forma, matéria e definição na metafísica de aristóteles

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CDD: 185 Forma, Matéria e Definição na Metafísica de Aristóteles MARCO ZINGANO Departamento de Filosofia Universidade de São Paulo São Paulo, SP Resumo: Este texto examina as funções de forma e matéria na definição das substâncias sensíveis com vistas à constituição de uma doutrina geral da substância que possa incluir certas substâncias de outra natureza. Em especial, mostra-se que a investigação sobre a substância deve partir do exame das substâncias sensíveis, aceitas por todos, mas não pode ficar restrita às suas condições de existência; em algum sentido, a transcendência das substâncias não sensíveis deve ser preparada pelo estatuto especial de que goza a forma imanente aos compostos a título de substância primeira. Palavras-chave: Aristóteles. Metafísica. Forma. Matéria. Parece bem assentada, tanto na Metafísica como na Física, a tese segundo a qual a definição de uma substância sensível comporta inevitavelmente uma menção a certos elementos materiais, a saber, àqueles que, tomados universal- mente, condicionam do ponto de vista material a realização da ou das funções próprias do objeto em questão. A atribuição ao aristotelismo de tal doutrina parece, com efeito, não poder ser posta em dúvida e as conseqüências para a física aristotélica são bem conhecidas. No entanto, resta que se pode questionar com proveito a respeito da posição desta tese na armadura conceitual da metafísica aristotélica. A razão disso parece-me residir no fato que a constatação da presença de elementos materiais na definição de certas substâncias tem relevância sobretudo propedêutica para a metafísica. O que Aristóteles parece perseguir, ao pôr inicialmente o foco na matéria relativamente à definição das substâncias sensíveis em um contexto metafísico, é menos o condicionamento material da existência das substâncias sensíveis e mais a subjugação da matéria às exigências Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 13, n. 2, p. 277-299, jul.-dez. 2003.

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Page 1: Forma, Matéria e Definição na Metafísica de Aristóteles

CDD: 185

Forma, Matéria e Definição na Metafísica de Aristóteles MARCO ZINGANO Departamento de Filosofia Universidade de São Paulo São Paulo, SP

Resumo: Este texto examina as funções de forma e matéria na definição das substâncias sensíveis com vistas à constituição de uma doutrina geral da substância que possa incluir certas substâncias de outra natureza. Em especial, mostra-se que a investigação sobre a substância deve partir do exame das substâncias sensíveis, aceitas por todos, mas não pode ficar restrita às suas condições de existência; em algum sentido, a transcendência das substâncias não sensíveis deve ser preparada pelo estatuto especial de que goza a forma imanente aos compostos a título de substância primeira. Palavras-chave: Aristóteles. Metafísica. Forma. Matéria.

Parece bem assentada, tanto na Metafísica como na Física, a tese segundo a qual a definição de uma substância sensível comporta inevitavelmente uma menção a certos elementos materiais, a saber, àqueles que, tomados universal-mente, condicionam do ponto de vista material a realização da ou das funções próprias do objeto em questão. A atribuição ao aristotelismo de tal doutrina parece, com efeito, não poder ser posta em dúvida e as conseqüências para a física aristotélica são bem conhecidas. No entanto, resta que se pode questionar com proveito a respeito da posição desta tese na armadura conceitual da metafísica aristotélica. A razão disso parece-me residir no fato que a constatação da presença de elementos materiais na definição de certas substâncias tem relevância sobretudo propedêutica para a metafísica. O que Aristóteles parece perseguir, ao pôr inicialmente o foco na matéria relativamente à definição das substâncias sensíveis em um contexto metafísico, é menos o condicionamento material da existência das substâncias sensíveis e mais a subjugação da matéria às exigências

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da forma, que dela se distingue basicamente pelo papel de identidade do objeto, o que é tornado manifesto na definição do objeto.

