halbwachs, maurice. a memória coletiva. são paulo - centauro editora, 2006

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HALBWACHS, Maurice (1877-1945). A Memria Coletiva. So Paulo: Vrtice, 1990.

HALBWACHS, Maurice. A memria coletiva. So Paulo: Centauro Editora, 2006.

1. Tema central :

uma anlise da relao entre contextos sociais, memria e construo histrica tendo por base terica a referida obra. O contexto social deve ser entendido como o espao-tempo onde se processam as aes coletivas objeto da memria que sob risco de extino tem na histria seu recurso de fixao. Um homem que se lembra sozinho do que os outros no se lembram como algum que enxerga o que os outros no vem, essa idia de Halbwachs, por si, ilustra o que de mais relevante pode ser evidenciado em sua obra, o outro como referncia do eu.


2. Resenha

Um dos pontos fundamentais da leitura de Halbwachs a possibilidade de anlise do papel social da memria. Nesse sentido, A memria coletiva (2006) transporta a cotidianidade das vivncias para o campo da histria dos indivduos que se reconhecem pelo passado comum numa recordao que impossvel quando no se toma como ponto de referncia os contextos sociais reais que servem de baliza essa reconstruo. (p. 8). Fica, portanto, condicionada o sentido da memria a um contexto e interao com os indivduos que partilham da ao objeto da memria.


No se pode pretender dizer, porm, que a memria reproduza, como num filme, tudo o que aconteceu, de modo que cada um possa relembrar tal como realmente sucederam os fatos. A memria, de acordo com a significao atribuda pelo indviduo ao evento objeto da rememorao, comporta variao. Isso se explica no pelo fato em si, mas pelo sentido atribudo a este pelo grupo. Uma turma de alunos, detalha Halbwachs, pode lembrar mais de um professor do que o professor de um determinado aluno. Isso porque para o professor as turmas de alunos representavam grupos de convivncia efmera sendo, portanto, vagas as relaes sociais a estabelecidas.


A importncia dada memria coletiva no anula a importncia das lembranas individuais. O que Halbwachs nos faz perceber que embora o fato, isoladamente, encerre a marca da individualidade, ele somente rememorizado pela intermediao do coletivo. A memria individual , portanto, um ponto de vista sobre a memria coletiva porque o indivduo sempre est impregnado do coletivo e a as lembranas mesmo as mais pessoais, sempre se explicam pelas mudanas que se produzem em nossas relaes com os diversos ambientes coletivos. (p. 69).


Dizer que a memria, intermediada[2]pelo outro, d conta da reconstruo dos fatos coletivos, invoca uma discusso sobre que papel caberia histria. Halbwachs faz perceber que a memria individual se sustenta no coletivo que fornece substancialidade para as suas lembranas guisa de exemplo, tenho lembranas que poderiam constituir minha biografia, estas lembranas me do conta daquilo que sou, brasileiro, casado, professor, etc.; mas o sentido integral de brasilidade, de matrimnio, ou do exerccio do magistrio isso eu s poderia recuperar tendo a coletividade como referncia. Quando essa coletividade no tem mais suporte para sustentar a memria a necessidade de escrever a histria se torna imperativa. Nas palavras de Halbwachs:


A necessidade de escrever a histria de um perodo, de uma sociedade e at mesmo de uma pessoa s desperta quando elas j esto bastante distantes no passado para que ainda se tenha por muito tempo a chance de encontrar em volta diversas testemunhas que conservam alguma lembrana. (p. 101).



