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FUNDAÇÃO ESCOLA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA DE SÃO PAULO III SEMINÁRIO DE PESQUISA DA FESPSP BOLIVIANAS EM SP: ESCRAVAS DA MODA Yasmim Nóbrega de Alencar – [email protected] Prof. Dra. Carla Diéguez - [email protected] Este artigo é resultante de estudos desenvolvidos como atividades de bolsa de pesquisa em graduação que compõe o Projeto Trabalho Decente, do Núcleo de Pesquisa da FESPSP, sob orientação da Profa. Dra. Carla Diéguez. Aconteceu entre maio de 2013 e abril de 2014, na cidade de São Paulo. A metodologia aplicada consistiu de levantamento e análise bibliográfica, consulta a dados oficiais, entrevistas semiestruturadas e compilação de materiais contendo denúncias na internet. Partiu da seguinte problematização: qual a relação existente entre a indústria da moda e o trabalho escravo de mulheres bolivianas em empresas têxteis brasileiras localizadas em São Paulo? Por conseguinte, desenvolveu assunto abordando o tema do trabalho análogo à escravidão desenvolvido por mulheres bolivianas em dois bairros da capital (Brás e Bom Retiro) em reflexões acerca das experiências de bolivianas escravizadas e/ou que sabem de relatos de vivências de outras bolivianas. Contrapondo o trabalho escravo ao conceito de trabalho decente e estabelecendo relações do primeiro com a influência da moda, representada pela indústria têxtil e suas terceirizadas exploradoras de imigrantes na produção de mercadorias. Concluímos que há uma relação intrínseca entre moda e escravidão de bolivianas na indústria têxtil paulistana. Isto se expressou nas denúncias encontradas na internet, em dados oficiais e na fala de entrevistadas seduzidas pelas "roupas de marca", apesar de muitas destas serem fruto de sua exploração. Buscamos compreender essa contradição sob a ótica feminista e o pensamento sociológico do trabalho, para entender como se dá a questão da desigualdade de gênero no mundo do trabalho. Entrevistas revelaram a existência de mulheres bolivianas explorando outras da mesma etnia. Entendemos que parte da indústria da moda precisa escravizar mulheres bolivianas para produzir suas mercadorias, na medida em que se mantém quando seduz mulheres a consumirem tais produtos (incluindo as próprias bolivianas), criando, assim, um ciclo de consumo que se vale da lógica capitalista, onde o lucro é a máxima do empresariado e o valor da força de trabalho escravo é utilizado para o seu fim. Desta forma, mulheres seduzidas pela indústria da moda e seu consumo de marcas equivalentes a um status social privilegiado servem como engrenagens, azeitando a estrutura empresarial e fazendo girar a economia capitalista, através de uma convergência entre trabalho escravo e consumo. Palavras-chave: mulheres, bolivianas, trabalho, escravo, decente, moda.

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FUNDAÇÃO ESCOLA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA DE SÃO PAULO

III SEMINÁRIO DE PESQUISA DA FESPSP

BOLIVIANAS EM SP: ESCRAVAS DA MODA

Yasmim Nóbrega de Alencar – [email protected] Prof. Dra. Carla Diéguez - [email protected]

Este artigo é resultante de estudos desenvolvidos como atividades de bolsa de pesquisa em graduação que compõe o Projeto Trabalho Decente, do Núcleo de Pesquisa da FESPSP, sob orientação da Profa. Dra. Carla Diéguez. Aconteceu entre maio de 2013 e abril de 2014, na cidade de São Paulo. A metodologia aplicada consistiu de levantamento e análise bibliográfica, consulta a dados oficiais, entrevistas semiestruturadas e compilação de materiais contendo denúncias na internet. Partiu da seguinte problematização: qual a relação existente entre a indústria da moda e o trabalho escravo de mulheres bolivianas em empresas têxteis brasileiras localizadas em São Paulo? Por conseguinte, desenvolveu assunto abordando o tema do trabalho análogo à escravidão desenvolvido por mulheres bolivianas em dois bairros da capital (Brás e Bom Retiro) em reflexões acerca das experiências de bolivianas escravizadas e/ou que sabem de relatos de vivências de outras bolivianas. Contrapondo o trabalho escravo ao conceito de trabalho decente e estabelecendo relações do primeiro com a influência da moda, representada pela indústria têxtil e suas terceirizadas exploradoras de imigrantes na produção de mercadorias. Concluímos que há uma relação intrínseca entre moda e escravidão de bolivianas na indústria têxtil paulistana. Isto se expressou nas denúncias encontradas na internet, em dados oficiais e na fala de entrevistadas seduzidas pelas "roupas de marca", apesar de muitas destas serem fruto de sua exploração. Buscamos compreender essa contradição sob a ótica feminista e o pensamento sociológico do trabalho, para entender como se dá a questão da desigualdade de gênero no mundo do trabalho. Entrevistas revelaram a existência de mulheres bolivianas explorando outras da mesma etnia. Entendemos que parte da indústria da moda precisa escravizar mulheres bolivianas para produzir suas mercadorias, na medida em que se mantém quando seduz mulheres a consumirem tais produtos (incluindo as próprias bolivianas), criando, assim, um ciclo de consumo que se vale da lógica capitalista, onde o lucro é a máxima do empresariado e o valor da força de trabalho escravo é utilizado para o seu fim. Desta forma, mulheres seduzidas pela indústria da moda e seu consumo de marcas equivalentes a um status social privilegiado servem como engrenagens, azeitando a estrutura empresarial e fazendo girar a economia capitalista, através de uma convergência entre trabalho escravo e consumo.

Palavras-chave: mulheres, bolivianas, trabalho, escravo, decente, moda.

BOLIVIANAS EM SÃO PAULO: ESCRAVAS DA MODA

Yasmim Nóbrega de Alencar – [email protected]

Profa. Dra. Carla Diéguez – [email protected]

Introdução Este artigo é resultante de estudos desenvolvidos como atividades de

bolsa de pesquisa de iniciação científica em graduação que compõe o Projeto

Trabalho Decente, do Núcleo de Pesquisa da FESPSP, sob orientação da Profa. Dra.

Carla Diéguez. Aconteceu entre maio de 2013 e abril de 2014, na cidade de São

Paulo.

Nossa pesquisa baseou-se na paradoxal realidade de trabalho escravo

vivenciada por mulheres bolivianas em oficinas de costura do Centro velho da cidade

de São Paulo. Buscamos refletir sobre o papel social da mulher e aproximá-lo do

fetiche que a Moda e suas mercadorias exercem sobre mulheres produtoras e

consumidoras.

