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h ARTES, LETRAS E IDEIAS PARTE INTEGRANTE DO HOJE MACAU Nº 2891. NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE LISBOA A CIDADE SAGRADA

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Suplemento h - Parte integrante da edição de 12 de Julho de 2013

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PARTE INTEGRANTE DO HOJE MACAU Nº 2891. NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE

LISBOAA CIDADE SAGRADA

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I D E I A S F O R T E S

LISBOA ESOTÉRICAA CIDADE SAGRADA

Vítor Mendonça

Existe alguma relação entre a cidade de Lisboa e o antigo culto ao deus Lug?Lisboa está internamente ligada ao an-cestral culto do deus Lug, divindade su-prema do panteão Lígure que, além de resistir à invasão dos Celtas, assimilou os ocupantes recém-chegados, legando--lhes os seus lugares (lug+ara, altar de Lug) de culto, as suas montanhas, rios e pedras sagradas. Lug, deus tão antigo e poderosamente enraizado que ainda hoje lhe surpreendemos o alento e os vestígios na toponímia das Gálias e em todo o es-paço da Península Ibérica onde os Árabes não impuseram a sua presença e cultura.

Entre esses vestígios quais são os mais os mais antigos ou possíveis de divulgar? São as marcas indeléveis da presença de Lug, os lugares “Lug”, como os de Lo-groño e Lugo, no caminho de Santiago de Compostela e nos trilhos iniciáticos da História Secreta da Península Ibez a Ibéria. Raízes ancestrais impregnando de

A PRAÇA DO COMÉRCIO OU TERREIRO DO PAÇO FOI CONSTRUÍDO SEGUNDO O SAGRADO

“LIVRO DE THOT”, MAIS CONHECIDO PELO NOME DE TAROT, ENQUANTO A RUA AUGUSTA,

LADEADA PELAS RUAS DO OURO E DA PRATA, COM O ARCO MONUMENTAL, CONSTITUEM

UM CONJUNTO ARQUITECTÓNICO MAS INICIÁTICO CAPAZ DE NOS ABRIR OS OLHOS PARA O

VERDADEIRO SIGNIFICADO DA CIDADE DE LISBOA. PARA VITOR ADRIÃO, UM CABALISTA E TE-

ÚRGICO, “LISBOA É A CIDADE DA VELHA MÃE LUSINA, COMPANHEIRA DO DEUS LUG, A GRAN-

DE DEUSA DOS LÍGURES E DOS CELTAS, A BOA LUSI OU LUSINA, A LUSIBONA OU LISIBONA”.

mistério a cidade da boa deusa Lusi e do grande Lug, obreiro universal, demiurgo, mestre de artes e alquimista, músico, guer-reiro e mago, o pode- roso tutelar da Lusi-tânia que os Lígures e os Celtas transpor-taram consigo na sua marcha para o Sul, em direcção ao Grande Ocidente, pela rota da Via Láctea e da Estrela do Cão, isto é, de Ísis e de Osíris ou estrela Sirius, nos confins da Terra, “as finis-terrae”.

Existe algum significado simbólico no facto de Lisboa ser uma cidade com sete colinas?Lisboa, como todas as cidades de sete

colinas a exemplo das quais aponta-rei Jerusalém e Roma, dentre outras, é considerada pela Tradição Teúrgica uma urbe sagrada. Decifrando-se o seu pró-prio nome de Lisboa (Lis+Boa), teremos a sacralidade do lugar desvelada. A Flor de Liz, símbolo de Iniciação e Mistério, representa o Sol Tríplice ou Santíssima Trindade expressa na figura Pontifícia e Imperial de Melki-Tsedek, o Prestes João, o “Vicente, corvo-humano” nos Painéis de Nuno Gonçalves. O termo “Boa” além de designar a “água” designa também a coluna salomónica Boz ou Bo-haz, pilar de Deus sito aos pés do Tejo,

no Cais, portanto lugar representativo da cidade. Indicando a Beleza Univer-sal, nela está a Força e o Rigor com que termina o nome de Lisboa, e nessa colu-na a Lisboa cidade aos pés do Tejo finda.

Há quem afirme que Lisboa foi funda-da por Ulisses e sua contraparte Ulis-sipa...Ulisses e a sua contraparte Ulissipa são formas helénicas e antropomórficas do “celtizados” Lug e Lusina, designando astrolaticamente o Sol e a Lua. Na rea-lidade, quer uns quer outros, encobrem realidades mais profundas remontando à própria Atlântida quando Lisboa foi fundado pelo Príncipe Lissipo e a Prin-cesa Lissipa, filhos da Rainha Ulisi-Pa ou Ibez (donde derivaria o onomástico he-breu Ibéria) e do Rei Mani-Pura, Curavia ou Curata, Senhor dos Nagas ou “Seres Serpentários”, Ofiússas, do Patala (aqui, o “Ocidente”), segundo velhos textos do Oriente, Sacerdotes Iniciados de uma Ordem de Santos e Sábios ou “Homens--Serpentes”, remontando daí a Tradição de que Lisboa é a cidade da “Grande

LISBOA, COMO TODAS AS CIDADES DE

SETE COLINAS, A EXEMPLO DAS QUAIS

APONTAREI JERUSALÉM E ROMA, DENTRE

OUTRAS, É CONSIDERADA PELA TRADIÇÃO

TEÚRGICA UMA URBE SAGRADA.

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Serpente” (Kundalini), e as sete colinas os “seus sete anéis”. Também a tradição, lavrada em textos velados, de que a Princesa Lissipa deixou cair ao Rio o seu anel com um pentagrama esculpido com pedras preciosas e que depois foi encon-trado no buxo de um peixe acabado de pescar, é indicativo de que Portugal já na Atlântida estava sob a égide do signo de Peixes e que Lisboa já então se reve-lava pelo Feminino Iluminado, a Ofiússa ou Sibila, dando o seu contributo a uma longínqua mas pressentida “5.ª Coisa” a fazer. Enfim, para nós realidades inserta no que chamamos a História da Obra Divina, mas para outros factos, se é que alguma vez os foram, profundamente contestáveis, sem dúvida, e que as fábu-las e contos locais se encarregaram de encobrir sob o véu da fantasia e do fado que, mesmo assim, chora a saudade.

O TERREIRO DO PAÇOQue simbologia pode conter a Praça do Comércio ou Terreiro do Paço?O Terreiro do Paço, na disposição linear do seu talhe, no alinhamento das suas artérias, no ritmo geométrico da sua arcaria é a lâmpada de Aladino (Allah--Jin, em persa) que franqueia a porta que conduz à gruta subterrânea, onde jazem os maravilhosos tesouros escondidos, até aqui, aos olhares profanos. A Praça dos Arcos é o átrio que nos conduz ao Santuário das sete colinas, o Templo da Sabedoria.

E o famoso Arco da Rua Augusta?O Arco da Rua Augusta tem profundo significado esotérico. Todas as cidades alicerçadas sobre sete colinas possuem o seu Arco do Triunfo ou da Salvação. O de Lisboa é a síntese sagrada e tam-bém estética dos demais espalhados pela Europa e Médio-Oriente. Desig-na o Umbral dos Mistérios, a passagem das trevas para a Luz, da morte para a Imortalidade que a Sabedoria das Idades concede. Neste Arco encontram-se as figuras de quatro personagens impor-tantes de nossa História: Viriato, chefe dos Lugsignan, os Lusitanos, que deram o sentido da Nacionalidade nascente; Vasco da Gama, almirante da Ordem de Cristo e que ligou a Ásia à Europa por Via Atlante, quer é dizer, Marítima; Se-bastião de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal, que coadjuvado por operati-vos maçónicos ingleses, franceses, hún-garos e portugueses, reconstruiu a velha Lisboa depois do terramoto de 1755 e ordenou reformas sociais as quais abri-ram um novo ciclo na nossa História; e o Santo Condestável Nuno Álvares Pereira (ligado à Casa de Bragança que, por Lei de Causalidade, veio depois a governar o Brasil, sendo o seu primeiro Governador Geral D. Tomé de Souza), o qual alguns teimam em associar à figu-ra do Infante D. Henrique, também este vulto imponente na História Portuguesa que o torna deveras ímpar, indo a sua influência directa desde as conquistas militares à abertura de novas cadeiras universitárias, ao apoio às Ordens de Cavalaria e Religiosas, até chegou ao ci-

clo das Descobertas marítimas que já se habitou chamar de Período Henriquino, sob o signo do Prestes João, já indício da vindoura Era do Aquário de abertura e expansão universal.Ladeando essas quatro personagens es-tão as estátuas alegóricas do Tejo e do Douro, precisamente os divinos Génios de Lisboa e do Porto, as cidades-gémeas expressivas das colunas salomónicas Bo-haz  eJakin, precisamente expressadas

nas cores negra e branca patentes na bandeira da sempre nobre e leal cidade de Lisboa.

Quem foram os autores dos dois gru-pos escultóricos dos quais nos acaba de decifrar o significado?O grupo escultórico de que acabamos de falar é da autoria de Vítor Figueiredo de Bastos, enquanto o grupo alegórico que encima o Arco foi obra do pedrei-

ro-livre e escultor francês Camels. Ele representa aí Ibez ou Ibéria, aqui como Grande Mãe Universal, laureando, co-roando Apolo e Minerva, a Iluminação e o Entendimento. Ela é a Laureada, a “Coroa dos Magos” da 22.ª lâmina do Tarot.

OS ARCOS E OS ARCANOS DO TAROTSe existem analogias com o Tarot, no Arco, haverá mais representações sim-bólicas do Tarot ou Terreiro do Paço?O Livro de Thot, mais conhecido pelo nome de Tarot é, como se sabe, consti-tuído por 78 cartas ou lâminas, original-mente de ouro fino ou crisopeico e prata argiopeica, pertencendo as primeiras 22 lâminas aos Arcanos Maiores, ou Eso-téricos, e as restantes 56 aos chamados Arcanos Menores, ou Exotéricos. Existe uma intencionalidade na própria arcaria do Terreiro do Paço ultra- passando, sem dúvida, a sua função estrutural da sua arquitectura. Os edifícios laterais contêm 28 arcos cada um, cuja soma to-tal é de 56 arcos, ou Arcanos Menores. Na fachada principal, entre as Ruas do Ouro e da Prata, contamos, por outro lado, 22 arcos, 11 em cada direcção, a partir da Rua Augusta. Ora 22 arcos correspondem, exactamente, ao número dos 22 Arcanos Maiores ou Iniciáticos. Se aplicarmos a cada arco o arcano que lhe corresponde, possuímos a chave in-terpretativa de um ciclo completo de manifestação: relativamente aos 56 ar-cos, a manifestação profana, e quanto aos 22 arcos frontais, entre as Rua do Ouro e da Prata, a realização oculta. So-bre isso, cito agora um trecho, datado de 30.7.1951, de uma obra impublicável do Prof. Henrique José de Souza, “O Li-vro do Loto”, e que tem a ver com tudo quanto vimos dizendo: “Repare-se como o Arco da Rua Augusta se parece com o do Palácio da Aclamação, na capital baiana. VIRTUTIBUS MAIORUM (me-lhor dito, MAJORUM), é o lema da Rua Augusta. De cada lado do referido Arco da Rua Augusta, figuram 11 portais. Ele é, portanto, o 23.º, como primeiro Arca-no Menor. A estátua do frontispício, na sua parte mais alta, coroa um Homem e uma Mulher. Em baixo também se fala num DOCUMENTO P.P.D., que antes deveria ser L.P.D. Deve ser um lema la-tino referente a PORTUGAL”.