Obviamente, atentar à presença de elementos materiais na definição de certas substâncias tem, na metafísica, uma função crítica inegável, em especial em relação àquelas teorias, como o platonismo, que tendiam a relegar o elemento material ao domínio da aparência e do não-ser. Internamente à metafísica aristotélica, no entanto, importa não tanto pôr em realce a presença, expressa ou tácita, de elementos materiais na definição das substâncias sensíveis, mas sobretudo sublinhar que, no interior destas definições, a forma cumpre um papel muito especial no agenciamento dos elementos materiais com vistas à constituição da identidade do objeto. Posta assim em relevo, a forma figura como causa de x ser F, todo x precisando certamente satisfazer determinados requisitos materiais para ser um F, mas ganhando a identidade F unicamente graças à forma. O resultado é que, antes de se esvair em um emaranhado de condições materiais que condicionariam a existência do objeto, a forma se sobressai ainda mais como o princípio de identidade do objeto por sobre todas as condições materiais, de modo que, sem apelar a ela, não é possível conceber a objetividade do objeto.

Em um contexto físico, o realce dado aos elementos materiais cumpre uma outra função, a saber, a de desenvolver os conhecimentos relativamente às conexões materiais envolvidas, o que caracteriza a ciência física: da cólera, por exemplo, trata-se de saber não somente que é um desejo de vingança, mas também que se realiza mediante o aquecimento do sangue na região pericárdia – e, conseqüentemente, como se realiza tal aquecimento. O conhecimento do físico deve envolver ambos os aspectos, pois, neste caso, é o desejo de vingança (causa final, à qual alude de imediato e com a qual se satisfaz inteiramente a retórica) que me permite compreender o aquecimento do sangue (causa material) e não o contrário. Agora, o que caracteriza a abordagem do cientista natural é o detalhamento do mecanismo natural envolvido, ainda que a causa que explique as propriedades do objeto seja outra que a material, como ocorre com a cólera1. A

1 Explicar o porquê de algo envolve menção a todas as causas (formal, final, eficiente e material; cf. Phys. II 7 198b5 kai; pavntw~ ajpodotevon to; dia; tiv), mas o papel

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relevância do elemento material no conhecimento físico leva ao estudo isolado das partes dos animais como uma seção, se não a mais importante, pelo menos a mais extensa da biologia. Em um contexto metafísico, porém, longe de querer restringir a metafísica ao domínio físico da substância, busca-se ao contrário garantir à forma um papel privilegiado, de modo a sobressair-se face aos elementos materiais envolvidos, lá mesmo onde ela parecia esmaecer definitivamente. Para mostrar isso, gostaria de começar examinando sucintamente duas passagens onde, incontestavelmente, Aristóteles mostra que a definição de certas substâncias, as substâncias sensíveis, envolve a menção a elementos materiais. Em ambas as passagens, há uma mesma lição: no tocante às substâncias sensíveis, a definição contém uma menção aos elementos materiais que constituem as condições necessárias para a existência do objeto, mas isso certamente não é toda a lição.

A primeira delas ocorre em Met. Z 11. Ao comentar a comparação que Sócrates o jovem propunha entre a definição do círculo, que não leva em conta nenhum elemento material, e a de homem, que então, por analogia, tampouco deveria levar em consideração elementos materiais, Aristóteles a contesta observando primeiramente que a comparação não procede corretamente, pois “faz pensar que o homem pode existir sem as partes, como pode o círculo sem o bronze” (11 1036b26-28: poiei uJpolambavnein wJ~ ejndecovmenon ei\nai to;n

a[nqrwpon a[neu twn merwn, w{sper a[neu tou calkou to;n kuvklon). Além disso, a comparação proposta “afasta-se da verdade” (1036b26: ajpavgei ga;r ajpo; tou

ajlhqou~) porque, ao tornar supérflua a menção à matéria, ignora que é preciso referir-se à matéria já na própria definição quando se trata de objetos que são do tipo isto nisto. Temos aqui a expressão célebre que resumiria com elegância o

unificador de todas as propriedades fundamentais do objeto cabe a uma delas, que funciona então como a causa básica. Por exemplo, relativamente ao trovão, a causa básica é a causa eficiente (barulho provocado pela extinção do fogo), enquanto, relativamente à casa, trata-se da causa final (abrigo para proteger bens e pessoas). A este repeito, ver D. Charles, Aristotle on Meaning and Essence, Oxford 2000, e Aristotle: Definition and Explanation, mimeo 2003.