O sentido atribudo escrita da histria foge compreenso da histria do presente, haja visto, que na interpretao de Halbwachs a histria s tem sentido pelo distanciamento entre fatos e indivduos quando, na verdade, na perspectiva da histria do presente, a histria pode ser escrita ou pelos menos subsidiada, por aqueles que viveram os fatos objetos da escrita. A objetividade do historiador apresenta-se como ponto crtico uma vez que para elenada est subordinado a nada, qualquer fato to interessante quanto qualquer outro e tanto quanto qualquer outro merece ser posto em destaque e transcrito.(p. 106) A memria coletiva no pode ser revestida dessa imparcialidade porque exatamente pela relao afetiva, ou de significao com os fatos-contextos que se deve entender a diversidade das memrias coletivas e o sentido que lhes atribudo pelos indivduos. Contrariamente a isso, o historiador, que acredita ser imparcial, no leva em conta o pontos de vista de nenhum dos grupos reais e vivos que existem (ibidem) para esses grupos, contudo, os acontecimentos, lugares e perodos esto longe de apresentar a mesma importncia. (ibidem). A estabilidade do grupo, aquilo que lhe comum dentro de um determinado tempo constitui perspectiva para que o grupo, que se v interiormente, tome conscincia de sua identidade. A histria, por outro lado, desinteressa-se das permanncias para fixar-se nas mudanas. Estas dissonncias no implicam negao da histria, ela fundamental uma vez que possibilita a continuidade do elo do grupo com aquela parcela que a gerao presente no alcana mais.

Uma outra observao interessante diz respeito ao tempo. Tambm essa noo, que sabemos abstrata, s tem sentido quando dentro de um contexto social afinal, a ttulo de exemplo, que sentido teria a noo de tempo a algum que tivesse uma vida social? Por outro lado, quanto memria, as lembranas esto sempre relacionadas a um contexto que envolve dados temporais. Os tempos, nesse sentido so diversos, mesmo porque envolvem noes convencionadas e, dentro dessa conveno, no difcil de entender que a diviso social do trabalho revestiu de um novo sentido a forma de organizar e viver o tempo, de forma mais direta na sociedade ocidental. Essa compreenso do tempo no importa em anulao das individualidades, o tempo extensivo ao coletivo social puramente artificial e somente enquanto projeo individual que ele tem sentido concreto, melhor evidenciam tal afirmao as idias de que pode-se afirmar que um fato aconteceu quando o indivduo era pequeno, antes da guerra, depois da guerra, pela manh, tarde, etc. mas sempre tendo um dado da sua experincia espao-temporal como referncia. Tambm dentro dessa compreenso de tempo, a histria novamente abordada por Halbwachs como recuperao e seqncia de uma memria que, pelo distanciamento temporal daqueles que viveram a experincia, corre o risco de ser esquecida, assim:


A memria coletiva retrocede no passado at certo limite, mais ou menos longnquo conforme pertena a esse ou aquele grupo. Alm disso, ela j no atinge diretamente os acontecimentos e as pessoas. Ora, precisamente o que est alm desse limite que prende a ateno da histria. (p. 132).


Por esse distanciamento entre o fato e a narrativa histrica fica evidente a clara diferena entre histria e memria coletiva que constitui um dos pontos bsicos da obra. A histria narra fatos despojados de subjetividade, inclusive sem poder contar com o jogo das opinies e valores que circunstanciaram tais fatos o mesmo no podendo suceder com a memria coletiva que, enquanto memria do grupo, matria da identidade desse grupo. Na perspectiva da histria o tempo remete noo cronolgica, dissociada das experincias e fundada no suceder dos fatos em si; no horizonte da memria coletiva, h uma multiplicidade de tempos como h uma multiplicidade de grupos sociais, cada um com a durao de seu tempo, ou com seu prprio tempo, uma vez que o tempo, neste caso, apenas um dado da conscincia coletiva. Os tempos so, relativo memria coletiva, mais ou menos vastos, conforme, de acordo com as possibilidades de retrocedimento da memria.