Podemos considerar Lisboa como uma das cidades europeias mais ricas, sob o ponto de vista monumental?Lisboa é, de facto, a capital da Europa no contexto monumental, não esque-cendo a arte vitral, a azulejaria e a pin-tura. Talvez os painéis de Nuno Gon-çalves quiçá sejam o maior exemplo, e certamente não estão devidamente lidos e interpretados, pois este Políptico en-cerra a génese e linhas gerais do desen-volvimento Lusitano e Ibérico no geral, muito além da interpretação vulgar que tão mal se é uso e costume dar-se-lhe.Por isso e por toda a beleza e grandio-sidade estética e esotérica de Lisboa, apelo às respectivas autoridades para que concedam uma maior protecção ao

O ARCO DA RUA AUGUSTA TEM PROFUNDO

SIGNIFICADO ESOTÉRICO. TODAS AS

CIDADES ALICERÇADAS SOBRE SETE

COLINAS POSSUEM O SEU ARCO DO

TRIUNFO OU DA SALVAÇÃO. O DE LISBOA É

A SÍNTESE SAGRADA E TAMBÉM ESTÉTICA

DOS DEMAIS ESPALHADOS PELA EUROPA E

MÉDIO-ORIENTE.

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nosso maravilhoso património nacional, particularmente ao património lisboeta, afinal de conta, a nossa Memória, a Me-mória do Povo Português. É sumamen-te doloroso, e só arrancando lamentos d´alma, ver-se hoje tão maltratado o pa-trimónio monumental da capital, vítima da poluição motora e da inconsciência de partidários políticos ou desportivos, servindo-se dos monumentos como quadros para borrar os seus “slogans” e símbolos, sujando e destruindo a nossa estatuária ímpar. A perder-se será algo irrecuperável pois com ela se perderá muito da nossa Alma Lusitana, ademais, os Mestres Arquitectos e Canteiros há muito que se foram... O CAVALEIRO DA ESTÁTUA No centro do Terreiro do Paço está a estátua que se diz ser de D. José, da autoria de Machado de Castro, tem-plário e escultor da escola de Mafra. Será que também nela se manifesta um simbolismo oculto?Há que saber ver e ler, para além do sim-bolismo aparente, o verdadeiro signifi-cado da estatuária deste aro esotérico da Baixa Pombalina, tanto mais que todos os seus escultores houveram talhado o seu carácter, saber e arte no escrínio ini-ciático de Confrarias esotéricas, fossem (Neo) Templárias, fossem Maçónicas. O cavaleiro da estátua, empunhando o ceptro imperial mandatário e cobrindo--se com um manto, quiçá vermelho, semelhante aos que usavam os cavalei-ros da ordem de Cristo e cuja montada branca esmaga as serpentes, sugere ser a própria imagem de S. Jorge, para a Tradição, o Vigilante Silencioso da Pá-tria Lusitana, expressando na Terra ao próprio e psicopompo S. Miguel, afinal, este o Metraton para aquele o Sandal-phon.O anjo da trombeta, junto do elefante, e o anjo da palma, junto dum cavalo, am-bos esmagando o homem velho e a pro-fanidade, designam as Tradições Iniciá-ticas Oriental-Ocidental unidas, encon-tradas em Portugal, onde acaba a terra e o vasto mar começa. Atrás do cavaleiro, nas costas da estátua, encontra-se escul-pida a alegoria da aparição do Menino Coroado, sob o apadrinhamento de sua Santa Mãe, sugerindo o futuro Reinado do Espírito Santo, tese já perfilhada pelo abade cisterciense da Calábria, Joaquim de Flora, no século XIII. A arca aberta de um tesouro está aos pés do Menino, e um arquitecto mostra-lhe o plano da Nova Lisboa. Ilustração semelhante a essa encontra-se numa tapeçaria no Convento de Mafra. Por falar em Mafra, símile do Templo de Salomão, as suas dimensões são exactamente as mesmas do Terreiro do Paço e onde se encon-tra, naquele, o seu altar-mor, está neste precisamente a estátua equestre de D. José I ou de S. Jorge, aqui nesta Praça dos Arcos ou Arcanos. Terrível coinci-dência, mais por causalidade do que por casualidade...Mais uma vez, a sibilina profecia de Sintra faz eco: “Patente me farei aos do

Ocidente / Quando a Porta se abrir lá do Oriente / Será cousa pasmosa quan-do o Indo / Quando o Ganges trocar, segundo vejo / Seus (divinos) efeitos com o Tejo”.

ARTÉRIAS DA BAIXA E O CADUCEU DE MERCÚRIOGostaríamos de voltar às três ruas da”Baixa”. Qual o seu significado?Do Terreiro do Paço partem as princi-pais artérias: Rua Augusta, Rua do Ouro e Rua da Prata. Quando dizemos arté-rias aplicamos o termo próprio, pois é de artérias que se trata. As Ruas do Ouro e da Prata, com a Rua Augusta, representam o caduceu de Hermes, ou de Thot, e como é sabido, o caduceu compõe-se duma coluna central em torno da qual sobem duas serpentes, uma dourada e outra prateada, respec-tivamente uma solar e outra lunar. Estas serpentes representam e são as artérias pelas quais flui a energia serpentina vi-tal, desdobrada nos seus dois aspectos complementares: o lunar que é frio e passivo, enquanto o solar é quente e activo. Na simbólica tradicional o ouro expressa o Sol e a prata a Lua. Torna-se claro que a Rua do Ouro corresponde ao aspecto solar do caduceu, a Rua da Prata ao lunar e que, finalmente, a Rua Augusta simboliza o bastão central, ca-nal de fusão e síntese destas duas forças polares. Através do caduceu pombalino temos acesso às sete colinas ou selos da Boa Liz: S. Vicente, em Alfama; St.º An-dré, na Graça; S. Jorge, na Mouraria; S. Roque, no Bairro Alto; St.ª Catarina, a partir do Camões; Santana, sobre o Lar-go da Anunciada, e Chagas, no Carmo. Interpretar estes sete padroeiros é inter-pretar o enigma críptico de Lisboa, que aqui não nos cabe fazer.

DA CONCEIÇÃO VELHA AO CASTELO DE S. JORGEAqui, na Rua da Alfândega, existe a igreja da Conceição Velha, cujo pórti-co é maravilhoso. Quais as figuras mais representativas do monumento?Junto do Terreiro do Paço temos a igre-ja de Conceição a Velha, o que nos re-mete à primitiva Concepção alquímica representada no Velho Testamento por Binah, tanto que antes de D. Manuel I este templo fora a sinagoga dos alfa-mitas ou residentes de Alfama. A sua fachada exterior, um misto de Gótico e Manuelino, respira e transpira o Fe-minino transcendente, o Marianismo, ou seja, expressa o aspecto matriarcal de Lisboa Oriental, representado pelo “Braço de Prata”, e também as várias fa-ses da Grande Obra Teúrgica/Alquími-ca, noutros termos, Ergon e Paraergon. Sendo a leitura desta fachada longa e exaustiva, apontarei somente uma per-sonagem, a da coluna central, suporte de todo o eixo escultórico, vestida de varina mas portando a espada e a ba-lança: é a antropomorfização da pró-pria Lisboa. A Bela Luz de Vénus que influi na nossa cidade sob a égide do signo zodiacal da Balança, profunda-

O ANJO DA TROMBETA, JUNTO DO

ELEFANTE, E O ANJO DA PALMA, JUNTO

DUM CAVALO, AMBOS ESMAGANDO

O HOMEM VELHO E A PROFANIDADE,

DESIGNAM AS TRADIÇÕES INICIÁTICAS

ORIENTAL-OCIDENTAL UNIDAS,

ENCONTRADAS EM PORTUGAL, ONDE

ACABA A TERRA E O VASTO MAR COMEÇA.

ATRÁS DO CAVALEIRO, NAS COSTAS DA

ESTÁTUA, ENCONTRA-SE ESCULPIDA A

ALEGORIA DA APARIÇÃO DO MENINO

COROADO, SOB O APADRINHAMENTO DE

SUA SANTA MÃE, SUGERINDO O FUTURO

REINADO DO ESPÍRITO SANTO

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mente ligada às origens histórica e te-úrgica do Homem e da Cidade.Penso mesmo que os motivos ornamen-tais do Arco da Rua Augusta acaso ter--se-ão inspira- do nas figuras herméticas desta fachada e do seu complemento no extremo oposto da cidade, na rota da “Costa do Sol”: a fachada de Santa Ma-ria, no Ocidente do Mosteiro de Belém, a entrada principal que se ficou deven-do ao cinzel do mestre-canteiro francês Nicolau de Chanterene, reinando D. Manuel I. Aliás, a imagem da Senhora da Estrela (donde, por corruptela, “Res-telo”) ou dos Reis Magos, uma Virgem Negra, da devoção extremada do Infan-te Henrique de Sagres, foi trasladada da capela do Restelo para Conceição a Velha, em procissão triunfal, pelos frei-res da Ordem de Cristo, ainda durante o reinado do supradito rei “Venturoso”...

Daqui, de onde estamos, vê-se o cas-telo de S. Jorge. O que nos pode dizer sobre essa construção?Pegando na geografia sagrada da cidade e transpondo-a, por analogia, à anato-mia humana, teremos o castelo de S. Jorge como o Mental regente de Lisboa. Durante largos séculos, aí estiveram os paços reais. Foi aí que Vasco da Gama, Pedro Álvares Cabral e Cristovão Co-lombo, nome guemátrico em que se en-cobria o português Salvador Gonçalves Zarco, por exemplo, receberam a apro-vação da Corte para a demanda de no-vos mundos para o Mundo Luso. Sobre o castelo cintila o planeta Júpiter e sen-do Júpiter, na Mitologia, o Pai dos Deu-ses, Deus ou Zeus, não é de admirar que a Península Ibérica esteja sob a égide do signo do Sagitário, este que expressa o Fogo Volátil purificador, o Pater Aether, que se torna Líquido ou purificado, na concepção alquímica, o que é personifi-cado pelo Tejo deslizando manso e do-lente às muralhas desta fortaleza.E são exactamente os Peixes zodiacais

do planetário deus Neptuno que regem Portugal, o Portugal da Divina Mãe, Ma-rum, Mare, Maris, Mariz... o Portugal das sempieternas Águas renova- doras, purificadoras e purificadas, verdadeiro Fogo Líquido que se esparge lustralmen-te como Luz das Nações, dos Ciclos do Mundo, e que se centra em Lisboa, esta a pretendida Capital do V Impé- rio do Espírito Santo, aportando à memórias as profecias e lances vaticinadores do Padre António Vieira, de Gonçalo Anes o Bandarra, de Fernando Pessoa, de Guerra Junqueiro e mesmo de Camões quando cita em “Os Lusíadas”, no canto sétimo: “Via estar todo o Céu determi-nado / De fazer de Lisboa nova Roma / Não o podendo estorvar que destinado / Está de outro Poder que tudo doma”.