A história de vida dessas pessoas bolivianas é marcada pela desigualdade

social que impulsiona a imigração boliviana a sair da Bolívia, em condições

desumanas (existem relatos de imigrantes que vieram nos chamados “trens da morte”,

em condições de transporte extremamente arriscadas), para chegar ao Brasil com o

sonho pueril de uma vida melhor e mais próspera que a vivenciada em sua terra natal.

Sabemos que nos últimos anos a problemática da exploração da força-de-

trabalho de imigrantes bolivianos (as) em São Paulo tem sido desvelada. E veio à

tona, inclusive, em grandes veículos midiáticos da Capital e do país. Isto tem exposto

o problema e sua gravidade para toda a população brasileira; além de ter chamado

atenção das autoridades públicas.

Neste ínterim, várias ações do Estado e suas polícias, no sentido de dirimir

o problema da exploração bolivianas, têm sido realizadas na região paulistana onde se

concentram possíveis oficinas de costura clandestinas. Tais ações ficaram conhecidas

como “batidas policiais” que surpreenderam os exploradores (há informações de que

são coreanos e bolivianos envolvidos em esquemas, inclusive, internacionais) que

conduzem este fluxo migratório, desde o seu país de origem até aqui, para ser

1 Pesquisadora orientanda, estudante de Sociologia e Política, na FESPSP. 2 Professora orientadora da pesquisa.

2

utilizado como mão-de-obra barata e escrava nestas oficinas insalubres, em sua

maioria. A situação é complexa e apesar de estarem combatendo a existência e a

proliferação destes espaços de exploração clandestinos, ainda há vários funcionando.

São muitas as questões que envolvem este tema da exploração de

imigrantes bolivianos (as), em São Paulo. No entanto, esta pesquisa se propôs a

concentrar seus esforços no recorte de gênero. Na busca de compreender como se dá

a exploração das mulheres bolivianas submetidas ao trabalho em condições análogas

às da escravidão, nos dias de hoje.

Principalmente, este foco se deve ao fato de a temática do trabalho

decente em contraponto ao trabalho escravo estar sendo trabalhada e refletida por

órgãos internacionais, como a OIT (Organização Internacional do Trabalho) e pelo

Estado brasileiro (Ministério do trabalho e outros) sob o ponto de vista da opressão de

gênero. Uma vez que o papel socialmente construído da mulher a coloca num patamar

desprivilegiado na Divisão sexual do trabalho, em nossa sociedade que,

historicamente, privilegia condições de vida e trabalho melhores para homens em

detrimento de mulheres. Assim, nossa análise estará, de certa forma, sob o olhar de

crítica feminista para que consigamos pautar a opressão de gênero vivida pelas

mulheres bolivianas.

Colhemos informações sobre o processo migratório da população boliviana

para o Brasil e notícias de casos de oficinas de costura em São Paulo que utilizavam

trabalho escravo de bolivianas e bolivianos para entender de que forma as mulheres

bolivianas se inserem nesse meio e como interagem nesta situação. Também

realizamos levantamento bibliográfico e leitura crítica acerca do tema.

No tocante às percepções das próprias mulheres bolivianas exploradas,

buscamos ouvi-las e refletir sobre como apreendem a situação e de maneira se

relacionam com a moda que produzem e muitas vezes não tem condições

socioeconômicas para consumirem.

Foram entrevistadas dez mulheres bolivianas que residem no Centro (e

imediações) de São Paulo. Algumas trabalham em oficinas de costura, outras já

trabalharam. Há ainda as que relataram conhecer compatriotas submetidas ao

trabalho escravo. E houve um caso inusitado de uma senhora boliviana que

esmiuçaremos na parte referente à descrição do trabalho de campo e o perfil das

entrevistadas.

Consideramos que reflexões críticas sobre o tema do trabalho escravo no

Brasil, bem como a luta para que se assegure o trabalho decente para toda a classe

trabalhadora, não podem deixar de abordarem o este problema sem recortá-lo em

termos de gênero. Para que sejam visibilizadas as questões pertinentes às mulheres

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trabalhadoras, neste âmbito. Mais adiante aprofundaremos o assunto e

estabeleceremos relações entre gênero, trabalho escravo, trabalho decente, moda e

sobre como as mulheres bolivianas se amalgamam neste grande caldeirão capitalista.

Desenvolvimento

Qual a relação existente entre a indústria da moda e o trabalho

escravo de mulheres bolivianas em empresas da indústria têxtil brasileira, localizadas em São Paulo?

Esta indagação nos estimulou a pesquisar sobre as relações entre trabalho

escravo, moda e mulheres bolivianas no contexto brasileiro. Responder a esta

indagação nos levou a pesquisar sobre o tema e abrir um canal de escuta sobre a

realidade de trabalho de algumas das mulheres que vivenciam, vivenciaram ou

conhecem bolivianas vítimas de exploração em oficinas de costura localizadas na

cidade de São Paulo, precisamente no Centro velho.

Nossa abordagem partiu, propositalmente, do recorte de gênero para

pensar acerca dos efeitos do trabalho escravo em contraponto ao trabalho decente no

Brasil, potencializados pela moda e suas mercadorias.

Segundo o Artigo 149 do Código Penal Brasileiro, o trabalho análogo ao de

escravo é aquele que ocorre com condições degradantes de trabalho

(incompatíveis com a dignidade humana, caracterizadas pela violação de direitos

fundamentais coloquem em risco a saúde e a vida do trabalhador), jornada exaustiva

(em que o trabalhador é submetido a esforço excessivo ou sobrecarga de trabalho que

acarreta a danos à sua saúde ou risco de vida), trabalho forçado (manter a pessoa

no serviço através de fraudes, isolamento geográfico, ameaças e violências físicas e

psicológicas) e servidão por dívida (fazer o trabalhador contrair ilegalmente um

débito e prendê-lo a ele).

Para estabelecermos e compreendermos esta relação, socioeconômico e

politicamente complexa, imersa no mundo do trabalho e envolvida intimamente ao

modo de produção e distribuição capitalista de mercadorias, faz-se necessário antes

resgatarmos um pouco dos fatores históricos que nos levam a entender o processo

migratório do povo boliviano para o Brasil; como se dá a opressão das mulheres na

sociedade e consequentemente no mercado de trabalho como um todo e

conceituarmos nossa discussão a partir das definições de trabalho escravo e trabalho

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decente, adotadas por órgãos nacionais e internacionais que regulam e defendem

Direitos Humanos e trabalhistas.

Para desenhar a trajetória das mulheres bolivianas que entrevistamos, foi

necessário, sobretudo, ouvi-la. Por isso, empregamos metodologias qualitativa (um

pouco de História de vida) e quantitativa (coleta de dados através de questionários

semiabertos aplicados com dez pessoas – mulheres bolivianas residentes em São

Paulo capital).

