h - suplemento do hoje macau #16

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PARTE INTEGRANTE DO HOJE MACAU Nº 2401. NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE Camilo Pessanha a glória do poeta & As virtualidades essenciais do mar E O PAÍS PERDIDO h ARTES, LETRAS E IDEIAS JOAQUIM MAGALHÃES DE CASTRO

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Suplemento h - Parte integrante da edição de 1 de Julho de 2011

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PARTE INTEGRANTE DO HOJE MACAU Nº 2401. NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE

Camilo Pessanhaa glória do poeta & As virtualidades

essenciais do mar

E O PAÍSPERDIDO

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JOAQUIM MAGALHÃES DE CASTRO

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Filipa Queiroz

Recorda-se do momento em que começou a viajar?Desde que me conheço, desde miúdo, tinha uns 14 anos, tal-vez. Percorri Portugal à boleia, fiz a costa toda, dormia na praia. Quando é que a viagem se transformou em trabalho? Foi cá em Macau. Já viajava e quando parei em Macau decidi começar a escrever, e mais tar-de a fotografar. Optei por ser freelancer, não estar vinculado a nada, porque isso me permite gerir o meu tempo apesar de, claro, isso ter um preço que é a incerteza. Nunca saber se consi-go vender o trabalho que produ-zo. Há pessoas que pensam que este trabalho que tenho vindo a fazer é financiado e apoiado mas isso só acontece uma vez ou ou-

tra, apoios pontuais. Geralmen-te faço tudo por iniciativa pró-pria. Mas gostava de salientar que cada vez me agrada menos ser encarado como um viajante. Porque as pessoas encaram o viajante como um ser um boca-do mítico, não tem carne nem osso, anda por aí e não tem uma existência própria. Como é que quer de ser enca-rado?Como uma pessoa e acima de tudo como investigador. Por-que eu viajo apenas com esse objectivo, o de investigar. Já fiz essa viagem por viajar, aquela história de dar a volta ao mun-do, numa altura em que não tinha mais nenhuma preocupa-ção. Não quero dizer que isso seja mau, claro, mas há idades

para tudo e eu já dei para esse peditório. Não deixo de ser um viajante e de gostar muito de o ser, isto é um vício. Mas cada vez mais prefiro que as pessoas se dirijam a mim para pergun-tar sobre o trabalho que tenho vindo a desenvolver. Se a minha vida fossem só as viagens eu não andava por aí a apregoá-las, fa-zia-as. Não andava a falar sobre o que andei a fazer porque isso não interessa, isso partilho com os amigos e não com o grande público, não é isso que me in-teressa. Começo a ficar desgastado, como um Dom Quixote a lutar contra os moinhos. Eu encaro isto como uma espécie de mis-são, não sei, colou-se-me à pele. Fala do trabalho de investiga-

JOAQUIM MAGALHÃES DE CASTRO VIJANTE, INVESTIGADORFilipa Queiroz

FORMADO EM HISTÓRIA, TEM POR MAIOR

VÍCIO O PRAZER DA DESCOBERTA POR ISSO

NUNCA PÁRA MUITO TEMPO NO MESMO SÍTIO,

MAS RECUSA-SE A SER ENCARADO COMO

UM MERO VIAJANTE. HÁ ANOS QUE SEGUE

O RASTO DO PATRIMÓNIO PORTUGUÊS PELO

MUNDO E LAMENTA A FALTA DE INTERESSE

DOS CONTERRÂNEOS PELA MATÉRIA. JOAQUIM

MAGALHÃES DE CASTRO EXPLICA POR QUE É

QUE ACREDITA NO QUINTO IMPÉRIO E REVELA

OS PROJECTOS NA CALHA PARA SUCEDEREM

AO LIVRO QUE APRESENTOU RECENTEMENTE

EM MACAU - “NO MUNDO DAS MARAVILHAS”

“Eles andavam à procura de cristandades perdidas...”

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FOTOS ANTÓNIO FALCÃO

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ção sobre o património portu-guês no mundo, que começou quando chegou a Macau, em meados da década de 1990. É uma espécie de base?Sim. Saltei de um lado para o ou-tro, já fui e já voltei várias vezes. Mas foi aqui que fui ao encontro desse objectivo concreto, quase sem querer. Foi aqui que come-cei a escrever, a fotografar e a ir de encontro àquilo que tinha estudado, juntando a viagem ao trabalho.O património português no mundo é uma pérola por talhar e eu resolvi dedicar-me a dar-lhe uns toquezinhos e revelar o seu brilho porque acho que é uma memória que nós temos e que deixámos pelo mundo, e quan-do digo mundo é o mundo todo. Por todo o lado há vestígios e numa intensidade muito maior do que aquela que nós conhece-mos. Estamos sempre a falar de Malaca e desses lugares mais co-nhecidos, mas há muitos outros que eu tento também revelar na medida do possível. Esse é o trabalho que venho a fazer há anos, por isso acho que já era altura de não ter de di-zer ou pedir por favor para me apoiarem. Num país civilizado que gostasse da sua história, de si próprio, isto de ter de ir às instituições para eles tomarem a iniciativa de me apoiarem se-ria redundante. Cada vez que chego aos sítios, às instituições, tenho de voltar a dizer e qua-se tentar provar que é preciso cuidar e dar a conhecer o nos-so património, e não só junto à comunidade lusófona, junto às outras também. É uma questão de reconhecimento perante os nossos antepassados que permi-tiram que nós estejamos aqui. Não é por acaso que estamos aqui, deste lado do mundo, no meio da China. Nem foi obra da União Europeia. Isto é um lega-do muito antigo e é esse legado que me interessa. Aliás identifi-co-me com aquela época. Não me identifico com o Portugal de hoje. Porquê?Não me identifico com a menta-lidade, acho que continuamos a desvalorizar-nos muito, sempre com referências lá fora quando as temos cá dentro, neste uni-verso que o português criou, que penso que tem uma força muito grande. “Viagem ao Tecto do Mundo” e “Mar das Especiarias” foram integrados no Plano Nacional de Leitura. Agrada-lhe essa perspectiva pedagógica da sua obra?Agrada-me muito, precisamente

por esse lado didáctico de con-tar a história da expansão que não tem idade. Porque aquilo é de leitura fácil, não é muito den-so. Também tenho participado no festival LeV - Literatura em Viagem, em Matosinhos, que tem uma extensão às escolas e há uma apetência muito grande dos miúdos para isto. Eles ficam muito curiosos e fazem muitas perguntas: “Como é isto? Como é aquilo? Em História não nos

contam essas coisas”. Eu digo--lhes que na disciplina só con-tam alguns episódios, e nós temos muitos outros até muito mais interessantes da História cultural, da chamada peque-na História. Não dos reis mas de outras figuras. Macau é um exemplo, é fruto de uma inicia-tiva privada, de uns malucos que andavam à revelia da coroa e ca-saram-se com mulheres locais, comerciavam aqui com chine-ses, quando chegávamos pen-savam que éramos malaios, que vínhamos do Sião ou da Malásia porque vínhamos em juncos. É essa capacidade que temos em nos adaptar que eu acho incrí-vel. Mas tem um perigo, que é de tanto nos adaptarmos aca-barmos por nos anular.Recentemente, no lançamento do seu último livro “No Mun-do das Maravilhas” aqui em Macau, o historiador Jorge Morbey disse que era preciso mapear o património portu-guês.

Sim, e quando eu falo de patri-mónio não falo de pedras, falo sobretudo do resto. Acho que Macau, dada a sua posição ge-ográfica, podia ter um papel importantíssimo. Até porque a Ásia é dos locais menos conhe-cidos. Portugal ainda sabe umas coisas sobre África e América

mas a Ásia pouco conhecem, só aquele ciclo mais banal de Ma-laca e Goa, mas não saem daí. Nem Macau sabem muitas vezes o que é. Disse que não se identifica com o Portugal de hoje. Gostava de ter vivido na Era dos Descobri-mentos? Digamos que gostava de ter uma máquina do tempo e po-der ir ver como é que era, mas tenho uma visão romântica so-

bre isso, até porque também foi uma época de muita sacanice. Nós fomos sempre cometendo os mesmos erros, continuamos a viver acima das nossas possibi-lidades, continuamos a premiar os canalhas e a crucificar as pes-soas que gostam de Portugal. O Magalhães teve de ir oferecer os seus serviços aos espanhóis, já sabemos. Se recuasse a essa épo-ca ficaria com certeza também muito desiludido. Mas acho que nesse período Portugal tinha uma outra dinâmica, que acho que voltará a ter.Acredita no Quinto Império?Até acredito. Sabe porquê? Porque tenho de acreditar em alguma coisa, senão Portugal não tem existência própria. Por aquilo que vejo, um Portu-gal que se põe em bicos de pés para a Europa e que a Europa continua a desprezar, de certa forma, e injustamente. Porque nós, apesar de usarmos mal o dinheiro e até sermos acusados de sermos mandriões, sofremos

uma sangria no século XV e XVI, quando iniciámos as des-cobertas. Nós abrimos as portas aos outros para eles virem atrás. Eles é que nos deviam agradecer porque vieram na nossa peuga-da, todos eles. Nós fomos os desbravadores destes caminhos e com todos os custos que isso