O SANTO GRAALTERIA ESTADO NA SÉ DE LISBOAA Sé de Lisboa é alfobre de histórias incríveis. Edificada em três fases distin-tas, incluindo o paleocristão, o româ-nico e o gótico, consideram-na um dos mais enigmáticos edifícios sacros da cidade. Tem a mesma opinião?A Sé Patriarcal de Lisboa, mandada edi-ficar como templo cristão pelo rei D. Afonso I de Portugal, já teve no seu in-terior, e segundo certas tradições muito reservadas, a Taça do Santo Graal, a ori-ginal. Ela esteve aí em custódia durante cerca de quatro séculos e o seu culto foi mantido em segredo por uma misterio-sa Ordem de Santos Sábios, à qual as Ordens de Avis e do Templo deram co-bertura exterior. Isto aconteceu depois do ano 985 da nossa Era. Diz-se mesmo existir uma ligação subterrânea entre a Sé, o Castelo e o Convento do Carmo e que uma maldição fatal cairá sobre o profano e curioso que ousar afrontar es-ses misteriosos trilhos. Mais não posso dizer.Na Sé encontram-se, desde o século XII, as santas relíquias do mártir S. Vicente,

um dos padroeiros de Lisboa. No brasão da cidade figura a Nau, Barca ou Arca que transportou os restos mortais do santo e que acabou por aportar à cos-ta dos Algarves, mais precisamente ao Promontório Sacro, a ponta de Sagres. Na barca, como elementos heráldicos, também figuram dois corvos, os quais e segundo a tradição, acompanharam, como fiéis e atentos guardiões, os des-pojos do mártir na sua estranha odisseia até esta Sé Metropolitana de Santa Ma-ria Maior, depois convertida Patriarcal. O corvo, ave saturnina mas também so-lar, assimilando-se ao cisne negro e ao ganso negro, é o totem de Lisboa, o de-tentor da Sabedoria Divina e da Profe-cia “que perscruta o Passado e desvenda o Futuro”.

Chegados que somos ao Rossio, neste passeio pela arquitectura esotérica de Lisboa, depara- mos com a coluna de-dicada a D. Pedro IV. Como interpre-tar as figuras esculpidas?No topo desta coluna monumental avis-tamos D. Pedro IV que segura, com a mão direita, a Carta Constitucional de 29 de Maio de 1826. Esta obra foi adjudicada ao escultor Elias Robert e ao arquitecto Gabriel Davioud, ambos de nacionalida-de francesa. Assemelha-se o monumento a um falo desflorado, a um “linga” hindu ou “mundus” latino, e tem, no sopé, os Quatro Anjos do Destino de quanto vive e se desenvolve no Globo, esses “Fantas-mas Cósmicos” de Forças Maiores, por isso mesmo “Jinetes Anímicos”, estando demarcando estrategicamente, a partir do “mundus” central”, o espaço da “Lisboa quadrada”, correspondendo a cada ângu-lo um símbolo e naipe do Tarot, o que aliás cada um deles ostenta. Se uns lhes dão o nome de Mikael, Gabriel, Rafael e Auriel, então o quinto, representado pelo monarca no topo, futuro Imperador do Brasil, a “Nova Lusitânia” de Pedro de Mariz, acaso também será ele represen-

A SÉ PATRIARCAL

DE LISBOA,

MANDADA

EDIFICAR

COMO TEMPLO

CRISTÃO PELO

REI D. AFONSO I

DE PORTUGAL,

JÁ TEVE NO SEU

INTERIOR, E

SEGUNDO CERTAS

TRADIÇÕES MUITO

RESERVADAS,

A TAÇA DO

SANTO GRAAL,

A ORIGINAL.

ELA ESTEVE AÍ

EM CUSTÓDIA

DURANTE CERCA

DE QUATRO

SÉCULOS E O

SEU CULTO FOI

MANTIDO EM

SEGREDO POR

UMA MISTERIOSA

ORDEM DE SANTOS

SÁBIOS

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tação régia do 5.º Senhor em formação desse mesmo V Império do Mundo que se está formando.Um pouco acima estão as Tágides, os “espíritos naturais” do Tejo, as quais formam um cordão protector ou cadeia de união. É realmente, um monumento muito belo portador de um arcaico e transcendente simbolismo que nos re-porta, mesmo, às batalhas celestes entre Mikael Solus e Samael Petrus, as quais se terão reflectido, em nossa História, nas lutas sangrentas entre os absolutis-tas de D. Miguel I e os liberais de D. Pedro IV. Estes acabaram vencendo e se assenhoreando da Terra Lusa.

ESTAÇÃO DO ROSSIOA frontaria da gare da estação do Ros-sio, terminal ferroviário que liga Lis-boa a Sintra, está arquitecturada em gótico neoclássico. Qual o seu valor simbólico?Como o seu nome indica o gótico (da raiz gálica God, “Deus”) é um estilo que assinala a Ascese, a contemplação do Divino. Esta é a mais pura, sensível e es-tética expressão da arte arquitectónica de fixar na pedra antes bruta a polidez da Harmonia Universal, o que expressa o Gótico puro, que é flamejante, estilo cuja apoteose vai dos finais do século XIII aos finais do século XV. Na fachada da estação terminal do Rossio vêem-se duas arcadas cruzando-se à altura do ni-cho contendo a estátua de D. Sebastião, em tamanho natural, em atitude de defe-sa, a espada adiante do escudo inclinado 17 graus para a esquerda do possuidor. Seguindo um certo sentido, as arcadas sugerem as ferraduras do cavalo branco

do Encoberto que não é o jovem sonha-dor de delírios funestos el-rei D. Sebas-tião, mas antes este o emblemático régio de um outro Rei muito maior que há-de vir, quiçá o próprio retorno do Cristo em Aquarius? Sebastião em hebraico é Sbhs ou “Serpente”, é o Grande Dragão da Sabedoria, e não foi por acaso que foi o santo mais querido dos Templários, assim como Santo André o Arquitecto, um outro dos padroeiros de Lisboa.Repito: o jovem rei do mesmo nome ape-nas simbolizou algo muito mais elevado. Que se acabe de vez com a confusão que a temática sebastianista, não raro levada ao rubro de certas políticas reaccionárias, tem provocado. Já o Miguel de Nostra-damus, profeta visionário e hermetis-ta, leva-me a lembrar a sua centúria 32 aquando fito a estátua do Encoberto, dentro do nicho: “O grande império em breve terá mudado / Em primeiro Lugar, que cedo crescerá / Lugar bem ínfimo dum exíguo Condado / Em cujo meio seu ceptro pousará”. Ou mesmo a estrofe 70 das trovas de Gonçalo Anes, o Bandar-ra: “Portugal tem bandeira / Com cinco quinas no meio / E segundo vejo e creio / Esta é a cabeceira / E fora sua cimeira / Que em Calvário lhe foi dada / E será Rei da manada / Que vem de longa carreira”.

OS RESTAURADORES COM PROMETEU LIBERTO?Outro monumento, por sinal bem per-to deste, que possui figuras escultóri-cas sobre o significado das quais pou-cos se debruçam apesar de passarem, muitas vezes, por perto é o Obelisco dos Restauradores. Poderá desvendar o significado destas figuras?

O Obelisco dos Restauradores, situa-do na praça do mesmo nome, por sinal com 33 metros de altura, é decorado com dois anjos ongénios, sendo o mas-culino da autoria de Alberto Nunes e o feminino realizado por Simões de Almeida, enquanto o obelisco se deve a António Tomás da Fonseca e foi eri-gido em 1886 por subscrição nacional, promovida pela comissão central do 1.º de Dezembro. O anjo masculino repre-senta Prometeu Liberto, por seu Irmão Epimeteu ou Mercúrio; é Luzbel com os grilhões partidos, assim se assumindo na condição espiritual de Arabel e erguen-do alto a Lança da Vitória, da Vitória da Libertação do Cáucaso ou “cárcere carnal”, representada objectivamente na restauração da Independência Nacional do jugo Filipino, e tudo junto a Vitória dos Deuses que restauraram os valores ancestrais de Lisboa e do Mundo. O escudo triangular a seus pés ostenta o trigo e a vide, logo, em referência em referência à Santa Eucaristia do Rito de Melki-Tsedek, este se assume, em lin-guagem teosófica ou iniciática, como o actual “Planetário da Ronda”, o Quinto dos Sete “Melki-Tsedek”, que é sobretu-do uma função hierárquica directora su-prema dos destinos da Terra e de quanto nela vive e evolui.O anjo feminino representa a contra-parte do Senhor da Luz Restauradora, a Rainha do Mundo, Io, Ísis ou Algol, com outros nomes ainda, podendo-se corporificá-la também como a “Lusitâ-nia Triunfante”, a Entidade que coroa e abençoa Lisboa, Portugal e o Mundo com a Palma da Vitória. Na destra ela segura o laurel da mesma Vitória Nacio-

nal e Espiritual, a décima 13.ª grinalda expressiva de “A Grande Mãe”, estando as restantes predispostas em grupos de três nos pontos cardeais do monumen-to. As Armas nos lados deste assinalam as forças temporais da guerra e da morte derrotadas pelos poderes intemporais da razão e do espírito, estabilizados no pólo de atracção energética que é o Obelisco.

Mas Lisboa possui mais monumentos cuja descoberta do seu simbolismo esotérico muito daria que falar...Muito fica por dizer, de facto. Poder--se-ia falar, por exemplo, de quanto há de esotérico no antigo restaurante “Abadia” nas caves do Palácio Foz, nos Restauradores; da estátua portentosa do Marquês de Pombal, na rotunda que lhe leva o nome, cujo gradeamento em volta da mesma replete-se de alegorias maçónicas todas assentes sob o ceptro e o báculo, símbolos do Poder Temporal e da Autoridade Espiritual, e todo o mo-numento assente sobre a Barca de Por-tugal; do Convento do Carmo ou dos Carmelitas, descendentes daqueles cris-tãos primitivos, integrados aos Essénios, do Monte Carmelo, para as bandas da Palestina; da Basílica da Estrela, “símile” do Terceiro Logos, o Homem Cósmico Adam-Kadmon que na Terra é Adam--Heve; do Mosteiro dos Jerónimos e da Capela do Restelo, assim como da Cus-tódia de Belém e da Virgem Negra Ora-go desses dois últimos templos. E mais, muito mais ficando por dizer e assinalar, a memória falha ante a fartura da Lisboa Artística e Monumental, nisto, repito, já hoje Capital da Europa.

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AméliA VieirA

«LE MONDE DOIT être romantisé», um livro encan-tador de Novalis que explica bem o porquê de um título destes. Composto por fragmentos que o Romantismo do século XIX europeu tinha um código genético repleto de gentes que eram mais ou menos aquilo que sobrou do Cre-púsculo dos Deuses. De gentes que fizeram da Arte uma morada para os Homens e não um entretém de “soirées” dançantes, de “happenings” sem a largura de um vasto mo-vimento. Os Românticos foram de facto excepcionais. A poesia começa por uma Barcarola, na rima do «Velho Ma-rinheiro», a música dá-nos o melhor, a poesia transmite-nos como nenhuma outra o elo sagrado do Velo de Ouro dos dotes humanos.Holderlin, nascido ainda no século XVIII e a quem apelam de «Classicismo Romântico» foi o que melhor se deu no espírito poético de todos os tempos. O poeta será um «vaso sagrado» como todo aquele que se sacrifica aos deuses, terá de ser puro de coração e de mãos limpas de culpa. Aos Po-etas, que é o que de mais essencial se disse sobre a poesia.