Em se tratando das metodologias empregadas, em A arte de pesquisar, a

antropóloga Mirian Goldenberg diz que A integração da pesquisa quantitativa e qualitativa permite que o pesquisador faça um cruzamento de suas conclusões de modo a ter maior confiança que seus dados não são um produto de um procedimento específico ou de alguma situação particular. Ele não se limita ao que pode ser coletado em uma entrevista: pode entrevistar repetidamente, pode aplicar questionários, pode investigar diferentes questões em diferentes ocasiões, pode utilizar fontes documentais e dados estatísticos. (GOLDENBERG, 2011, p.62)

Por isso, também foram consultados sites oficiais do Governo brasileiro e

da Organização Internacional do Trabalho, bem como outros que abordam questões

referentes ao trabalho escravo. Além de sites nos quais constavam reportagens com

denúncias de casos de violação de direitos humanos de mulheres bolivianas em São

Paulo, entre anos 2013 e 2014, para que confrontássemos os dados e a realidade

vivida pelas entrevistadas. Assim, desenvolvendo uma reflexão sobre a exploração de

mulheres no universo amplo do mundo do trabalho escravo; presente em vários países

do globo e atingindo fortemente pessoas imigrantes, como é o caso daquelas

abordadas nessa pesquisa que tem sua origem geográfica na Bolívia.

Entrevistá-las não foi tarefa fácil, já que muitas delas se afastavam quando

abordadas para responder questionário ou mesmo falar da vida. Dentre os fatores

identificados logo no início da pesquisa, podemos destacar: condições muitas vezes

ilegais nas quais se encontravam ou se encontram as entrevistadas, receio de se

aproximar e responder qualquer coisa para uma estranha com prancheta na mão,

pressa e indisponibilidade até porque o companheiro disse para que recusassem

responder. Por isso, precisamos fazer várias visitas aos territórios delimitados para

trabalho de campo e muitas tentativas para as entrevistas obterem o êxito desejado.

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Algo que nos fez compreender o quanto a pesquisa precisa estar sensível ao contexto

no qual pretende se inserir e sempre de maneira respeitosa com o público-alvo.

Devido a estas implicações na abordagem, durante trabalho de campo,

fomos pensando e construindo outra maneira de realizar qualquer aproximação nos

locais onde realizamos a pesquisa: não abordá-las com prancheta na mão, tentar

conversar trivialmente antes de entrar no mérito da pesquisa, buscar adquirir alguns

dos produtos que vendiam algumas delas (doces de macarrão, típicos da Bolívia;

bolsas e outros acessórios com estampas e costura bolivianas) e demonstrar simpatia

para construir a confiança necessária para que se expressassem sem medo de sofrer

qualquer consequência, posteriormente.

O Brasil tem se tornado um dos refúgios para o qual recorrem imigrantes

de países vizinhos com condições socioeconômicas menos favoráveis. Dentre estes,

destacamos a Bolívia, país de origem das nossas entrevistadas. É um dos lugares dos

quais partem pessoas em direção à nação brasileira buscando emprego,

sobrevivência, qualidade de vida. E São Paulo é um dos destinos escolhidos por

imigrantes bolivianos cheios de sonhos e expectativas de viver melhor que em sua

terra natal.

No entanto, já é sabido que, quando chegam ao território brasileiro, muitas

destas pessoas se deparam com situações nada condizentes com aquilo esperado e

sonhado, como é o caso de mulheres e homens bolivianos que são submetidos ao

trabalho em condições análogas às da escravidão, em oficinas de costura clandestinas

de São Paulo. Aconteceram casos nos quais as pessoas já partiam de seus países

aliciadas para o trabalho escravo no Brasil, por conterrâneos, sem sequer saberem

que estavam sendo enganadas pelos seus futuros patrões.

O combate ao trabalho escravo no Brasil tem se fortalecido desde que o

Estado brasileiro e a OIT firmaram memorando de entendimento que previa o

estabelecimento de um programa de cooperação técnica para a promoção de uma

Agenda Nacional de Trabalho Decente. Esta foi lançada em Maio de 2006.

Podemos destacar, dentre ações e iniciativas para a erradicação do

trabalho no Brasil e no mundo, as seguintes:

• Agenda Hemisférica do Trabalho Decente (AHTD) – em 2006

Agenda Nacional do Trabalho Decente no Brasil (ANTD) – em 2006

Plano Nacional de Emprego e Trabalho Decente (PNETD) – em 2010

I Conferência Nacional de Emprego e Trabalho Decente – em 2012

Agendas estaduais de trabalho decente

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Em Nas costuras do trabalho escravo, de Camila Lins Rossi, o cotidiano da

exploração de bolivianas e bolivianos é esmiuçado em situações que demonstram

suas fragilidades no ambiente de trabalho opressor e inseguro. Segundo a autora: (...) As oficinas, segundo contam os imigrantes, funcionam em porões ou em locais escondidos, porque a maior parte delas é ilegal e não tem permissão para funcionar regularmente. Por isso, para que os vizinhos não percebam, para não levantar suspeitas da polícia, para evitar que a confecção seja descoberta e denunciada, as máquinas funcionam em lugares fechados, onde o ar não circula e a luz do dia não entra. Para camuflar o barulho dos motores, música boliviana toca o tempo todo. (ROSSI, 2005, p.23 )

Segundo o CAMI (Centro de Apoio e Pastoral do Migrante), existente em

São Paulo, atualmente há cerca de duzentos mil bolivianos morando na cidade. Nem

todos estão em situação legal, algo que favorece às suas explorações em oficinas de

costura clandestinas. Nestes lugares, tais imigrantes são subjugados e mantidos sob

cárcere privado, por necessitarem de trabalho e terem de se submeter a trabalhos

informais. Muitas vezes são vitimados nesta informalidade por exploradores da força-

de-trabalho boliviana que lhes pagam salários irrisórios e ainda criam situações de

endividamento e chantagem para ficarem presos numa situação típica do trabalho

escravo ou degradante.

O Governo Federal brasileiro, em sua Agenda Nacional de Trabalho

Decente, afirma ser uma de suas prioridades a promoção do Trabalho Decente como

condição fundamental para superar a pobreza, reduzir desigualdades sociais, garantir

um desenvolvimento sustentável e a governabilidade democrática no Brasil. Contudo,

as ações pautadas nesta Agenda necessitam de esforços conjuntos, em todas as

esferas do Estado, somando esforços com a sociedade civil, para que se consiga

erradicar o trabalho escravo em todas as suas formas. Trata-se de um problema que

atinge todo o mundo e necessita ser combatido firmemente pelo Poder público e

denunciado pela população sem hipocrisias.