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estatuto das substâncias sensíveis: tovd j ejn tw/de (1036b23), isto nisto ou, de forma menos críptica, tal forma em tal matéria. São as substâncias do tipo nariz adunco2; o adunco é, conforme reza o bem conhecido exemplo aristotélico, a concavidade em tal matéria, a saber, a carne, e não há como compreender o que é ser adunco sem compreender em que matéria se realiza a concavidade. O texto fala de por certo alguns casos (1036b23: e[nia gavr i[sw~), mas provavelmente isto é uma modesta affirmatio no que tange às substâncias sensíveis: todas elas parece seguirem tal padrão. Para tanto, pode-se fazer apelo, por exemplo, a H 6, capítulo no qual Aristóteles sustenta que toda definição de substância sensível contém um parte material e outra formal (1045a34-35: ajei; tou lovgou to; me;n u{lh to; de; ejnevrgeiav

ejstin). Convém insistir, porém, um pouco mais sobre 1036b23 e[nia ga;r i[sw~

tovd j ejn tw/de. Alguém poderia objetar que a expansão deste padrão a todas as substâncias sensíveis ainda não está garantido. A frase inteira é e[nia ga;r i[sw~

tovd j ejn tw/d j ejsti;n h] wJdi; tadi; e[conta (Z 11 1036b23-24), “por certo alguns são tal forma em tal matéria ou tais coisas nesta relação”, e, embora a primeira expressão pareça favorecer a expansão, a segunda, se o faz, o faz menos visivelmente. Com efeito, este último caso é bem exemplificado pela soleira, que se distingue da verga unicamente pela posição em relação ao umbral. Tal modo de distinguir vale certamente para certas substâncias sensíveis, mas não parece valer para todas as substâncias sensíveis. Posição ou relação a certos itens dificilmente são o caso para substâncias como homem, cavalo etc, a saber, aquelas que figuram como substâncias por excelência. A hesitação pode mesmo

2 Literalmente, nariz achatado. No entanto, vou traduzir por adunco pela razão

seguinte: adunco é usado em especial para designar um certo nariz, enquanto achatado é usado nos mais variados casos, seja nariz achatado, mesa achatada etc, de modo que achatado não realiza em português o que to; simovn faz em grego e, de modo semelhante, adunco em português. Para o que quer Aristóteles, compreender simovn implica compreender em que matéria se realiza a concavidade, a saber, a carne, pois é um tipo de nariz; compreender achatado não implica compreender em que matéria se realiza a concavidade, mas compreender adunco implica compreender em que matéria, a carne, se realiza a concavidade.

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retroagir sobre o primeiro caso. Partes de plantas e animais, como folhas ou nariz, exemplificam bem o caso dos tovd j ejn tw/de, e o próprio Aristóteles serviu-se do adunco como exemplo por excelência deste caso. Porém, como se sabe, partes de um animal não são, enquanto partes, substâncias, pois uma mão, quando separada do todo no interior do qual cumpre uma função, é dita somente por homonímia uma mão3. Talvez então o elemento material figure inexoravelmente na definição somente daquilo que não é uma substância, pelo menos não genuinamente, assim como o adunco não é, tomado isoladamente, uma substância, pois nenhum nariz é, separado do corpo, genuinamente um

3 Refiro-me à lição bem conhecida da homonímia das partes, que se encontra passim na obra de Aristóteles. A mesma lição é lembrada em Z 16, mas aí o texto é menos claro. Em 1040b5-10 lê-se o seguinte: fanero;n de; o{ti kai; tw`n dokousw`n ei\nai aiJ

plei`stai dunavmei~ eijsiv, tav te movria tw`n zw/vwn (oujqe;n ga;r kecwrismevnon aujtw`n