Mas a nós cabe, sob a trovoada do deus, Ó poetas! Permanecer de cabeça descoberta, E com a própria mão agarrar o raio do Pai

Pois se nós formos puros de coração, Como crianças, e as nossas mãos sem culpa, O raio do Pai puro não o queimará

Nunca poderei explicar a forte impressão de ascese e reli-gioso instante que é ler um poema de Holderlin, sempre e claro, traduzido por Paulo Quintela. Holderlin vai partir para França… Escreve a Schiller que não responde à sua carta, quer partir, vai partir para Bordéus, espera-o a miserá-vel vida de preceptor, está exausto e triste, afinal, ele é um poeta e profundamente afectivo… Atravessa França a pé, e sabe da morte de Diotime, a sua amada. Este homem amigo de Shelley, por quem nutria uma admiração e amizade que

o marcariam, ele que pareceu desconhecer Goethe , ele que foi impulsionado a seguir a vida eclesiástica como o seu pai, um pastor protestante, foi o mais admirável e comoven-te dos Poetas. O Romantismo Clássico herança helénica , herança culturalmente onírica e poética, entendido. Foi um tradutor do grego, um excelente linguista, e ninguém melhor que Holderlin para tocar na interpretação de um poema como «A Morte de Empédocles».

Shelley é o mais destacado poeta do Romantismo euro-peu, por outro lado havia nos Românticos uma preocu-pação social sempre muito acentuada — veja-se os «Dis-cípulo em Sais» do mesmo Novalis. Shelley dar-nos-á a sua «Defesa da Poesia» e é aqui que encontramos o mais clarividente aspecto acerca do mistério da criação artísti-ca e a função do poeta na Sociedade, o que dá resposta também a uma pergunta de Holderlin: para quê poetas em tempo de indigência? Esta obra era, no entanto, para re-bater uma outra, tendo por isso intuitos polemísticos, in-titulada « Four Ages of Poetry». No entanto, rebatendo-a com aquela fúria sagrada que por vezes assola os poetas, e que é linda de se sentir e ver, faz assim o mais belo livro de pensamento e de consciência poética da literatura euro-peia. Uma pequena passagem: “Um poeta, por ser para os outros o autor da mais elevada sabedoria, prazer, virtude e glória, deve pessoalmente ser o mais feliz, o melhor, o mais sábio e o mais ilustre dos homens.” É das obras mais estéticas e refinadas da cultura ocidental! Hugo von Hofmannsthal, o da «Carta de Lord Chan-dos» e amigo da filha de Rilke, escrevia-lhe dizendo que quando era mais novo poucos sabiam de Holderlin, sabiam que tinha enlouquecido, e que as suas obras es-gotadas se encontravam nos alfarrabistas em primeira e única edição. No entanto, a sua estrela nefasta só aos trinta e seis anos se instala, até ao fim. Era um ser puro, megalómano e ingénuo, os poemas da loucura são êxta-

ses da corrente sanguínea do nosso cérebro. Ele afirma: só o Amor gira, a Terra e o Céu estão parados. Quem nos segura, quem nos toca a inadvertida lágrima perante a beleza que dele nos vem? Muitas vezes o amor fica imen-so só de o invocarmos. Ele tem a génese daqueles que chamam ao Verbo um segredo que muda e transforma o homem. Para ele, «O que fica os Poetas o Fundam».Nerval é filho destes poetas, não tendo tido o mesmo resgate do Romantismo como força aglutinadora. Para ambos, a mulher divinizada é um elo. A trágica forma de chegarem ao inviolável silêncio de Deus. Um romântico que vai buscar a Antiguidade e o Oriente, porque mes-mo tendo nascido depois, em 1854, ele interpreta como ninguém o mito do grande herói romântico. Nerval… Novalis…. são nomes que se ouvem como a um bálsamo no tempo em que se falava ainda de “poéticismes...” Falei exclusivamente destes porque me parecem os mais representativos, claro que Byron, e outros, estão no mesmo nível, mas as coisas que se cruzam entre estas personagens, dão para estarmos atentos durante toda uma vida. Eles eram aquilo que fez do sentido da palavra poético uma vasta interpretação exegética e uma eleva-díssima noção da beleza do percurso. Nunca como aqui o Poeta teve um estatuto tão genuinamente interpreta-tivo de si mesmo. Não vale a pena fazer-se extensões de tempos que são “nichos.” Um dia ainda far-se-á a história deste singular e admirável século XIX. Eu acho que eles são os verdadeiros seres do século XXI. Eles nasceram muito adiante... e espero-os aqui. O terreiro é um hangar de sonhos outros, mas nós somos aqueles que nos reconhecemos. Assim , como o caminhar horas no deserto... depois, o rosto daqueles que nos são tão próximos, sombras... talvez! Reabilitarei o mundo intacto assim , imponderável e úni-co, só para vos deixar testemunho dele. Esta gente disse coisas que convém que toda a Humanidade escute. São o melhor da inteligência e da linguagem humanas.

Oh esquece e perdoa! Holderlin

SHELLEYA DEFESA DA POESIA

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António GrAçA de Abreu

O CAMPO — as imensas terras agrícolas que se estendem por meia China e dão sus-tento a 1,4 mil milhões de pessoas, 1/6 da população mundial —, costuma passar ao lado, ao viés de quem viaja pelos quase in-findáveis espaços do velho Império do Meio. Privilegia-se o conhecimento das cidades, visita-se o que é imperial e monumental con-centrado em enormes centros urbanos como Pequim, Xangai, Nanquim, Cantão, mas per-manecer uns dias ou semanas nas artérias da China agrícola e camponesa é coisa que o tu-rista ocidental, também acidental, não costu-ma experimentar. Ou porque não sabe como viajar para a China rural, ou porque não está no programa da viagem ou porque não lhe interessa o campo chinês. Vamos até às aldeias de Xidi e Hongcun, situadas no sul da província de Anhui, am-bas consideradas Património Mundial pela Unesco desde o ano 2000, sinal evidente de uma avaliação justa e bem feita pelos es-pecialistas internacionais da Unesco que se meteram a caminho e descobriram estas duas preciosidades de aldeias perdidas no sopé da

NAS ALDEIAS DE XIDI 西递 E HONGCUN 宏村, PROVÍNCIA DE ANHUI 安徽montanha Huangshan, quase sempre envol-tas em névoa, não longe de Jiuhuashan, outra cordilheira mágica, uma das quatro monta-nhas sagradas do budismo chinês. A aldeia de Xidi data da dinastia Song do Norte (960-1127) mas as duas centenas de casas emblemáticas e originais que vamos encontrar são das dinastias Ming e Qing (entre 1368 e 1911). Rodeada de montes verdejantes e de vastas terras de cultura, surpreendemo-nos ao chegar diante dos grandes pórticos ou arcos em pedra, alguns deles com andares sobrepostos decorados com baixos relevos representando animais, plantas e auspiciosos caracteres chineses. O conjunto da aldeia, com as casas antigas de paredes brancas e telhados cinzentos ou ne-gros é harmonioso e dá uma sensação de paz e tranquilidade. Tem duas ruas principais e noventa e nove (um bom número, segundo o feng shui) ruas e vielas laterais, algumas delas tão estreitas que mal dão para se abrir os dois braços. Atravessada por dois ribeiros que se unem à saída da aldeia, Xidi parece caída de um tempo que já não existe, de um passado ancestral. O camponeses que por aqui nas-ceram, cresceram e morreram, além da esgo-

tante labuta diária nos campos, eram artistas e decoraram as suas casas com empenas de madeira trabalhadas, mobiliário artesanal fei-to com madeiras nobres, alindaram os espa-ços de habitação e convívio com elementos decorativos associados à cultura popular, en-fim tentaram transformar a sua aldeia pobre e esquecida num lugar onde, apesar da dure-za dos quotidianos, se procurava a simples e complexa arte de saber viver. Alguns cam-poneses enriqueceram, tornando-se proprie-tários de terras e comerciantes de produtos agrícolas. Têm as casas maiores e mais deco-radas da aldeia, algumas delas hoje abertas ao visitante e transformadas numa espécie de mini-museu. Existem ainda escolas onde se venerava a figura de Confúcio, o divino pro-fessor e mestre, onde as crianças aprendiam a ler e escrever, na exaustiva prática de escrita e entendimento dos caracteres chineses. O mesmo acontece na aldeia de Hongcun, ainda mais bonita do que Xidi, separada des-ta por 19 quilómetros de boa estrada. Logo à entrada encontramos um lago que abraça parte da aldeia, cortado ao meio por uma ponte de pedra que se continua num passa-diço de lajes de granito que conduz direc-

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NAS ALDEIAS DE XIDI 西递 E HONGCUN 宏村, PROVÍNCIA DE ANHUI 安徽tamente ao coração de Hongcun. As águas límpidas e paradas do lago reflectem o casa-rio, um vasto espelho polido abre-se faiscan-do diante dos nossos olhos. Dezenas e de-zenas de jovens montaram os seus cavaletes de pintura na margem do lago e aqui estão, de pincel em punho, transferindo a cor e a harmonia da paisagem para os seus esboços e quadros.Pergunto-lhes de onde vêm, porque pintam. Chegam de vários lugares da província de Anhui, até de Hefei, a capital, onde alguns estudam pintura e Belas Artes. E têm também um objectivo, vender os seus quadros e fazer algum dinheiro para pagarem os estudos, até porque as propinas são elevadas em grande parte das escolas chinesas. E há procura para este mercado. O crescimento da economia e o aparecimento de uma nova classe média, com poder de compra e alguns interesses cul-turais, aliado à relativa fama (são Património Mundial pela Unesco!) que as duas aldeias já vão conhecendo, propicia a potencial venda das pinturas.Após circundar o lago e parte da aldeia, en-tro por ruas estreitas e mais vielas, com a água sempre a correr em pequenos canais

paralelos às casas. O silêncio do lugar, os camponeses com foices e enxadas, os produ-tos da terra, abóboras, cabaças, sementes a secar ao sol, os velhos num recanto jogan-do cartas, mahjong ou weiqi (o xadrez chinês), mais um ou outro pintor, vindo de longe, a retratar fachadas e telhados. De súbito, um novo lago, com o formato de uma meia lua aparece aberto no interior do casario. Terá um comprimento de trezentos metros e está marginado, rodeado por lajes baixas, tipo passeios de pedra. Chama-se exactamente Yuehu, ou seja Lago da Lua. Existe há qua-trocentos anos, as pessoas da terra dizem ser ele habitado por uma fada benfazeja, que traz prosperidade a Hongcun. Talvez por isso, nunca alguém se afogou ou caiu ao lago.Mas encontro muitas casas vazias, algumas delas desabitadas há já umas dezenas de anos e a precisar de urgentes obras. Apesar do be-nefício de serem considerados lugares turís-ticos, Hongcun e Xidi não escaparam à forte tendência que se registou na sociedade chi-nesa de mudança de muita da população do campo para as cidades. Calcula-se que nos últimos dez anos, 200 milhões de chineses se transferiram da China agrícola e camponesa

para os grandes centros urbanos. É uma das maiores migrações da história da humanida-de.Tudo se explica se caminharmos pelos cam-pos nos arredores das duas aldeias. Homens e mulheres no trabalho quase de sol a sol ar-roteando a terra, lavrando os socalcos com os seus búfalos de água, plantando, mon-dando, irrigando os arrozais, mergulhados na água onde o arroz cresce, onde cresce o pão de dia. E como é quanto a doenças, a cuidados médicos e de saúde? A mortalidade infantil no campo chinês aponta para núme-ros sete vezes superiores à registada nas ci-dades. A beleza asfixiante destas aldeias não esconde os salários de subsistência mínima que prevalecem nas zonas rurais. E as pesso-as, aos milhões, um pouco por toda a China, procuram as cidades, tanta vez na ilusão do impossível enriquecimento fácil, com tantos dramas e tragédias de permeio.Alguns, poucos, regressam ao esplendor e maravilha destas suas aldeias. Para um dia morrerem em paz, Pó e esquecimento per-pétuo no seio da terra madrasta e mãe que os viu nascer, à qual se irão unir outra vez, agora para sempre.

