A CASA DOS MEUS PAIS................. 153

    5 CONCLUSES................................................................................................................ 1665.1 OU... A PEDAGOGIA NO-CRTICA E A NATURALIZAO DO SOCIAL EMCRIANA MEU AMOR

    166

    REFERNCIAS................................................................................................................. 180

  • Destino

    Pastora de nuvens, fui posta a serviopor uma campina to desamparada

    que no principia nem tambm terminae onde nunca noite e nunca madrugada.

    (Pastora da terra, vs tendes sossego,que olhais para o sol e encontrais direo.

    Sabeis quando tarde, sabeis quando cedo.Eu, no.)

    [...]

    Pastora de nuvens, com a face deserta,sigo atrs de formas com feitios falsos,queimando viglias na plancie eterna

    que gira debaixo dos meus ps descalos.

    (Pastora da terra, tereis um salrio,e andars por bailes vosso corao.

    dormireis um dia como pedras suaves.Eu, no.)

  • 12

    1 INTRODUO

    Ceclia Benevides de Carvalho Meireles, filha do funcionrio do Banco do Brasil S.A.Carlos Alberto Carvalho Meireles e da professora Matilde Benevides Meireles, nasceu nacidade do Rio de Janeiro, em 7 de novembro de 1901, e faleceu na mesma cidade em 09 denovembro de 1964. Antes da filha Ceclia, o casal havia concebido trs filhos Vitor, Carlose Carmem - porm, somente a menina Ceclia sobrevivera desta unio. Muito cedo, Cecliatem contato com a morte e perdas familiares, fatos que se repetiro tambm na vida adulta.Seu pai falece trs meses antes de seu nascimento e, a me, menos de trs anos depois. Essesfatos sero mencionados, mais adiante, por Ceclia Meireles em entrevista a Fagundes deMenezes na Revista Manchete (1953), onde a autora desenha um auto-retrato de suas origens:

    Nasci aqui mesmo no Rio de Janeiro, trs meses depois da morte de meupai, e perdi minha me antes dos trs anos. Essas e outras mortes ocorridasna famlia acarretaram muitos contratempos materiais, mas, ao mesmotempo, me deram, desde pequenina, uma tal intimidade com a Morte quedocemente aprendi essas relaes entre o Efmero e o Eterno (MEIRELES,apud MENEZES, 1953, p. 48).

    rf muito cedo, a menina passa aos cuidados da av materna aoriana Dona JacintaGarcia Benevides e da bab Pedrina que lhe enchem de ateno e mimos prprios infncia.Entretanto, as perdas familiares que se constituem tristes passagens na vida de qualquercriana - refletir mais adiante a poetisa-pedagoga - ao contrrio de causar-lhe danosdecisivos, sejam de ordem psquica, afetiva ou moral; trouxeram-lhe a imaginao e acriatividade necessrias composio potica por meio do silncio e da solido quepermearam a sua vida, da tenra infncia maturidade. Como destaca a prpria escritora:

    Minha infncia de menina sozinha deu-me duas coisas que parecemnegativas, e foram sempre positivas para mim: silncio e solido. Essa foisempre a rea de minha vida. rea mgica, onde os caleidoscpiosinventaram fabulosos mundos geomtricos, onde os relgios revelaram osegredo do seu mecanismo, e as bonecas o jogo do seu olhar. [...] Mais tardefoi nessa rea que os livros se abriram, e deixaram sair suas realidades eseus sonhos, em combinao to harmoniosa que at hoje no compreendocomo se possa estabelecer uma separao entre esses dois tempos de vida,unidos como os fios de um pano (MEIRELES, apud DAMASCENO, 1972,p. 59).

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    A paixo pelos livros e pela leitura se revelara para a Ceclia desde a infncia. Alunaaplicada, ela recebe das mos de Olavo Bilac, ento Inspetor Escolar do Distrito Federal, em1910, a medalha de ouro por distino e louvor ao curso primrio. Em 1917, conclui osestudos na Escola Normal Estcio de S do Rio de Janeiro e comea a ensinar no cursoprimrio, em um antigo sobrado localizado na Avenida Rio Branco (OLIVEIRA, A. M. D.,2007).

    Em 1919, a poetisa estria na literatura com a obra Espectros, e em 1922 casa-se com oartista plstico portugus, radicado no Brasil, Fernando Correia Dias e aproxima-se do grupode escritores espiritualistas catlicos do Rio de Janeiro. Da unio com Correia Dias, vieram as filhas: Maria Elvira, Maria Mathilde e Maria Fernanda. Em 1923, a poetisa publica Nuncamais... e Poemas dos poemas, com ilustraes de Correia Dias que passara a ilustrar suasobras, dentre elas Criana meu amor (1924) e Baladas para El Rei (1925). De 1927 a 1929,Ceclia inicia a primeira fase da revista Festa junto aos escritores Tasso da Silveira, AndradeMuricy e outros. Em 1929, concorre com a tese O esprito Vitorioso ctedra de Literatura da Escola Normal. Embora a defesa tenha sido brilhante, a tese recebera o segundo lugar naclassificao geral do concurso atravs do parecer de uma banca composta por um gruporeconhecidamente conservador, dentre os quais participara Alceu Amoroso Lima. A partir de1930, a poetisa-professora comea a escrever ao Jornal Dirio de Notcias, assumindo apgina de Educao, numa coluna intitulada Comentrio. Desde ento, tem incio a fasemilitante de Ceclia Meireles em prol do Movimento da Escola Nova que, no Brasil,demarcara as bases para a inovao educacional.

    Em 1931, Ceclia realiza um Inqurito sobre Leituras Infantis para o Departamento deEducao do antigo Distrito Federal, a pesquisa tinha como objetivo saber o que e como ascrianas liam (ZILBERMAN, 2001; PIMENTA, 2001). No ano de 1934, Ceclia Meirelesinaugura, conjuntamente com Correia Dias, a primeira Biblioteca Infantil pblica do Brasil,no Pavilho Mourisco, durante a administrao de Ansio Teixeira no Departamento deEducao. A biblioteca ficara sob a direo de Ceclia, envolvendo vrias atividades artstico-culturais sendo denominada de Centro Cultural Infantil (PIMENTA, 2001). Nesse mesmoano, Ceclia e Correia Dias viajaram a Portugal a convite do Secretariado de Propaganda dogoverno portugus, e Ceclia fora recebida nas altas rodas portuguesas como poeta, educadorae autoridade em assuntos ligados ao folclore; proferindo conferncias nas universidades deLisboa e Coimbra (NEVES, 2001c, p. 25).

    Em 1935, Correia Dias, acometido por uma crise de neurastenia, comete suicdio(OLIVEIRA, A. M. D., 2007); fato que leva Ceclia Meireles a uma profunda tristeza e a

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    enfrentar srias dificuldades financeiras, porm sem se deixar esvanecer1. Em 1935 nomeada professora na recente Universidade Federal do Distrito Federal e passa a desdobrar-se em vrias atividades. Leciona Luso-brasileira, Tcnica e Crtica Literria na Universidadedo Distrito Federal; escreve crnicas e artigos sobre educao, literatura e folclore paradiversos jornais, dentre eles A Manh, Correio Paulistano e A Nao; e passa a trabalhar noDepartamento de Imprensa e Propaganda (DIP), como responsvel pela revista Travel inBrazil (COELHO, 2002).

    Em 1938, procurando minimizar as dificuldades financeiras, a poetisa inscreve o livroViagem no Concurso promovido pela Academia Brasileira de Letras. Novamente, AlceuAmoroso Lima se coloca contra a obra da poetisa, mas pela interveno do poeta CassianoRicardo, Ceclia recebe o primeiro lugar no concurso. Em seguida, conhece o engenheiroagrnomo Heitor Vincius da Silveira Grilo, com quem se casa no ano de 1940, viajandoambos para os Estados Unidos e Mxico. Nesse perodo, com o patrocnio do DIP, Cecliaministra um curso de Literatura e Cultura Brasileira na Universidade do Texas. A partir da,sua vida entra em equilbrio e sua carreira de escritora comea a ganhar altitude2, comoassinala Coelho (2002). Desde ento, a poetisa segue uma carreira promissora na literaturaconciliada s mltiplas atribuies de militante ativa na causa da educao; onde lutara pelaconcretizao dos ideais renovadores at sua morte, em 1964, vtima de um cncer, aos 63anos de idade.

    Poder-se-ia dizer que o conjunto da vida e obra de Ceclia Meireles fora marcado pelapresena de um rosto multifacetado que embelezara o espelho de sua histria com igualesmero e generosidade: a poetisa e a pedagoga. Zilberman (2001), acenando para apluralidade existente em Ceclia Meireles, destaca que:

    Quando se diplomou professora, em 1917, pela Escola Normal, no Rio deJaneiro, Ceclia Meireles j tinha escrito seus primeiros poemas, reunidosem Espectros, que publicou em 1919. Dedicada desde ento ao magistrio e literatura, a jovem desenvolveu, durante as dcadas de 30 e 40, umaespcie de vida dupla, porque se dirigiu entre os afazeres exigidos, de umlado, pelo ensino, de outro, pela criao potica, sem abrir mo de nenhumadas atividades (ZILBERMAN, 2001, p. 175, grifo nosso).

    1 Segundo Bosi (1972), muitos crticos e historiadores atribuem s mortes e s perdas familiares os motivosintrospectivos, melanclicos e profundos de Ceclia Meireles, dos quais as obras Viagem (1939) e Olhinhos degato (Revista Ocidente, 1939/1940) traduzem abundantemente.2 Ceclia Meireles, ao longo da vida, demonstrou uma natureza intuitiva em relao aos fatos da existncia. Noperodo de elaborao de Viagem, Ceclia recebe uma carta de uma vidente aconselhando-a a retirar uma dasletras de seu sobrenome. A autora aceita o conselho e passa a assinar Meireles e no mais Meirelles, com oobjetivo de tornar a vida mais leve (Cf. COELHO, 2002; OLIVEIRA, A. M. D., 2007).