ejstivn: o{tan de; cwrisqh/, kai; tovte o[nta wJ~ u{lh pavnta kai; gh` kai; pu`r kai; ajhvr): oujde;n ga;r au;tw`n e{n ejstin, ajll j oi|on swrov~, pri;h h] pefqh`/ kai; gevnhtaiv ti ejx aujtw`n e{n. Aristóteles parece querer excluir do rol de substâncias as partes dos animais, que ele havia, porém, listado como tipicamente substâncias sensíveis em Z 2 1028b9 e H 1 1042a10. A razão para sua exclusão parece ser o fato que, uma vez separadas, elas não são mais mão ou olho a não ser por homonímia, mas antes um aglomerado de elementos: terra, água, ar, fogo e suas misturas. Alterei conseqüentemente a pontuação, seguindo uma sugestão de Bonitz; se se adota, contudo, a pontuação de Jaeger, a passagem não só excluiria do rol das substâncias as partes dos animais, mas também os corpos simples, como terra, água, ar e fogo. É verdade que os corpos simples requerem uma análise cuidadosa: em que sentido água é substância? e um lago, um poço, uma fonte teriam substancialidade? Aristóteles faz menção a este tipo de problema no livro Z, sem fornecer uma resposta clara a seu respeito. É esta água a mesma que aquela outra pelo fato de ambas provirem da mesma fonte? No entanto, não me parece estar em questão aqui o problema da unidade numérica das substâncias simples, mas o de sua identidade: neste caso, a sua simples exclusão não é em geral sensata, e menos ainda o seria aqui, pois certamente não estaria baseada nas mesmas razões que a exclusão das partes. Resta saber por que Aristóteles escreve que a maioria somente do que parece ser substância (e nisto está referindo-se às partes em geral) é somente em potência e não substância em ato. A limitação, a meu ver, diz respeito a certas partes que não são somente em potência substância, a saber, as partes das plantas, pois elas conservam a alma do todo, como é perceptível no caso de um enxerto (mencionado logo a seguir, em 1040b15).

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nariz. Pode-se dizer, por exemplo, que as definições de zaino ou de baio certamente requerem a menção da matéria, pois zaino é o cavalo com pêlo castanho-escuro, enquanto tordilho é o cavalo que tem pêlo escuro sarapintado de branco, sem que saibamos ainda se a definição de cavalo envolve também a menção à matéria. Ora, o que existe propriamente são cavalos, não zainos ou baios, cujas distinções no conceito servem antes aos nossos interesses práticos do que respeitam as junturas da natureza. Eles dizem menos do mundo e mais de nossas práticas e interesses; envolvem com certeza elementos materiais, mas por que isso contaminaria igualmente as definições que se referem ao que preenche de fato o mundo?

A segunda passagem, porém, dá pouca esperança a esta objeção. Em Física II 9, Aristóteles discute a relação entre os elementos materiais e o fim ou o em vista de que uma coisa é feita. Como aqui forma e fim são intercambiáveis, apresentarei o argumento como sendo o da forma em relação à matéria, ainda que, estritamente falando, o ponto apresente a relação entre o em vista de e a matéria. Tomemos como exemplo uma serra. Uma serra tem por função serrar, isto é, fazer uma divisão de tal e tal modo. Dizer isso é, em um sentido, definir a serra: objeto para dividir de tal e tal modo. No entanto, para cumprir sua função, a serra tem de ser de ferro ou de algum material similar. Este elemento material é a condição dita necessária (no texto: to; ajnagkaion) sem a qual a função que define a serra não pode exercer-se. Nas palavras de Aristóteles: o necessário está na matéria, o em vista de está na definição (200a14-15: ejn ga;r th/ u{lh/ to; ajnagkaion,

to; d j ou| e{neka ejn tw/ lovgw/). A frase poderia dar a entender que Aristóteles quer divorciar os dois membros, mas penso que deve ser entendida no sentido em que a forma (o fim) se torna visível ou manifesta na definição, enquanto o necessário se evidencia no rol dos elementos materiais, o que pode ser feito (este último) fora do contexto definicional. Ao dizer objeto para dividir de tal e tal modo, já estou mencionando uma serra, mas, ao listar dentes de ferro, cabo de madeira, ainda não estou citando a serra. A razão é que, mencionando a forma (ou o fim), a substância já se diz em ato; mencionando unicamente os elementos materiais, a substância diz-se meramente em potência. Porém, isso não elimina o necessário