acarreta. Fomos as cobaias, do tipo: “Deixem lá ir os portugue-sitos a ver se vão ao fundo”.Mas há quem considere que não podemos passar a vida a pensar no saudosismo das gló-rias passadas.Claro, mas não se trata só de olhar para trás. Uma pessoa faz melhor agora, com mais discer-nimento, se souber o que está para trás. Temos de ter refe-rências, temos de ter os nossos heróis. Por que é que não ha-vemos de ter os nossos heróis? Todos os outros povos têm. E os que não têm inventam-nos. O Rei Artur nunca existiu. Os ingleses fartam-se de inventar heróis e vender trinta por uma linha, por exemplo, e nós te-mos e negamo-los, não os da-mos a conhecer. Aliás, não os conhecemos sequer. Os nossos melhores pensadores como Ca-mões, Pessoa, António Vieira, Teixeira de Pascoaes, Agostinho da Silva, todos eles acreditavam no Quinto Império. Quem sou eu para não acreditar? Alguma razão há para isso. Temos os nossos defeitos mas a nossas qualidades poderão um dia ser um trunfo. Se calhar isso até já se começa a sentir. O que é que é preciso fazer, então?Portugal começar a assumir o que deixou espalhado pelo mundo. O nosso segredo está aí. Não é na Europa, é fora da Europa. Nós somos europeus, se calhar há tanto tempo ou mais que os outros, mas somos uns europeus talvez dos mais uni-versais que há. Estamos muito misturados e temos esta história da plataforma continental, do mar, das lusofonias, da CPLP. Está tudo muito no domínio do ‘bla bla bla’, muita parra e pouca uva, mas poderá ser o caminho. Até porque, honestamente, acho que o projecto europeu vai dar de frosques. Nós somos muito diferentes, não temos nada a ver com os alemães, etc. Enfim, não é que não ache que isto [União Europeia] não seja positivo, mas é sempre uns a mandar nos ou-tros. Vão ser sempre eles a ten-tar mandar nos periféricos. O livro “No Mundo das Mara-vilhas” é todo sobre o patrimó-nio português fora da Europa, nomeadamente na América La-tina. Terá uma continuação?Sim, é o património fora da Eu-ropa. Também temos patrimó-nio na Europa, claro, a ilha de Malta por exemplo que tem tan-ta coisa ligada aos portugueses. Mas agora penso que há coisas muito mais interessantes. É uma primeira parte, a segunda deve

sair para o ano e será passada em África. Tive de dividir em dois volumes senão seria muito gran-de. É a viagem ao património português nesses lugares, mas eu não quero revelar muito se-não as pessoas não lêem o livro. Acho que é um bom livro para se ler nas férias. Que descoberta é que mais o surpreendeu até agora?Estou sempre a ser surpreen-dido. Sou uma pessoa que me fascino com pouco. Desde que esteja a viajar já estou nas mi-nhas sete quintas e encaro tudo como uma novidade. Claro que há momentos mais complica-dos, chatices, sou como todas as outras pessoas, mas tenho sem-pre muita curiosidade. Para mim nunca há falta de assunto. Quando fiz a viagem de 40 dias no navio-escola Sagres, no ano passado, pensei que provavel-mente ia passar muito tempo sem nada para fazer a olhar

Os nossos melhores pensadores como Camões, Pessoa, António Vieira, Teixeira de Pascoaes, Agostinho da Silva, todos eles acreditavam no Quinto Império. Quem sou eu para não acreditar?

É essa capacidade que temos em nos adaptar que eu acho incrível. Mas tem um perigo, que é de tanto nos adaptarmos acabarmos por nos anular.

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para o mar, por exemplo, mas não. Já me disseram que eu sou muito minucioso, que reparo nos pequenos detalhes, e é isso, quando estou a viajar estou sem-pre a tomar notas sobre o que vejo. Fico quase prisioneiro das minhas próprias observações, os olhos quase não conseguem abarcar tudo o que vêem, pa-reço um miúdo, maravilho-me. Nem que vivesse quinhentas vi-das não me cansava, aliás, nem em quinhentas vidas davam para conhecer o mundo todo. É frustrante, pensar que a vida não vai chegar para conhecer tudo?É. Não sei como é que há pes-soas que pensam: “Que aborre-cimento este país, não há nada para ver”. Acho que há sempre coisas para ver, até no sítio mais feio é possível encontrar a be-leza. Digamos que cria alguma angústia, mas espero noutra en-carnação voltar e tornar a viajar.Fez uma exposição sobre a via-gem que fez no Sagres, chama-da “De Goa a Lisboa”. Quando é que a fotografia começou a acompanhar a escrita?Eu inicialmente só escrevia, ti-nha a mania que não precisava de fotografar, até ter uma expe-riência desagradável. Fui com uma pessoa amiga fazer uma viagem ao Tibete e fizemos um acordo de que ele asseguraria as fotografias e eu escreveria. Só que no final essa pessoa nunca me facultou as fotos e eu fiquei com o trabalho estragado. Mas enfim, passado uns anos acabei por escrever esse livro e graças a essa pessoa comecei a fotogra-far. Aprendi à custa disso, tenho a agradecer-lhe a traição.Entretanto enveredou também pelo documentário, está para estrear na RTP2 um documen-tário sobre o Tibete. Sim, já andava há anos a pensar nisso porque acho que temos personagens interessantíssimas para mostrar e a televisão tem outro impacto, chega a muito mais gente do que os livros, aliás uma coisa complementa a outra. Quando fiz a apresentação do “Mar das Especiarias” em Macau a Casa de Portugal estava a começar a apostar na produção audiovisual e no lançamento do livro o arqui-tecto Carlos Couto propôs que puséssemos o livro em documen-tário. O projecto começou a ser feito e incluía começar por uma personagem que passou em Ma-cau, Tomás Pereira, um eminente jesuíta minhoto que foi o tradutor

da música ocidental na China. Ele tem diários em que descreve uma viagem que faz à Mongólia, foi tutor de um embaixador chinês que fez um tratado sino-russo, foi diplomata, director do Observa-tório Astronómico. Entretanto, devido a circunstân-cias pessoais e outros projectos que surgiram, e esse projecto acabou por ficar parado. Foi nessa altura que lancei o livro sobre o Tibete, inspirada nos jesuítas portugueses - que esti-veram em muito lado nos Hi-malaias, Butão, norte da Índia, Nepal. É uma história fascinante que teve alguma repercussão em Portugal e que acabei por con-seguir vender à RTP2. Lá fomos fazer as filmagens, que estão neste momento em fase de pro-dução. O documentário deve ir para o ar em Outubro. Entretan-to, retomou-se o projecto com o Tomás Pereira e se calhar a apre-sentação dos dois projectos até vai coincidir. O lado religioso é indissociá-vel aos Descobrimentos?Eu costumo dizer na brincadei-ra que não me vejo livre dos padres (risos) Mas sim, é im-possível porque eles eram de facto a gente culta, eles é que tinham a informação, eles é que escreviam, eram os cronistas da época. É engraçado que, às vezes, dão-nos uma versão que certos cronistas mais oficiais não dão. No caso do Tibete e dos Himalaias havia coisas que eles queriam referir e não po-diam. Eles andavam à procura de cristandades perdidas e não podia reconhecer publicamente que os budistas não eram cris-tãos, apesar das similaridade, como os monges não casarem, usarem o terço, os cânticos, etc. Só que eles não podiam admi-tir isso publicamente e tinham que dizer que era uma forma de cristianismo abastardada. Ape-sar de eles chegarem lá e pen-sarem logo que afinal aquilo não tinha nada a ver, não tinham ali aliados nem nunca na vida iam conseguir convertê-los. E não converteram. Há histórias muito interessan-tes. Há a de um padre budista português lá no Tibete que é considerado santo, que ainda hei-de investigar. Todas estas histórias davam uma série de documentários que eu propus e que gostaria imenso de vir a concretizar, aproveitando o meu conhecimento e experiên-cia no terreno.

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Além dos jesuítas, falou com marinheiros, investigadores, padres, monges. Se pudesse trazer alguém do tempo anti-go para entrevistar, da Era dos Descobrimentos, quem seria?Talvez o Fernão de Magalhães. Primeiro perguntava-lhe: “Será que tu és da minha família? Te-mos o mesmo apelido” (risos) Acho que seria ele. Foi uma pes-soa para quem Portugal também se esteve a marimbar, a história repete-se, lá está. Não é que goste de me vitimizar, mas eu tenho mau arma. Portugal tem revelado um desinteresse enor-me por estas matérias. Nunca pensa: “Será que sou só eu que acha isto entusiasman-te”?Pois, pergunto-me. Provavel-mente é isso. Mas como eu gos-to de minorias, estou sempre no lado delas, não me importo. Acho que um dia as pessoas vão aderir em massa a este assunto. É inevitável, está escrito nas estrelas. Agora não vai ser para breve, se calhar não vou ter o prazer de sentir isso, mas um dia vai ser moda. Mas já pensou desistir? Começo a perceber que isto não me traz rendimentos que me permitem não me preocu-par com o futuro. Pondero co-meçar a fazer outras coisas que sei fazer, sim. Porque assim é uma luta inglória. Mas viajar e continuar a fazer isto na des-portiva com certeza que conti-nuarei. Já visitou centenas de lugares nas suas viagens. Onde é que se imagina a lançar âncora?Em muitos sítios, é difícil é es-colher. Quando começar a pen-sar assim já é mau sinal. Claro que há necessidade de parar de vez em quando, há tantos sítios bonitos mais ainda há tanto para ver. Portugal está fora de questão?Eu gosto de Portugal, aliás por gostar de Portugal é que faço isto. E há aquela teoria de que quanto mais te distancias mais gostas. Ou aprendes a gostar. É como um quadro. Depois de tantos anos fora com certeza que valorizo mais. Mas a pers-pectiva muda. Às vezes estou a falar com as pessoas de lá e noto isso, falta-lhes esse distan-ciamento. A Terra vista da Lua também é muito mais bonita.Nunca digo que não volto a Por-tugal. O país não é o problema, está é mal frequentado (no sen-tido de governado, entenda-se).