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Este será, para quem gosta de cabras, o melhor filme do mundo. Passa-se numa pequena aldeia do sul de Itália mas po-der-se-ia passar em muitos outros países, porque são muitos os países onde existem cabras, um animal que se adapta a quase todos os tipos de clima. Existem, em todo o mundo, mais de 850 milhões de cabras, cerca de 60% na Ásia e 34% em África. Na Europa existem apenas cerca de 18 milhões. Por países, são os seguintes (e por esta ordem) os que ostentam popu-lações maiores: China, Índia, Paquistão, Bangladesh, Nigéria, etc.Mas este filme passa-se em Itália, na Ca-lábria, e conta-nos, sem dramas mas com a precisão da sua inevitabilidade, o que se passa à nossa volta, a sucessão das esta-ções, a passagem da vida e o seu advento, a partir de uma ideia pitagórica de me-tempsicose que atravessa 4 estados: hu-mano, animal, vegetal e mineral.Este também é, como O Cavalo de Turin (2011), de Bela Tárr, um filme de repe-tições e de silêncios mas, ao contrário daquele, estas são repetições às quais não podemos fugir, não repetições inventadas pela loucura, insensatez ou presunção dos homens - as dos ciclos naturais da vida humana e da natureza. Não se trata, como pode parecer a uma primeira vista, de um filme nostálgico ou ruralista. A neutralidade do seu tom obri-

ga-nos essencialmente a lembrar, obriga--nos a lembrar que é impossível escapar à repetição e à monotonia e à sua música.No seu início, Le Quattro Volte centra-se no quotidiano de um velho guardador de ca-bras, doente, que acredita nas capacida-des medicinais do pó que paira pela igreja da sua aldeia. Se a sua ingestão diária ou a sua falta constitui o motivo da sua mor-te súbita é irrelevante. Menos irrelevente será aceitarmos o tom quase jocoso que este filme aparentemente sério também exibe, especialmente neste segmento, o inicial, que se prende com o fim da vida de um homem velho. Este, como os ou-tros, acaba com um plano escuro, um plano onde se opera a passagem para o estado seguinte.Frammartino obriga-nos, também nos outros segmentos, os que se relacionam com o estado animal, vegetal e mineral, a confrontar a inevitabilidade do fim. Mas, ao mesmo tempo, sublinha a existência de continuidades e permanências, e é neste jogo de permanências e passagens que a sua história se compõe de um modo extra ordinário, um modo que nos impõe as evidências da existência com uma bo-nomia jocosa e, ao mesmo tempo, distan-ciada.Poucos outros filmes contemporâneos têm mostrado esta capacidade de excitar no espectador uma vontade quase juvenil

de interrogação sobre o nosso lugar no mundo. O paradigma que apresenta é su-ficientemente universal para que (mesmo que este seja um filme que se passa numa pequena aldeia) este mereça uma aplica-ção mais abrangente, porventura também urbana.Cada uma das suas quatro partes, mesmo que relacionadas através das transforma-ções que permitem a fusão de um elemen-to noutro, e acontecendo no mesmo con-texto geográfico, têm um aspecto muito diferente. Adquirem, além disso, um carácter quase abstracto, inclusivamen-te o capítulo que lida com a festividade da aldeia e com a árvore. Talvez até isso aconteça mais vincadamente neste, que é o que tem mais figuras humanas. Os seus planos médios de homens e mulheres tendem a afastar-se destes e a obrigar-nos a vê-los como pequenas fracções de um quadro abstracto, não havendo nenhum que ganhe destaque.Este quadro forma-se como um mosaico e a falta de individualidade das suas figuri-nhas, colocam-nas de maneira mais certa no concerto geral das coisas do mundo. Que não haja, durante todo o filme, qual-quer diálogo (ou música), é a mais subli-me linha daquela intenção. Que este se não perca na esterilidade e que exiba um nível de afecto suficiente, é prova do seu amor e da sua feliz eficácia.

Este filme funciona como contraste to-tal, na sua atitude, humor e resultados, ao piroso e pomposo pseudo-panteísmo dos últimos filmes de Terence Mallick, ao mesmo tempo que recusa a ditadura do belo a que outros filmes de intenção semelhante não têm conseguido fugir. Le Quattro Volte não é sempre belo mas o olhar que lança sobre as coisas (e que nos é dado a ver) é em quase todos os planos surpreendente e sincero. No final será muito difícil negar que este filme é, sobretudo, um dos filmes mais sinceros (para além de ser dos mais originais) dos últimos tempos.O segmento final, o da transformação da madeira em carvão que nos liga ao início do filme, não tem, como seria tão fácil de fazer, pretensões mágicas nem pretensões de especial desenho, antes a pretensão suave de nos fazer entender a poesia do óbvio. Impossível não lembrar a tensão que rodeia a fun-dição do sino em Andrey Rublev. Con-tudo, aqui não existe nenhum especial segredo nem nenhuma magia, apenas a repetição de um saber oficinal antigo, sem ornamentos desnecessários que ul-trapassem a beleza intrínseca do pro-cesso.O que é que é diferente no fim deste filme que nos diz que poderemos vir a reencar-nar como cabras? Apenas nós.

luz de inverno Boi Luxo

LE QUATTRO VOLTE, MICHELANGELO FRAMMARTINO, 2010

P R I M E I R O B A L C Ã O

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T E R C E I R O O U V I D O

“Life is too short for boring music” (“A vida é curta demais para música aborrecida”). Nunca mais esqueci esta frase que vi, pela primeira vez, na página electrónica da extinta EFA, a distribui-dora de editoras independentes que levava a sé-rio os anúncios que fazia. É verdade: não pode-mos desperdiçar tempo, que é insuficiente, com o que não merece. Este truísmo assume particular evidência no momento em que vivemos, marca-do por uma profusão inédita de música a que se junta a do passado, tudo disponibilizado através de um acesso mais facilitado do que nunca. Em teoria, toda a história da música alguma vez gra-vada pode ser armazenada num único computa-dor ou numa “nuvem”, as modernas “clouds” que nos seguem para todo o lado.

Esta forma promíscua de passado e presente conviverem lado a lado com as distâncias tempo-rais esbatidas (longe mas perto, velho mas novo, sempre à nossa inteira e imediata disposição) tem, entre outros, impacto na forma como é pro-duzida actualmente muita música, especialmente aquela em que diferentes eras, tradições, géneros ou culturas são condensadas para caber em cinco minutos.

No fundo, o que nomes como DJ Shadow, Flying Lotus ou Gonja Sufi (e o Kanye West de “Yeezus”, já agora) fazem juntando pedaços dis-tantes da história da música pode ser comparado às voltas alucinantes do Super-Homem em torno da Terra, quebrando a barreira do tempo e do espaço. Literalmente supersónico.

Yosi Horikawa não se lança propriamen-te na ultrapassagem da barreira do som, nem nesse exercício de arqueologia digital só tor-nado possível pela tecnologia, mas através da música que produz procura combater a erosão que a passagem do tempo provoca na percep-ção dos ouvinte actuais, habituados a estímu-los constantes e a torrentes de informação (sobretudo na Internet, onde tudo se passa), constantemente distraídos e com a capacida-de de concentração de borboletas que cedo se esgotam e se entregam à apatia e à indife-rença. E é isto que Yosi Horikawa teme: que quem escuta a sua música se entedie.

A confissão tem sido repetida nas entrevistas a propósito do álbum de estreia, “Vapor”, onde o japonês de 34 anos combate o medo da música “chata” explorando um espectro sonoro alargado que não dispensa a repetição (“loops”), mas que investe tudo em “fluxos” e “desenvolvimentos” – expressões usadas por Yosi à Red Bull Music Academy, onde foi “aluno” quando a escola de música electrónica itinerante estacionou em Ma-drid, em 2011.

Em “Vapor”, diz Yozi Horikawa ao Japan Times, há temas que têm cerca de uma cente-na de camadas de sons e efeitos – sons reais, electrónicos, acústicos, da natureza, mas tam-bém “samples” de diversas fontes –, codificados em linguagens que vão do “hip-hop” ao “jazz”,

próximo oriente Hugo Pinto

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MÚSICA CONTRA A LASSIDÃOpassando pelo “ambient” versão “chill out”, pela música experimental ou pela “house music”. Por vezes, os diferentes géneros sucedem-se no mesmo tema, desdobrando-se numa progressão que, nos momentos finais do disco, em fase de desaceleração, adquire os poderes da hipnose e quase nos abandona à letargia.

Mas é nos diferentes estratos das sonorida-des que nos fixamos a maior parte do tempo, sem sabermos ao que prender a atenção, se à melodia das linhas sintéticas, aos ritmos, aos baixos ou aos detalhes que conseguimos perce-ber depois de nos abstrairmos da quase cacofo-nia.

Tematicamente, a música de Yosi Horikawa ocupa-se de prazeres simples (“Beer”) ou remi-niscências da infância (“Summer in 1987”), sem-pre com o mesmo cuidado de que a história que nos é contada seja cativante e que a atracção ao som pelo som seja permanente. Atravessa o disco ainda um fascínio pela natureza manifes-

to no uso de sons de animais, da chuva ou da trovoada, mas também no modo como os temas são selvas de sons – com a organização natural própria de ecossistemas, funções complemen-tares e o alheamento ao destino que liberta os seres vivos para a fruição de cada momento, ou seja, cada som.

“Vapor” é um disco marcado pelo corrupio inte-rior do seu autor que tem reflexo na forma intrinca-da como a música é arquitectada, mesmo que Yosi se abandone, na maior parte do tempo, a hábitos de placidez (“Wandering”, “Rainbow”, “Letters”), ou mesmo que, findo o último tema, da comple-xidade das 16 faixas tenhamos retido apenas uma impressão vaga. Um vapor. Todavia, é o que basta para incensar a vontade de voltar a ouvir tudo. Do princípio.