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(os elementos materiais) da definição; ao final do capítulo, Aristóteles escreve que “por certo o necessário está também na definição” (200b4: i[sw~ de; kai; ejn tw/

lovgw/ e[stin to; ajnagkaion). O motivo é que, tendo definido a função da serra como divisão de tal modo, há de se reconhecer que isso não é possível a menos que tenha dentes de tal e tal tipo; estes, por sua vez, só serão o caso se forem de ferro e assim por diante. Àquele que objetasse que talvez isso esteja restrito a artefatos, basta citar 200b3: de modo similar, dado que o homem é isto, é preciso que tais coisas sejam o caso, como carne, tendões e o resto. O capítulo conclui-se com uma afirmação que certamente não vale somente para artefatos, mas inclui também substâncias naturais, como homens e cavalos, além de zainos e baios, caucasianos e similares: “com efeito, também na definição algumas partes estão a título de matéria da definição” (200b7-8: e[sti ga;r kai; ejn tw/ lovgw/ e[nia movria wJ~

u{lh tou lovgou). A matéria, assim, parece assegurada na definição de certas substâncias, as substâncias sensíveis.

Afirmei no início, contudo, que a constatação da presença de elementos materiais na definição de substâncias sensíveis tinha relevância metafísica, internamente ao sistema aristotélico, basicamente propedêutica, por mais forte que seja sua potência crítica relativamente a outras doutrinas, como a teoria das Idéias. Com efeito, se substâncias sensíveis são substâncias em sentido pleno, não é de espantar que suas definições contenham elementos materiais; como poderia ser de outro modo, se justamente são substâncias sensíveis? No entanto, há um problema aqui, e de peso. A ambição do livro Z da Metafísica seguramente não se esgota no estudo das substâncias sensíveis; seu intuito mais profundo consiste em determinar se há e qual pode ser uma substância de outra natureza. Z 2 exprime com clareza esta ambição: deve-se investigar quais são as substâncias e se há alguma além das sensíveis; para tanto, será preciso determinar em que medida uma tal substância pode existir separadamente (1028b27-32). Novamente, em Z 11 1037a11-13, é dito que se deve investigar ulteriormente se há um outro tipo além da substância material, como o número ou algo parecido (kai; dei zhtein

oujsivan eJtevran tina; oi|on ajriqmou;~ h[ ti toiouton, skeptevon u{steron); não é claro a que passagem remete, mas, no final de Z, a investigação é retomada de um

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novo ponto de vista, com a esperança que, desta vez, “talvez fique claro também a respeito daquela substância, a qual é separada das substâncias sensíveis” (17 1041a7-9: i[sw~ ga;r ejk touvtwn e[stai dhlon kai; peri; ejkeivnh~ th~ oujsiva~ h{ti~

ejsti; kecwrismevnh twn aijsqhtwn oujsiwn). Dois candidatos propostos para este outro tipo de substância são descartados sem hesitação, a saber, as Idéias e os números, mas Aristóteles não pretende descartar qualquer candidato a substância não sensível; ao contrário, seu inteiro sistema depende crucialmente de poder estabelecer a existência de uma substância de natureza outra que a sensível.

Como, porém, estabelecer a existência de uma substância de outra natureza? Não há outro caminho a não ser partir do que é aceito por todos como substância; a partir unicamente daqui pode-se elaborar uma doutrina geral da substancialidade. Feito isto, se for compatível com os resultados obtidos em uma teoria geral da substância e houver razões para expandir o campo da substancialidade para além do que é dado pela sensação, é sensato então postular a existência de uma substância de outra natureza. Aristóteles pensa ter razões fortes para expandir o campo da substancialidade, se assim for permitido: para ele, a eternidade ordenada do movimento não pode ser explicada a não ser apelando a uma substância de outra natureza que a sensível. Quais são, porém, as substâncias a respeito das quais todos nós concordamos e que servem assim de ponto de partida da investigação? São precisamente as substâncias sensíveis: “a substância parece pertencer de modo mais óbvio aos corpos (por isso dizemos ser substância os animais, as plantas e suas partes, os corpos naturais, como o fogo, a água, a terra e similares, e o que for parte ou constituído por eles, ou de alguns ou de todos, como o céu e suas partes, as estrelas, a lua e o sol)” (Z 2 1028b8-13); “são ditas de comum acordo substâncias as naturais, como o fogo, a terra, a água, o ar e todos os outros corpos simples, em seguida as plantas e suas partes, e os animais e as partes dos animais, e, por fim, o céu e as partes do céu” (H 1 1042a7-11)4. Investigando a natureza da substância sensível, o livro Z almeja

4 O mesmo ponto é defendido em L 1 1069a30-33, mas com problemas na

transmissão do texto, como atesta a repetição de hJ d j aji?dio~; de qualquer modo, h}n pavnte~ oJmologousin refere-se à substância sensível em geral (pseudo-Alexandre e

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decidir a respeito da possibilidade de uma substância de outro tipo, ao mesmo tempo em que fecha a porta a candidatos como Idéias e números.