Sobre a relao entre espao e memria coletiva Halbwachs apresenta a noo de espao para alm da sua compreenso geogrfica. O prprio espao lugar de produo da memria pela simbologia que lhe impregnado. A esse respeito, a ttulo de exemplo, uma cruz fixada beira da estrada nos lembra a cena de uma tragdia. Para o autor nosso ambiente material traz ao mesmo tempo a nossa marca e a dos outros, isso porque a cruz beira da estrada no lembra uma tragdia apenas para um indivduo, ela , antes de tudo, uma referncia coletiva. O espao no apenas lugar da memria enquanto experincia do passado, o espao expressa a prpria dinmica do grupo que muda, mudando tambm o ambiente partilhado. A essa idia pode ser reforada se acrescentarmos, como argumento, que quando o grupo sofre uma alterao, como uma morte, casamento, fica rico ou fica pobre, tambm no ambiente se notar essa variao.


Quando o objeto de anlise espacial o ambiente mais familiar, fica claro que esse espao exterioriza o interior do grupo. Assim, a estabilidade da habitao, por exemplo, pode evidenciar a imagem pacificante do grupo. O lugar, como um outro que interage comigo, possibilita lembrar todo um tempo que se desenha e toma vida na sua interao como espao de uma experincia vivida e o eu-indivduo agente dessa experincia. Halbwachs defende que o homem estabelece uma relao com o espao que envolve a prpria formulao de seus pensamentos. H que se considerar, enfim, que a proximidade espacial constitui um dos elos que liga o grupo. Antevendo argumentos contra essa idia, o autor justifica que, no caso da condio jurdica, natural da sociedade feudal, o burgo espao do campons, embora seu regime parea justificar-se pelas regras de direitos e obrigaes a que estava submetido. No obstante, creio, nesse ponto, ser razovel especificar que no privilgio privado do espao geogrfico, o elo entre a pessoa e o grupo. Se analisarmos o movimento revolucionrio francs, ou os movimentos sociais brasileiros de contestao da ditadura militar de 1964, observaremos que no o espao o elo, a causa, paradoxalmente, contudo, os motivadores desse grupo so questes puramente nacionais, ou seja, determinada espacialmente. Isso posto, resta aquiescermos com Halbwachs quando diz queno h memria coletiva que no acontea em um contexto espacial.


Aos msicos poucas palavras minhas, de Halbwachs, um captulo. Esse captulo particularmente interessante aplicado diversidade do contexto scio-histrico brasileiro. O autor discorre sobre duas formas de lembrar a msica, uma pelo msico, que sabe ler msica e outra pelo ouvinte comum. claro que o referente ser a experincia relacionada ao som, para o ouvinte, e produo para o msico. Para o msico a msica tem sentido relacionada ao conjunto de msicos e maestros que a inventaram. Aplicado ao caso brasileiro, com interpretao pessoal, no de Halbwachs, o som executado pelos africanos trazidos fora para o Brasil certamente tinha o poder de rememorar parte da vida que naquele momento lhes era negada. Portanto, a msica africana, ao mesmo tempo que parte de uma memria coletiva, tambm recurso de reconhecimento identitrio.


Esse efeito da msica no age apenas naqueles que a executam. No Brasil e em alguns pases das Amricas tm ganhado fora um movimento que tem na msica sua fora de expresso. Essa expresso ganha espao na sociedade de consumo a partir da sua aceitao por uma parcela considervel da sociedade. Portanto, o reggae, o samba, o funk, dentre outros estilos, representam uma afirmao de identidade e, ao mesmo tempo, instrumentos de luta de classes que como movimento prvio de luta, usaram a msica como memria e identidade.


Concluso

bastante profcuo o estudo de memria coletiva. A relao que o autor estabelece entre a memria individual e a memria coletiva serve de base para o entendimento que a memria um fenmeno humano que, enquanto tal, embora possa residir interiormente no indivduo, ganha evaso a partir da interao do outro. Essa relao intermediada faz da memria, uma memria coletiva, porque embora particular s se efetiva e tem sentido com o outro torna-se uma das referncias para o entendimento da identidade a partir desses pontos comuns.