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NESTE mister de trotamundos, os portugueses são reincidentes. Ins-

pirados talvez pelas descrições de Marco Polo, nas crónicas e histórias que povoam o seu livro As Viagens, retratando a Rota da Seda com ricos detalhes sobre povos e lugares recônditos do Oriente. Uns são mais conhecidos que os outros. Poderia referir uma extensa lista de trotamundos, citando todos os velejadores portugue-ses responsáveis por descobertas sono-ras, datas e nomes que nos inculcaram na mente, com a versão da História de Portugal servida nos bancos de escola por onde todos passamos. Mas isso seria fastidioso e despiciendo, pois eles esta-rão bem presentes na memória colectiva. Falarei apenas de alguns, que me interes-sam em apoio das minhas teses.Em 1497-1499 Vasco da Gama descobriu o caminho marítimo para a Índia.Em Janeiro de 1500, o navegante e des-cobridor espanhol Vincente Pinzon, à frente de quatro caravelas, aporta na foz do rio Amazonas, dando-lhe o nome de Santa Maria do Mar Dulce. Em Abril de 1500, Pedro Álvares Cabral chegou ao Brasil, pela região da Bahia, desembarcando em Porto Seguro. A pos-

Miguel Miranda

DE OJEK, ATRAVÉS DO MAR DA MEMÓRIASobre o livro “Mar de Especiarias - Viagem de um Português pela Indonésia”, de Joaquim Magalhães de Castro

se dos territórios do Brasil era portugue-sa, garantida pelo tratado de Tordesilhas, celebrado em Junho de 1494, na qual entre as duas coroas se dividiu o mundo ocidental em dois, no que respeitava à soberania sobre territórios descobertos e a descobrir. A linha divisória seria o meridiano situado 370 léguas a oeste do arquipélago de Cabo Verde.Refiro estes factos, personagens e datas para que se atente neste primeiro gran-de embuste praticado pela diplomacia portuguesa das descobertas. Nem sem-pre nos sairia a sorte de Aljubarrota, em termos militares o exército e a armada espanhola eram superiores em número e capacidade de combate. Foi pela astúcia, a contra-espionagem, o ardil, que muitas vezes os vencemos, os ludibriamos e os contivemos. Parece evidente que a coroa portugue-sa já tinha conhecimento de territórios do Brasil, situados para aquém das tais 370 léguas que viria a negociar no tra-tado. Anónimos trotamundos, velejado-res portugueses à socapa, já deviam ter dado devida nota ao rei do facto. Tanto assim deve ter acontecido, que a arma-da de Pedro Álvares Cabral não era uma expedição de exploração de duas ou três embarcações, mas um verdadeiro desta-camento de ocupação, constando de dez

naus e três caravelas, transportando entre 1200 a 1500 homens, entre soldados, ar-tífices e religiosos. Não se arriscaria uma expedição com logística e custos tão pe-sados se não houvesse a certeza prévia do destino.

Em 1519, o Rei D. Manuel manda elabo-rar o Atlas Miller, ao cartógrafo oficial do reino, Lopo Homem. O mapa descreve com minúcia, rara beleza e iluminuras de animais exóticos, a extensa costa brasi-leira, entretanto vasculhada pelos por-tugueses. Servirá de oferta a Francisco I de França, mas o seu grande objectivo seria induzir a coroa espanhola em erro, ao tentar negar que a terra fosse redon-

da, ou que houvesse passagem pelo sul da América para a Índia, como dizia Fer-não de Magalhães. Assim se tentaria pôr em causa o apoio de Castela à expedição de Magalhães. Este é possivelmente o segundo grande embuste da diplomacia portuguesa dos Descobrimentos, que conquistou importantes vitórias, sem ser em campo de batalha.Em 1512, os portugueses chegam Às ilhas Malucas (ou Molucas), as valiosas ilhas das especiarias, ricas em cravinho, pimenta, sândalo.Em 1519-22, Fernão de Magalhães, um minhoto de Ponte da Barca ao serviço da coroa de Espanha, que provou que a terra era redonda, com a sua viagem de circum-navegação (sucumbiu durante a viagem, em 1521, que foi terminada por Juan Sebastian D’el Cano). Em 1522, após a viagem de Magalhães, Carlos V de Espanha manda uma expedi-ção às Molucas, comandada por Garcia de Loyasa, para as ocupar, pois as rei-vindicava pelo tratado de Tordesilhas. O mesmo fazia a coroa portuguesa, pois esse tratado não havia definido nenhum limite a este para a partilha de territórios. Estala a disputa com Espanha pelo domí-nio sobre estas paragens, instalando du-rante vários anos um diferendo chamado “A Questão das Molucas”, que ameaçava tornar-se num conflito bélico devasta-dor. Mais uma vez a diplomacia imperou, pelo acordo vertido no Tratado de Sara-goça celebrado em 1529, que dividia o outro lado do mundo pelo anti-meridia-no de Tordesilhas. A coroa portuguesa comprou as ilhas Molucas por 350.000 ducados de ouro. Assim se repartiu, por esta época, entre Portugal e Espanha, o Mundo, ficando sob o domínio portu-guês o Mar das Especiarias. Nessa altu-ra, não entraram nesta contabilidade os ingleses e os holandeses, que haveriam de rapinar aqueles territórios, sobretudo estes últimos. Este Mar das Especiarias foi sempre des-tino de trotamundos portugueses. Joa-quim Magalhães de Castro é mais um destes trotamundos, e o seu livro, preci-samente chamado Mar das Especiarias, é o testemunho escrito da “Viagem de um Português pela Indonésia.” E é sobre este livro que importa tecer al-gumas considerações, feito este intróito histórico. Preparem-se, ao ler esta obra, para uma viagem de ojek através do mar da memória.(Ojek, como encontrarão no livro, é um transporte de aluguer local, nas Molucas, uma espécie de táxi de motoreta)Trata-se de literatura de viagens, de cariz histórico, escrito de forma descritiva e com recurso à evocação de fontes e informação baseada em pesquisa. Não se trata de uma obra ficcional, é um texto que se cinge à realidade presente, revelando-a, evocando

Este livro encerra um romance escondido, urdido à volta de canhões de Manuel Tavares Bocarro, pintados em prata, em negro ou azul.

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a história com a preocupação de rigor. E fá--lo com agilidade e mestria, sendo a escrita fácil, enxuta, correcta, e rica. Está neste livro muito trabalho. Muitas ho-ras, dias, meses de vida, de recolha e registo de informação. Muito trabalho de pesquisa. Mas muito prazer e desfrute também. Por um lado, o autor tem toda a minha admi-ração, apreço e louvor pelo intenso labor e grande qualidade de trabalho. Por outro, tem toda a minha inveja, por aceder a luga-res que nunca poderei visitar de forma tão prolongada, tão aventureira.Sendo um relato factual, reportando--se à procura e descoberta de vestígios portugueses nas ilhas do arquipélago das Malucas (ou Molucas), não pode deixar de ser também lido como um romance, pois a realidade actual e a evocação do passado são tão ricas e coloridas, que, em muitos aspectos, a ficção ul-trapassa a própria realidade. Cheio de personagens e cenas mágicas, repleto de romances de paixão as-solapada entre capitães e princesas evadidas, disputas de régulos, reis, rajás, marajás, sultões, terras de opu-lência à qual sobrevém a desdita e miséria, a intermitência da fortuna. A realidade é abrasiva: pouco ou nada resta da presença portugue-sa por aquelas paragens. Nada de físico, entenda-se. As fortificações outrora vigorosas, são agora ruínas indecisas, onde habitam catervas de nativos em barracas de bambu e te-lhado de chapa, como na fortaleza de Solor, onde ainda resta uma pare-de de muralha e um canhão.Foi assim que deixamos aquelas para-gens: ao abandono. Os escassos ves-tígios a serem comidos pelo tempo, pela vegetação, ou a serem lentamente adulterados pela mão humana. Por in-capacidade nossa de manter o poderio bélico da altura, por incapacidade nos-sa actual de contribuir para o restauro deste vasto património espalhado pe-los quatro cantos do Mundo, e também nas Malucas e na Indonésia.Além das edificações de defesa e outras, a ocupação portuguesa foi determinada por um forte pendor de evangelização, para o que contribuíram várias congrega-ções de missionários. Assim são determi-nantes e perenes os vestígios religiosos, as igrejas, os símbolos, os rituais. Foi também apanágio do tipo de coloni-zação portuguesa, nas Molucas, na Indo-nésia e em todo o mundo, a misceniza-ção. E são as próprias pessoas os vestígios maiores da presença portuguesa nessas paragens (como os black portuguese de Maumere). Os fácies, os olhos, os pelos do corpo, o bigode, evocam o patrimó-nio genético português. Depois os no-mes, os apelidos: os Da Silva (como os rajás da Silva, de Sica) os Da Gomes, os Da Costa, e assim por diante, numa arte de apelidar lusa até à medula. Depois, os vocábulos ainda remanescentes na língua local, uma das quais o bahasa, de que o livro fornece um competente glossário, nas páginas finais. Depois de cerca de 150 anos de domínio

português sobre estas paragens, fomos escorraçados de muitas ilhas pelos ho-landeses, que cobiçavam as riquezas do comércio naquelas paragens. Mas a do-minação destes, embora tentasse com de-terminação extinguir todos os vestígios da ocupação portuguesa, não foi eficaz neste aspecto. Cito uma carta do governador da Compa-nhia das Índias Orientais que de Batávia, escrevia aos seus superiores na Holanda (tal como vem citado neste livro na pág. 59)“Passaram-se 100 anos desde que ex-pulsámos os portugueses. Se pensam que acabamos com eles pela força dos navios e de armas, destruindo sistema-ticamente os seus fortes, igrejas e mo-numentos, perseguindo a fé católica que

trouxeram, estão muito enganados, por-que eles continuam presentes em todo o lado através da língua e da cultura que aqui espalharam. Devemos mudar o nosso sistema. Nós viemos para ganhar dinheiro e partir o mais depressa pos-sível, eles vinham para ganhar dinheiro mas também para ficar e a certa altura já não pertenciam mais à Europa, eram parte destas terras.”Não podia haver melhor descrição do tipo de ocupação portuguesa nestas paragens. Daí resulta o tipo de vestígios que se podem ainda encontrar da presença portuguesa, mais ligados às pessoas, à cultura, aos cos-tumes, nomeadamente religiosos.Não se julgue que esta capitulação frente aos holandeses foi total: houve também margem para alguma manobra política. Em 1607 Portugal assina um tratado com a Holanda renunciando a todos os seus direitos na ilha das Flores, em troca do enclave de Maubara, em Timor – na con-dição de o governo holandês respeitar o livre exercício da fé católica das popula-ções. Assim se garantiu mais uma parcela da riquíssima ilha do sândalo – Timor – e