Em nossas reflexões, partimos da ideia do trabalho decente para

contrastar a realidade triste ainda vivenciada por mulheres bolivianas (e outras vítimas

em todo mundo) que é o trabalho análogo ao da escravidão.

De acordo com o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), “o trabalho

decente é considerado como aquele adequadamente remunerado, exercido em

condições de liberdade, equidade e segurança, capaz de garantir uma vida digna”.

Segundo entendimento do escritório da OIT (Organização Internacional do Trabalho),

“trabalho decente é um trabalho adequadamente remunerado, exercido em condições

de liberdade, equidade, segurança, sem quaisquer formas de discriminação e capaz

de garantir uma vida digna a todas as pessoas que vivem de seu trabalho.” Estas duas

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definições se complementam ao que concerne o entendimento do trabalho que

emancipa e contribui para o desenvolvimento saudável e produtivo da pessoa

humana. Ambas podem ser levadas em consideração quando nos voltamos para a

questão da exploração de mulheres bolivianas em São Paulo. Principalmente, porque

a segunda definição inclui o termo discriminação bastante significativo nas relações de

poder do ambiente de trabalho ainda mais degradante para mulheres, negros,

indígenas e imigrantes.

Geralmente, as vítimas bolivianas têm seus documentos de identificação

(passaportes) retidos. Houve uma série de denúncias da Organização Não-

Governamental Repórter Brasil nos últimos anos para descoberta e fechamento de

locais onde exploradores de pessoas bolivianas ilegais as exploravam e as

chantageavam retendo seus passaportes, em São Paulo. Isto é asseverado pelo fato

de não possuírem o Direito legal à permanência no Brasil, apesar do CAMI estar

desenvolvendo várias ações para legalização de imigrantes em São Paulo.

Em março de 2013, segundo matéria publicada no site UOL, feita pelo

jornal Folha de S. Paulo (disponível

em http://www1.folha.uol.com.br/mercado/1251172-28-bolivianos-sao-resgatados-de-

oficina-de-costura-na-zona-leste-de-sp.shtml), o Ministério do Trabalho e Emprego,

durante fiscalização realizada na região da Zona Leste de São Paulo, desvelou mais

uma quadrilha que explorava grupo de bolivianos e bolivianas. Os auditores fiscais

encontraram os(as) estrangeiros (as) em um sobrado no Bairro Belenzinho, no

momento em que confeccionavam roupas das marcas Emme e Luigi Bertoli. A

empresa GED era a responsável mas se disse “enganada” ao contratar a prestadora

de serviços que explorava mão-de-obra boliviana no local.

Este trabalho em condições degradantes acontece, principalmente, no

contexto da indústria têxtil e suas terceirizadas (oficinas de costura de pequeno porte,

muitas clandestinas como a já mencionada). Todas estas empresas que exploram

mão-de-obra imigrante de diversas nacionalidades compõem a lista suja do trabalho

escravo identificadas nos Relatórios do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE).

Em outubro de 2013, o site O Globo, apresentou uma notícia sobre o

estudo da Walk Free Foundation que criou o Índice de Escravidão Global,

classificando 162 países de acordo com a proporção de escravos contemporâneos em

relação à população. Inclusive, mencionou que o problema também atinge países ricos

como a Suíça e Suécia. Cerca de 29 milhões de pessoas estão escravizadas no

mundo, atualmente, segundo o relatório da fundação mencionada.

Neste ínterim, faz-se imprescindível refletirmos acerca das novas

configurações da Divisão Sexual do Trabalho, já que parte significativa das pessoas

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submetidas a trabalhos em condições análogas às da escravidão, no Brasil e no

mundo, são mulheres. Além das mulheres também ocuparem uma grande fatia dos

trabalhos informais e precarizados e encontrarem dificuldade para ascender em suas

carreiras profissionais em vários contextos de trabalho por não haver, sobretudo,

equidade salarial, respeito e valorização pelo trabalho que desempenham com afinco.

Neste ínterim, As relações entre gênero e classe nos permitem constatar que, no universo do mundo produtivo e reprodutivo, vivenciamos também a efetivação de uma construção social sexuada, onde os homens e as mulheres que trabalham são, desde a família e a escola, diferentemente qualificados e capacitados para o ingresso no mercado de trabalho. E o capitalismo tem sabido apropriar-se desigualmente dessa divisão sexual do trabalho. (ANTUNES, 2009, p. 109)

Por isso, as iniciativas a nível estatal que pretendem erradicar o trabalho

escravo ou degradante no Brasil consideram o recorte de gênero fundamental e

imprescindível para que se fortaleçam lógicas e práticas voltadas para o trabalho

decente e capazes de fomentar a igualdade entre trabalhadores e trabalhadoras. Mas

esta desigualdade no ambiente de trabalho é reflexo da desigualdade de gênero

presente na maioria das relações sociais e estruturada no seio da sociedade brasileira.

Por conseguinte, consideramos que as relações de gênero implicam

análises de relações de poder, no mundo do trabalho. Já que ainda não há equidade

salarial e de condições de trabalho entre homens e mulheres.

Sabemos que as categorias analíticas gênero e classe interagem e

contribuem para a opressão das mulheres na Divisão Sexual do Trabalho. E, neste

caso das mulheres bolivianas em São Paulo, esta opressão se materializa nos

produtos da moda que elas produzem em condições de trabalho análogas às da

escravidão.

É um desafio descontruir a lógica machista nas relações de trabalho e em

todas as relações que permeiam a sociabilidade, uma vez que isto interfere

diretamente na vida das mulheres, sobrecarregando-as de trabalho, desvalorizações e

pressões cotidianas que implicam relações de poder sempre desfavorecedoras para

elas.

Neste ínterim, consideramos imprescindível discutir a oposição simbólica

entre moda e trabalho escravo. A moda que tem sua Indústria a todo vapor em todo o

mundo, lucrando bastante na medida em que vende seus produtos (e a simbologia

impressa neles e suas marcas renomadas) provenientes de mão de obra escravizada

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de mulheres bolivianas em São Paulo, bem como de várias outras, de nacionalidades

diferentes noutras partes do globo, como, por exemplo, no Vietnã.

Mas como se dá esta oposição? De que forma a moda, que tem todo o seu

glamour expresso nos desfiles nos dias de hoje, oprime e explora mulheres mundo

afora?

Define-se moda, segundo o Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa,

como uso, hábito ou estilo geralmente aceito, ideia, capricho e das interinfluências do

meio; uso passageiro que regula as formas de vestir, calçar, pentear etc. Arte e

técnica do vestuário; maneira, feição, modo. Esta palavra que a designa deriva do

francês MODE, que por sua vez, deriva do latim MODUS. Cujo significado é medida,

moderação, limite, maneira ou gênero. Em inglês, se diz “fashion” para falar em moda.