Enquanto pressuposto de identidade a memria tem uma relao de completude com a histria, ou de inteireza, uma vez que a histria aparece como recurso de preservao da memria quando, pelo distanciamento entre fato e pessoas no possibilita mais as lembranas dos fatos. Nessa perspectiva tambm a histria, no fosse pelo seu sentido universalista, deveria estar integrada questo da identidade, como est para muitos historiadores. Contudo, mais preocupado em estudar a memria que a histria e sua relao com os grupos na vertente regional ou micro-histria, por exemplo Halbwachs faz evidencia que a histria no pode confundir-se com a memria coletiva porque, diferente desta, no comporta opinies ou subjetividade, que caracterstica da memria cuja lembrana dos fatos envolve uma ligao identitria que, por isso, subjetiva.


Espao e tempo, tratados nos captulos 3 e 4, respectivamente, podem ser sintetizadas na compreenso de que os fatos ocorrem em um contexto espao-temporal. Assim, tanto espao quanto tempo tm lugar privilegiado na memria coletiva. O tempo, todavia, existe na sua multiplicidade, convencionado apenas para comportar a organizao do trabalho humano, mas nem sempre est integrado ao espao da memria que, s vezes, comporta idia temporais diferentes como infncia, primavera, etc.


Com menor intensidade, o anexo final da obra trs uma reflexo sobre a memria coletiva entre os msicos, do que aproveitamos para refletir sobre a msica enquanto memria e identidade entre os negros africanos trazidos aqui para o Brasil. fato, e espera-se que tenha ficado claro, que a abordagem de Halbwachs insere-se num contexto que faz frente tendncia de individualizao e fragmentao do indivduo cada vez mais evidente na nossa sociedade. Apresentar esses elementos no seu aspecto coletivo possibilita situar o estudo da histria na valorizao do plural, inclusive das formas de expressp. 25
"Fazemos apelo aos testemunhos para fortalecer ou debilitar, mas tambm para completar, o que sabemos de um evento do qual j estamos informados de alguma forma, embora muitas circunstncias nos paream obscuras. Ora, a primeira testemunha, qual podemos sempre apelar, a ns prprios."
/
"Se o que vemos hoje tivesse que tomar lugar dentro do quadro de nossas lembranas antigas, inversamente essas lembranas se adaptariam ao conjunto de nossas percepes atuais. Tudo se passa como se confrontssemos vrios depoimentos."
p. 26
"Mas nossas lembranas permanecem coletivas, e elas nos so lembradas pelos outros, mesmo que se trate de acontecimentos nos quais s ns estivemos envolvidos, e com objetos que s ns vimos. porque, em realidade, nunca estamos ss. No necessrio que outros homens estejam l, que se distinguam materialmente de ns: porque temos sempre conosco e em ns uma quantidade de pessoas que no se confundem."
p. 34
"Para que nossa memria se auxilie com a dos outros, no basta que eles nos tragam seus depoimentos: necessrio ainda que ela no tenha cessado de concordar com suas memrias e que haja bastante pontos de contato entre uma e outras para que a lembrana que nos recordam possa ser reconstruda sobre um fundamento comum."
p. 47
"Quantas vezes exprimimos ento, com uma convico que parece toda pessoal, reflexes tomadas de um jornal, de um livro, ou de uma conversa. Elas correspondem to bem nossa maneira de ver que nos espantaramos descobrindo qual o autor, e que no somos ns."
/
"Toda a arte do orador consiste talvez em dar queles que o ouvem a iluso de que as convices e os sentimentos que ele desperta neles no lhes foram sugeridos de fora, que eles nasceram deles mesmo, que ele somente adivinhou o que se elaborava no segredo de suas conscincias e no lhes emprestou mais que sua voz."
/
"Quantos homens tm bastante esprito crtico para discernir, naquilo que pensam, a parte dos outros, e confessar a si mesmos que, no mais das vezes, nada acrescentam de seu?"