se assegurou a presença cultural nas Flo-res, que ainda hoje é a ilha onde a tradi-ção religiosa católica de influência portu-guesa se mantém mais preservada. Este livro é uma deliciosa viagem pela memória, pelos sentidos também. É um texto eivado de cheiros, das especiarias, dos frutos como os duriões, de odor in-tenso, os peixes pendurados de fora do autocarro, os corpos, os barcos com pou-ca higiene. É uma arte, escrever com o sentido olfativo da realidade. Conservam-se relíquias guardadas em caixotes, pelos rajás ou descendentes. Quase sempre um elmo, dourado ou não. Um símbolo do poder bélico, do poderio português, preservado há séculos – as re-galias, conferindo uma aura de poder ao

sucedâneo de rajá. O respeito que os el-mos de combate lusitanos infundiam vem consubstanciado no Tratado das Ilhas Molucas, citado neste livro, que refere:“Ali vem cabeça de ferro; e todos fugiam; tinham que éramos invencíveis e não mortais; e já agora sabem que por debai-xo daquele capacete tem cabeça que se pode cortar e corpo que não é imortal”Há referência no mesmo Tratado (tam-bém em citação neste livro) à ancestral e extinta prática de canibalismo, nalgumas destas paragens:“Não somente comem os inimigos que tomam ou matam em guerra, mas ainda entre vizinhos e amigos é muito ordiná-rio pedir e haver um do outro empresta-do o próprio pai, depois que é já velho, para o dar a comer num banquete, com obrigação de lho pagar, fazendo-lhe o mesmo presente do seu quando também tiver convidados para jantar”- Uma forma prosaica de resolver o pro-blema da terceira idade, que caiu em de-suso.Viajamos sobre a memória, num percurso acidentado pela desmemoria, pelos eva-

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nescentes vestígios. Chega-se a qualquer lugar e martela-se a frase: os velhos que sabiam coisas dos portugueses já mor-reram. Assim como quando morreu em posfácio Edmundo Pareira, levando para a cova o pouco português que ainda se falava em Sica na ilha das Flores. Com ele, morreram quatro séculos de memó-ria, que ninguém acautelou. É disto que se trata, neste livro “Mar das especiarias” – contribuir para preservar a memória. É um excelente trabalho que pre-serva e divulga os elementos recolhidos, da presença portuguesa na Indonésia, es-pecificamente no arquipélago das Malucas (ou Molucas). Tem este grande valor, pela riqueza da recolha, pela importância da sua preservação em memória, e pela divulga-

ção. Passar daí à preservação real des-tes vestígios já será mais problemático, mas livros como estes são um passo efi-caz neste sentido. Este é um livro que vale a pena ler, pelo prazer da leitura e pela importância da informação nele contida.Mas para mim, este livro encerra um romance escondido, urdido à volta de canhões de Manuel Tavares Bocarro, pintados em prata, em negro ou azul. Com personagens mágicas, como os hipnotizadores de Maçácar - seques-tradores disfarçados de taxistas; os cães desaparecidos de Ternate (talvez exter-minados pela culinária local), os rajás Da Silva, de Sica, de regalia em elmo dourado, o fandango dançado em Ha-talai, o sagu alimentício, o vinho de saguzeiro, as jaqueiras com rede para apanhar os frutos, o desembarque in-certo dos barcos pejados de gente, os hotéis encardidos e sempre lotados, as estradas esburacadas cruzadas de ojek. O pôr do sol, em reflexos cobre sobre o mar, onde todas as cores do azul se revelam. Como azuis eram as vestes da misteriosa e sensual Hari, que só lhe deixavam ver os olhos sequiosos, de-vorando Joaquim Magalhães de Cas-

tro, procurando quem lhe sossegue a alma e o corpo. Este encontro eléctrico encerra um romance que fica por contar. Imagino-lhe a voz de veludo, murmurando ao ouvido do autor do livro:- se quiseres, podes visitar a minha casa…Mais nada se soube de Hari, que sonha-va acordada com o Canadá e com o Joa-quim. O texto do livro, tão generoso em pormenores sobre outras personagens, não revela o que se terá passado. Pela omissão, o autor quer fazer-nos querer que nada se terá passado. O cronista Fernão Mendes Pinto, por ve-zes acusado de embustes narrativos, era à época apodado de Fernão Mentes Muito. Joaquim Magalhães de Castro, este tro-tamundos, ao tentar iludir-nos sobre o verdadeiro romance com Hari, que corre como um rio subterrâneo debaixo do livro, transformou-se num Joaquim Mentes Basto, disposto a privar-nos do melhor quinhão da história. O que, convenhamos, não é justo para a sede dos leitores… Bem hajas Joaquim, por nos contares este livro. Mal hajas Joaquim, por não nos contares tudo…

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2011L E T R A S S Í N I C A S

O texto conhecido por Wen Tzu, ou Wen Zi, tem por subtítulo a expressão “A Compreensão dos Mistérios”. Este subtítulo honorífico teve origem na renascença taoista da Dinastia Tang, embora o texto fosse conhecido e estudado desde pelo menos quatro a três séculos antes da era comum. O Wen Tzu terá sido compilado por um discípulo de Lao Tzu, sendo muito do seu conteúdo atribuído ao próprio Lao Tzu. O historiador Su Ma Qian (145-90 a.C.) dá nota destes factos nos seus “Registos do Grande Historiador” compostos durante a predominantemente confucionista Dinastia Han.

A obra parece consistir de um destilar do corpus central da sabedoria Taoista constituído pelo Tao Te Qing, pelo Chuang Tzu e pelo Huainan-zi. Para esta versão portuguesa foi utilizada a primeira e, até à data, única tradução inglesa do texto, da autoria do Professor Thomas Cleary, publicada em Taoist Classics, Volume I, Shambala, Boston 2003. Foi ainda utilizada uma versão do texto chinês editada por Shiung Duen Sheng e publicada online.

A COMPREENSÃO DOS MISTÉRIOSWEN ZI 文子

CAPÍTULO 155, PARTE I

Wen Tzu perguntou: Porque é que o hu-manismo, a justiça e as boas maneiras sao consideradas menores do que a virtude da Via?

Lao Tzu respondeu: Aqueles que praticam o humanismo deliberadamente sempre o calculam em termos de desgos-to ou felicidade; aqueles que praticam a justiça deliberadamente sempre a com-preendem em termos de tirar e de dar. Os nossos desgostos e alegrias não se podem estender a todos no seio dos limites dos quatro mares; os bens e dinheiro num te-souro exausto não bastam para prover a toda a gente.

Como tal, sabemos que é melhor pra-ticar a Via e pôr em efeito a sua virtude. Com base na natureza essencial do céu e da terra, todos os seres se endireitam e o

mundo inteiro satisfeito. O humanismo e a justiça são dependentes e subsidiários. Por isso, os homens superiores vivem se-gundo as profundezas, não segundo a su-perficialidade.

Quanto às boas maneiras, tratam-se de um embelezamento da substância. O humanismo é um efeito da benevo-lência. Assim, as boas maneiras devem ser reguladas segundo sentimentos hu-manos, de modo a que não se exceda o que é substancial. O humanismo não significa desperdício de caridade; des-pedirmo-nos dos mortos com um sen-timento de tristeza pode ser chamado humanismo.

O sustentar da vida não força os ho-mens a fazerem aquilo que não podem fa-zer, ou impedi-los de fazer aquilo que não se conseguem impedir de fazer. Quando o aferir da medida não falha aquilo que é

apropriado, a censura e o elogio não têm modo de se manifestar.

Assim, na composição musical, bas-ta juntar sentimentos de desfrute, sem ir alem da harmonia, compreendendo as proporções de diminuendo e crescendo e na mestria das medidas apropriadas de magnificência e austeridade.

Mas as coisas não têm sido assim em sociedades recentes. As palavras e as ac-ções opõem-se umas às outras , sentimen-tos e aparências se contradizem. As boas maneiras são embelezadas ao ponto do tédio, a música é agitada ao ponto da li-cenciosidade, os costumes afundam-se na mundanidade, censura e elogio enchem os tribunais. Por isto, os despertos aban-donam estas coisas e não as usam.

Tradução de Rui Cascais Ilustração de Rui Rasquinho

As palavras e as acções opõem-se umas às outras, sentimentos e aparências se contradizem.

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h8 E N S A I O S O B R E A V I S Ã O

Na primeira versão do “Ensaio Sobre a Visão” vamos ensaiar Macau. Aqui, no complexo terreno percorrido pelos fotógrafos do território. Uma zona, uma rua, um edifício. A água que bebemos dentro de uma mão cheia de imagens. A Fotografia sem explicação, para que se compreenda o que é a Cidade. Esta cidade onde vivemos.

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2011

José Manuel siMõesum dia ao chegar a casa, encontrou uma máquina fotográfica perdida no tempo jazida à beira do caixote do lixo. Nunca percebeu porque pegou nela e a levou para casa. Aqui está finalmente o pretexto para o final da história. Doutorado em Global Studies e mestre de muitos outros mesteres, professor e jornalista, publicou livros e biografias de músicos. Viaja muito também sem sair do lugar. Respira em Macau há 3 anos

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Ruade Londres

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TUDO O QUE NOS VEM DALI CONTÉM UMA QUALIDADE

VAGA E, AO MESMO TEMPO, FAMILIAR.

Esta última qualidade infiltrou-se em nós pela televisão e não tanto pelo cinema, que se esquivou sempre a mostrar-se e que se esqui-vou sempre, principalmente, como hoje ainda acontece, a mostrar-se ostensivamente. Curio-so e opaco destino este o do cinema inglês, tão à-vontade na sua própria terra mas de caminhar tão hesitante fora das ilhas. Este é o contrário do cinema mediterrânico de Pasolini, do cine-ma inexplicável e inesperadamente internacio-nal dos franceses ou do cinema universalmen-te humano de Kurosawa ou de Satyajit Ray. Sendo um cinema em língua inglesa nunca o cinema inglês se libertou de um sabor domés-tico, encantador, por vezes enternecedor, mas sempre envergonhado além fronteiras.