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    Na poesia e na prosa, a autora impregnou as palavras com uma sensibilidade que lhe eraprpria. Dir-se-iam que as sensaes e sentimentos experimentados pela poetisa, no instantecriador, saltam aos textos, indo tocar diretamente o corao e a mente do leitor, revelando umlirismo ora reflexivo e transcendente, ora efmero e melanclico; por meio do jogo bemelaborado de imagens, metforas, sons e sinestesias. Na educao, a pedagoga, alm da prxisdocente em escolas e universidades, assume a militncia poltica, fazendo uso da palavrasincera e, ao mesmo tempo, irnica na imprensa carioca a fim de suscitar mudanas nosistema educativo, na mentalidade dos educadores, sociedade e instituies brasileiras.

    Na literatura infantil, alm de escrever livros para crianas, Ceclia pesquisara, debaterae instrura os pais e educadores brasileiros sobre as problemticas do gnero e asespecificidades que envolvem a criao destinada ao leitor infanto-juvenil. Lanando-se nognero infantil na mesma poca em que se dedica ao magistrio primrio, cuja obra de estriaCriana meu amor (1924) fora adotada oficialmente como livro de leitura nas escolasmunicipais do Rio de Janeiro e indicada como fonte de leitura nos estados de Minas Gerais ePernambuco. Em 1937, publica em parceria com o mdico Josu de Castro A festa das letras.Em 1938, Rute e Alberto resolveram ser turistas. Em 1946, O menino atrasado, e, em 1949,Rui: pequena histria de uma grande vida. H quem inclua, segundo Neves (2001c), comopertinente ao gnero infantil, a obra em texto profundamente lrico e confessional Olhinhos de gato, publicada primeiramente na revista Ocidente, em Portugal, nos anos de 1939 e 1940.

    Curiosamente, somente a partir da publicao de Ou isto ou aquilo (1964) que a autora das obras Viagem (1939), Vaga msica (1942), Mar absoluto (1945) e Retrato Natural (1949)alcana o reconhecimento literrio dentro do gnero infantil. Com Ou isto ou aquilo, Cecliaconsagra-se tambm junto ao leitor-criana. A obra vem, desde o ano de 1964, sendodifundida no universo educacional, fazendo parte da seleo de textos consultada pelascrianas nas horas dedicadas acepo literria. Para Neves (2001c), muitos leitores infantisbrasileiros reconhecem o nome de Ceclia e costumam associ-lo descoberta da poesia,tendo em vista que para muitas dessas crianas, a magia potica se revelou nas antologiaslidas em sala de aula e nos poemas da obra Ou isto ou aquilo.

    Porm, nos ltimos anos tem se intensificado, ainda mais, a divulgao de obras daautora no universo escolar, seja atravs da republicao de seus livros, da presena de seuspoemas em livros didticos ou em antologias poticas distribudas pelo Ministrio da

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    Educao e Cultura3 (MEC); provocando assim uma maior difuso de sua obra criana-leitora. Entretanto, percebe-se, considerando o tratamento que os livros didticos confere aostextos e, conseqentemente, o uso que os educadores fazem dos poemas na sala de aula, que a natureza da viso educacional de Ceclia Meireles, implcita e explcita, nas escritas infantis;no tem sido devidamente compreendida pelos interlocutores em suas prticas cotidianas.Poucos sabem, inclusive, segundo destaca Lamego (1996), que a poetisa de Ou isto ou aquilofora uma pedagoga ativa no marco democrtico que, com as contradies de sua poca,simboliza o prenncio de mudanas concretas no processo de modernidade da educaobrasileira.

    Na literatura geral, Ceclia Meireles destacou-se como uma das maiores vozes lrica dacontemporaneidade. A grandeza da sua voz potica inquestionvel pelos crticos ehistoriadores. Suas escritas so capazes de elevar a alma do leitor de modo a lev-lo acompartilhar da aventura potica. E as suas temticas preferidas - sonhos, devaneios, infncia, morte, silncio, solido - levam a reflexo do estar no mundo, ao questionamento daexistncia e natureza humana, das coisas e da vida em sociedade. A poetisa possua, portanto,o dom da linguagem. Sua poesia no expressa verdades absolutas e estticas, j que osentimento de transitoriedade, como aponta a prpria autora, sempre fora uma marcadefinidora de sua personalidade (ARAJO, 2001; FARRA, 2006).

    Entretanto, alm de comportar a alteridade do imaginrio potico de Ceclia Meireles, asua obra literria infantil estabelece ntimas relaes com a viso educacional da pedagoga;expressando os fundamentos filosfico-educacionais da pedagogia moderna e os ideaispoltico-ideolgicos de uma poca, que ilustram as profundas discusses em torno da crianae da renovao educacional no Brasil. A poetisa era, portanto, uma pedagoga, e a educaoera uma causa abraada com muita paixo, assim como ela se dedicava poesia.

    O interesse por essa pesquisa surgiu a partir dessas reflexes, acima citadas, associadasa uma descoberta de bibliografia sugerida no programa da disciplina Histria da EducaoBrasileira, do Programa de Ps-Graduao da Universidade Federal do Rio Grande do Norte(PPGED/UFRN), no segundo semestre de 2004. Na poca, encontrava-se, a autora destetrabalho dissertativo, matriculada como aluna especial na disciplina e fora sugerido pelaprofessora do curso que os alunos especiais realizassem um projeto de pesquisa com base nosestudos oferecidos na disciplina para concluso dos trabalhos. Com a devida referncia, o

    3 A exemplo dessa realidade, a coletnea de textos intitulada Literatura em minha casa, e as reedies de obrasda autora, dentre elas: A festa das Letras, em 1996; e, Ou isto ou aquilo, em 2002. Em 2005, Ou isto ou aquilofora novamente publicada junto a obra O estudante emprico.

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    interesse pela pesquisa fora se ampliando e, conforme se expandiram os conhecimentosbiogrficos sobre Ceclia Meireles e o seu envolvimento ativo na educao brasileira,realizou-se a construo do projeto de pesquisa para concorrer, no processo seletivo de 2005,a uma vaga no Mestrado em Educao.

    Coincidentemente, no incio da Ps-Graduao em Cultura e Histria da Educao, aautora deste estudo j se encontrava freqentando o Curso de Especializao em EducaoInfantil promovido pelo Centro Regional de Ensino do Serid (CERES/UFRN/Campus deCaic-RN), fato que levou integrao entre as pesquisas, j que a Especializao exigia aapresentao de monografia para obteno do ttulo de especialista. No estudo da monografia,pde-se verificar que a produo literria infantil de Ceclia Meireles estabelece acentuadasaproximaes com as concepes pedaggicas modernas implantadas, no Brasil, desde asegunda metade do sculo XIX e com os valores e ideologias de uma elite liberal e intelectualassociadas ao contexto histrico brasileiro pertinente a poca da escritora. Todavia, pde-severificar que tais influncias em sua produo apresentam divergncias e distingue fasesdistintas de criao; porm, com a presena de um elemento conciliador: a fuso doimaginrio criador da poetisa com a racionalidade e sistematicidade da pedagoga.

    Com o trabalho de pesquisa foi possvel verificar que a produo literria infantil deCeclia Meireles apresenta a combinao entre elementos de seu universo potico: lirismo,afetividade, devaneios, imagstica, introspeces, evases; e os ideais, valores econhecimentos da educadora: fundamentos, intenes e funcionalidades sociais. Com base em tais constataes, conjuntamente com as orientaes do professor orientador deste trabalho,foi-se lapidando o objeto e as hipteses da pesquisa. Por falta de uma delimitao precisa decampo s obras infantis de Ceclia Meireles - j que h em suas escritas tanto elementos doseu imaginrio potico como intencionalidades e funcionalidades scio-pedaggicas - definiu-se uma categoria instrumental conciliadora a que se denominou: Lrica Pedaggica.

    No entanto, mediante o aprofundamento dos estudos, foram-se constatando que os livros infantis de Ceclia Meireles integram duas fases distintas, devido os graus deintencionalidades pedaggicas e funcionalidades sociais apresentadas em suas escritas.Partindo dessa realidade, nomearam-se os dois perodos de produo: potica damaternidade fase inicial que integra a obra Criana meu amor (1924) e se expande at adcada de 1940 e potica da ludicidade fase posterior onde se destaca Ou isto ou aquilo(1964). Essas hipteses iniciais remeteram convico de que para realizar um estudo maisaprofundado dos fundamentos e valores pedaggico-educacionais pertinentes a sua obraliterria infantil, fazia-se necessrio deter a investigao a uma s fase, onde se optou pela

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    primeira; dada a riqueza das aes pedaggicas de Ceclia Meireles no perodo histrico que,de alguma forma, suscitam relaes com o momento posterior.

    Partindo dessas primeiras experincias e dedues, chegou-se a hiptese central destetrabalho: a de que a Lrica Pedaggica de Ceclia Meireles em Criana meu amor, portantoda primeira fase, comporta os fundamentos cientficos, os valores e as ideologias de uma eliteliberal cultural, ento dirigente, para efetuar mudanas no quadro social; constituindo-sepropriamente uma ao pedaggica no-formal dirigida s crianas e aos educadoresbrasileiros com finalidade pragmtica, muito embora alguns elementos de seu lirismo poticofaam-se presentes.

    Compreendendo a obra Criana meu amor e as demais aes de Ceclia Meireles, noperodo histrico, como prticas pedaggicas intencionalmente dirigidas para fins sociais,deu-se o incio de um processo dialtico de admirao e rejeio do fenmeno deinvestigao. A admirao por estar diante de uma artista complexa, rica em nuances eimprevisibilidades poticas, reflexo da poesia visionria de Ceclia Meireles sob o olhar doleitor. Rejeio por identificar na obra infantil daquela que fez da palavra liberdade o seuestandarte e grito transfigurado de luta, intencionalidades e funcionalidades sociaisassociadas a valores e ideologias dominantes, hoje, consideradas irracionais e reacionrias.Assim, para realizao desta anlise fez-se necessrio, primeiramente, um processo dedesmistificao do objeto de estudo, j que a admirao pela com licena potica da autora,parafraseando Adlia Prado, fora um dos motivos iniciais que originou a construo doobjeto de pesquisa. Entretanto, esse processo de desmistificao fora lento e bastantedoloroso, j que desconstruir uma imagem requer um exerccio de abandono de idiaspreviamente concebidas em direo ao difuso e ao inesperado; exigindo, no dizer de Arce(2002, p. 13, grifo nosso):

    [...] desmantelar as mitologias, no se tornar servo dos idelogos do poder,fornecendo munio para acusao, mas sim retirar vendas que so usadascomo mitos de justificao das relaes capitalistas, as quais se procuranaturalizar, eternizar.