Ou seja, ela implica valores e não somente adornos ou vestimenta. Ou melhor, ela tem

a ver com o valor simbólico atribuído a estas peças de roupas, calçados e adereços

que são resultado de trabalho escravo.

Este valor simbólico dos produtos da moda está presente no imaginário da

sociedade e é alimentado pela própria moda, em seu sentido mais abrangente já

mencionado. Valor expressivo no mercado capitalista (e ao qual se atribui status social

– as bolivianas entrevistadas chamam “chique” usar roupas “de grife” e não

estabelecem ligação entre estas roupas caras que produzem e a exploração a que são

submetidas para produzi-las, de prontidão; apesar de sentirem na pele seus efeitos e

admitirem que, mesmo achando “lindas as roupas que são caras e que não podem

comprar”, são exploradas porque isto é visível/inegável nas suas vidas) que é

direcionado para marcas da moda patentearem.

Outrossim, podemos entender a moda atual como um sistema de

instituições e (...) Em este sentido, quero advertir que la moda no debe ser entendida como lo externo, lo material que envuelve um cuerpo (KONIG, 2002) sino como aquello que se erige como símbolo cultural a través de uma estrutura o sistema. Asi, mientras hacer ropa implica um processo de manufactura de objetos materiales, hacer moda estraña uma construccion ideologia (KAWAMURA, 2006). (GOMÉZ, 2008, p.4)3

Neste contexto, concebemos, assim, a moda como fenômeno social total

que emerge de lógicas de consumo e produção capitalistas, alimentados por imagens ,

símbolos e a comunicação destes através de mecanismos que expressam, em roupas,

sapatos e adereços, nos sujeitos, as diferenças e afinidades compartilhadas, as

3 Tradução livre: “Neste sentido, quero advertir que a moda não deve ser entendida como o externo, o material que envolve um corpo (KONIG, 2002) sim como aquilo que emerge como símbolo cultural através de uma estrutura ou sistema. Então, enquanto fazer roupas implica um processo de manufatura de objetos materiais, fazer moda envolve uma construção ideológica (KAWAMURA, 2006). ”

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hierarquias simbólicas (a luta de classes não escapa à moda) e desejos de

reconhecimento (nossas entrevistadas almejam ter “sucesso na vida” e isto implica

viver, morar, comer e se vestir melhor, “como pessoas ricas se vestem”).

Então, a placidez, a limpidez, a beleza estética, a importância pública e o

status social que a moda imprime nos sujeitos que a utilizam (há roupas para

determinadas classes sociais, porque a moda é uma camaleoa que se adapta para

vender seus produtos e suas ideias para pessoas com muito ou pouco poder

aquisitivo), a incorporam, costuma camuflar e desviar nosso olhar dos aspectos sujos

dos trabalhos escravos por trás dela. Assim, descola-se do caráter degradante do

trabalho que a produz gerando o seu próprio valor expressivo reprodutor de lucros em

mercadorias feitas de escravidão contemporânea e sangue imigrante.

Portanto, dizemos que a moda conota a esfera social e está entrelaçada

no imaginário coletivo com outras palavras como adorno, traje, vestido, estilo etc.

Remete a valores, normas, linguagem e enseja a distinção social e relações de poder.

Favorece a difusão de ideias implícitas nas suas mercadorias. O sistema da moda

implica bens materiais e sua lógica na produção e consumo destes. Ela expressa

diferenças e afinidades compartilhadas; desejos de reconhecimento e expressa

hierarquias simbólicas como já falamos.

Assim, a exploração das mulheres bolivianas através do sistema da moda

se dá também por meio de outras mulheres, estas de classes sociais mais

favorecidas, que consomem o construto ideológico da moda, materializado nos seus

produtos estilizados e dotados de valores simbólicos como: poder, felicidade, riqueza,

estilo, luxo, liberdade etc. Várias mulheres brasileiras (burguesas, de classe média e

até trabalhadoras) andam por aí vestidas com blusas costuradas em oficinas de

costura clandestinas de São Paulo, onde se lê “FREE”.

Nossas entrevistadas vivenciam a tripla jornada de trabalho na pele, como

a maioria das mulheres em nossa sociedade estruturada com relações machistas.

Trabalham exaustivamente nas oficinas de costura e continuam trabalhando ao

chegarem em casa. Isto quando não se trata daquelas que moram no ambiente de

trabalho e tem quase totalmente suprimidos os seus momentos de lazer.

Vale ainda ressaltar o machismo como entendimento equivocado de que

homens são superiores em relação às mulheres em nossa sociedade. Esta ideia se

converte em prática e oprime, violenta e massacra diariamente mulheres de todo o

mundo que, além de terem a responsabilidade de reproduzir a humanidade (e isto

significa que elas não têm opção e devem ter filhos e cuidar destes para que se

transformem em mais mão de obra para o capitalismo e seu mundo do trabalho) e

realizarem a manutenção dos lares. Isto se soma a infinitas jornadas que fazem da

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mulher trabalhadora (principalmente, quando também está inserida no mercado de

trabalho) escrava, já que sobram-lhe 15 min, em média para realizar uma atividade

que goste ou precise para se própria: o banho. Informação esta que pode ser

encontrada em pesquisas sobre mulheres brasileiras da Fundação Perseu Abramo.

Segundo pesquisa desenvolvida em 2011, com mulheres brasileiras, pela

mesma Fundação Perseu Abramo, a cada 2 minutos, 5 mulheres apanham no Brasil.

Este dado corrobora a realidade machista na qual a maioria das mulheres está

submetida, ainda nos dias de hoje, apesar dos avanços na luta das mulheres

desenvolvida pelos Movimentos Feministas presentes em diversos países.

Esta é a realidade vivenciada por nossas entrevistadas: são trabalhadoras

exploradas de diversas formas. Sentem a exploração, muitas vezes, vinda de todos os

lados, pois, após exaustivas horas de trabalho na oficina clandestina de costura, ainda

encontram tarefas domésticas à sua espera, quando chegam em casa e escutam seus

companheiros exigindo o jantar.

Neste sentido, o feminismo, enquanto corrente ideológico-política, tem

pautado, ao longo de décadas, a opressão de gênero nas relações de trabalho e nos

levado a refletir sobre os grilhões diários que asseveram a opressão das mulheres nas

bases da produção capitalista.