Esta insularidade estende-se a outras áreas artísticas. A Inglaterra não tem, noutras artes, nomes que se afirmem como referência ruidosa a nível global. Não mostra, na história da pin-tura, nomes sonantes como Rubens ou Picasso. Tem Turner e Constable. Na música clássica inglesa não há um Beethoven nem um Bach, nem mesmo um Chopin, há Purcell e Britten. Apenas na literatura, com Shakespeare, se criou um brilho que está para lá das fronteiras e da ignorância.

Qual o grande nome do cinema inglês? Leigh, Branagh ou Loach hoje em dia? Nem por isso, antes Guy Ritchie ou Danny Boyle, não excessivamente conhecidos, no entanto. Em que esquecimento caiu David Lean ou At-tenborough? Quem sabe que John Guillermin ou Ridley Scott são ingleses? Quem conhece Carol Reed ou Anthony Asquith? Hitchcock

é uma marca internacional. Que som têm estes nomes em comparação com os de Fellini, Fass-binder, ou John Ford?

Qual o grande filme inglês? Lawrence of Arabia ou Doctor Zhivago, ambos de ambien-te distintamente não inglês? Filmes que sabe-mos que são ingleses mas que não os sentimos como tal. E recentemente? Naked, de Mike Leigh; The Great Ecstasy of Robert Carmicha-el, de Thomas Clay?

A verdade é que não há grandes filmes clás-sicos ingleses, no sentido em que estes sejam imediatamente recordados se a tal nos prestar-mos. Este filme de John Mackenzie (que por acaso nasceu na Escócia) é o grande clássico do filme de gangsters inglês e é muito pouco conhecido.

Mas aqui está quase tudo: homens de ca-misola de gola alta, malas cheias de libras es-terlinas, carros compridos, pronúncias difíceis de perceber, pedaços da trama labirínticos e incompreensíveis, iates, a Helen Mirren com 34 anos, a única presença quase aristocrática em todo o filme, o Bob Hoskins (implacável e mau), pubs com homossexuais, estações de comboios, Concordes (da B.a.), americanos, bombas, casinos, pessoas com razão, pessoas sem razão mas com charme, facadas numa pis-cina (Pierce Brosnan novíssimo e encantador), Bloody Marys, polícias corruptos, o I.R.A., a promessa de um futuro glorioso para a cidade de Londres durante os anos 80 (Margaret Tha-tcher tornara-se primeiro-ministro em 1979), uma cena num matadouro digna da mais fértil inveja em Hong Kong e, sobretudo, a promes-sa de uma excelente tarde de sábado. Que mais querem? Talvez a cena do matadouro pudesse ter sido mais prolongada mas este filme rara-mente cai em clichés.

A trama leva tempo a definir-se, linha con-veniente a um tipo de narrativa que tende a confluir para um final triunfante e claro depois de um início confuso em que as várias peças da história levam tempo a encaixar. Harold Shand, um gangster londrino, quer construir um grande negócio nas docas da cidade com ajuda de um grupo Americano mafioso. É este o aspecto londrino do filme, as docklands, guindastes, armazéns e cais, desertos, sem chu-va. É belo.

Subitamente, nesta longa Sexta Feira Santa (Good Friday), começam a morrer pessoas à volta de Harold, há explosões, facadas, uma bomba num dos seus casinos que acaba por não explodir, e os americanos começam a ter dúvidas. Quase tudo é belo neste filme onde há muito poucos lugares comuns. Helen Mirren e Bob Hoskins mostram-se por vezes inseguros, longe da fama contemporânea e, estranhamen-te, nunca chove nem há perseguições de car-ros. Mais estranho ainda, não há praticamente sexo e ainda não há, no universo criminoso de Harold, senão um enorme desprezo pela dro-ga. Terá sido a década da Senhora Thatcher uma década demasiadamente economicista, assexuada e demasiado masculina? Terá sido a primeira grande década dos financeiros, lide-rados por uma senhora de ferro, filha de um merceeiro de Grantham politicamente activo e muito independente? Isto é o início de tudo isso e a perspectiva política, que, neste filme, mais uma vez, se insinua de modo simples e sem cair na caricatura, é uma das suas perspec-tivas mais interessantes.

Este já é, assim, definitivamente um filme da era Thatcher na crença, um pouco ado-lescente quando dita por Harold, na força do capitalismo puro e na confiança nos meca-

nismos quase bestiais do mercado enquanto criadores de riqueza, que caracterizaria a era de Thatcher e do seu carismático amigo ameri-cano Ronald Reagan (filho de um vendedor de Tampico, Illinois, eleito para a presidência em 1981). Mas isso ainda não se sabia na altura em que o filme foi realizado. Harold, o gangster de Londres que se quer tornar em homem de negócios legítimo, traz a Londres também os seus “amigos americanos”, dois mafiosos pou-co americanos e pouco convincentes que aca-bam por não querer fechar o negócio. Nada demove Harold. Quem precisa de americanos? Estamos praticamente nos anos 80, Harold li-gar-se-á aos alemães. Estamos na Comunidade Europeia.

“What I am looking for is someone who can contribute to what England has given to the world: culture, sophistication, genius, a lit-tle bit more than a hot dog. Do you know what I mean? We are in the Commun Market now” – diz Harold, ao mesmo tempo irado e alivia-do, aos dois americanos moles - Bob Hoskins, redondinho e grosso como uma peça de carne.

O que é poderosamente irónico é que o seu grande plano de recuperação da zona das “do-cas”, o seu grande plano capitalista e interna-cionalista (ele fala do início da globalização), se veja travado por uma força, afinal, mais po-derosa, a força da convicção política: “Harold, call it off. You can’t do it, you can’t deal with these people. For christ’s sake, they’re not in-terested in money, they are political, they are fanatics”. O pequeno grande gangster londrino não percebeu com quem se estava a meter. Está lá tudo na cara de Bob Hoskins, nos últimos 2 minutos do filme. Tudo é belo neste filme so-bre o futuro e sobre um grande erro cometido no presente.

luz de inverno Boi Luxo

THE LONG GOOD FRIDAY, 1979 JOHN MACKENZIE

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2011T E R C E I R O O U V I D O

próximo oriente Hugo Pinto

Antønio FAlcão

ÍNDIA ELECTRÓNICA:A PRIMEIRAHISTÓRIA (II)

PORQUE ÉQUE EU FICO ASSIM?

Na Índia, todos os dias, a toda a hora, em qual-quer cidade, em qualquer lugar há uma celebração, um casamento, uma festa religiosa. Tudo parte de um longo rol de tradições de uma cultura quase tão antiga como o tempo, feita de diferentes impérios e religiões, sempre atravessada pela avidez dos comerciantes e viandantes do Mundo inteiro no encalço das rotas que iam dar ao gigante asiático, pólo de atracção de todo o tipo de mercadorias, figuras e ideias.

No final da década de 1980, aquela que, hoje, é a maior democracia do Mundo ainda era e ainda seria um porto franco em plena actividade. Foi nes-se trânsito que chegou a Goa, na penúltima década do século XX, a influência de uma nova vaga de música electrónica.

“Hippies” dos tempos modernos, viajantes sem destino, caminheiros espirituais e outros peregri-nos de religiões nada ortodoxas povoaram a região que, durante quatro séculos, esteve sob adminis-tração portuguesa. Ali chegaram, desde os Estados Unidos, Inglaterra, Alemanha, Israel e França, DJ’s, escritores, realizadores e diletantes de sortida índo-le, todos deslumbrados com a promessa de liberda-de e descoberta que se vislumbrava no horizonte das praias de Goa.

Os idílicos areais goeses foram o cenário das pri-meiras festas onde se ouvia a música que haveria de ficar para a história como “Goa Trance”, uma amál-gama de sons que misturava Acid Techno, Rock Psi-cadélico e música Hindustani, criando uma música feita de ritmos minimais, acelerados e repetitivos, de-corados com elementos orientais, étnicos e tribais – a banda sonora ideal para sessões passadas “em transe”. Depois das experiências electrónicas pontuais de Charanjint Singh e de mais um par de produtores de Bollywood, o Goa Trance marca o nascimento daquela que foi, de facto, a primeira vaga de música electrónica indiana.

Mais tarde, este género viria dar origem a uma sub-cultura à escala global, apresentando ao Mun-do aspectos da tradição e cultura indiana, da arte à mitologia. Contudo, e apesar de ter nascido no litoral indiano, o Goa Trance não foi acolhido pe-los indianos como algo seu. O lamento é de Varun Desai, produtor de música electrónica, em texto assinado no “HUB – Indian Electronica Yearbook Project”.

A resistência indiana em valorizar os aspectos modernos do seu próprio legado cultural colectivo encontra um perfeito contraponto no Ocidente, onde, a partir do Goa Trance e da sua dissemina-ção, são hoje comuns, como aponta Varun, expres-sões como “yoga”, “meditação transcendental”, ou até influências indianas em conceitos como “sus-tentabilidade ecológica” e “reciclagem”.

A verdade, contudo, é que, além destas ideias, também a própria música moderna indiana acabou por viajar para longe das suas fronteiras naturais e geográficas, desta feita por culpa dos músicos e pro-dutores indianos na diáspora, sobretudo em Ingla-terra e nos Estados Unidos.

A seguir à “explosão” que começou com o Goa Trance, nomes como Asian Dub Foundation, Ni-tin Sawhney e Talvin Singh, entre outros, foram os grandes embaixadores indianos no mundo da música electrónica, combinando géneros como o Breakbeat e o Drum & Bass com sonoridades de Bollywood e instrumentos tradicionais.

Conforme recorda Samrat B, o director do projecto “HUB”, o auge deste movimento cultural aconteceu em 1999, quando Talvin Singh, virtu-oso da “tabla”, recebeu o prestigiante Mercury Prize pelo seu álbum de estreia, “OK”. Este facto, naturalmente, reforçou a intensidade do foco in-ternacional apontado aos produtores de música electrónica indiana.