    Esse exerccio fora se realizando, gradativamente, mediante a investigao do objetopossibilitada a partir da delimitao e explorao das frentes de leitura; onde se incluem osseguintes agrupamentos: biogrficos e documentais: pertinentes vida e obra de CecliaMeireles; tericos: no que se referem s concepes de histria, educao, pedagogia eliteratura; aos fundamentos da educao moderna e ao contexto poltico-econmico, scio-

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    cultural e educacional brasileiro nas primeiras dcadas do sculo XX; Literatura Infantilbrasileira e aos valores ideolgicos nela existentes, onde se desencadeiam dois novos gruposde leitura: o discurso dos mdicos higienistas e os ideais dos intelectuais/educadoresbrasileiros para construo de um Brasil moderno; e, metodolgicos: no que tange abordagem investigativa e delimitao das categorias analticas e tratamento do material dapesquisa.

    Em relao biografia e bibliografia da poetisa-educadora, a dissertao trabalha comos estudos de Arajo (2001); Bosi (1972); Coelho (2002); Lamego (1996); Neves, Lbo eMignot (2001a) e demais crticos e historiadores da vida e obra da autora; alm das prpriasfontes documentais de Ceclia Meireles. Para compreenso da face de Ceclia Meirelespoetisa, o estudo comporta algumas definies do filsofo do imaginrio potico GastonBachelard (1978, 1988), particularmente sobre o fenmeno criador na poesia; posto que umadas qualidades da voz lrica ceciliana a imagstica: onirismo, devaneios, fugacidade,desintegrao e, simultaneamente, busca pela plenitude do ser.

    No tocante s concepes de histria, educao e pedagogia verificam-se os estudos dosautores que trabalham numa abordagem histrico-cultural do fenmeno educativo, dentreeles: Libneo (2001, 2002); Saviani (1991); Suchodolski (1976, 1992); Duarte (2000) e Arce(2002), j que trabalha-se aqui com os conceitos de educao enquanto prtica socialintencionalmente dirigida para fins desejveis e pedagogia enquanto cincia da e para aeducao (LIBNEO, 2001, 2002); bem como as noes em torno das teorias no-crticasda ao educativa (SAVIANI, 1991) e pedagogia da existncia (SUCHODOLSKI, 1992).

    A concepo de histria adotada pela pesquisa tem origem nos estudos de Marx (1997) e Marx & Engels (1993), por se compreender que sendo a ao pedaggica no-formalcombinada a intencionalidades pedaggicas e funcionalidades sociais; relaciona-sediretamente a interesses e ideologias engendrados na prtica social global (LIBNEO, 2002).Sendo assim, a postura crtica adotada para interpretao dos documentos da poetisa-pedagoga permite um possvel caminho para a compreenso das relaes que seus textostecem junto aos fundamentos cientficos, valores e ideologias da elite liberal crist brasileira,no perodo de 1920 a 1940, para efetuar mudanas no corpo social.

    Desse modo, parte-se aqui da concepo de homem como um sujeito ativo dehistoricidade, cujas aes permitem construir condies materiais que, respectivamente,tambm modificam a sua conscincia; conforme esclarecem Marx & Engels (1993):

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    [...] os homens, ao desenvolverem sua produo material e seu intercmbiomaterial, transformam tambm, com esta realidade, seu pensar e os produtosdo seu pensar. No a conscincia que determina a vida, mas a vida quedetermina a conscincia. Na primeira maneira de considerar as coisas, parte-se da conscincia como do prprio indivduo vivo; na segunda, que acorrespondncia vida real, parte-se dos prprios indivduos reais e vivos, ese considera a conscincia unicamente como sua conscincia (MARX &ENGELS, 1993, p. 37-38).

    Nessa perspectiva, entende-se que a literatura infantil deve ser investigada numaabordagem crtica da realidade, j que sendo uma produo de inveno e inteno doadulto, como a prpria Ceclia Meireles esclarecera (1984, p. 29), comporta os valores, osensinamentos, as condies e os ideais que se desejam formar junto a criana. Desse modo, aproduo literria infantil de Ceclia Meireles, entendida aqui como ao pedaggica no-formal, acabara sendo representativa de interesses que a autora compartilhara e consideraraideais para fomentar a construo de um novo homem e nova organizao social. Nessesentido, compartilha-se com os estudos de Arroyo (1968); Coelho (1991); Caldin (2002);Lajolo e Zilberman (1988, 1999); dentre outros estudiosos que estabelecem as relaes entreliteratura-pedagogia e os valores ideolgicos na produo destinada ao leitor-criana.

    Devido a literatura infantil estabelecer ntimas relaes com idias e interesseshegemnicos, fez-se necessrio estabelecer a definio de ideologia para que se pudesserefletir a condio dos intelectuais brasileiros. Em relao prtica educacional de CecliaMeireles, compreende-se que a sua ao pedaggica envolve uma base poltico-ideolgica emtorno da ao propriamente de educar e filosfico-idealista em relao s finalidades daeducao; assim os estudos de Chau (1983, 2005) so de significativa importncia para oentendimento do objeto, como tambm contribuem para situar os intelectuais brasileiros noperodo investigado.

    Aps a realizao de muitas leituras, foi-se possvel verificar que o perfil do intelectualbrasileiro, no entre-sculos, o do operrio-artista (HERSCHMANN, 1996). Isto , dosujeito ativo que se vale dos saberes da cincia e da f, domnios tcnicos e estticos paraintervir no social. Assim, no final do sculo XIX e incio do sculo XX, o grupo deintelectuais, no Brasil, compe-se basicamente por mdicos e educadores que, se aliando literatura numa abordagem positivista da realidade social e naturalista-esttica na criao,efetuaram uma literatura como espelho da nao (VELLOSO, 1988), a fim de legitimarsuas idias e intervenes. A literatura infantil, por sua vez, como prtica educativa no-formal, sofrera os ventos desses discursos, cujos valores e saberes provenientes da medicinaexerceram grandes influncias. Partindo dessas reflexes, examinam-se, no estudo, as

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    contribuies de Boarini (2003); Carvalho (2002); Gondra (2002, 2004); Herschmann (1996);Kuhlmann Jr. (2002); Velloso (1988); et al.

    Sendo a produo literria infantil de Ceclia Meireles associada a fundamentos econcepes da cincia pedaggica moderna, faz-se pertinente a investigao das palavras-chave centrais apresentadas em suas escritas; a fim de buscar uma aproximao com asorigens dos seus argumentos, onde se infere que a potica ceciliana mantm ntimas relaescom os fundamentos cientficos implantados no Brasil, desde o entre-sculos, e estabelecemparalelos com os preceitos do discurso hegemnico: o da cincia da higiene. Ou seja, apartir da explorao das palavras-chave pde-se constatar que tais expresses tambm serelacionavam aos discursos dos intelectuais brasileiros no incio do sculo XX; dentre essasexpresses carregadas de sentidos culturais, destacam-se os agrupamentos:mulher/maternidade/professora/misso, criana/tesouro/futuro; escola/lar/abrigo/jardim,inteligncia/ignorncia/progresso/civilizao; etc. Nessa perspectiva, o estudo permite aarticulao dos textos de Ceclia Meireles, sobretudo de Criana meu amor (1924), aodiscurso mdico-higienista e aos fundamentos cientficos da gnese do escolanovismo, oumelhor, as ideais filosfico-educacionais dos clssicos da educao moderna: Pestalozzi eFrebel4.

    Segundo Alessandra Arce (2002), apesar do pensamento de Rousseau ter exercidograndes influncias racionalidade educacional moderna, as contribuies do filsofoiluminista [...] ao escolanovismo e educao infantil e psicologia infantil limitou-se aoterreno especulativo (ARCE, 2002, p. 7). Nesse sentido, apesar das influnciasrousseaunianas no processo de expanso da escola moderna, foram os pedagogos Pestalozzi eFrebel que

    [...] efetivamente procuraram desenvolver experincias educativas centradasna criana, o que autoriza adot-los como marco de referncia para onascimento tanto do escolanovismo como da educao infantil, no final dosculo XVIII e primeira metade do sculo XIX5 (ARCE, 2002, p. 7-8).

    Quanto aos fundamentos filosfico-educacionais expressos por Ceclia Meireles emCriana meu amor, observa-se que a potica ceciliana apresenta-se imbuda de significantes

    4 No trabalho adota-se a forma ortogrfica utilizada por Ceclia Meireles, em suas crnicas de educao, para sereferir ao educador alemo Frebel. Na crnica publicada no jornal Dirio de Notcias, em 11 de novembro de1930, Ceclia reflete: Dizem que o dr. Decroly estuda os anormaes... A Montessori aquela dos jardins deinfncia, mais o Frebel... (MEIRELES, apud LBO, 2001, p. 41, grifo nosso).5 A autora, no entanto, no afirma que Pestalozzi e Frebel foram os responsveis pelo MovimentoEscolanovista, mas situa-os na gnese das prticas educativas escolanovistas; j que o Escolanovismo, enquantomovimento educacional, surgira somente nos fins do sculo XIX e incio do sculo XX (ARCE, 2002).