/
"na medida em que cedemos sem resistncia a uma sugesto de fora, acreditamos pensar e sentir livremente. assim que a maioria das influncias sociais que obedecemos com mais freqncia nos passam despercebidas."
p. 49
"as lembranas que nos so mais difceis de evocar so aquelas que no concernem a no ser a ns, que constituem nosso bem mais exclusivo, como se elas no pudessem escapar aos outros seno na condio de escapar tambm a ns prprios."
p. 50
"Os atrativos desses atalhos pertencem aos dois caminhos e os conhecemos: mas preciso alguma ateno, e talvez algum acaso, para que tornemos a encontr-los; e podemos percorrer um grande nmero de vezes um e outro sem ter a idia de procur-los, sobretudo quando no podemos contar, para nos sinalizar, com os passantes que seguem algum desses caminhos, porque eles no se preocupam em ir a onde conduziriam os outros."
p. 51
"cada memria individual um ponto de vista sobre a memria coletiva, [...] este ponto de vista muda conforme o lugar que ali eu ocupo, e [...] este lugar mesmo muda segundo as relaes que mantenho com outros meios."
/
"Dessas combinaes, algumas so extremamente complexas. por isso que no depende de ns faz-las reaparecer. preciso confiar no acaso, aguardar que muitos sistemas de ondas, nos meios sociais onde nos deslocamos materialmente ou em pensamento, se cruzem de novo e faam vibrar da mesma maneira que outrora o aparelho registador que nossa conscincia individual."
p. 52
"a lembrana aparece pelo efeito de vrias sries de pensamentos coletivos em emaranhadas, e [...] no podemos atribu-la exclusivamente a nenhuma dentre elas."
p. 55
"memria autobiogrfica e memria histrica. A primeira se apoiaria na segunda, pois toda histria de nossa vida faz parte da histria em geral. Mas a segunda seria, naturalmente, bem mais ampla do que a primeira. Por outra parte, ela no nos representaria o passado seno sob uma forma resumida e esquemtica, enquanto que a memria de nossa vida nos apresentaria um quadro bem mais contnuo e denso."
/
"a histria, com efeito, assemelha-se a um cemitrio onde o espao medido e onde preciso, a cada instante, achar lugar para novas sepulturas."
p. 60
"No na histria aprendia, na histria vivida que se apia nossa memria."
p. 65
"Os avs se aproximam das crianas, talvez porque, por diversas razes, uns e outros se desinteressam dos acontecimentos contemporneos sobre os quais se fixa a ateno dos pais."
p. 67
"A histria no todo o passado, mas tambm no tudo aquilo que resta do passado. Ou, se o quisermos, ao lado de uma histria escrita, h uma histria viva que se perpetua ou se renova atravs do tempo e onde possvel encontrar um grande nmero dessas correntes antigas que haviam desaparecido somente na aparncia."
p. 68
"costumes modernos repousam sobre antigas camadas que afloram em mais de um lugar."
p. 71
"a lembrana em larga medida uma reconstruo do passado com a ajuda de dados emprestados do presente, e alm disso, preparada por outras reconstrues feitas em pocas anteriores e de onde a imagem de outrora manifestou-se j bem alterada."
p. 72
"No tenho nenhuma memria das pocas ou dos momentos que senti vivamente." (Stendhal, Vie de Henri Brulard)
/
" medida em que os acontecimentos se distanciam, temos o hbito de lembr-los sob a forma de conjuntos, sobre os quais se destacam s vezes alguns entre eles, mas que abrangem muitos outros elementos, sem que possamos distinguir um do outro, nem jamais fazer deles uma enumerao completa."
p. 75
"H muitos graus nesta ignorncia ou nesta incompreenso, e num e noutro sentido, no atingimos jamais o limite da clareza total ou da sombra inteiramente impenetrvel."
p. 77
"A imaginao [...] ocupou as lacunas de sua memria: em sua narrativa tudo parece merecer f, uma mesma luz parece iluminar todas as paredes; mas as fissuras se revelam quando as consideramos sob um outro ngulo."
p. 80