(Continua)

Não há nada como a primeira audição. É um prazer ou um tormento que não se esquece. Nunca! Muito mais do que uma vista, muito mais do que um sabor. Apesar de chegarem do mesmo modo, sem cartão de visita e sem nenhuma apresentação. Talvez só igua-lado pela imaginação da leitura, que nos consegue tolher com o mesmo rompante. Aí onde tudo é sentido: ouvido, visão, paladar. Sexo! A vertigem das palavras.Mas na audição, no imediato e ao cair dos primeiros timbres, se revela um mundo desentendido e cheio de cataclismos. E o animal volteia e dá coices. Salta, perde--se de parede a parede. Para finalmente se unir na companhia dos escombros de um afortunado desconhecido. Um final feliz. Pequenos ruídos que se vão erguendo e edificando, num tremeluzir de olhos, ao passarem do bruto à leveza da pena, como quem descasca um sobreiro e o engole de uma assentada. Zás!E esses sopros carregam coisas de que não sabemos. Um infinito regimento de lâmi-nas metálicas. Nuvens que se apoquentam e volvem em céu limpo. A pureza dos insectos que nos fere os ouvidos enquanto os acariciam. Que os sugam, também, ao deixar o rasto da sua memória cravada na nossa. Cheios de línguas e desejos impu-ros. E passam e vão passando. Essa coisa a que chamamos música. Dolência filarmó-nica dos deuses. Onde se escondem? As pautas, as claves, as fusas, os bandolins, os contra-tenores. Onde ficam, ao dobrarem as pradarias dos nossos tímpanos? Onde se ocultam, oh musa tormentosa? Ninguém sabe. Nem o Camões, poeta zarolho de ouvido apurado.Transformam-se em éter, talvez. Aquele líquido para limpar feridas que usamos quando nos dói a alma e o físico sangra. E que bebemos de uma assentada sem precisar de tirar a casca quando algo mais nos falta. Uma bebida. Quando nos falta o oportuno senso e o domador de relâm-pagos.Sim, não há nada como a primeira audi-ção. Tudo porque a segunda acciona o reconhecimento dos mundos. A claridade. Do universo que à partida não existe e não podemos tocar. E que finalmente é nosso.

A resistência indiana em valorizar os aspectos modernos do seu próprio legado cultural colectivo encontra um perfeito contraponto no Ocidente, onde, a partir do Goa Trance e da sua disseminação, são hoje comuns, como aponta Varun, expressões como “yoga”, “meditação transcendental”, ou até influências indianas em conceitos como “sustentabilidade ecológica” e “reciclagem”.

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11 À S U P E R F Í C I E

1 As descobertas do marPode dizer-se que está em curso a quarta desco-berta do mar. Desta vez trata-se, mais propria-mente, da descoberta do fundo do mar.

Muito longe da primeira aventura do ho-mem sobre as águas do mar, há muitos milhares de anos, usando estranhas plataformas que gin-gavam desconcertantemente, nós, os Portugue-ses, fomos responsáveis, enquanto povo, pela segunda descoberta do mar. Foi uma descober-ta organizada aquela que nós inventámos (na ideia do Prof. Daniel Boorstin). Organizada e científica, acrescento, que pôs definitivamente fim à Idade Média e abriu as portas da Idade Moderna. Também participámos, à nossa esca-la, parcialmente na terceira, ou seja, na do gran-de desenvolvimento do transporte marítimo mundial que viabilizou, de facto, a globalização do comércio e da generalidade das actividades da economia marítima, embora já não tenha-mos pesado no jogo das grandes potências ma-rítimas, também característico desta fase, a não ser através do nosso pequeno contributo para a Aliança Atlântica.

As actividades que o Homem foi desenvol-vendo no mar, ao longo destas três descobertas, satisfaziam-se com o conhecimento do que se passava à superfície do mar e em profundida-des até às centenas de metros, eventualmente o milhar de metros, e só para a pesca de espécies muito específicas, mas obviamente sem precisar de ver o que se passava nesses fundos. Mesmo para questões de natureza militar, até certo pon-to bastaram pouco mais do que os trezentos me-tros de fundo para o uso de submarinos. A curio-sidade científica certamente que estimulava os esforços da comunidade do saber no sentido de investigar, de conhecer os grandes fundos oceâ-nicos. Mas a estes não chega a luz do sol, a água é como se fosse opaca e a pressão hidrostática não permite que se vá lá facilmente, sem se cor-rer o risco de esmagamento. Contudo, e como em tantos outros casos da história, a curiosidade científica foi ajudada pelas necessidades milita-res, traduzidas aqui pelo interesse em conhecer armas submarinas experimentais lançadas por plataformas da União Soviética, em mares com fundos que se julgava inacessíveis. Os Estados Unidos construíram, para isso, um pequeno número de veículos tripulados capazes de atin-girem grandes profundidades e, como habitual nesse país, a tecnologia desenvolvida foi posta à disposição da sociedade civil. Isso permitiu, há cerca de 45 anos, a construção do mini sub-marino “Alvin”, capaz de levar três tripulantes a observar fundos e a fazer investigação científica até à profundidade de 4.500 metros. Há pouco tempo, o Alvin, sucessivamente modernizado, ainda mergulhava, mas estava em vias de ser substituído por outro com a capacidade de mer-gulho aumentada para os 6.500 metros. Outros países também operam veículos tripulados para a mesma finalidade e com capacidades seme-lhantes. São os casos da França, do Japão e da Rússia. A China terá já terminado a construção do seu mini submarino.

Entretanto, a tecnologia robótica tem-se desenvolvido de uma forma sem precedentes, permitindo o acesso ao fundo do mar de veícu-los não tripulados, autónomos ou comandados à distância, com algumas vantagens sobre os tripulados, nomeadamente a operação contínua ao longo de 24 horas e a possibilidade de, sem riscos, grandes equipas de cientistas analisarem, em simultâneo e na segurança da superfície, as imagens em directo, bem como os fluxos de da-dos (Van Dover 2006).

Com a entrada do século XXI está a ser feita uma nova aproximação ao tipo de investigação oceanográfica, baseada no observatório, que visa compreender os processos e as dinâmicas dos ecossistemas oceânicos através da aquisição

Alm. NuNo V. mAtiAs

A NOVADESCOBERTADO MAR

contínua de dados numa rede cobrindo gran-des áreas, em vez de um ponto. Americanos e europeus, incluindo portugueses, estão a de-senvolver um grande observatório no Oceano Atlântico.

A capacidade de observação dos oceanos a partir de pontos externos foi enormemente au-mentada com a instrumentação dos satélites que nos fornecem imagens de grande escala e dados rigorosos do posicionamento, da altura da su-perfície da água, da sua temperatura, da sua cor, das características das ondas, dos ventos, etc.

Com todos estes meios técnicos alguns se-gredos do fundo do mar foram desvendados, mas é lícito supor que estamos ainda no prin-cípio da nova descoberta do mar. Referirei, por isso, com a brevidade que o tempo impõe, duas áreas com as espantosas novidades das últimas décadas – a da ciência dos minerais marinhos, ligada à teoria das placas tectónicas e a da biodi-versidade oceânica, nomeadamente nas fontes termais submarinas. Não considerarei verdadei-ramente inovadora a extracção, já com alguma antiguidade, de combustíveis líquidos e gasosos dos fundos marinhos, nem o aproveitamento da energia do vento e das águas. Do vento, já nos servíamos há quase seiscentos anos para che-

gar a novas terras e das águas em movimento, tirávamos, por essa mesma altura, partido para moer o cereal ou para ajudar a serrar as madei-ras das “naus a haver”.

2 Novas fontes de minerais no mar“Antes do advento da teoria das placas tectóni-cas, nos anos 1960, os fundos dos oceanos eram vistos como contentores passivos, ou grandes banheiras que simplesmente continham as mas-sas de água e serviam como repositório de ma-terial rochoso arrastado dos continentes. As ba-cias oceânicas e os continentes eram então con-siderados como imutáveis e que tinham perma-necido nas suas posições e mantido as formas actuais ao longo da maior parte dos 4,6 biliões de anos da história da Terra” (United Nations International Sea Bed Authority- UNISBA).

A nova visão considera as bacias oceânicas mais dinâmicas, uma vez descoberto que as li-gações das placas tectónicas abrem e fecham com o tempo, numa escala de dezenas ou de centenas de milhões de anos, com o concomi-tante movimento das áreas terrestres, ou deriva dos continentes. Nessas ligações, sobretudo nas das doze maiores placas tectónicas, e em conse-quência dos tremores de terra provocados pelos movimento do magma sob a crosta do oceano, formam-se chaminés hidrotermais que expelem fluido quente, acima de 350º C, com carácter ácido (pH 2 ou 3, como o vinagre) e rico em metais dissolvidos, para além do conteúdo de sulfureto de hidrogénio ou H2S. Esse fluido,

ao misturar-se com a água do mar, forma um precipitado semelhante a nuvens de fumo preto o qual, ao fim de algum tempo, horas ou dias, origina massas de depósitos metálico - sulfídri-cos, que, ao amontoarem-se à volta dos orifí-cios, formam as “chaminés de fumo preto” (Van Dover 2006). Com o tempo, em torno das cha-minés, vão crescendo as massas de sulfuretos poli metálicos com cobre, zinco, prata, ouro e outros metais, para além de fosfatos com valor comercial (UNISBA).