Em se tratando do papel social da mulher sob o olhar emancipador

contemplado nos eixos das políticas de Trabalho Decente: Se o primeiro e monumental empreendimento – a emancipação da humanidade e a criação de uma “associação livre dos indivíduos” – é um empreendimento dos homens e mulheres que trabalham, da classe trabalhadora, a emancipação específica da mulher em relação à opressão masculina é decisiva e prioritariamente uma conquista feminina para a real e omnilateral emancipação do gênero humano. À qual os homens livres podem e devem somar-se, mas sem papel de mando e controle.(ANTUNES, 2009, p.111)

Portanto, consideramos que o gênero, enquanto um dos marcadores

sociais da diferença (diferença essa que, no mundo do trabalho, acaba por se

configurar em desigualdades de oportunidade, de condições de trabalho, de

remuneração e outras opressões na vida de trabalhadoras exploradas), assevera a

exploração vivenciada pelas mulheres bolivianas que estão nas bases da Indústria

Têxtil brasileira e, por assim dizer, mundial.

Conclusão

Esta pesquisa buscou discutir o paradigma trabalho escravo na

contemporaneidade, atravessando-o pelo recorte de gênero e contrapondo-o à

12

perspectiva do trabalho decente para refletir acerca das influências e impactos sociais

da moda na vida de mulheres bolivianas exploradas em oficinas de costura

clandestinas da cidade de São Paulo.

Nossa reflexão se construiu, sobretudo, a partir do canal de escuta aberto

com as mulheres entrevistadas para ouvirmos como estas percebem este paradigma,

como interagem, reagem e resistem às opressões no contexto dele.

As entrevistas foram realizadas entre Maio de 2013 e Abril de 2014, em

bairros da cidade de São Paulo (Brás, Bom Retiro, Pari e Centro), com dez mulheres

bolivianas vítimas do trabalho escravo em oficinas de costura da capital paulistana ou

que conhecem vítimas e/ou histórias destas. Ocorreram todas durante o dia. Três

entrevistadas responderam aos questionários nos fins de tarde.

O questionário4 semiaberto utilizado nas entrevistas é composto por três

perguntas filtro, quinze perguntas abrangendo a temática em questão, distribuídas

em três baterias:

Motivações para imigração ao Brasil

Vida e trabalho no Brasil

Relações entre trabalho e moda

A maior parte das entrevistas aconteceu na Praça Kantuta, no Bairro do

Pari. Sete entrevistadas responderam aos questionários em domingos, durante o dia,

no decorrer da festa boliviana que acontece, tradicionalmente, na praça mencionada.

Outras três foram encontradas no Centro Velho da cidade, estações Armênia e Brás

de Metrô.

Dentre as dificuldades que encontramos no trabalho de campo, é

imprescindível destacar a resistência das entrevistadas para responder às perguntas

sobre trabalho e o quanto foi complicado encontrar mulheres que aceitassem ser

entrevistadas. Foram necessárias várias idas a campo para conseguir realizar o

trabalho de pesquisa. Muitas delas se negavam expressando certo receio nos rostos

quando me aproximava e dizia estar realizando uma pesquisa sobre mundo do

trabalho.

Em A arte de pesquisar, a autora Mirian Goldenberg, diz que Como qualquer relação pessoal, a arte de uma entrevista bem-sucedida depende fortemente da criação de uma atmosfera amistosa e de confiança. As características pessoas do pesquisador e pesquisado são decisivas. (GOLDENBERG, 2011, p.90)

4 Matriz do questionário consta nos apêndices, para consulta.

13

Em média, as entrevistas aconteceram de forma descontraída. No começo,

as entrevistadas demonstraram ser pessoas reservadas, mas, aos poucos, foram se

abrindo e contando sobre suas vidas, respondendo para além do questionário.

Neste ínterim, as entrevistas nas quais mais houve entrosamento entre

pesquisador e entrevistada foram as mais reveladoras e expressivas. As mulheres

contaram, cada uma a sua maneira, como trabalham muito, se divertem pouco,

costumam cuidar de seus filhos e sonham em ter um lar e um emprego melhor. Suas

histórias de vida pulsavam a cada lembrança e as saudades da Bolívia vinham à tona,

timidamente. Houve entrevistada que disse preferir o Brasil porque “aqui é quente” e

“se vive melhor que na Bolívia”. As perguntas que envolviam trabalho foram

respondidas com bastante cautela pela maioria das bolivianas jovens. Estas, estando

por pouco tempo no Brasil, temiam que fossem divulgadas informações acerca de

seus trabalhos em oficinas clandestinas de costura.

Em Os Sentidos do trabalho, o sociólogo do trabalho, Ricardo Antunes diz

que A mulher trabalhadora, em geral, realiza sua atividade de trabalho duplamente, dentro e foda de casa, ou, se quisermos, dentro e fora da fábrica. E, ao fazê-lo, além da duplicidade do ato do trabalho, ela é duplamente explorada pelo capital: desde logo por exercer, no espaço público, seu trabalho produtivo no âmbito fabril. Mas, no universo da vida privada, ela consome horas decisivas no trabalho doméstico, com o que possibilita (ao mesmo capital) a sua reprodução, nessa esfera do trabalho não diretamente mercantil, em que se criam as condições indispensáveis para a reprodução da força de trabalho de seus maridos, filhos/as e de si própria(...) (ANTUNES, 2009, p. 108)

Quando indaguei acerca das motivações que as trouxeram para o Brasil as

respostas variaram mas tinham muitas semelhanças entre si.

Merece destaque o fato de que a entrevistada 1, de vinte e cinco anos, disse

que decidiu vir ao Brasil porque tinha “trabalho certo, aqui”. Isto nos leva a pensar

sobre quadrilhas internacionais que aliciam jovens bolivianas e de outros países,

prometendo emprego e vida melhor noutros países, mas , na verdade, levando-as

para trabalharem como escravas contemporâneas.

É perceptível que, como as entrevistadas não vislumbram oportunidades de

emprego e melhoria da qualidade de vida na Bolívia, elas imigram muito jovens para o

Brasil com o sonho de uma “vida melhor”. Sobre quanto tempo já residem no Brasil, as

entrevistadas destoam entre si:

14

Em se tratando da entrevistada 2, de oitenta anos de idade, residente no

Brasil há sessenta anos, posso dizer que foi a entrevista mais emocionante de todas.