"porque geralmente a histria comea somente no ponto onde acaba a tradio, momento em que se apaga ou se decompe a memria social. Enquanto uma lembrana subsiste, intil fix-la por escrito, nem mesmo fix-la, pura e simplesmente. Assim, a necessidade de escrever a histria de um perodo, de uma sociedade, e mesmo de uma pessoa desperta somente quando eles j esto muito distantes no passado, para que se tivesse a oportunidade de encontrar por muito tempo ainda em torno de si muitas testemunhas que dela conservem alguma lembrana."
p. 85
"A histria uma e podemos dizer que no h seno uma histria."
/
"O mundo histrico como um oceano onde afluem todas as histrias parciais. No de estranhar de que na origem da histria, e mesmo em todas as pocas, se tenha sonhado escrever tantas histrias universais."
p. 90
"as divises do tempo, a durao das partes assim fixadas, resultam de convenes e costumes, e [...] exprimem tambm a ordem, inelutvel, segundo a qual se sucedem as diversas etapas da vida social."
p. 92
"outros tantos osis, onde, precisamente, esquece-se o tempo, mas onde, em contapartida, nos encontramos."
/
"a sociedade, obrigando-nos a medir sem parar a vida sua maneira, nos torna cada vez mais inaptos para faz-lo da nossa."
p. 96
"no existe[m], na realidade, estados, porm movimentos, ou um pensamento incessantemente em devir."
p. 99
"O trgico da dor, que faz com que, levada at um certo ponto, crie em ns um sentimento desesperado de angstia e impotncia, que sobre um mal cuja causa est naquelas regies de ns mesmos onde os outros no podem chegar, ningum pode fazer nada j que nos confundimos com a dor e que a dor no pode destruir a si mesma."
p. 99 a 100
"Em nosso pensamento, na realidade, cruzam-se a cada momento ou em cada perodo de seu desenvolvimento, muitas correntes que vo de uma conscincia a outra, e das quais ele o lugar de encontro. Sem dvida, a continuidade aparente daquilo que chamamos nossa vida interior resulta em parte de que ela segue, por algum tempo, o curso de uma dessas correntes."
p. 113
"h tantos grupos quantas so as origens dos diferentes tempos. No h nenhum deles que se imponha a todos os grupos."
p. 118
"os acontecimentos dividem o tempo mas no o preenchem."
p. 123
"o que impessoal tambm o mais estvel."
p. 125
"Na atividade mesma daqueles que executam uma construo, h sempre mais inquietude do que alegria."
p. 126
"o grupo familiar mais amplo[,] tem mais dificuldade em se isolar materialmente: oferece uma superfcie maior aos olhares dos outros, uma abertura maior opinio."
p. 126 a 127
"Para encontrar uma cidade antiga no labirinto das novas ruas que pouco a pouco circundaram e transformaram casas e monumentos, [...] no se recua do presente ao passado seguindo em sentido inverso e de modo contnuo a srie dos trabalhos, demolies, traados das ruas, etc., que modificaram progressivamente o aspecto dessa cidade. Mas para reencontrar caminhos e monumentos antigos, conservados, alis, ou desaparecidos, guiamo-nos pela planta geral da cidade antiga, transportamo-nos em pensamento at l, o que sempre possvel queles que ali viveram, antes que se tivesse ampliado e reconstrudo os velhos quarteires, e para quem esses muros ainda de p, essas fachadas de outro sculo, esses trechos de ruas guardam sua significao de outrora."
p. 129
"o que caracteriza a memria , pelo contrrio, o fato de que ela nos obriga a nos determos, a nos afastarmos momentaneamente desses fluxos e, seno a percorrer a corrente, pelo menos a nos engajarmos numa direo oblqua, como se ao longo dessa srie contnua houvesse uma quantidade de pontos que originam bifurcaes."
p. 130
"Sociedades religiosas, polticas, econmicas, familiares, grupos de amigos, relaes, e mesmo reunies efmeras de salo, numa sala de espetculos, na rua, todas imobilizam o tempo sua maneira, ou impem a seus membros a iluso de que por uma certa durao, ao menos, num mundo que se transforma incessantemente, algumas zonas adquiriram uma estabilidade e um equilbrio relativos, e que nada de essencial ali se transformou por um perodo mais ou menos longo."