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    lingsticos oriundos do escolanovismo romntico, portanto do Movimento da PrimeiraInfncia instaurado na Europa, nos fins do sculo XIX, e introduzido no continenteamericano. Por essa razo, crer-se que os fundamentos pedaggico-educacionais de Pestalozzi e Frebel se adequaram aos interesses da elite liberal dirigente de transformao da realidadelocal a partir da formao da criana e da feminizao do magistrio, para assim compor umnovo homem e uma nova sociedade fundada nos padres de civilidade, desenvolvimento eprogresso. Tais adequaes, no entanto, levaram construo de vrios mitos - a crianacomo semente ou flor; a professora como me e jardineira e a escola como lar ouabrigo - e, inevitavelmente, naturalizao do social. E esses mitos encontram-sepresentes na obra de estria de Ceclia Meireles no gnero infantil, o que levou a pesquisa anomear a primeira fase de produo infantil de Ceclia de potica da maternidade; j que ostextos de Ceclia Meireles exprimem os ideais do escolanovismo romntico em torno doamor originrio existente na criana, da vocao natural da mulher para o magistrio,portanto dos mitos em torno da maternidade, e da construo de valores cristos.

    Assim, utiliza-se de um vasto campo terico Aris (1978); Arce (2002); Almeida(1998); Cambi (1999); Boto (2002); Loureno Filho (2001a, 2001b); Kulesza (1998); Kramer(1995a, 1995b); Saffioti (1979); etc. - a fim de compreender os fundamentos da educaomoderna e o contexto poltico-social-econmico e cultural brasileiro no entre-sculos quemotivou a entrada desses produtos culturais; que, no processo de contra-revoluo daRevoluo Francesa, serviram para acalmar os nimos populares, intervir no cotidiano e navida privada, naturalizar o social e construir os ideais liberais modernos de educando, famliae escola.

    A pesquisa movida por problematizaes, hipteses e aportes tericos reconhecveispara se concretizar efetivamente, cujo produto final a dissertao, emerge a adoo de umreferencial metodolgico, onde se optou pela anlise de contedos, buscando realizar umexerccio de hermenutica, isto , oferecer significao Lrica Pedaggica de CecliaMeireles em Criana meu amor (1924); de modo a promover a compreenso dasintencionalidades pedaggicas e funcionalidades sociais expressas pela autora, bem como osfundamentos e as articulaes globais com o contexto in foco.

    A metodologia de investigao constitui-se, dessa maneira, a partir de uma abordagemcrtico-analtica dos documentos de Ceclia, a partir da delimitao de duas categoriascentrais: intencionalidades pedaggicas e funcionalidades sociais. Nesse sentido, a anlisede contedo, esclarecida por Laurence Bardin (1977), se apresenta como instrumentalizaorelevante, ao pesquisador, quando em busca do desvelamento de produtos comunicativos: A

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    anlise de contedo aparece como um conjunto de tcnicas de anlise das comunicaes, queutiliza procedimentos sistemticos e objectivos de descrio do contedo das mensagens(BARDIN, 1977, p. 38, grifo do autor). Nesse contexto, o pesquisador busca estabelecerpadres objetivos interpretao dos documentos, tirando proveito do tratamento da anlise:O analista tira partido do tratamento das mensagens que manipula, para inferir (deduzir demaneira lgica) conhecimentos sobre o emissor da mensagem ou sobre seu meio (BARDIN,1977, p. 39, grifo do autor).

    As aes do pesquisador ao trabalhar com a anlise de contedo, diz Bardin (1977, p.39), seguem trs etapas distintas que se relacionam entre si, quais sejam: a) a descrio, isto , [...] a enumerao das caractersticas do texto, resumida aps tratamento; b) a inferncia -etapa intermediria entre a descrio e a interpretao -, que constitui [...] o procedimentointermedirio, que vem a permitir a passagem, explcita e controlada, de uma a outra; c) e,por fim, a interpretao que consiste no processo final do tratamento das mensagens, propriamente a significao concebida s caractersticas apresentadas na descrio e tratadasdurante a inferncia.

    Em relao Ceclia Meireles e a investigao de seus mltiplos documentos, buscam-se investigar os textos relacionando-os aos fundamentos da cincia pedaggica moderna sobretudo s escritas de Pestalozzi e Frebel - e aos discursos dos intelectuais brasileirosproduzidos no incio do sculo XX. Todavia, como a pesquisa se realiza a partir de textosficcionais, faz-se relevante a adoo de alguns procedimentos da anlise literria. O estudocomporta, dessa forma, algumas diretrizes sugeridas por Massaud Moiss (1984, 2001), a fimde oferecer objetividade anlise e significao aos contedos; visto que o processo deinterpretao envolve uma dinmica de desmembramento da tessitura ficcional de modo acompreender os ingredientes que estruturam o texto (MOISS, 1984, p. 13).

    A anlise literria tem como objetivo realizar a leitura das atmosferas poticas, oupalavras-chave, suscitadas no prprio texto (MOISS, 1984). Para tal tarefa, precisoestabelecer direcionamentos e contextualizaes, posto que, a rigor, [...] toda anlise textual contextual (MOISS, 1984, p. 17, grifo do autor). Caso contrrio, o trabalho do analistatende para livres divagaes sem que haja coerncia e clareza na interpretao. Agindo comsistematicidade, a anlise literria exerce uma funo didtica compreenso da obra pormeio de interpretaes que tencionam clarificar os elementos constitutivos da composio que passam despercebidos e/ou dificultam o entendimento do leitor: A anlise literria constitui,precipuamente, um modo de ler, de ver o texto e de, portanto, ensinar a ler e a ver (MOISS,1984, p. 22). Por isso, se relaciona, continuamente, a crtica e a historiografia literria,

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    muito embora o objetivo do analista no seja atribuir julgamento de valor obra, mas [...]preparar a sntese crtica (MOISS, 1984, p. 14). Para realizao de tal feito, o analistanecessita estabelecer contextualizaes com a Histria: a biografia dos autores e suas obras,os nexos com a conjuntura contextual em que as escritas foram produzidas, os valores, asreferncias e as condies materiais de uma poca; considerando que

    [...] o desmembramento de um texto pe a descoberto problemas e dvidasque ele prprio nem sempre consegue resolver, simplesmente porque o texto[...] remonta a uma ou mais tbuas de referncia, cujo conhecimento se torna imperioso quando se pretende chegar aos sentidos ocultos na malhaexpressiva (MOISS, 1984, p. 17, grifo nosso).

    Nessa perspectiva, como o objetivo da pesquisa compreender as intencionalidadespedaggicas e funcionalidades scio-educativas de Ceclia Meireles expressas em sua obrainfantil de estria, faz-se pertinente a investigao dos aspectos relacionados prprianatureza textual das escritas, dentre eles: o espao/temas/tempo/cenrio; as personagens esuas aes e, especialmente, o papel do narrador dentro da trama ficcional. Portanto,pronomes, verbos, imagens, pontuaes, etc., so tambm importantes elementospara o analista conferir significao aos contedos; segundo anuncia Moiss (1984, p. 27,grifo nosso):

    [...] o analista atentar nas palavras com significado, e dentro de uma ordemque ser sujeita a mudanas em cada caso particular: verbo, substantivo,adjetivo, advrbio, pronome, preposio e conjuno, sem mencionar asinterjeies e os vocativos [...]. Assim, o ncleo do discurso literrio overbo; a ele o analista h de conferir especial ateno.

    Os verbos exprimem as aes, os movimentos das personagens e a posio do narradordentro da trama ficcional, por isso merecem demasiada ateno durante o processo deinterpretao. Igualmente, para o analista conferir significao ao texto, faz necessria a

    observao dos [...] sinais de pontuao, especialmente os designativos da interrogao e daexclamao e as reticncias (MOISS, 1984, p. 27).

    No caso da interpretao de textos narrativos, cabe ao analista a tarefa de examinar aposio que o narrador ocupa na malha ficcional, visto que: Narrar um exerccio criadorque pressupe a idia de ponto de vista (MOISS, 2001, p. 67, grifo nosso). Ou seja, pormeio da voz do narrador que o autor realiza o [...] relato de fatos ou acontecimentos;envolve, portanto, ao, movimento; e evoluo no tempo (MOISS, 2001, p. 57). Oumelhor, a pessoa do narrador que assume, no texto, a condio de expressar [...] o ponto de

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    vista, ou ngulo visual, em que se coloca o escritor (MOISS, 2001, p. 66). Porm, importante considerar que o narrador tambm pode assumir a posio de personagem dentroda fico, podendo apresentar-se como protagonista desenvolvendo a narrativa a partir de seuprprio universo, ou como personagem secundria que narra os acontecimentos envolvendoas experincias de outrem. Em ambas as situaes, o narrador aquele que expressa o pontode vista do autor sob qual seu olhar se projetou durante a criao. Entretanto, apresenta-se notexto envolvido por reinvenes criadas pela imaginao do artista; j que o texto literriocomporta personificaes cunhadas pela livre imaginao e inveno lgica do autor quematerializa um universo anlogo realidade imediata. Dessa maneira, o texto literriocomporta uma natureza de reinveno, envolvendo combinaes entre as funes do real eirreal (BACHELARD, 1978, 1988).

    Tratando da obra Criana meu amor, observa-se que Ceclia Meireles por meio da vozdo narrador relata uma srie de fatos envolvendo o universo da criana, de sua vida escolar eas relaes sociais entre adultos e crianas. Para tanto, o narrador assume a condio ora depersonagem-protagonista, apresentando-se nas escritas como o prprio eu-subjetivo dacriana, produzindo discursos indiretos; ora como personagem secundria que narra as aesde uma personagem central e prope dilogos diretos com o leitor infantil. Ou seja, onarrador, nos textos, apresenta-se tanto na condio de porta-voz da criana como tambm denarrador onisciente e observador, transitando livremente entre as aes das personagens,conferindo-lhes comportamentos e estados psicolgicos, e interferindo diretamente naacepo semntica do leitor. Por isso, para compreenso das relaes que as escritas deCeclia Meireles estabelecem com os ideais e valores que se desejavam formar, no perodohistrico, junto a criana e a realidade nacional, a anlise que se prope aqui realizar deterespecial ateno posio do narrador dentro da trama ficcional a fim de compreender ossentidos ocultos existentes no interior dos textos.