“Vapor”Yosi HorikawaFirst Word Records, 2013

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F A L A R C L A R O

CAVACO SILVA, O CONTABILISTAFrancisco Moraes sarMento

“ANTES PREVENIR que remediar”, diz a sentença popular assente na sabedoria feita de experiência. Também muitas vezes se ouve, como um dorido la-mento, a expressão “depois da casa roubada, trancas à porta”. E por aí adiante, advertências não faltam, o que falta com frequência é a lucidez para escutar, em tempo útil, os sinais que as justificam.Olhemos para as situações de Portugal, em particu-lar, e da União Europeia, em geral, à luz de aconte-cimentos recentes.Um documento da área de investigação económica do JP Morgan, um banco de investimento que é um dos poderes fácticos do mundo de hoje, chegou à conclusão de que as Constituições dos países do Sul da Europa são “um estorvo” para a solução dos pro-blemas económicos porque salvaguardam direitos que já não se usam, como os dos trabalhadores, por exemplo. Trata-se de Constituições de carácter “so-cialista”, que perturbam o funcionamento livre dos mercados e se tornaram anacrónicas porque foram aprovadas a seguir a ditaduras e reflectem “poderes de esquerda”. Para que tudo funcione como deve ser, recomenda o JP Morgan, há que revogar essas Constituições, os direitos e o Estado social nelas contidos, citando os casos de Portugal, Espanha e Itália. Fora pois com as Constituições nascidas do antifascismo, reclama o JP Morgan.Outro acontecimento, mais recente ainda, foi o dis-curso do presidente da República Portuguesa, Cava-co Silva, esta quarta-feira.Em que é que a comunicação presidencial se conju-ga com as recomendações do JP Morgan, tratando--se de uma suposta estratégia de solução para uma “grave crise política”?Têm muito mais em comum do que parecem, as pa-lavras e os assuntos são díspares mas a essência e os conceitos são gémeos.O que disse Cavaco Silva? Que os partidos do “arco da governação” têm que se entender, já antes e mesmo depois das próximas eleições, à

volta de um governo de “salvação nacional” que cumpra as ordens vindas dos mercados, através da troika ou mesmo sem troika. E ai deles se não se entenderem, porque os cidadãos saberão “tirar as suas ilações”. Para que esse acordo seja feito, o presidente está disposto a recorrer a uma figura com idoneidade acima de qualquer suspeita, não se sabe mesmo se do JP Morgan ou da Goldman Sachs, uma espécie de “pessoa providencial”, portanto. Sempre honrando a tradição de não ter dúvidas, Cavaco Silva garante que a realização de eleições na situação actual são “indesejáveis” porque iriam prejudicar a recuperação em curso. Horas antes do discurso já o presidente do Banco de Portugal, Carlos Costa, recomendara com a autoridade outorgada pela banca, que a política governamental deve ser “imune à alternância” en-tre os partidos – PSD, PS e CDS.Três partidos fundidos num único por acção de al-guém “providencial” capaz de se substituir a “inde-sejáveis” eleições... Isto não voz faz lembrar nada?Tudo envolvido por uma teorização cada vez mais descarada, como a do JP Morgan, no sentido da eliminação de leis e direitos sociais, laborais e hu-manos que os mercados considerem estorvos à apli-cação da austeridade até às últimas consequências, isto é, a escravatura.Não nos enganemos: eles sabem muito bem o que querem, por onde e para onde vão, impondo as ne-cessárias adaptações à política, uma actividade onde só devem caber os serviçais dos mercados. Se esti-verem atentos, reparem como até as alusões à demo-cracia vão desaparecendo.As serpentes põem os seus ovos num estado de ma-turação em que as crias nascem logo e já prontas a fazer-se à vida. Também estes regimes são capazes de fazer a gestação de qualquer outra coisa pre-parada para lhes suceder. Os novos fascismos não precisam de recorrer à mesma designação e aos me-canismos funcionais que ficaram na História para o serem - fascismos.Se não lermos os sinais teremos de viver a angús-tia de remediar e nem valerá a pena pôr trancas na porta.

A FORÇA da burguesia internacional (e a fra-queza e subalternidade da nacional) encontram uma gritante ilustração no episódio de Paulo Portas (ir)revogável. Bastaram uns quantos tele-fonemas de Merkel, Draghi e Barroso (eles pró-prios porta-vozes das forças financeiras globais) para o líder do CDS tremer, recuar e dar o dito por não dito. Junta-se a esta circunstância uma política generalizada de chantagem, em tudo semelhante ao discurso da direita aquando do 1º resgate de que “já não há dinheiro para pa-gar salários e pensões”, com forte propagação em mediapreguiçosos e habituados ao efeito de eco, respaldados numa corte de comentadores subservientes e medrosos.Nada pode interromper o processo de transfe-rência de rendimento permitido pela economia política e moral das dívidas soberanas. A gran-de finança ainda não confia no PS, por o achar titubeante ou por desconfiar da sua dificuldade em conseguir uma maioria absoluta. Vejam-se, aliás, as estonteantes declarações de Manuel Pi-zarro, candidato à Câmara Municipal do Porto, que considerou ser uma “loucura” o cenário de eleições antecipadas… Não se conseguiu ainda perceber, num outro plano, que propostas al-ternativas possui o PS – para além de uma vaga vontade de renegociação do memorando, de medidas mais ou menos inócuas que até a direita viabiliza no parlamento e da versão rosa light da mesma austeridade.O movimento social, diga-se, está longe do seu melhor, apresentando mesmo sinais de evidente fra-queza. O medo e a ameaça surtem os seus efeitos, na fragmentação, no isolamento, na incerteza.Há uma enorme batalha de ideias por travar; uma batalha que tem também de combater a dominação incorporada nas mentalidades, nas práticas e naqui-lo que parece ser o “bom senso”, mas que mais não é do que a força reacionária da situação.

CAVACO SILVA “é um contabilista”, declarava em 1989, há cerca de 25 anos, o filósofo Orlando Vitorino, numa entrevista realizada durante a sua campanha para a Presidência da República. Na altura, a classificação es-candalizou a plutocracia que nos governa. Hoje, depois da comunicação presidencial, ficámos mais ainda com essa convicção. No fundo, o Presidente analisou a con-tabilidade estatal, colocou o actual governo em modo de gestão e marcou a data de demissão: Julho de 2014, fim do programa de assistência financeira. Não é certo que naquela data, a situação económica e financeira tenha melhorado e os portugueses tenham recuperado a sua liberdade e soberania. Para que tal aconteça terão que se realizar, pelo menos, algumas condições. Talvez a mais importante será a revisão constitucional: caso não seja surja um compromisso “motu proprio” entre PSD, PS e CDS, passará a ser uma obrigação imposta pela “Troika” a quando da aprovação do segundo resgate. Outra condição será a diminuição do peso do Estado na sociedade e na economia (com um corte na despesa que será supe-rior aos 4 mil milhões). Quanto a nós, a “reforma do Estado” deve, a prazo, ter como medida o valor dos impostos directos que deviam acabar pois são uma

forma de servidão. Mas este aspecto tem a oposição da plutocracia que vive do Orçamento Geral do Es-tado e da classe política que se perpetua no poder. Volvemos às palavras de Orlando Vitorino: “O key-nesianismo foi adoptado pelo Instituto Superior de Economia, onde se formou Cavaco Silva que depois foi apurar essa teoria a Inglaterra. O que é certo é que se trata de uma pessoa, como toda a gente sabe e o próprio reconhece, sem preparação cultural, logo não pode aprofundar uma prática económica. Aliás, reconheceu-o num livro, que publicou sobre a sua actividade como ministro das Finanças, no Governo de Sá Carneiro, no qual diz que pôs de parte, logo de entrada, o monetarismo porque nenhum deles sa-bia o que isso era. Cavaco Silva é, como creio que ele próprio diz, um socialista.” Também Paulo Por-tas, que em tempos tentava perceber o que é o neo--liberalismo em encontros com o filósofo num café de esquina, ali para os lados do Liceu Maria Amélia (Lisboa) de que não me lembro o nome, tem sido um dos principais opositores à diminuição da despesa do Estado. O PSD é social-democrata e, portanto, está mais perto das opções socialistas para o sistema político.

No jogo político-constitucional, é lamentável que o Presidente prometa eleições antecipadas a prazo qual-quer que seja a razão apontada, muito menos por meras razões contabilísticas. Temos um governo de gestão que não é em termos constitucionais. A clarificação da situa-ção passa pela demissão dos actuais governantes, manie-tados na sua legitimidade e fragilizados na sua acção. O monarca disse para quem quis ouvir que este não é o seu governo. Poderá estar à vista um governo PS/CDS, so-lução “anunciada” pela plutocracia mundial reunida no grupo Bilderberg ao qual se juntaram recentemente dois suplicantes portugueses: Paulo Portas e José Seguro.Nem a classe política nem a plutocracia se orientam por qualquer ideal patriótico que transforme os portugueses num povo de homens libertos.DestaqueÉ lamentável que o Presidente prometa eleições ante-cipadas a prazo qualquer que seja a razão apontada, muito menos por meras razões contabilísticas. Temos um governo de gestão que não é em termos constitu-cionais. A clarificação da situação passa pela demissão dos actuais governantes, manietados na sua legitimi-dade e fragilizados na sua acção. O monarca disse para quem quis ouvir que este não é o seu governo.

OVOS DE SERPENTEJosé Goulão

QUEM MANDAJoão teixeira lopes

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DOIS LIVROS de Alberto Pimenta, dois poemas, dois saldos da tempestade da História: brainstorming sobre ruínas, a cultura, a literatura, a civilização, vento que empurra implacavelmente anjos, de-certo de asas partidas.

Começo pelo livro mais recente: Pro-digioso Acanto, de Junho de 2008. Sendo um poema (tripartido, afirmando recusas e afinidades electivas, mas sem dialéctica simples e decerto sem síntese), pode evo-car também um ensaio, descrição, arque-ologia e avaliação do motivo do acanto na(s) arte(s). Mas ensaio ou canto que se recusa a sê-lo, num Leit motiv: «não can-to cinzas» (p. 21), «não canto primazias» (p. 45), «não canto / metamorfoses» (p. 47)… E ainda, com consequências vá-rias: «não canto / já foi demasiado can-tado / e contado / até por Homero» (p. 11), ou «aqui não há nada para cantar / só guerras» (p. 31), numa revisão do – ironicamente convocado – paradigma épico. Cano virgiliano ou Cantando es-palharei  camoniano ecoam, para serem logo rasurados. E decerto não só porque a matéria se esgotou em milénios de epo-peia («então porque / haveria eu / de gas-

tar o meu canto / no que já está gregoria-nizado», p. 17, sendo que «gregorianiza-do» evoca também o furioso pensamento da «grei»), mas sobretudo porque, sob a História, há um  ethos  por interrogar, como em célebres poemas de Brecht:

eu não canto a destruiçãodepois da construçãouma feita só para a outranunca vejo o começosó o fime alguns escravosentretanto esmagados(p. 9.)