A zona de encontro de duas grandes placas tectónicas do Atlântico atravessa de norte para sul a plataforma continental dos Açores e, por isso, não surpreende que do lado sul tenham sido encontrados nódulos de ferro magnesianos ricos em manganês, em zona de chaminés hi-drotermais. Mais para nordeste, na área de apro-ximação entre as plataformas do Continente e da Madeira, há crostas ricas em cobalto (Uni-dade de Missão para a Extensão da Plataforma Continetal-UMEPC). Fora da actual plataforma continental legal portuguesa, mas próximo dela, há duas zonas de hidrotermalismo oceânico, co-nhecidas internacionalmente como Lucky Stike e Rainbow passíveis de exploração no futuro e ricas em metais valiosos: Segundo a UMEPC,

o Lucky Stike situa-se a 1.650 metros de pro-fundidade e conterá 1,13% de cobre, 6,73% de zinco, 0,08% de chumbo e 102 gr/ton de prata. Por sua vez, no Rainbow, a 2400 metros, haverá 10,92% de cobre, 17,74 % de zinco, 0,04 % de chumbo, 40gr/ ton de ouro e 221gr/ton de prata

Do conjunto de novidades relacionadas com os minerais do fundo do mar não devemos excluir a capacidade de prospectar e extrair combustíveis líquidos e gasosos em profundida-des cada vez maiores, que ultrapassam já os três mil metros e vale a pena referenciar também um outro recurso energético do fundo do mar, os hidratos de metano. A sua existência tem sido objecto de pesquisa nas últimas duas décadas, avaliando-se que constituem elevadas reservas de metano. Este, em fundos grandes, de mais de 1.000 metros e a baixa temperatura, forma com a água associações de moléculas complexas dando lugar a um produto que se assemelha ao gelo. A enorme quantidade de metano existen-te nos hidratos de metano e a grande dispersão geográfica da sua ocorrência, fazem deles pro-dutos que estão a merecer um elevado esforço de investigação em todo o mundo. De facto, se-gundo o Relatório da Comissão Estratégica dos Oceanos (RCEO), “as estimativas do volume de gás metano, que ocorre sob a forma de hidratos em todo o mundo, vão até aos 700.000 triliões de pés cúbicos, isto é, muitas vezes superior ao volume total de reservas mundiais de petróleo (líquido e gasoso)”. Os processos de extracção não são ainda economicamente atractivos, mas

os investimentos em investigação podem ser prometedores de soluções eficazes, talvez no médio prazo.

Em Portugal, foi referenciada, pelo menos pela Universidade de Aveiro, a existência de hidratos de metano nos mares do sotavento algarvio.

3 A biodiversidade marinha.Novas formas de vidaEstima-se que existam no mar mais de 10 mi-lhões de seres vivos, mesmo excluindo os da micro fauna, cuja quantidade é impossível de estimar, uma vez que em cada metro quadrado de fundo investigado se encontra novos micro organismos. Com a profundidade, as macro e meio faunas vão diminuindo porque têm de se alimentar do material orgânico que se vai afun-dando, qual chuva, a partir da superfície das águas. De facto, é só aí e até pequenas profundi-dades, que o Sol sustenta a fotossíntese dos ali-mentos, essencial a todos os seres vivos do pla-neta que conhecíamos até há algumas décadas.

Nos anos 1970, os cientistas previram a exis-tência no fundo do Pacífico de fontes termais, mas ninguém esperava que nessas nascentes tão quentes, com fluidos sulfídricos venenosos e onde a luz do Sol não chega, pululassem comu-nidades de estranhos invertebrados, incluindo vermes com um metro e oitenta de comprimen-to, de vistosas plumas vermelhas, camarões sem olhos, amêijoas do tamanho de um prato e lon-gos bancos de mexilhões dourados. De facto, como o sulfureto de hidrogénio é tóxico para todos os animais multicelulares, seria de prever que as fontes termais fossem rodeadas apenas de detritos minerais. Em breve, os biólogos des-cobriram que nessas águas abundam bactérias auto tróficas, isto é, que produzem elas próprias o carbono orgânico, mas com a particularida-de de o conseguirem fazer sem a luz do Sol, o que até então se julgava impossível. Isto é, foi descoberta uma nova forma de vida que em vez de empregar a energia da luz para fixar o carbono orgânico, usa energia química prove-niente de um processo de síntese em que, por controlo microbiológico, é oxidado o sulfureto de hidrogénio. O processo pelo qual essas bac-térias alimentam os vermes, como a Riftia Pa-chyptila, é complexo, dado que estes não têm boca nem tubo digestivo. Em vez desses órgãos dispõem de uma espécie de saco, ou longo de-pósito, onde milhões de bactérias endossimbi-óticas oxidam os sulfuretos e fixam o carbono orgânico (Van Dover 2006).Afinal, é a mesma energia das fontes hidrotermais que originou o afloramento das massas poli metálicas que é usada pelos micro organismos para produzirem os carbo-hidratos, amido e açucares, de que se alimentam (Jannasch, 1995; Rona, 2003).

Foi, no mesmo processo de investigação, descoberta a existência de luz geotérmica, pró-xima dos infra vermelhos, proveniente das fon-tes de calor das chaminés, o que não surpreen-de, face às temperaturas da ordem dos 350º C atingidas pelo emissor. Admite-se que essa luz é vital para as enormes colónias de camarões sem olhos que vivem próximas das fontes e que dis-porão no dorso de sensores para essa luz, em vez dos órgãos visuais que conhecemos. Por esse meio, podem detectar as fontes termais em cuja proximidade encontram temperaturas e outras condições essenciais ao seu tipo de vida, sem contudo se acercarem excessivamente, evitando transformarem-se em caldeirada de camarão.

A novidade das fontes termais não esgota, de maneira nenhuma, o esforço de investiga-ção da vida marinha e, muito menos, detém o exclusivo das descobertas recentes. De facto, a tremenda diversidade biológica do mar, com os seus 80% dos seres vivos do nosso planeta, não pára de surpreender pela estrutura e caracterís-

A tremenda biodiversidade marinha abre um novo caminho marítimo, desta vez para melhorar o bem-estar e a saúde dos homens.

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ticas específicas que são propícias a aplicações no campo da medicina, da agricultura e da in-dústria (RCEO), assim como ao encarceramen-to do anidrido carbónico.

São exemplos de fármacos desenvolvidos a partir de produtos de biotecnologia marinha, segundo o UK Foresight Marine Panel Report, o Ara-C, um medicamento anti-cancro (usa-do contra a leucemia melocítica aguda e uma variedade de linfoma) e o Ara-A, uma droga anti-viral para o tratamento do herpes. Ambos derivaram de compostos naturais encontrados em esponjas dos mares da Florida. As espon-jas já deram origem a 30% dos mais de 5.000 compostos químicos derivados de organismos marinhos em uso. Recentemente, foi descober-ta uma substância no sangue de um caranguejo do Maine (king crab) que provou ser um po-deroso antibiótico. Para mais, o sangue pode ser extraído do dador sem lhe sacrificar a vida. Como apontamento, refiro que cientistas do Departamento de Oceanografia e Pescas da Universidade dos Açores participaram nesta investigação.

Alguns tipos de algas estão a ser objecto de experimentação no desdobramento do CO2 para encarceramento do carbono, que natu-ralmente consomem no seu processo de cul-tivo, e para o empregarem, ao mesmo tempo, na produção de uma vasta gama de produtos

com interesse comercial, tais como hidrogé-nio, gorduras, óleos, açucares, carbo-hidratos e compostos bio-activos. Usam apenas a água, o CO2 e a luz como fonte de energia. Desta forma, o CO2 em vez de ser tratado como um produto indesejável, é usado como um recurso valioso. A pesquisa tem sido intensa em pa-íses como os EUA, Austrália, Índia, França, etc., quer isoladamente, quer em parcerias industriais. Nos EUA, várias universidades têm dedicado esforços de investigação a este tema, nomeadamente o Massachusetts Institu-te of Technology (MIT) e as universidades de Ohio, Califórnia e Texas. Por exemplo, o MIT em conjunto com a Greenfuel Technologies Corporation demonstrou a redução de emis-sões de CO2 de cimenteiras em 80% nos dias de sol e em 50% nos dias nublados e um corte de 85% nos óxidos de azoto, ao longo das 24 horas. Para isso, usam os “air-lift bio reactors” formados por triângulos de tubos de vidro transparente com 33 metros de altura, conten-do uma mistura de algas e água, por onde é feita passar a mistura gasosa das chaminés.

Os vários processos em experimentação têm em comum a redução do anidrido carbóni-co e a produção de combustíveis. Estes podem ser o hidrogénio, ou a bio massa conducente ao biodiesel, etanol, amido, etc.

Em Portugal, existe pelo menos uma expe-

riência industrial deste tipo em evolução numa cimenteira, com apoio de universidades, uma nacional, a do Algarve, e uma dos EUA.

4 Valor das novas descobertasÉ ainda cedo para avaliar o valor económico potencial das novas descobertas do fundo do mar, apesar de, actualmente, os produtos a que deram origem terem já algum significado em termos absolutos. Contudo, em termos relati-vos, a sua expressão é ainda diminuta. Na ver-dade, se repararmos que do fundo do mar se extrai mais de 35% do petróleo e 27% do gás e que, anualmente, também à escala mundial, em biliões de euros, o transporte marítimo vale 290, o turismo marítimo 200, as pescas e deri-vados 160, a construção naval e o equipamento 100, concluiremos que o mercado mundial de produtos de biotecnologia marinha estimado em 2,6 biliões para 2009 é ainda pequeno (nú-meros do Marine Institute, de Galway, Irlanda).

Contudo, correndo todos os riscos, afirmo que a tremenda biodiversidade marinha abre um novo caminho marítimo, desta vez para melhorar o bem-estar e a saúde dos homens. É sobretudo nessa linha que a investigação cientí-fica e o desenvolvimento correlacionado de no-vos produtos estão a avançar. Exemplificam-no o que se passa com muitos centros de saber liga-dos a empresas dos Estados Unidos ou os “clus-

ters” de biotecnologia industrial localizados em torno de centros académicos de excelência, como os de Oxford, Cambridge, Edimburgo, etc. Mas abre uma nova rota, não menos im-portante, para as navegações do conhecimento, provando a existência de vida, uma vida bioqui-micamente diferente, que se julgava impossível ainda há cerca de meio século. Extrapolando, muitos outros sítios do Universo, como o pla-neta Marte, poderão ter vida. O futuro o dirá.

Esta nova, ou quarta, descoberta do mar, leva-me a uma última e muito breve cogitação, orientada para a forma de Portugal participar empenhadamente nessa aventura científica.

Internamente, deve organizar a sua investi-gação científica, onde existem vários centros de excelência, de forma a potenciar a mais valia do trabalho em rede, a definir com clareza os ob-jectivos e a transferir mais facilmente o produto da investigação para as empresas.

No âmbito externo, será importante inten-sificar a ligação a outros centros de excelência da investigação do mar, com uma visão coope-rante de experiências a partilhar, assim com, criar parcerias com os países de língua portu-guesa que dêem mais dinâmica, diversidade e dimensão à investigação útil do mar.