    Esclarecidas as diretrizes conceituais e metodolgicas desta pesquisa, convm que seapresente a estrutura da dissertao:

    No primeiro captulo: O Lirismo Potico-Pedaggico em Ceclia Meireles,apresentam-se ao leitor as faces de Ceclia Meireles poetisa e pedagoga e a sntese entreelas a partir da literatura infantil. Como tambm se realiza um panorama geral da dissertaono tocante ao objeto, aos objetivos, s hipteses, s categorias de anlise, s concepescompartilhadas e aos procedimentos de anlise.

    No segundo captulo: Ceclia Meireles e a Ao Pedaggica na Literatura Infantil, adissertao apresenta as mltiplas aes de Ceclia Meireles em torno da criana e de sua

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    formao instrutiva, moral e esttica, onde se analisam as suas concepes de arte literria,relacionando-as aos valores ideolgicos na literatura infantil brasileira, do entre-sculos svsperas do modernismo; as caractersticas gerais de seus livros infantis e aos ideais dosintelectuais-escritores brasileiros para efetuar mudanas no quadro social.

    No terceiro captulo: A Potica da Maternidade: A Lrica Pedaggica de CecliaMeireles em Criana meu Amor (1924), realiza-se propriamente a anlise do objeto dapesquisa, onde se apresenta a obra e busca-se a gnese da pedagogia da maternidade a partirda exposio do pensamento pedaggico-educacional de Pestalozzi e Frebel na chamadaEra das Revolues; da entrada dos valores romnticos da educao da primeira infncia noBrasil, e, sobretudo, a influncia da pedagogia maternal em Ceclia Meireles efetuada a partirde Criana meu amor, correlacionando os textos s escritas de Pestalozzi e Frebel e aodiscurso educacional brasileiro produzido na dcada de 1920.

    Nas concluses, o estudo retoma algumas consideraes estabelecidas no curso dotrabalho e situa a Lrica Pedaggica de Ceclia Meireles em Criana meu amor como aextenso de uma potica da maternidade, ou melhor, de uma teoria no-crtica da prticaeducativa que remete os sujeitos humanos naturalizao do social.

  • Vo

    Alheias e nossas as palavras voam.Bando de borboletas multicores, as palavras voam.

    Bando azul de andorinhas, bando de gaivotas brancas,as palavras voam.

    Viam as palavras como guias imensas.Como escuros morcegos como negros abutres, as palavras voam.

    Oh! alto e baixo em crculos e retas acima de ns, em redor de ns aspalavras voam.

    E s vezes pousam.

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    2 O LIRISMO POTICO-PEDAGGICO EM CECLIA MEIRELES (1901-1964)

    Ceclia Meireles fora uma artista inspirada, descrever-se-ia, completa. Envolvida porum misto de silncio e solido, a lrica construra uma das mais significativas obras poticasfeminina na histria da literatura no Brasil. A artista fora uma das primeiras poetisasbrasileiras a expressar, verdadeiramente, um eu-lrico. A expandir, atravs do seu devaneiopotico, a subjetividade e os sentimentos humanos profundos. Alm disso, Ceclia possua odom e a sabedoria de manusear a linguagem, de transformar as impresses e as emoes emimagens e smbolos lingsticos. As metforas, sinestesias e aliteraes contidas em seuspoemas so construes to perfeitas que os versos exprimem a sensao exata de cadaestado lrico, capazes de embalar o leitor com acordes onricos e compor uma sinfonia desentidos.

    A opinio da maioria dos crticos literrios unnime em averiguar que a artistaconstitua uma poetisa maior6. Isso denota que ela dominava - diga-se brilhantemente! - tantoo gnero potico como o ficcional e o narrativo-histrico. Para comprovar tal realidade, basta, ao leitor, a apreciao de obras como: Viagem (1939), Vaga msica (1942), Mar absoluto(1945) e Retrato Natural (1949) para citar algumas dentre tantas includas no gneropotico. E, para ilustrar algumas pertinentes ao universo da prosa potica narrativo-histrica,destacam-se as obras Romanceiro da inconfidncia (1953) e Crnica trovada da cidade deSam Sebastio - esta, ltima, escrita no ano de 1964 por ocasio do centenrio da cidade doRio de Janeiro e publicada em 1965.

    A poetisa era, portanto, imbuda de grande imaginao e espiritualidade e sua obra vemrevestida de uma natureza transcendente que, pode-se aludir, se desconecta a materialidadetemporal presente, de modo que as imagens e os versos criam um universo paralelo e anlogo realidade imediata, originando uma nova entidade e linguagem.

    Para Bachelard (1978), a verdadeira obra literria provm da imagem pura e se origina na alma do artista por meio do devaneio potico que materializa as imagens fornecidas pelaimaginao criadora que ilustra a memria do poeta em linguagem. Desse modo, o devaneiopotico constitui um estado da alma sonhado pela memria e reanimado pela imaginao(BACHELARD, 1988). Conforme sua teoria, a poesia antes de ser um fenmeno do esprito, uma manifestao da alma, j que [...] nos poemas se manifestam foras que no passam

    6 Moiss (1984) define como poeta maior, o artista que atribui para a sua obra potica uma carga subjetiva emlinguagem genuinamente conotativa.

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    pelos circuitos de um saber (BACHELARD, 1978, p. 185). Assim, para o filsofo, aimaginao potica abre sempre um porvir da linguagem, sendo o verdadeiro artista, o sujeitoque, ao penetrar na origem de uma imagem potica, cria outra atmosfera, originando umanova linguagem que repercutir no leitor: O poeta na novidade de suas imagens, sempreorigem de linguagem (BACHELARD, 1978, p. 185).

    Dentro desse contexto, entende-se que Ceclia Meireles possua a qualidade de alar osvos mais elevados por meio da sua imaginao potica; ilustrando, em imagens, asimpresses vivenciadas pelo eu-lrico no instante criador. A artista fora considerada pormuitos escritores e tericos da literatura como uma das maiores vozes lrica da lnguaportuguesa contempornea. Na poesia, o seu lirismo a elevava de tal forma que, poder-se-iapoetizar, tornara a artista capaz de tocar as nuvens durante o niilismo potico do instantecriador. Para a escritora Ruth Rocha (apud MEIRELES, 1984, p. 9), o devaneio da poetisaconfere, obra ceciliana, a grandeza da qualidade esttica, visto que [...] ningum subiu mais alto do que ela, nos ares da poesia.

    Tambm dentro dessa perspectiva, o poeta e escritor Manuel Bandeira, ao fazer umadescrio potica do lirismo ceciliano, no poema intitulado Improviso, reflete que a poetisaconstitui-se to lmpida quanto o ar, porm seu vo potico atinge planos ilimitados. Leia-se aapologia de Bandeira Ceclia nos versos da terceira estrofe do texto (BANDEIRA, apudMEIRELES, 2001b)7:

    Ceclia, s, como o ar,Difana, difana.Mas o ar tem limites;Tu, quem podes limitar?

    Igualmente, a anlise da teoria e historiografia literria, embora sob outros focos,confere ao lirismo ceciliano as qualidades delineadas pelos escritores acerca do devaneiopotico da autora. Veja-se agora o que dizem alguns crticos sobre a voz lrica ceciliana:

    Alfredo Bosi (1972, p. 515) aponta que a lrica ceciliana se constitui de um certodistanciamento do real que norteia, [...] os processos imagticos para a sombra, o indefinido,quando no para o sentimento de ausncia e do nada.

    7 A estrofe do poema Improviso de Manuel Bandeira, em referncia a Ceclia Meireles, fora extrada dacontracapa do v. 3 do livro Crnicas de educao: Obra em prosa (2001b).

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    Antnio Candido (apud FARACO; MOURA, 1983, p. 280), por sua vez, alude que olirismo ceciliano se dirige para os elementos mveis e etreos, do qual o [...] poeta projeta adesintegrao de si mesmo ou busca o prprio reconhecimento.

    J a pesquisadora Luciana Sandroni (apud MEIRELES, 2005, p. vii), em apresentaoda obra O estudante emprico, reflete que a lrica ceciliana possui, tambm, a ddiva de elevar a alma do leitor, j que a poetisa [...] tem esse poder de nos fazer subir pelos ares com aspalavras. Acrescenta, porm, que a voz lrica ceciliana trabalha, sobretudo, com asinquietaes e os questionamentos filosfico-existenciais: Sua poesia to autntica,

    vibrante e questionadora que ao ler seus poemas temos a sensao de que quem esteve diantede uma mquina de escrever foi uma jovem adolescente indignada com o mundo(SANDRONI, apud MEIRELES, 2005, p. vii). Principalmente com a fugacidade do ser e dosobjetos, a transitoriedade do tempo e sua relao entre o efmero e o eterno. Nas palavras deSandroni (apud MEIRELES, 2005, p. viii):

    Sua voz no trabalhava com a linguagem coloquial, nem a pardia aosromnticos, to comuns nos poetas modernistas da poca, mas sim comquestes existenciais, filosficas, sobre a fugacidade da vida, o instante queparece eterno, mas no . Os poemas de Ceclia so cheios de imagensligadas natureza e, de maneira delicada e musical, vo refletir o estar nomundo.

    Os autores Amaral, Severino e Patrocnio (apud BELOTO, 2000, p. 81) acrescentamque a voz lrica ceciliana apresenta-se puramente intuitiva, sensorial e feminina:

    A poesia lrica de Ceclia Meireles caracteriza-se principalmente pelaleveza, pela delicadeza com que tematiza a passagem do tempo, atransitoriedade da vida, a fugacidade dos objetos, que parecem impalpveisem seus poemas, influenciados por filosofias orientais e elaborados comlinguagem predominantemente sensorial, intuitiva, feminina.

    Em suma, descrever-se-iam como principais caractersticas da voz lrica de CecliaMeireles: preocupao com a fugacidade do tempo e com a precariedade das coisas e dosseres, de cuja constatao decore a melancolia; nfase condio solitria do ser humano;fuga para o sonho; preocupao com a falta de sentido da existncia humana, dentre outrasqualidades.