Voltarei a  Prodigioso Acanto. Mas relembro agora Tanto Fogo e Tanto Frio,

ALBERTO PIMENTA DOIS LIVROS

Pedro eiras

livro de Fevereiro de 2008, subintitula-do O Último Sonho de Olímpio. Olím-pio é Olímpio Ferreira, artista gráfico sensibilíssimo – ou, como escreve Vítor Silva Tavares na comovente introdução do livro, «artesão», bem longe de con-temporâneos «designers  escolásticos» (p. 13). Olimpo Ferreira, artesão da & etc, da Averno, da Cotovia, faleceu ines-peradamente em Dezembro de 2007. Este último sonho, ou despedida, é um extenso poema de fôlego único, dividi-do entre duas vozes, uma delas dita off e destacada à direita. Não importa dema-siado identificar quem fala e quem res-ponde: o autor e o seu outro? o escritor e o artesão? ou mesmo, numa fusão sem-pre arriscada entre vida e escrita, Alber-to Pimenta e Olímpio Ferreira? Nem sei,

nessas leituras, quem estaria off – aque-le que parte, aquele que fica? Importa, sim, observar como Alberto Pimenta es-cusa as identificações, deixando que as vozes sejam somente vozes; e observar a teatralidade latente que contrapõe e faz dialogar dois olhares sobre textos, imagens, ecrãs, histórias. O mesmo é dizer: para lá do diálogo a dois, há um dialogismo infinito em que tudo (recor-dações da História, ruínas, alternativas) fala. Assim, é certo que «no meu ecrã / sou eu que mudo tudo / mas tudo / já está escrito» (p. 23), e que «isto / é só uma viagem / à roda do meu quarto» (p. 24), com ecos de Xavier de Maistre ou Garrett; mas sobretudo, para além de qualquer fechamento solipsista, há esta

irrupção de uma História plural, inter-minável: «donde vêm tantas bocas / sem corpos só / fragmentos sem fala / sem nada» (p. 30).

Em ambos os poemas, um saldo da História, portanto. Em  Prodigioso Acanto, com o inventário de acantos a escala mundial e intemporal; mas apenas para descobrir quanto ficou por dizer sob os ornamentos com que a sociedade do espectáculo («não canto / acasos de espectáculo», p. 50) vai esquecendo os seus escravos esmagados, que esculpem acantos e não se reconhecem em can-tos. História, pois, de uma alienação: eu fiz isto, mas eu não sou este, eu não estou aqui. E, claro, não se trata de uma nova Metamorfose das Plantas, com que Goethe procura conjugar, romantica-

mente, sistema e plasticidade, os corpos factuais e a possibilidade. Os acantos são artifícios rígidos, disfarçados de flexíveis, e posam como divinos. Quem os descre-ve, pelo contrário, reivindica a condição profana (talvez com um eco de Caeiro?): «acanto sempre acanto / mas eu não co-nheço / a bebida dos deuses / não canto / / [...] / a minha respiração / é normal e simples e humana / nada a deixa eternizar-se» (p. 20). EmTanto Fogo e Tanto Frio, por seu turno, mesma vontade de recuperar, na herança da História (ou na feitura de um livro?), as ra-suras ainda audíveis: se «a tarefa foi sempre / arquivar / o sobrena-tural» (p. 26), a escrita oferece--se como sobre-natureza, planta viva, não adorno, coisa que se pode comer, não alienação.

Os poemas são um juízo da História; e não um Juízo Final, salvo se Juízo Final  profano  – e uma sensação de contra-relógio, de contagem final, de tempo fi-nito, enfim, de apocalipse atra-

vessa os poemas. Mas o profano é dito imediatamente no significante «acanto», que é uma unidade lexical simples, mas também «a canto», sendo «a» pronome feminino (donde: canto-a), e ainda «a--canto», sendo «a-» prefixo de negação (donde: não-canto). O a-canto é a úni-ca possibilidade política de recusar uma História errada. Não é, em rigor, uma aporia; mas é uma recusa de cantar, pelo menos de  determinado  cantar. Para, fi-nalmente, recuperar o  ethos  da própria linguagem e, então sim, recomeçar sobre ruínas.

Os dois livros reencontram essa pos-sibilidade de falar (isto é, escrever, isto é, editar, publicar, formar o livro) atra-vés de cumplicidades. A recuperação da

voz não é um problema teórico, mas uma atitude política, aqui e agora. Em Tanto Fogo e Tanto Frio, por um diálogo que vai adiando a morte; num novo Leit mo-tiv¸ a recusa de um enterro?: «Silêncio / aí ao lado / cortem depois / a madeira / há tempo» (p. 27). Ou, se leio bem aqui uma prosopopeia da morte,

o tempo cobre tudotambém descobreo nome é tabupensa pensaquem pode ser a tua rainhaa grande rainhaaindanão percebeste bem(p. 44.)

O «tempo» é decerto o tempo da His-tória; mas também, e sobretudo, o tempo imanente em que duas vozes dialogam: tempo contado. Dito de outro modo: o tempo da História só tem sentido enquanto se participa nele com o outro. E por isso os dois tempos se confundem. Mas sem con-formação. Decerto numa recusa implícita da lembrança de Mário de Sá-Carneiro por Fernando Pessoa, Vítor Silva Tavares pergunta-se, na introdução do livro: «Que deuses (dos todos Olimpos inventados ou a inventar) serão esses capazes de ‘amar’ ma-tando cerce?» (p. 9.)

Em Prodigioso Acanto, a cumplicidade é outra: contra o canto do acanto, quem assina o poema diz também: «e quando cantar / [...] / / será um nome / com vida / própria sua / não pode ser / senão um nome / ele próprio monido / (moneo) de carne» (p. 57). O nome com vida própria não é o acanto com vida alheia, isto é, vida conferida por uma instituição que assim se rentabiliza; nem, em Tanto Fogo e Tanto Frio, «bocas / sem corpos só / fragmentos sem fala» (p. 30); nem nome de epopeia ou de metamorfose ovidiana que, sob a fluidez da transformação, se converteu afi-nal em moralidade rígida, mito para con-sumo. Prodigioso Acanto revela-se, então, poema de amor – e amor erótico, não «platónico», antes apollinairiano, pelo intertexto das «nove nacaradas aberturas / da carne» (p. 59). O «a» de «acanto», unidade mínima, torna-se agora nome do feminino, ou dedicatória:

e entãoeu a cantoa cantocomo elase cantae assim se ouvea sua almae o seu corpoe não há prodígio aqui(p. 58.)

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O L H O S A O A L T O

gente sagrada José simões morais

PASSEANDO por Macau, en-contramos um homem com um ar de ancião montado num burro e parecem ter viajado milhares de quilómetros. Foi o tempo de olhar para outra figura, acompa-nhando-a e o burro desaparece. Fixando o rosto do ser estranho, que não pára de rir e pregar par-tidas aos que com ele estão, sem entendermos, caí morto. Aflitos, desviamos a atenção para o so-corro e ao olharmos de novo, já ele retira os dentes postiços e a cabeleira, surgindo um adulto de meia-idade. Voltando a rir, tira do bolso um papel embrulhado e com uns salpicos de água de uma garrafa que já por ali esta-va, ao molhar, aparece de novo o burro e montando, partem. Num ápice desaparecem, tal como a fotografia que conseguira regis-tar desse momento. Só mais tar-de soube ter estado com Zhang Guo Lao, um dos oito Imortais da lista proveniente do período da dinastia Ming.Aparecendo na primeira vez há 4000 anos, no período do Gran-de Soberano Yao, o alquimista Zhang Guo era um ser estranho, admirável pela sua sabedoria, já que na posse dos segredos da transmutação fazia magia com o que o rodeava, espantando assim os observadores; mas poucos o entendiam. Com um espírito puro, desma-terializado, no momento viaja pelo espaço energético para se realizar em diferentes períodos de consciência, o Imortal Zhang Guo é, devido à sua ancestralida-de e respeitabilidade, Lao.Certa vez revelou-se, aparentan-do uns 60 anos de idade, quando o imperador Tang, Xuan Zong (712-755), após ter caçado um enorme urso, deu ordens para o cozinharem. Virando-se para o imperador, disse Zhang Guo ter aquele animal mais de mil anos e ser um Imortal Urso que caçado, fora libertado pelo imperador Wu (140-87 a.n.e.) da dinastia Han do Oeste. Como prova do que dizia apresentava uma chapa que deveria estar na cabeça do animal. O imperador ao verifi-car, encontrou realmente a prova com os dizeres “Quinto ano do Período Yuanshou” (117 a.n.e.), mas segundo outros relatos, nada

se conseguia ler devido aos qua-se 900 anos que a placa tinha.Talvez para não ter que apanhar uma indigestão de perguntas so-bre o que pensava sobre isto e aquilo, Zhang Guo Lao ia recu-sando os convites dos imperado-res da dinastia Tang (618-907) utilizando certos estratagemas.Os emissários, tanto do Impera-dor Tai Zong (627-649), como do Imperador Gao Zong (649-683), quando chegaram à montanha Zhongtiao, em Hengzhou hoje na província de Shanxi, com os convites para uma audiência no Palácio Imperial em Chang’an, Zhang Guo morreu em frente deles. Prevenida, a imperador Wu Zetian (684-705), quando precisou de um grande mestre do Dao, mandou-o chamar com ordens de o trazerem mesmo morto para a capital Dong Du (Luoyang). Os emissários ao chegar encontraram Zhang Guo, mas desta vez acreditaram ter ele morrido já que, ao transportá-lo para o exterior, do seu cadáver, a exalar podridão, saiam vermes e por isso, deixaram-no ai ficar.Viveu eremita até ter que aceitar o cargo de Director da Imperial Academia durante o reinado do Imperador Xuan Zong, altura do episódio do Imortal Urso. Depois despediu-se e retirou-se de novo para a montanha, onde certa vez, sem a razão de fugir aos convites imperiais, morreu. Os seus discípulos colocaram--no num caixão mas, quando o abriram, o corpo tinha desapa-recido e por isso considerado ter ascendido ao Céu. O imperador Xuan Zong mandou edificar-lhe o templo Qixia em Puwu, como refere nas “Memórias Novas da Dinastia Tang”.Ainda durante a dinastia Tang, Zhang Guo Lao foi considera-do um Imortal fazendo parte do panteão daoista. Ele, perso-nagem que viveu nessa dinastia, para além de tudo o que fez, era também produtor de um exce-lente vinho, servido aos seus companheiros Imortais durante as conjuntas viagens.Em Macau encontramos no tem-plo Hong Kung, junto ao Kun Iam Tong, a imagem do Imortal Chang Kuo Lao, como é desig-nado em cantonense.

O IMORTALZHANG GUO LAO张果老

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HUAI NAN ZI 淮南子 O LIVRO DOS MESTRES DE HUAINAN

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L E T R A S S Í N I C A S

Huai Nan Zi (淮南子), O Livro dos Mestres de Huainan foi com-

posto por um conjunto de sábios taoistas na corte de Huainan (ac-

tual Província de Anhui), no século II a.C., no decorrer da Dinastia

Han do Oeste (206 a.C. a 9 d.C.).