p. 131
"Auguste Comte observou que o equilbrio mental decorre em boa parte e, primeiro, pelo fato que os objetos materiais com os quais estamos em contato dirio mudam pouco, e nos oferecem uma imagem de permanncia e estabilidade."
/
"quando algum acontecimento nos obriga tambm a nos transportamos para um novo entorno material, antes de a ele nos adaptarmos, atravessamos um perodo de incerteza, como se houvssemos deixado para trs toda a nossa personalidade, tanto verdade que as imagens habituais do mundo exterior so inseparveis do nosso eu."
p. 132
"cada objeto encontrado, e o lugar que ocupa no conjunto, lembram-nos uma maneira de ser comum a muitos homens."
p. 133
"o lugar recebeu a marca do grupo, e vice-versa. Ento, todas as aes do grupo podem se traduzir em termos espaciais.
p. 134
"Ser o contraste entre a impassividade das pedras e o tumulto no qual se encontram que os persuade que apesar de tudo nada est perdido, j que as paredes e as casas permanecem em p?"
p. 135
"os homens, presos s correntes que seguem as ruas, quer se apresentem como multido, quer se dispersem e paream querer mutuamente fugir umas das outras e se evitar, assemelham-se a partes de matria comprimidas umas contra as outras, ou em movimento, e que obedecem, em parte, s leis da natureza inerte. Assim se explica sua insensibilidade aparente, de que as acusamos injustamente, como natureza sua indiferena, no obstante, para nos acalmar, pe-nos em equilbrio, colocando-nos, por um instante, sob a influncia do mundo e das foras fsicas."
p. 136
"Quando um grupo humano vive muito tempo em lugar adaptado a seus hbitos, no somente os seus movimentos, mas tambm seus pensamentos se regulam pela sucesso das imagens que lhe representam os objetos exteriores."
p. 155
"para os santos, tudo santo" [provrbio?]
p. 159
"h tantas maneiras de representar o espao quantos sejam os grupos."
p. 160
"cada sociedade recorta o espao a seu modo [...] de modo a constituir um quadro fixo onde encerra e localiza suas lembranas."
/
"No certo ento, que para lembrar-se, seja necessrio se transportar em pensamento para fora do espao, pois pelo contrrio somente a imagem do espao que, em razo de sua estabilidade, d-nos a iluso de no mudar atravs do tempo e de encontrar o passado no presente; mas assim que podemos definir a memria; e o espao s suficientemente estvel para poder durar sem envelhecer, nem perder nenhuma de suas partes."
p. 161
"A lembrana de uma palavra se distingue da lembrana de um som qualquer, natural ou musical, nisto que ao primeiro corresponde sempre um modelo ou um esquema exterior, determinado seja pelos hbitos fonticos do grupo [...] seja sob a forma impressa [...], enquanto a maioria dos homens, quando ouvem sons que no so palavras, podem dificilmente compar-los a modelos puramente auditivos, porque estes lhes faltam."
p. 162
"Berlioz contou em suas memrias que uma noite comps mentalmente uma sinfonia que lhe parecia admirvel. Ia anot-la, quando pensou que para execut-la[,] seria necessrio perder tempo demais e dinheiro em diligncias, quando decidiu renunciar a isto e nada anotou."
p. 163
"Os sons musicais no se fixaram na memria sob a forma de lembranas auditivas, mas aprendemos a reproduzir um seqncia de movimentos vocais."
p. 165
" porque os sinais e combinaes musicais simples subsistem no crebro, que intil que ali se conservem tantas combinaes complexas, e basta que as ltimas estejam assinaladas em folhas de papel. A partitura desempenha ento aqui, o papel de substituto material do crebro."
p. 169