Se assim for, estou certo que de novo, pa-rafraseando Pessoa, conquistaremos a distância, do mar ou do seu fundo, mas que seja nossa.

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Na nota à segunda edição (1981) do seu marcante estudo, A «Clepsidra» de Ca‑milo Pessanha, observava Esther de Lemos que Camilo Pessanha seria «talvez o menos conhecido e estudado dos grandes poetas portugueses». Uma das razões que logo se apontou, posteriormente, para tal descuido prende‑se com o nosso complexo lilipu‑tiano: fora Pessanha francês (no momento actual, no ano da graça de 2009, dir‑se‑ia preferentemente «inglês» ou «norte‑ame‑ricano») e a glória do poeta reverberaria por todo o orbe literário… Esta conjectu‑ra foi aventada por Arnaldo Saraiva, a que Christine Pâris‑Montech acrescentou mais três razões: o poeta ele mesmo, nada dado a afadigar prelos literários, a prevalência da imagem de um desterrado opiómano, meta‑morfose decadentista do poète maudit, que terá escondido a obra e, the last but not the least, «le jaloux monopole» de João de Cas‑tro Osório que teria desencorajado outros especialistas a envolverem‑se mais profun‑damente com a obra do poeta.

Mas o mesmo não se pode dizer de Fer‑nando Pessoa, a quem se pode aplicar o que August‑Wilhelm Schlegel afirmava de Ca‑mões: que vale toda uma literatura. Aliás, a propósito, a situação menor de Camilo Pes‑sanha tem sido explicada pelo gigantismo ofuscador do universo pessoano: a árvore tapou ou escondeu a floresta (sustenta‑se frequentemente que fenómeno similar ex‑plica a menoridade dos autores dramáticos isabelinos contemporâneos de Shakespe‑are). Deve‑se, contudo, registar que na história do destino literário de Pessanha, é possível observar oscilações de «fama» que se prendem, obviamente, com as condições mentais e culturais de cada geração ou épo‑ca, as «tendências» dominantes. A este res‑peito, Paulo Franchetti assinala aquilo que um crítico, Pedro da Silveira, tinha já posto em relevo: a publicação de dezasseis poemas de Pessanha, na Centauro (1916), constituiu «o ponto de partida para o reconhecimento de Pessanha como um grande poeta», sen‑do «um dos sinais desse reconhecimento» a «antologia Os Cem Sonetos de poetas por‑tugueses e brasileiros, feita por Mayer Gar‑ção nas colunas do diário A Manhã (1919?) e depois apresentada em livro (1ª ed., 1920). Pessanha é representado por nada menos de cinco sonetos, todos transcritos da revista de Luís de Montalvor».

A fama de Pessanha excede assim o âm‑

A GLÓRIA DO POETAbito de círculos intelectuais e artísticos, por natureza, restritos. Naquele campo, a irra‑diação do autor na geração modernista é enorme, a qual o elege como Mestre gera‑cional. António Ferro proclama arrebatada‑mente: «a nossa geração tem um missal. Saiu o livro de Camilo Pessanha. A alma de todos nós, desnorteada, tem, enfim, um relógio».

Não obstante, se concordarmos com Ós‑car Lopes, que «nalguns casos, Pessoa serve, bem lido, de introdução ex post à poesia, bem mais cerrada sobre si mesma, do mes‑tre», não se poderá ler na (re)descoberta de Pessanha um efeito lateral, retrospectivo, do «século pessoano»? É que, de facto, essa si‑tuação de relativo «olvido», a que Esther de Lemos se referia, modificou‑se totalmente. Os anos oitenta e noventa viram sair a lume numerosos artigos e estudos sobre o poeta e a obra, concordes na afirmação da grandeza do poeta. São de destacar os testemunhos de Mário Cesariny e Eugénio de Andrade. Este último repete o que Pessoa havia proclama‑do: «Mas de todos estes poetas é o único que amei em segredo como um mestre». As afinidades entre Pessoa e Pessanha ultrapas‑sam o campo temático, podendo radicar‑se ao nível psicológico ou caracteriológico: na primeira carta escrita a Ana de Castro Osó‑rio (1893), pode ler‑se: «Vem daqui, penso eu, a minha falta de alegria e este fenómeno de todas as minhas sensações terem sido an‑tes pensamentos…».

Noutra carta, a Alberto Osório de Cas‑tro, insinua que o excesso de inteligência o tornou infeliz, bem como aos seus amigos ‑ «Eu tinha ouvido dizer o Alberto Osório uma vez “a minha irmã é demasiado inte‑ligente”. Seria um pouco da [lacuna] que me tem feito infeliz e tem feito infelizes os meus amigos?»

Outra convergência com Pessoa está na ideia de infância, entendida mais como símbolo de um paraíso perdido, de uma fe‑licidade remotíssima, do que como um está‑dio concreto, factual, efectivamente vivido ‑ «(…) até à minha infância virtual, pois que eu não me lembro de ter tido uma infância (há muitos cismáticos que nascem velhos)».

Aproxime‑se, por outro lado, a expres‑são «loucura lúcida», recolhida numa carta a Henrique Trindade Coelho com, por exem‑plo, o verso de Álvaro de Campos, «Estou doido a frio». Pessoa não reconhece, contu‑do, a influência da poesia de Pessanha sobre a do seu amigo Mário de Sá‑Carneiro num gesto de denegação em que ele próprio es‑taria em causa. Pelo menos, é o que pensa Cabral Martins, vendo nesta atitude uma manifestação da «ansiedade da influência», título de uma obra de Harold Bloom.

João Paulo Barros almeidain sentimento e ConheCimento na Poesia

de Camilo Pessanha

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António MR MARtins

CHANFANA, PRATO TRADICIONAL DAS BEIRAS

A CHANFANA É UMA DAS REFERÊNCIAS CULINÁRIAS DAS

BEIRAS, EM PARTICULAR DA BEIRA LITORAL. TANTO ASSIM, QUE FOI ENQUADRADA NO CONCURSO PARA AS “7 MARAVILHAS DA GASTRONOMIA”, EM PORTUGAL.Sem dúvida que é um dos pratos tradicionais mais famosos e, continuadamente, procura-do pelos fervorosos adeptos da boa mesa e da apetecível comida, quando visitam a região da sua tipicidade. Sendo um cozinhado oriundo da Beira Litoral, tem em Miranda do Corvo um concelho onde adquire o seu máximo expoente, aliás Miranda é conhecida por ser a Capital da Chanfana, que se julga ter tido a sua criação em Semide. Segundo reza a história, ou a lenda, como se queira, a Chanfana terá surgido no Mosteiro de Semide, isto porque até meados do século XIX, os agricultores e rendeiros da região, na obri-gação de pagar os respectivos foros, por residi-rem e terem suas terras nos coutos apensos ao Mosteiro, faziam-no entregando, no Mosteiro, galinhas, azeite, cabras, ovelhas e outros pro-dutos, pagando mesmo com dias de trabalho, à jorna. Daí as freiras receberem suas “rendas” durante o mês de Agosto até ao dia de S. Mateus e desse pecúlio recebido, de teor alimentar, veio a acontecer a invenção da referida Chanfana.Outros, ainda, defendem a ideia que a Chanfa-na teve a sua origem quando ocorreram as inva-sões francesas e as freiras terão inventado este prato gastronómico para evitar que os soldados franceses roubassem as cabras e as ovelhas da região.Mas o que é a Chanfana? É um prato feito com a carne de cabra, velha de preferência, levan-do como condimentos e apetrechos culinários

o vinho tinto, o alho, o colorau, a pimenta, o louro e o sal. É confeccionada em caçoilas de barro (do escuro), onde é introduzido o conte-údo temperado a preceito, sendo executado em fornos de lenha. Quando servido é acompanha-do com o vinho da região e a saborosa broa de milho serrana.Recordo-me das belas chanfanas comidas na aldeia de Carvalhal-Miúdo, freguesia e con-celho de Góis, distrito de Coimbra, a cerca de 30 km de Miranda do Corvo, em casa dos meus avós, em dias especiais, porque não se podiam estar a matar cabras consecutivamen-te e porque os tempos eram difíceis, tal como agora parecem estar a ficar. A família reunia-se à volta da mesa, à hora de almoço (é a refeição adequada para este tipo de ementa), e era de comer e chorar por mais. A minha avó prepara-va, antecipadamente, a congeminação do pitéu e o meu avô levava as caçoilas, com a ajuda de quem estivesse presente, para o forno da

Ramalhuda, local onde também tinha o curral para o seu gado. Também a broa era feita por esta ocasião, aproveitando o facto de o forno estar aceso, e, às vezes, também se elabora-vam as bolas, que consistiam de broa reche-ada com enchidos, cebola, bacalhau ou outro condimento qualquer que na altura pudesse ser aproveitado, para esse efeito. O cozinhado da Chanfana tinha de ser desenrolado com acom-panhamento assistido, para se ir regando com vinho, a fim de que não secasse. Era considera-do o pormenor da cozedura efectiva, verifican-do-se, com regularidade, se estava bem cozida, já que sendo feita à base de carne de cabra ve-lha, sempre seria mais rija. Carvalhal-Miúdo, hoje, não tem habitantes, só em tempo de férias retornam alguns dos que lá nasceram ou dos seus descendentes que, por ve-zes, também, trazem um ou mais amigos. Quando vamos até essa aldeia, passando pela Lousã, equacionamos o almoço no restaurante “O Gato” que, há muitos anos, confecciona uma Chanfana deliciosa.E para que o apetite seja aguçado, segue-se a respectiva receita, com os parâmetros da ine-rente confecção:- A carne de cabra velha é cortada aos boca-dos e colocada numa caçoila de barro, prefe-rencialmente escuro, sendo temperada com sal, cabeças de alho inteiras, colorau, pimenta e louro, cobrindo-se, depois, com vinho tinto. Vai para o forno de lenha, previamente aque-cido. Durante o período de confecção, nunca menos de 4 horas, o forno deverá estar com-pletamente vedado. Habitualmente a Chanfana é confeccionada na véspera do seu consumo, deixando-se ficar no forno até ao momento de ser servida. Normalmente, tal acontece, com batata cozida e grelos.

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