Conhecidos como “Os Oito Imortais”, estes sábios destilaram e

refinaram o corpo de ensinamentos taoistas já existente (ou seja,

o Tao Te Qing e o Chuang Tzu) num só volume, sob o patrocínio

e coordenação do lendário Príncipe Liu An de Huainan. A versão

portuguesa que aqui se apresenta segue uma selecção de extractos

fundamentais, efectuada a partir do texto canónico completo pelo

Professor Thomas Cleary e por si traduzida em Taoist Classics,

Volume I, Shambhala: Boston, 2003. Estes extractos encontram-se

organizados em quatro grupos: “Da Sociedade e do Estado”; “Da

Guerra”; “Da Paz” e “Da Sabedoria”.

O texto original chinês pode ser consultado na íntegra em www.

ctext.org, na secção intitulada “Miscellaneous Schools”.

No início do Inverno, honra os mortos e lembra-te dos órfãos e viúvas.

DO ESTADO E DA SOCIEDADE – 53

No fim do Verão, os pescadores apanham enormes peixes e tartarugas, nas florestas recolhe-se madeira e prepara-se o colmo. As pessoas dedicam-se à caridade, prestam respeito aos mortos e visitam os doentes e os idosos.Por esta altura do ano, as árvores estão em pleno florescimento e, como tal, não devem ser cortadas. Também não se devem conduzir grandes projectos de construção, nem paradas ou acções militares.No início do Outono começam as colheitas. Assegura--te de que os diques estão em boas condições, na a eventualidade de enxurradas. Repara os muros da cidade, assim como os edifícios e casas.A meio do Outono é o tempo ideal para projectos de construção urbana. Cava canais de drenagem e repara os celeiros. Armazena a colheita do Verão e planta trigo para a Primavera. Verifica os instrumentos de medida: rectifica as balanças e os pesos e medidas. Regula os costumes e os mercados; deixa que os mercadores itinerantes venham a vender os seus produtos para conveniência das pessoas.No fim do Outono, os caçadores praticam com suas armas e conduzem-se cerimónias para propiciar os animais. Corta-se buxo e dele se faz carvão; as estradas são abertas e limpas.No início do Inverno, honra os mortos e lembra-te dos órfãos e viúvas. Examina o futuro para ver o que lá vem. Armazena para o Inverno, repara as paredes exteriores, patrulha as ruas, repara fechaduras, toma bom cuidado das chaves e põe todos os documentos valiosos em cofres. Repara as fortificações fronteiriças e faz bloquear as veredas.

Tradução de Rui Cascais Ilustração de Rui Rasquinho

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Ecos Naturalistas AnA CristinA Alves*

QUANTOS SÃO os portugueses de volta a Macau, já depois da transferên-cia? Quantos anos se passaram desde o regresso desta terra à China? Aí vão qua-se catorze. Número aziago no Sul, por-que por homofonia indica morte certa (shi si 十四). Por isso, a alguns prédios falta o décimo quarto andar. Prefiro enca-rar a morte como mais uma metamorfose, à maneira taoísta ou tibetana. A morte é uma passagem, é bar-do, um estar entre dois: o tempo presente e aquele que há--de vir. Muitos portugueses partiram e a cida-de cresceu desmesuradamente, tanto que transbordou para a Ilha da Monta-nha. Entretanto vieram os chineses e a passagem de soberania foi marcada por vários actos simbólicos, entre os quais a construção de um Museu das Ofertas Sobre a Transferência de Soberania de Macau, mesmo ao lado do Centro Cultural de Macau. Quando é que aprendem a dar nomes bonitos, curtinhos e melódicos aos mu-seus? Assim à maneira dos portugueses, por que não? Museu de Macau, Museu de Arte, Museu Marítimo… Agora Museu das Ofertas Sobre a Transferência de Soberania de Macau, que rótulo tão grande, quase impossível de memorizar, mesmo para os portugueses. Museu das oferendas não seria bem mais poético? Ou então, des-pindo a carga religiosa, Museu das Ofer-tas. Em Chinês o nome também é grande e significa, numa tradução literal: Museu da Exibição das Ofertas (Heli Chenlie Guan賀禮陳列館).Depois entramos no Museu e todas as ofertas são grandes, umas enormes mes-mo. A intenção é que conta, dir-me-ão. Não interessa o tamanho das dádivas, mas o espírito das mesmas. Elas presen-tificam a alegria do regresso de Macau à China, que passa a sentir-se como peixe dentro de água, tal como indicam os vo-tos da oferta do Governo Municipal de Tianjin: um painel com uma flor de lótus, um peixe dourado e uma menina muito rechonchuda a segurar no peixão, tal como nas pinturas do Ano Novo de Yan-gliuqing (楊柳青), lendo-se a frase mui-tíssimo auspiciosa: Muitos Anos de Abun-dância (liannian you yu連年有餘), onde o peixe simboliza a riqueza e a opulência, a criança a felicidade e a flor de lótus a pureza espiritual, mas também, neste contexto, Macau, a pujante joia da coroa.Goste-se ou não deste tipo de arte, re-conhece-se, em muitas das suas manifes-tações, uma mistura entre o realismo e o simbolismo. No Museu das Ofertas en-contramos peças desmesuradas, que po-dem ser classificadas como pertencendo ao estilo realista simbólico. Este é um estilo artístico revelador do espírito chinês, apegado ao pormenor e ao concreto e, ainda, aos símbolos que podem conferir sentido a uma existência dura e rotineira.Macau regressa à China e todas as pro-víncias oferecem algo de si mesmas para

O PEIXEE O MUSEUDAS OFERTAS

acolher a cria perdida, tresmalhada ou simplesmente emprestada, como bem re-vela a oferta (Changbai Qing 長白情) da província do governo de Jilin, onde ve-mos dois veados de diferentes tamanhos a brincar junto do lago celestial. Ora, num contexto político, o grande veado (Da Lu大鹿) é homófono de Continente Chinês (Da Lu 大陸) e a peça simboliza a reunião familiar da China, grande como o veado esculpido, com Macau, pequeno, mas cheio de energia. Mal se adivinhava então que essa energia ia transbordar por todas as costuras. Noutras peças o realismo simbólico in-vade todos os campos naturais, levantan-do voo. Passamos então ao simbolismo realista, fácil de contemplar em ofertas como o Regresso da Pérola (Cang Hai Huan Zhu 沧海还朱), entregue pelo governo provincial de Zhejiang. A Pé-rola é naturalmente Macau, enquanto os dois dragões têm duplo significado, por um lado, simbolizam os dois maiores rios chineses: o Rio Amarelo (Huanghe 黃河 ) e o Rio Changjiang (長江), por outro, as nacionalidades chinesas, todas des-cendentes do Dragão, senhor das Águas celestiais e terrestres, onde nadam os peixes. Entre estes, os mais privilegiados, como a carpa (Liyu 鯉魚), transpõem todas as barreiras em direcção ao céu da ascensão profissional.Os peixes, mesmo nas filosofias mais desconfiadas do mundo terreno, como a budista, representam a capacidade de atravessar com agilidade e subtileza o mar dos humanos sofrimentos. O peixe é

ainda nas versões mais optimistas, como a taoista e a filosofia popular chinesa, o símbolo privilegiado da riqueza, por isso qualquer estabelecimento comercial que se preze (e muito especialmente os res-taurantes), possui o seu aquário.Voltando à oferta de Zhejiang, os dra-gões brincam com a pérola, na expecta-tiva que Macau continue a ser no futuro, uma das maiores pérolas. Expectativa que não tem vindo a ser gorada a atender à multiplicação da riqueza fornecida pelos casinos do território. Esta já era ampla-mente intuída e determinada nas ofertas do Concelho de Estado da República Popular da China na altura da transição. São elas duas esculturas com lótus dou-rados, uma situada na Praça do Lótus em frente do Fórum de Macau, e outra mais pequena, mas ainda assim muito grande para os nossos padrões artísticos ociden-tais, que consta no Museu das Ofertas. Um lótus de ouro é um dos mais pode-rosos símbolos da alquimia espiritual, ao qual se recorria nos tempos imperiais da filosofia Neoconfucionista para represen-tar a transmutação da matéria em espíri-to. Mas neste Lótus dourado e material em que se transformou Macau, importa repensar qual é o lugar para o reapareci-mento dos valores espirituais. Ora ironi-camente, ou talvez não, os casinos têm vindo a promover acções culturais de grande relevo, mostrando que não se li-mitam à exploração da actividade lúdica, mas que se disponibilizam a contribuir para o desenvolvimento da cultura do lugar.

Resta saber o que pode acontecer à cul-tura sem um espaço ecológico que a sus-tente. É interessante estudar e analisar o comportamento das gentes de Macau num cochicho cosmopolita. Será que conseguem sobreviver? O futuro o dirá.Entre os presentes, há alguns bastante naturalistas, como o do Governo Provin-cial de Jiu Zhai Gou (九寨溝), patrimó-nio mundial da Unesco, que ofertou um belíssimo trabalho em seda, onde pode-mos contemplar o que resta dos pandas na China (九寨溝大熊貓圖), concentra-dos na Província de Sichuan. Ou ainda, a tapeçaria concedida por Xinjiang, que chama a atenção para o Cenário do lago Kanas (哈納斯風光), o elemento natural mais belo desta província.Uma outra oferta de grande valor sim-bólico é a tapeçaria enviada pela Região Autónoma do Tibete, comprometida-mente budista, com votos perpétuos, isto é, grandes como as montanhas e longos como os rios ( Shan Gao Shui Chang山高水長). Na tapeçaria contemplamos a terra sagrada budista, Potala, e um belíssimo arco-íris ligando o Tibete a Macau. Dois grous brancos voam sobre a ponte celes-tial, transportando mensagens auspicio-sas, como sucede com todos os pássaros, sendo os grous particularmente vocacio-nados para entregar votos de longa vida, como os que são enviados a Macau.O que é que Macau ganhou com a trans-ferência, além de uma nova administração e de um Museu de ofertas? Na realidade ganhou a recuperação das suas memórias ancestrais, materializadas em dádivas de uma grande simbologia, que não deixam esquecer a pertença desta terra a um vas-to território com 56 nacionalidades do-minadas por uma maioria Han. E o que perdeu Macau que, do ponto de vista simbólico, é a pérola ou a flor dou-rada? Se ganhou em contributos mate-riais, perdeu algo, cedeu terra, roubou ao mar, distanciou-se da natureza. Por isso este peixe dourado (jinyu金魚) pode fe-necer se, por qualquer estranho desígnio, for obrigado a avançar rumo a um mar afinal desconhecido. À terra bastava-lhe um pequeno balde, como à carpa que o filósofo Zhuangzi menciona na obra com o seu nome, como era habitual à época. A carpa precisa apenas de um pouco de água para sobreviver, mas se o mínimo gesto lhe for negado, ou for transfor-mado numa vastidão desconhecida e ili-mitada, nem toda a riqueza do mundo, acrescida de bem-intencionados votos e simbologia, a poderão salvar. Resta então a esperança que o opulento peixe mantenha a energia para continuar a nadar e se conservar dentro das águas da Mãe-China, tão ágil quanto possível, dadas as dificuldades que aguardam a sua nova e bem mais ampla travessia.

* A autora lecciona nos Mestrados de Tradução e de Língua e Cultura do Departamento de Português da Universidade de Macau