Esta senhora se dispôs, gentilmente, a conversar comigo e contar sobre sua

trajetória de vida, momentos difíceis e experiências com trabalho em oficinas de

costura. Ela mencionou que veio para solo brasileiro ainda criança, com a ilusão de

“ganhar dinheiro”, trazida pelos pais e teve de morar em quartinhos apertados que

ficavam próximos às oficinas de costura onde sua mãe costumava trabalhar. Contou

ainda que chegou a cantar, profissionalmente e ganhou dinheiro cantando, algo que

lhe deu condições para não depender somente da costura. Lindamente, ela cantou

algumas das músicas que costumava cantar quando jovem. Momento em que a

entrevista ficou com um tom mais intimista e, apesar do barulho em volta, a

sensação era de silêncio e concentração. Conheceu algumas mulheres bolivianas

donas de oficinas de costura, em São Paulo, que exploravam e exploravam mulheres

conterrâneas, sem dó nem piedade. Até apontou-me uma tenda onde estava uma,

rodeada por seus empregados também bolivianos. Disse ainda que essa prática é

comum, pois microempresárias bolivianas, às vezes, trazem gente conhecida,

diretamente, da Bolívia para trabalhar em suas “confecções”, assim ela chamava as

oficinas de costura clandestinas.

Mudar para o Brasil não foi uma escolha fácil para essas mulheres. Oito

das entrevistadas vieram ao Brasil trazendo filhos e/ou acompanhada de seus

companheiros. Quando chegam ao Brasil, enfrentam a dura realidade de

informalidade em trabalhos degradantes e a ilegalidade por não possuírem vistos de

permanência no país. A maioria se submeteu a trabalhar em oficinas de costura para

15

sobreviver e alimentar seus filhos, enquanto os companheiros buscam trabalhos em

lanchonetes, restaurantes, bares e tentam ser vendedores ambulantes.

5

Houve também entrevistas feitas na entrada dos metrôs Armênia e Brás,

onde circulam muitos(as) imigrantes bolivianos(as), diariamente. Neste lugar, menos

ainda as pessoas se dispunham a responder o questionário, passando fugidias. Com

persistência, consegui entrevistar 2 jovens bolivianas.

Morar no ambiente onde trabalha pode ser uma armadilha, no caso dessas

mulheres. Uma vez que a oficina de costura insalubre e clandestina pode se

transformar numa prisão da qual não se consegue sair. Somente 3 das entrevistadas

residem em seus locais de trabalho:

É inevitável perceber que há uma opressão advinda da desigualdade social

na vida destas mulheres. Ou seja, aí uma combinação entre gênero e classe social

5 Observação importante: na legenda desta gráfico, lê-se SIM=SÓ e NÃO=ACOMPANHADA.

80%

20%

Você veio sozinha ou com familiares para o Brasil?

sim não

30%

70%

Você mora onde trabalha?

sim não

16

favorecendo, minuciosamente, a exploração e opressão das mulheres bolivianas, no

contexto das relações sociais de trabalho. Apenas uma mulher possuía casa própria e

as demais pagam aluguel caro em um quarto úmido, pequeno, sem espaço para criar

filhos e viver, dignamente, em São Paulo:

Vale destacar que apenas uma das entrevistadas não pagava aluguel. Ou

seja, além de refletir sobre a realidade de opressão de gênero a qual estão

submetidas (sendo maioria nas oficinas de costura clandestinas e desempenhada até

tripla jornada de trabalho, além de cuidar dos filhos) essas trabalhadoras bolivianas,

não podemos descolar este fato da classe social desfavorável que compõem.

Uma delas estava com a filha de dez anos de idade. Esta entrevistada 6

reside em São Paulo há dois anos, mora em um quarto de cortiço com a criança,

trabalha mais de doze horas por dia em uma oficina de costura clandestina que fica no

Bairro do Bom Retiro, mas gostaria de ser vendedora:

90%

10%

Você paga aluguel?

sim não

80%

20%

Você já trabalhou um dia inteiro ou mais de um dia sem descansar?

sim não

17

Mais da metade das entrevistadas conhecia ou sabia de alguém que já

passou por uma situação de trabalho escravo em oficinas de costura na cidade de São

Paulo:

Para discutirmos a moda, precisamos entende-la para além da sua

externalidade expressa no material que pode envolver um corpo (vestimenta, adorno

etc), mas sim apreendê-la como símbolo cultural que penetra o imaginário coletivo e

implica numa lógica de consumo complexa.

Para entender como a moda interfere nas nossas vidas e, em especial, na

vida das mulheres bolivianas entrevistadas é , todavia, percebê-la como conotação da

esfera social tomada pelo poder simbólico das mercadorias que ela produz;

entrelaçando-se no imaginário coletivo com outras palavras, tais como: traje, adorno,

vestimenta, estilo etc, e, influenciando-o a ponto de favorecer à difusão de ideias

implícitas nas suas mercadorias.

Esta moda enseja em si, em termos de nicho de mercado, a dominação de

classes à qual está submetida a população imigrante que produz e reproduz suas

lógica e mercadoria. E é intrínseca a esta mesma moda, enquanto produtora de

mercadorias, a luta de classes que se sufoca em meio às explorações da mão de obra

imigrante em vários países do globo. Podemos destacar a realidade vivenciada pelas

nossas entrevistadas amalgamadas a todo o escopo simbólico do mundo da moda.

Em O poder simbólico, Pierre Bourdieu, diz que “o poder simbólico é , com

efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles

que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem.”(BOURDIEU,

2002, p. 7-8).

60%

40%

Você conhece mais pessoas que trabalham, assim, sem descansar?

sim não

18

Compreender que a moda, no contexto do capitalismo não se resume,

simplesmente, a um hábito, uma maneira de se vestir, uma coleção de roupas que são

necessárias para nossos corpos que, então, ficariam nus se elas não existissem é

negar os valores, as normas e a distinção social que ela enseja, em suas relações de

poder. O sistema da moda, dentro do âmbito do mercado capitalista, implica bens

materiais. Antes, é claro, a lógica da produção e consumo destes. E é na cadeia

produtiva, no mais baixo escalão, que estão inseridas as entrevistadas desta pesquisa

e outras milhares de mulheres mundo afora.

Em se tratando ao fetiche das mercadorias produzidas pela moda que é

resultado da exploração da mão de obra barata de mulheres bolivianas no Brasil e de

outras mulheres de vários outros países do mundo, podemos dizer que À primeira vista, a mercadoria parece ser coisa trivial, imediatamente compreensível. Analisando-a, vê-se que ela é algo muito estranho, cheio de sutilezas metafísicas e argúcias teológicas. Como valor-de-uso, nada há de misterioso nela, quer a observemos sob o aspecto de que se destina a satisfazer necessidades humanas, com suas propriedades, quer sob o ângulo de que só adquire essas propriedades em consequência do trabalho humano(...). (MARX, 2011, p.92)

Atualmente, a moda é um sistema de instituições que se retroalimentam. Ela

expressa diferenças e afinidades compartilhadas; desejos de reconhecimento e

hierarquias simbólicas.