    Os termos lirismo, lrico e lrica provm de lira, instrumento musical de cordas utilizado, desde a Antigidade Clssica, para acompanhar as composies poticas, que eramcriadas para serem musicadas e interpretadas em voz alta. Nos textos lricos predomina a

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    expresso dos sentimentos e das emoes individuais, sendo as formas poticas as maisusuais para esse gnero literrio; muito embora nas narrativas em prosa, a carga lricatambm se faa presente (MOISS, 1984). Nos textos, o autor registra seu mundo interior,seus sentimentos, emoes e a sua viso de mundo exterior, expe o seu eu, revelando aintimidade por meio da sua subjetividade (COELHO, 1980).

    Conforme o Novo Dicionrio Aurlio, o termo Lirismo (de lira + ismo) pode apresentar os seguintes significados: carter de poesia lrica; o conjunto da poesia lrica; subjetivismopotico; modo de exprimir-se em arte que evoca a poesia lrica; Fig. Maneira apaixonada,potica, de sentir, de viver, entusiasmo, ardor, exaltao; Estt. Segundo o crtico italianoBenedetto Crose, smbolo da arte em geral, como expresso de sentimentos (FERREIRA,2004, p. 1218).

    O lirismo, alm de ser o estado sentimental e espiritual do artista, cuja inspirao capaz de materializar as emoes em arte, consiste numa forma de viver e pensar o mundo.Bachelard (1978), em referncia a Jean Lescure, artista surrealista, reflete em A potica doespao que o artista no cria como vive, vive conforme ele cria. Dessa maneira, compreende-se aqui o lirismo enquanto manire de sentir (BAUDELAIRE, apud MUCCI, 1999, p. 119)subjetivamente o mundo e, tambm, de express-lo atravs da exposio sincera dossentimentos do artista materializados em linguagem.

    A lrica moderna, conforme Mello (2006), tem suas razes no Romantismo, cujospoetas estavam convictos de que a vida no poderia ser explicada unicamente pela mecnicado relgio, pois, segundo assinala Edmundo Wilson (apud MELLO, 2006, p. 177), [...] ouniverso no era uma mquina, mais algo mais misterioso e menos racional. Para Mucci

    (1999), a histria do movimento romntico coincide com o surgimento das grandesrevolues como a Revoluo Francesa. Apesar de ter sido na Alemanha por volta de 1800que o termo Romantismo recebeu as primeiras acepes artsticas com Schiller (1759-1805) e, sobretudo, Goethe (1749-1832), foi a partir da Revoluo Francesa que se fezexplodir em toda Europa e, igualmente, no continente americano.

    Ao invs da lgica e da esttica reinante inspirada na tradio clssica, os artistasdesejavam a plena liberdade da criao, evocando a espiritualidade e o sentimento profundo.O romantismo criticava a primazia da razo do pensamento ilustrado do sculo XVIII epostulava a prioridade do subjetivismo do eu individual em oposio ao conhecimentoobjetivo e as verdades absolutas, fazendo apelo [...] ao lan da imaginao, s foras dosonho e da paixo (MUCCI, 1999, p. 118).

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    Dessa maneira, o romantismo, enquanto fenmeno esttico e civilizatrio, origina uma

    nova sensibilidade e uma nova concepo de vida em busca da plenitude do sujeito; pois,segundo o cdigo romntico, a criao esttica no dependia, pelo menos primordialmente,da razo, mas da subjetividade e daquilo que lhe pertinente: emoo, sentimento,imaginao. Assim, em contraposio ao racionalismo ilustrado do pensamento neoclssico,o romantismo do final dos sculos XVIII e XIX atravs dos seus vrios movimentos culturais existencialismo, surrealismo, expressionismo, simbolismo expressa [...] os sentimentosdos descontentes com as novas estruturas: a nobreza, que j caiu, e a pequena burguesia queainda no subiu: de onde, as atitudes saudosistas ou reivindicatrias pontuam todo omovimento (MANNHEIM, apud BOSI, 1972, p. 100, grifo do autor).

    2.1 EM BUSCA DE SIGNIFICADOS: CECLIA MEIRELES E O LIRISMOMODERNISTA

    O lirismo uma das qualidades definidoras da voz potica de Ceclia Meireles.Acompanhou a poetisa por toda a vida, possibilitando-lhe impregnar as palavras de umasensibilidade que se articula tambm nas vrias reas empreendidas, promovendo ecletismo eunicidade ao conjunto de sua obra e histria. Na poesia e na prosa: a lrica nostlgica,filosfica, utpica, espiritualista focada no homem e no seu lugar no mundo; na literaturainfantil: a lrica pedaggica moderna centrada na criana, no educador e no imaginrioinfantil; nas atividades jornalsticas: a lrica satrica, crtica, sincera situada nos ideaisreformistas da dcada de 1930; nos artigos e estudos folclorsticos: a lrica histrica, voltadapara a defesa dos valores populares e para a construo de uma identidade nacional. Toda asua potica compreende, portanto, um elo unssono e indivisvel: o lirismo. E, este, oferece poetisa o Motivo imperativo para o seu canto (MEIRELES, 2001a, p. 15):

    Eu canto porque o instante existe,e a minha vida est completaNo sou alegre nem sou triste:sou poeta.

    Irmo das coisas fugidias;no sinto gozo nem tormentoAtravesso noites e diasno vento.

    Se desmorono ou se edificose permaneo ou me desfao

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    - no sei, no sei. No sei se ficoOu passo.

    Sei que canto. E a cano tudo.Tem sangue eterno a asa ritmada.E um dia sei que estarei mudo:- Mais nada.

    No Brasil, a poesia modernista se apresentou inicialmente como recusa e ilhamento dospoetas, em resposta, s mudanas provocadas no mundo pela Revoluo Industrial e pelosurgimento de novas relaes sociais (BOSI, 1983). A crescente industrializao e odesenvolvimento da tcnica emergiram uma crise de significados, do qual se embatiam osartistas, como alude a prpria Ceclia: A tecnologia descartou a contemplao, a intuio, odesejo srio de penetrar nos mistrios do mundo e da vida, e o suprfluo tornou-se toimprescindvel que se perdeu de vista o verdadeiramente essencial (MEIRELES, 1980b, p.445).

    Durante as primeiras dcadas do sculo XX, acompanhava os poetas brasileiros oesprito nostlgico, crtico, e/ou utpico que fez a poesia modernista abrir caminhoscaminhando, apresentando-se como instrumento de resistncia emergente tecnicidade e aosnovos padres de vida sociais impulsionados pelo consumismo capitalista (BOSI, 1983). Asguerras mundiais, o desenvolvimento industrial e as mudanas ocorridas na sociedadebrasileira levaram a poesia, durante a primeira metade do sculo XX, a se esconder atravsdos smbolos mticos. Nas palavras de Bosi (1983, p. 143):

    A poesia modernista foi compelida estranheza e ao silncio [...] reprimida,enxotada, avulsa de qualquer contexto, fecha-se em um autismo altivo; e spensa em si, e fala dos seus cdigos secretos e expe a nu o esqueleto a quea reduziam, enlouquecida, faz de Narciso o ltimo deus.

    Para Zambolli (2002), o mundo complicado e desequilibrado marcado pelaindustrializao e grandes guerras leva a jovem Ceclia a afastar-se pela inquietao, e, dele,reaproximar-se, buscando compreender a natureza das coisas e dos seres, e, assim, recuperaros significados da vida. Nesse contexto, os mitos foram para a lrica a razo de uma densareflexo de sua existncia individual e a compreenso da nova vida coletiva. Em busca desses significados, a poesia se torna para a escritora o espelho que a leva, maneira de Narciso, aorecolhimento e a reflexo, aspirando:

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    [...] acordar a criatura humana dessa espcie de sonambulismo em quetantos se deixam arrastar, para mostrar-lhes a vida em profundidade, sempretenso filosfica ou de salvao - mas por uma contemplao potica,afetuosa e participante (MEIRELES, 1987, p. 58).

    Nesse sentido, umas das caractersticas emblemticas da lrica ceciliana a reflexofilosfica, seus textos suscitam meditao e questionamentos profundos. Muito embora,Ceclia [...] se recusa a filosofar. Tais so as realidades inexplicveis. Basta viv-las(RODRIGUES; CASTRO; TEIXEIRA, apud BELOTO, 2000, p. 80). No entanto, oselementos fecundos de sua potica - silncio e solido - possibilitaram lrica cecilianaatingir um dos maiores objetivos do poema: a comunicao. Como aponta Octavio Paz acerca da possibilidade de abertura comunicativa do poema entre os homens: [...] un ir ms all desi, um romper los muros temporais, para ser outro8 (apud ZAMBOLLI, 2002, p. 9). Comopoetisa, Ceclia busca a si mesma, por meio da reflexo filosfica, e ao seu semelhante naplenitude da relao eu-tu, contrapondo-se ao relacionamento ser-mquina caracterstico aostempos modernos que no pretende negar, mas re-humanizar (ZAMBOLLI, 2002, p. 9).

    Por meio de sua experincia pessoal revela ao mundo a sua condio no mundo, mundo que a poetisa deseja conhecer, e, no qual, se reconhecer, num processo contnuo deespelhamento, cuja reconciliao se d pela revoluo das palavras, pelo simblico. Diante do espelho, Ceclia Meireles encontra na poesia narcsica, tambm denominada de lrica oumetanarrativa, a resistncia ao caos da vida, tornando a sua poesia a redeno necessria aosentido da existncia humana, das relaes entre homem-homem, entre homem-mundo eentre o mundo e o seu Criador (ZAMBOLLI, 2002, p. 9).