"quando um homem esteve no seio de um grupo, ali aprendeu a pronunciar certas palavras, numa certa ordem, pode sair do grupo e dele se distanciar. Enquanto ainda usar essa linguagem, podemos dizer que a ao do grupo se exerce sobre ele."
p. 170
"As palavras tambm so mais numerosas do que as letras, e as combinaes de palavras so mais numerosas do que as prprias palavras. O que h de novo em cada pgina, no so as palavras, nem mesmo os membros da frase: tudo isto reteramos bem depressa. O que preciso reter agora ou compreender, aquilo sobre o que a ateno deve se concentrar, a combinao dos temas elementares, das combinaes de notas ou de palavras j conhecidas. Assim se encontra reduzida e simplificada a tarefa da memria."
p. 172
"para aprender uma linguagem qualquer, preciso submeter-se a um adestramento difcil, que substitua nossas reaes naturais e instintivas por uma srie de mecanismos dos quais encontramos o modelo totalmente fora de ns, na sociedade."
p. 174
"O ritmo um produto da vida em sociedade. O indivduo sozinho no saberia invent-lo."
p. 177
"se a arte imita assim a natureza, porque dela retira uma parte de seus efeitos."
p. 177 a 178
"O leigo isola a melodia da sonata. Inversamente, o msico separa a cano das outras canes, ou numa mesma cano separa a melodia das palavras, e mesmo alguns compassos de melodia inteira. Assim separada, despojada, desfalcada de parte de sua substncia, a melodia vai ser agora levada para [a] sociedade dos msicos, e logo se apresentar sob novo aspecto. Associada a outras seqncias de sons, fundida talvez a um outro conjunto, seu valor, o valor de suas partes, ser determinado por suas relaes com esses elementos musicais que lhe eram estranhos at ento."
p. 179
"[A msica ] uma operao de aritmtica oculta feita por um esprito que ignora que conta." (Leibniz, sem referncia de obra)
p. 180
"Quer se leia, quer se execute, no basta compreender os sinais: um artista os interpreta sua maneira, inspirando-se em suas disposies afetivas do momento, ou de sempre."
/
"as regras no substituem o gnio".
p. 181
"no necessrio ser iniciado nas regras dessa arte, ser capaz de ler primeira vista as notas, para sentir prazer num concerto."
/
"no pensa em nada, [...] lhe basta ouvir, [...] est perpetuamente no presente, e [...] todo o esforo de pensamento o distrairia daquilo que importa somente, isto , a msica.
/
"a melhor msica aquela que posso ouvir pensando naquilo que me faz mais feliz. (Stendhal, Lettres ses amis)
/
"quando uma msica me ala a pensamentos elevados sobre o assunto que me ocupa, qualquer que seja, essa msica excelente para mim. Toda msica que me permite pensar na msica medocre para mim." (Stendhal, Lettres ses amis)
p. 181 a 182
"qualquer que seja nossa disposio interior, parece que toda msica, em certos momentos, pode mant-la, aprofund-la, aumentando sua intensidade. Tudo se passa como se a sucesso dos sons nos apresentasse uma espcie de matria plstica que no tem significao definida, mas que est prestes a receber aquela que nosso esprito estivesse disposto a dar-lhe."
p. 183
"Haveria ento dois modos de ouvir msica, a ateno se concentrando nos sons e suas combinaes, isto , sobre os aspectos e objetos musicais, propriamente ditos, ou o ritmo e a sucesso de notas sendo apenas um acompanhamento de nossos pensamentos que arrastam em seu movimento."
/
"Ns nos enganamos certamente se acreditamos que os compositores pegam sua pena e o papel com a modesta inteno de expressar isto ou aquilo, descrever, pintar. Mas, no faam pouco caso das influncias contingentes e das impresses exteriores."
p. 184
"para um escultor, todo ator se torna uma escultura imvel, para um pintor todo poema um quadro, e o msico transmuda todo quadro em sons." (Robert Schumann, Gesammele Schriften ber Musik und Musiker)
p. 187
"no possvel reter uma massa de lembranas em todas as suas sutilezas e nos mais precisos detalhes, a no ser com a condio de colocar em ao todos os recursos da memria coletiva."