Há um abismo entre as trabalhadoras bolivianas escravizadas e a moda

com suas “roupas de grife”, escravizando mulheres de todas as classes sociais em

padrões de beleza e vestimenta. Esta distância aumenta cada vez que mais uma

mulher é explorada e, simultaneamente, mais uma filial de alguma loja de roupas se

abre, dando mais lucros ao mercado de vestimentas.

O fetiche em torno das roupas, mercadorias imprescindíveis para a indústria

têxtil brasileira, é introjetado a cada propaganda que é feita para promover

80%

20%

Você gosta de moda?

sim não

19

determinada coleção que emerge das subterrâneas oficinas de costura. Falo das

mesmas oficinas de costura que exploram e exploraram as entrevistadas desta

pesquisa. Ou seja, não há produtos se não existem escravas das classes sociais

rebaixadas pelo capitalismo, em São Paulo ou em qualquer outro país onde a lógica

do trabalho decente ainda não tenha conseguido erradicar trabalhos degradantes.

Falamos sobre os sentidos de trabalhar com as entrevistadas, sobre o

prazer com aquilo que se faz e perguntei a elas se usavam as roupas que faziam

maior parte do tempo de vida que tinham:

40%

60%

Você sabe quanto custa a roupa que você faz?

sim não

30%

70%

Você gosta de trabalhar com costura ou não tem outra opção de trabalho no Brasil?

sim não

20

Quando indaguei sobre o gosto pelas roupas que uma das entrevistadas de

27 anos de idade fazia, seus olhos até brilharam. Ela falou que trabalha com costura e

gosta disso. Já trabalhava com costura na Bolívia. Mas também, como várias outras

mulheres, não tem condições de comprar roupas caras e costuma “ir aos lojões do

Brás e comprar de camelôs as imitações das originais”. Apenas duas das

entrevistadas conseguiam comprar as “roupas originais”.

A entrevistada disse detestar trabalhar com costura e só faz esse trabalho

porque não tem opção. Acaba tendo que fazer outros “bicos” também, no único dia

que tem de folga (o domingo, quando vai à Praça Kantuta). Perguntei-lhe sobre as

“roupas de grife” que ela costurava, se sabia quanto custava uma peça, se as achava

bonitas, se gostaria de tê-las, se já havia visto desfiles de moda na TV com roupas

parecidas às que ela fazia, cotidianamente. As respostas foram interessantes:

Apesar de saber que leva muito tempo para fazer aquelas roupas e que são

vendidas a alto custo pelas lojas, metade das entrevistadas disse que adora as

20%

80%

Você usa as roupas que costura?

sim não

40%

60%

Você gosta do trabalho que faz?

sim não

21

marcas e que, como não pode comprá-las, vai a brechós e compra imitações delas.

Acham lindas os desfiles e veem muitos cortes parecidos com os seus. Disseram

ainda que adoram desfiles de moda e que já fizeram vestidos muito elegantes para

coleções de verão. Elas sorriram quando perguntei se algum dia sonharam em ser

estilistas ou modelos.

Em sua maioria, as entrevistadas foram simpáticas, responderam

solicitamente às perguntas, compartilharam suas lembranças de vida, mas se

recusaram a deixar contatos, exceto pela entrevistada 1.

Este trabalho de campo proporcionou um canal de escuta entre pesquisador

e entrevistadas. Através deste canal se pôde perceber as nuances e delicadezas de

quem vive submetida ao trabalho escravo contemporâneo e de que forma encara a

realidade na qual está envolvida, alimentando a indústria da moda com as roupas

produzidas em condições sub-humanas, mas resistindo, neste contexto, com

pensamentos, comportamentos e sensações contraditórias que refletem uma vida

confusa, mas em busca de paz e trabalho decente.

Portanto, foi necessário entender como a moda, enquanto produtora de

mercadorias fetichezadas pela lógica do mercado capitalista é concebida com a força

de trabalho escravizada destas mulheres bolivianas imigrantes; e, de que forma, ao

mesmo tempo, ela (a moda), de algoz, se transforma em sonho de consumo, com seu

valor de uso sublimado pelas vítimas que a alimentam de produtos de mão de obra

barata.

Por fim, consideremos, pois, que a moda exerce seu “poder quase mágico

que permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou econômica),

graças ao efeito específico de mobilização, só se exerce se for reconhecido, quer

dizer, ignorado como arbitrário” (BOURDIEU, 2002, p.14).

Neste ínterim, as mulheres bolivianas entrevistadas disseram admirar as

roupas que produzem e querem possuí-las, abraçando o caráter simbólico destas,

inadvertidamente. Gostariam de consumi-las porque isto significa adquirir o status

50% 50%

Você já viu desfile de moda com roupas parecidas com as que costura, pela tv?

sim não

22

social que já não têm com o trabalho extremamente escravizador de seus cotidianos.

Ao invés de desenvolveram alguma rejeição às milhares de “roupas de grife” que

produzem, em cargas horárias exaustivas e ambientes de trabalho insalubres, vivem

alimentando seus fetiches em relação a estas mercadorias que produzem com muito

suor. Anseiam ascender socialmente para outra classe social e, desta maneira, terem

condições socioeconômicas para morar, comer e até se vestir melhor.

Quanto à moda que veem por aí, nos desfiles, nos shoppings, nos

programas de TV, elas consideram belas e “chiques”, mas só tem posses para adquirir

peças de imitação em brechós. Ou seja, a exploração de mulheres bolivianas em São

Paulo se alimenta também desta oposição simbólica escamoteada entre moda e

trabalho escravo. Precisamos, por isso, combater a lógica do trabalho escravo em

todas as suas nuances e articulações no âmbito da nossa sociedade fortemente

marcada pela opressão de classe e gênero capitalistas.

Apêndices RESUMO DAS ATIVIDADES DESENVOLVIDAS

Estratégias metodológicas de pesquisa

MESES

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12

Levantamento, leitura e análise das referências bibliográficas; consulta a documentos oficiais sobre trabalho escravo e trabalho decente Definição do roteiro de entrevistas X X X X X X X X

Trabalho de campo X X X X X X

23

Entrevistas - aplicação dos questionários semiabertos (10) Coleta de notícias sobre casos de trabalho escravo no Brasil Elaboração de relatório de atividades desenvolvidas X X X X

Sistematização e análise de dados colhidos X X X X

Redação do artigo final X X X

Matriz do questionário semiaberto aplicado

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25

Referências bibliográficas AENINGER, SOUCHAUD, Rosana y, Sylvain. Vínculos entre a Migração Internacional

e a Migração Interna: o caso dos bolivianos no Brasil. Organizado por la Comisión

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TOLEDO, Cecília. Mulheres: o gênero nos une, a classe nos divide. São Paulo:

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26