    Entretanto, apesar da fecundidade de sua produo potica nos anos iniciais do sculoXX, donde se destaca a obra Viagem (1939). A poetisa, inicialmente, no se integrou aoquadro de ruptura e vanguardismo propostos pelos paulistas - Mrio de Andrade, Oswald deAndrade, Menotti Del Picchia, Manuel Bandeira e Cassiano Ricardo, poetas que se alinhavam Revista Klaxon de So Paulo - no movimento da Semana da Arte Moderna de 1922,realizado na cidade de So Paulo entre os dias 13, 15 e 17 de fevereiro de 19229. Ao invs daruptura com as formas literrias dominantes do sculo XIX e a adeso vanguarda poticapropagada pelos paulistas, Ceclia Meireles apresentara, em seus primeiros trabalhos, vrias

    8Um ir mais alm de si, um romper os muros temporais, para ser outro. Trad. Jos Carlos de Zambolli (2002,

    p. 9).9 A Semana de Arte Moderna funcionou, segundo Arajo (2002), como marco privilegiado na reflexo de umBrasil Moderno, e articula-se a uma srie de manifestaes artstico-culturais e polticas desencadeadas noagitado cenrio tambm organizado para as comemoraes do Centenrio da Independncia do Brasil; sendouma espcie de ponto de partida mobilizao de vrios setores intelectuais.

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    influncias da poesia moderna: romnticas, parnasianas, simbolistas; e, tambm, a heranaclassicista (COELHO, 2002; LUFT, 1991).

    Segundo o crtico Alceu Amoroso Lima, Tristo de Atade, a literatura do MovimentoModernista, no Brasil, conteve trs fases: o Pr-Modernismo, fase inicial do movimento devanguarda onde perpassam ainda as influncias do Parnasianismo e do Simbolismo, e que seestende de 1910 aos anos de 1922; o Modernismo propriamente dito com a deflagradaSemana da Arte Moderna, em So Paulo, em 1922; e o Ps-Modernismo com a gerao de1930 que se expande at os anos de 1945 (LIMA, apud LUFT, 1991). Ceclia Meireles foraconsiderada pela crtica e historiografia literria como integrante da terceira gerao dapoesia modernista, apesar de iniciar sua produo na literatura brasileira, em 1919, com aobra Espectros. Em Espectros, a poetisa apresenta dezessete sonetos com versificaorigorosa, figuras e assuntos histricos ainda sob o signo do Parnasianismo. , portanto,somente aps a Semana da Arte Moderna que Ceclia Meireles se aproxima do grupo daRevista Festa com os poetas do Rio de Janeiro - Andrade Murici, Tasso da Silveira, MuriloArajo, dentre outros - e inicia uma produo mais voltada aos smbolos do movimento devanguarda, ento, emergente (LUFT, 1991).

    Todavia, segundo Bosi (1972), Ceclia mesmo se aproximando do grupo da revistaFesta, prefere seguir caminhos livres e individuais, no se prendendo s normas das escolas literrias, nem [...] com o neo-simbolismo que este pregava em esconjurar o perigomodernista (BOSI, 1972, p. 515). Nesse sentido, Coelho (2002) pondera que CecliaMeireles sintetiza a autntica crise espiritual que assola a literatura brasileira no entre-sculos, donde a sua potica expressa no somente a fuso das mltiplas experincias formaise temticas da poesia-sculo XX. Mas, sobretudo, o difcil avano em meio fragmentaode valores e paradigmas imposta pelo modernismo. Assim, Ceclia apresenta, nos primeiroslivros, uma poesia imbuda de elementos espirituais, transcendentais, filosfico-existenciais ereligiosos, e, simultaneamente, dedica-se prtica educativa em escolas pblicas e atividade jornalstica na imprensa carioca.

    Aps a estria na literatura com Espectros, Ceclia dedica-se intensamente educao,desenvolvendo, alm da docncia e da militncia poltica em jornais brasileiros, uma aopedaggica no-formal junto a criana brasileira por meio da literatura infantil. Em 1924publica Criana meu amor, obra de abertura da poetisa dentro do gnero infantil. Em 1937,em parceria com o mdico Josu de Castro, publica A festa das letras. Obra potica cujostextos obedecem seqncia de um abecedrio e desenvolvem a temtica alimentao esade. Ainda nos fins da dcada de 1930, a poetisa publica Rute e Alberto resolveram ser

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    turistas (1938), livro que trabalha o conhecimento histrico e geogrfico por meio dasaventuras das crianas-personagens na cidade do Rio de Janeiro. Em razo do Centenrio deRui Barbosa, Ceclia publica a obra Rui: pequena histria de uma grande vida, em 1949, paraser distribuda, gratuitamente, s crianas do ensino primrio pela Casa Rui Barbosa.

    Entretanto, apesar da fortuna criadora de Ceclia Meireles na literatura brasileira, nasprimeiras dcadas do sculo XX. A autora no apresentara, inicialmente, no campo daliteratura infantil, as caractersticas estticas j ento mencionadas neste estudo, sobretudo notocante carga conotativa que confere ao texto escrito a natureza de arte literria. Mesmotendo demonstrado a riqueza de seu universo potico com o livro de poemas Viagem (1939),obra que, segundo Alceu Amoroso Lima, se apresentara demasiadamente vaga e difusa, poca, dada a subjetividade do imaginrio potico de Ceclia. Mas, que levou o trabalho dapoetisa ao primeiro lugar na classificao do Concurso Literrio promovido pela AcademiaBrasileira de Letras, em 1938, e publicao em Portugal, em 1939. No entanto, as suasprimeiras obras para crianas revelam um profundo lirismo dirigido aos leitores infantis e aoseducadores, expandindo os sentimentos e o idealismo das concepes pedaggicas da autora.

    Suas obras iniciais destinadas ao leitor infantil apresentam bastante vivas asconvenes estticas da tradio literria, conforme modelo clssico e evidenciamintencionalidades pedaggicas. Essa realidade leva os estudiosos da poetisa a indagaesacerca da qualidade literria dessas produes, visto no se saber, ao certo, a qual campo seinsere as obras infantis da autora publicadas entre os anos de 1920 a dcada de 1940: aocampo literrio ou ao pedaggico? Ou, poder-se-ia, ainda, inserir esses livros infantis deCeclia Meireles numa terceira categoria capaz de envolver tanto o campo literrio como oeducativo? Essas questes sero discutidas ao longo deste captulo e se estendero no cursoda dissertao. Na ausncia de nica posio para definio de campo dessas obras infantisiniciais, resta a pesquisa a tentativa de aproximar os dois campos a fim de compreenso dasaes educativas de Ceclia Meireles dirigidas criana brasileira por meio da literatura.Convm, dessa maneira, que se estabelea uma categoria conciliadora sua produo literria dentro do gnero infantil, a qual se denominar de Lrica Pedaggica.

    2.1.1 A Parceria da Pedagogia com a Literatura Infantil

    A parceria da pedagogia com a literatura infantil longnqua, coincide com a descoberta do sentimento de infncia no Ocidente e com o aumento do processo de escolarizaoiniciado, na Europa, por volta do sculo XVIII. Desde ento, muitos tm sido os debates em

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    torno da problemtica do gnero infantil pertencer arte literria ou ao campo pedaggico jque os textos voltados para a infncia trazem, mesmo que timidamente, elementos estticos evalores tico-normativos. Ou seja, h no gnero infantil tanto a presena da funo potica,propriamente ldica; j que a infncia comporta os elementos da arte literria inveno,interpretao, liberdade -, como a funo pedaggica, gerada pela inteno adulta de instruir e formar o leitor atravs do prazer e do belo. Nesse sentido, pode-se dizer que o texto destinadoao leitor infantil pertence tanto ao campo educativo como ao literrio, muito embora asfunes poticas, pragmticas e utilitrias possam apresentar-se mais efetivamente em uma

    obra dependendo da poca e dos valores que se desejam legitimar junto ao pblico infantil(CALDIN, 2002; COELHO, 1991; ZILBERMAN, 2003).

    O gnero literatura infantil surge de mos dadas com a pedagogia nas sociedadesocidentais, j que foram os pedagogos, por volta dos fins do sculo XVII e incio do XVIII, os primeiros escritores a se dedicarem a uma literatura especfica ao pblico criana (CAMBI,1999). A descoberta do sentimento de infncia no Ocidente, durante a Idade Moderna,provocada pela formao de uma nova organizao familiar em torno de ncleo unicelular,preocupada em manter a privacidade e a permanncia do patrimnio em torno da genealogiamais prxima, promove a expanso dos laos afetivos entre adultos e crianas. Conformeapontam os estudos de Aris (1978), antes da constituio desse novo modelo familiarnascido com a ascenso da burguesia, no havia um tratamento distinto s crianas. Logo quea criana alcanava autonomia de movimentos e apresentava certa robustez fsica eraintroduzida nos acontecimentos da vida comunitria e exercia as mesmas funes produtivasdesempenhadas pelos adultos.

    At por volta dos fins da Idade Mdia, os adultos no concebiam a criana como um serdistinto dos demais membros da sociedade. Nesse perodo, a precariedade da vida e ascondies higinicas desfavorveis faziam com que a maioria das crianas no atingisse oprimeiro ano de vida, o que impedia o fortalecimento dos laos afetivos entre adultos ecrianas. Com a ascenso da burguesa, consolidao do sistema capitalista, conquistas dacincia e a constituio da famlia burguesa crist ocorrem o estreitamento dos laos afetivos,que favorecem a formao de uma nova concepo de criana mediante as especificidades dainfncia. Nesse sentido, a obra pioneira de Aris (1978), na dcada de 1960, acena ao fato deque a criana - enquanto ser de direito e pertinente a uma categoria scio-histrica - somentepassa a ser vislumbrada por suas singularidades com o surgimento do sentimento de infncia,at ento inexistente nas sociedades ocidentais:

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    Na sociedade medieval, que tomamos como ponto de partida [a pesquisa deAris], o sentimento de infncia no existia o que no quer dizer que ascrianas fossem negligenciadas, abandonadas ou desprezadas. O sentimentoda infncia no significa o mesmo que afeio pelas crianas: corresponde conscincia da particularidade infantil, essa particularidade que distingueessencialmente a criana do adulto, mesmo jovem (ARIS, 1978, p. 156).

    Com a introduo do modelo burgus de famlia nuclear, a infncia passa a servalorizada e a criana vista com um bem precioso que necessita ser protegido e separado doconvvio comunitrio, sobretudo da perversidade moral adulta (ARIS, 1978). Todavia, essanova maneira de conceber a infncia se formou em carter contraditrio: se de um lado, acriana passa a ser idealizada e paparicada por sua ingenuidade e estado de pureza; deoutro, passa a ser vislumbrada pela ignorncia e incompletude de sua natureza simplria e emface de desenvolvimento, somente corrigvel por meio de uma rgida educao moral. Acercada dualidade existente em torno dos dois sentimentos iniciais de infncia, reflete Coelho(1991, p. 139, grifo do autor):

    [...] como natural em todo processo de transformao cultural, essadescoberta da infncia no se fez de chofre. A criana comea a serencarada como um adulto em miniatura, cujo perodo infantil deveria serencurtado o mais depressa possvel para que ela pudesse super-lo ealcanar o estado adulto, ideal.

    A descoberta da infncia faz surgirem as preocupaes iniciais com a educao dacriana que passa a ser merecedora de receber uma formao intelectual sistematizada, pormeio de uma organizao institucional renovada. Paralelamente em que se instauram e seconsolidam as primeiras instituies que pretendem formar a criana, a literatura infantilaparece com a finalidade de prepar-la para o convvio social, retirando-a da promiscuidadedos mais velhos; a fim de inculcar, no esprito infantil, os valores necessrios para o bomdesenvolvimento moral e intelectual do futuro cidado. A esse respeito diz Zilberman (2003,p. 15):

    A nova valorizao da infncia gerou maior unio familiar, mas igualmentemeios de controle do desenvolvimento intelectual da criana e manipulaode suas emoes. Literatura e escola, inventada a primeira e reformada asegunda, so convocadas para cumprir essa misso.

    Nesse sentido, literatura e pedagogia desde seus primrdios estiveram amplamenteinterligadas. At o fim do sculo XVII e incio do XVIII no havia, ainda, uma produo de

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    livros destinada especificamente ao leitor-criana, at porque no existia diferenciaoconceitual entre adultos e crianas que compartilhavam das mesmas experincias e aventurasliterrias. No entanto, com a descoberta da infncia e o emergente interesse em compreender a criana, dar-se a expanso da educao institucionalizada e a preocupao em moralizar acriana, surgindo as primeiras produes literrias dirigidas ao leitor infantil. SegundoZilberman (2003, p. 15-16, grifo nosso):

    A aproximao entre a instituio e o gnero literrio no fortuita. Sintoma disso que os primeiros textos para crianas so escritos por pedagogos eprofessoras, com marcante intuito educativo. E, at hoje, a literatura infantil permanece como colnia de frias da pedagogia. O que lhe causa grandesprejuzos: no aceita como arte, por ter uma finalidade pragmtica; e apresena do objetivo didtico faz com que ela participe de uma atividadecomprometida com a dominao da criana.

    Tendo em vista as reflexes realizadas sobre a parceria da pedagogia com a literaturainfantil, compreende-se a lrica pedaggica de Ceclia Meireles como uma literatura imbudade elementos do imaginrio criador e sentimental da poetisa; entretanto acrescida porfundamentos filosfico-epistemolgicos das cincias modernas e por um iderio pedaggicoconstrudo pela educadora no curso de sua formao e exerccio profissional que se relacionadiretamente a um panorama nacional de renovao de valores e modernidade no Brasil.Contudo, antes de se aprofundar em definies, faz-se necessrio que se estabelea umaidentidade profissional autora como detentora de um saber especfico: o pedaggico. Afinal, para a Ceclia, a criao literria destinada ao pblico criana estabelece uma relao diretacom a atividade educativa; j que a sua produo literria para crianas se deve, em grandemedida, as atribuies pedaggicas, como a prpria Ceclia enfatizara: [...] foi ao folcloreinfantil que me dediquei em primeiro lugar, como derivao das minhas funes deprofessora (MEIRELES, apud SOARES, 1983, p. 9).

    2.2 A PAIXO PELO POSSVEL: CECLIA MEIRELES E A EDUCAO

    Ceclia Meireles, desde tenra infncia, tivera contato com a carreira docente eapresentara grande interesse pelas questes relacionadas pedagogia e educao,considerando que o magistrio pblico fora tambm exerccio profissional de sua me. Comodescreve a prpria poetisa-educadora:

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    Minha me tinha sido professora primria [...] e eu gostava de estudar nosseus livros. Velhos livros de famlia que me seduziam muito. Assim comoas partituras e livros de msica. [...] A educao [...] uma causa que abraocom paixo assim como a poesia10 (MEIRELES, apud VIANA, 2007, [p.6]).

    Sua formao pedaggica inicial dera-se na Escola Normal Estcio de S, na cidade doRio de Janeiro, onde se titula professora, em 1917, aos dezesseis anos de idade, passando alecionar no ensino pblico municipal do antigo Distrito Federal, ento, como professoraprimria. Alm da atividade docente desenvolvida junto s crianas, a pedagoga tambmlecionara no ensino superior em universidades brasileiras e estrangeiras e, simultaneamente,desenvolvera uma ao pedaggica extra-escolar.

    Desde a dcada de 1920, Ceclia escreve ao leitor-criana, unindo cincia e arte naliteratura infantil. De 1930 a 1933 ocupa a Pgina de Educao no Jornal Dirio de Notciasonde desenvolve uma ao reflexiva dos problemas educacionais, polticos e sociaisbrasileiros. Na dcada de 1940, escreve para o Jornal A Manh sobre variados temas, pormsempre articulando as temticas a um iderio de educao. Apaixonada por msica, Cecliaestudava canto, violino e violo no Conservatrio Nacional de Msica. E, em defesa dacriana e infncia carioca, inaugura com seu o primeiro esposo o artista plstico portugus

    Fernando Correia Dias o Centro Cultural Infantil no Pavilho Mourisco, na praia deBotafogo, na cidade do Rio de Janeiro. O centro fora inaugurado na administrao de AnsioTeixeira e reunia 1.500 inscries de leitores em sua biblioteca, tendo sido fechado em 1937por interrupo do Estado Novo que acusara um clssico da literatura, o livro de Mark TwainTom Sawyer, de material subversivo (PIMENTA, 2001; LAMEGO, 1996).

    Nos fins de 1940 a dcada de 1950, ela participa de conferncias e congressos sobrefolclore, tornando-se integrante do Conselho Nacional de Folclore (CNFL), desde a suaformao em 1947, onde busca articular o tema s questes educacionais. E, no ano de 1949,profere trs conferncias aos educadores de Belo Horizonte sobre o tema criana e literaturainfantil, cujos seminrios derivam o livro Problemas da literatura infantil. Obra terica que,desde 1951, vem sendo utilizada como fonte bibliogrfica no campo da pesquisa.

    A educao constitua, portanto, uma paixo que Ceclia desempenhara comsentimento e dedicao, sendo sua atividade pedaggica desenvolvida intensamente eextensiva a vrios campos de atuao; porm, em todos esses universos, a poetisa-educadorabuscou articular uma prtica educativa sistemtica e intencional nutrida por ideais de

    10 Citao de Ceclia Meireles extrada do estudo biobibliogrfico realizado pela Prof Dr Lcia Helena Viana,publicado no site Vidas Lusfonas (2007).

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    mudana social. Por essa razo, embora uma das categorias a serem examinadas no curso dadissertao seja a feminizao do magistrio, a construo do subttulo do captulo A paixo pelo possvel: Ceclia Meireles e a educao - no se deve ao fato de ter sido a carreiradocente a escolha profissional possvel ao gnero feminino na poca em que viveu CecliaMeireles (ALMEIDA, 1998; KULESZA, 1998; SAFFIOTI, 1979). Apesar de ter-se utilizadode termo referente pesquisa de Jane Almeida (1998), a analogia aqui se deve, sobretudo, aofato de a Pedagogia se constituir uma cincia que se destaca por seu carter dereflexo/transformao da realidade objetiva, por meio de aes intencionalmente dirigidaspara fins passveis de concretude: a formao humana e o processo educativo.

    Para Ceclia Meireles era questo fundamental para o entendimento da educao e daprxis pedaggica o conhecimento cientfico. Sendo sua base epistemolgica oriunda dascincias, sobretudo da Psicologia, cujo objeto o desenvolvimento humano e o processo deformao. A educadora era, portanto, detentora de um saber especializado: a pedagogia,norteada por pressupostos modernos da psicologia do desenvolvimento. Poder-se-ia dizer quesua participao na educao norteava-se pautada em dois princpios bsicos: o da ao e oda finalidade. Esses dois pilares do pensamento pedaggico ceciliano integram-se a umcorpo filosfico-emprico das cincias modernas, cujo objetivo a formao e odesenvolvimento da criana e, cujo, propsito a re-humanizao do homem para construode uma nova vida social, efetivada por interferncia de uma [...] educao completa,integral, adequada, oportuna (MEIRELES, 2001b, v. 3, p. 42).

    Ceclia Meireles pertenceu a uma poca de renovao, de busca e consolidao devalores e rompimento com uma mentalidade dominante, tradicional e agrria no Brasil; dereformulao e expanso do ensino, de desenvolvimento cientfico e tcnico, de implantaode novos meios de produo e de abertura para os ares da nova civilizao, modernidadecultural e modernizao. Uma poca cuja mudana pautava-se na crena no podertransformador da educao, sendo necessria, para efetiv-la adequadamente, o conhecimento cientfico e o bom desempenho tcnico nas aes. Enfim, poder-se-ia dizer que Cecliapertence a uma poca de formao e avano de uma sociedade pedaggica (BEILLEROT,apud LIBNEO, 2002, p. 58).

    Segundo Libneo (2002), at meados dos anos de 1920, no Brasil, no eram postas emquesto a existncia de uma cincia pedaggica, poca fortemente influenciada pelapedagogia catlica e pedagogia herbatiana. Para ele, a idia de uma cincia unitria que rene em torno de si as chamadas cincias auxiliares da educao, comea a perder espao, noBrasil, com o surgimento do movimento da educao nova de origem norte-americana que,

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    [...] vai tomando conta, nos anos 30, de uma elite intelectual de educadores brasileiros(L