É claro que a definição das substâncias sensíveis, aquelas a respeito das quais estamos todos de acordo5, mencionará, de um modo ou de outro, elementos materiais requeridos necessariamente para a existência destas substâncias. Para poder dividir de tal modo, a serra deverá ter dentes e estes dentes deverão ser de ferro ou de material similar; tudo isto é verdade, mas constitui uma platitude metafísica. O ponto de Aristóteles, ao contrário, consiste em pôr em realce que, embora o necessário figure por certo como matéria em uma definição, mesmo nas substâncias sensíveis a matéria em nenhum sentido condiciona a identidade do objeto6. De fato, a matéria é condicionada e comandada pela forma ou fim, em função do qual são exigidos tais e tais requisitos materiais: como escreve na Física II 9, “este <o fim> é causa da matéria, mas não esta <a matéria> do fim” (200a33-34). E não poderia ser de outro modo. Se o elemento material prevalecesse e como que comandasse a identidade da coisa, a forma não sendo senão o resultado ou conseqüência das complexas estruturas materiais de algo – por exemplo, x teria as propriedades disposicionais F em função das complexas relações materiais que o condicionam e o constituem – , o livro Z deveria pôr de lado qualquer ambição relativa a outra substância que a sensível. Se a presença da matéria na definição da substância sensível sobrepujasse o elemento formal, de modo que ser F seria uma

Temístio, aliás, leram miva me;n aisqhthv, h}n pavnte~ oJmologou`sin, lição adotada por Bonitz).

5 Poder-se-ia pensar que esta estratégia teria por defeito eliminar de saída os platônicos, mas, tal como a concebe Aristóteles, eles estão expressamente incluídos entre os que aceitam que a substância sensível seja uma substância. Como escreve em L, os platônicos sustentam que os universais são mais substância do que os corpos (1 1069a26-27: ta; kaqovlou oujsiva~ ma`llon tiqevasin), mas não deixam de admitir que os corpos sejam também substância, ainda que em um grau inferior.

6 Distinguindo entre identidade, garantida pela forma, e unidade, fornecida pela matéria: dois corpos podem ser idênticos quanto à forma, mas, em função da descontinuidade material, constituem duas unidades de um mesmo F.

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conseqüência de ter tais matérias com suas propriedades – um complexo A, tendo sofrido modificações materiais conseqüentes, adquiriria então a forma B, a ponto de a forma se tornar superveniente às estruturas materiais e suas relações7 – a conseqüência seria que, por fim, o inteiro sistema aristotélico ruiria, pela simples razão que não mais se poderia postular a existência daquela substância à qual estão suspensos o ceú e toda a natureza, ejk toiauvth~ a[ra ajrch~ h[rthtai oJ

oujrano;~ kai; hJ fuvsi~ (L 7 1072b13-14). Valendo-se do exemplo da sílada, o que em grego tem um efeito muito mais forte do que em português, pois stoiceion designa tanto a letra como, em sentido mais geral, o elemento (material), Aristóteles insiste que a sílaba BA não se reduz aos elementos B e A, tampouco a estes elementos em uma ordem, B e A, e não A e B, mas é o resultado obtido com os elementos B e A organizados e condicionados pela forma, que então tomam a ordem BA, formando a sílaba. A forma não é, por sua vez, um novo elemento além de B e A, tampouco se reduz a uma simples ordem destes elementos, mas é a causa de B e A formarem a sílaba BA na ordem em que se encontram. Lá onde parece prevalecer, aí mesmo a matéria está condicionada e comandada pela forma: é esta a lição principal do exame das substâncias sensíveis ao longo do livro Z.

Ao assim distinguir metafisicamente a forma da matéria no interior das substâncias sensíveis, aquelas a respeito das quais estamos todos de acordo, Aristóteles abre caminho ao reconhecimento de uma substância de outra natureza que a sensível. Havendo razões para postular uma substância que seja puro ato, sem nenhuma potência ou matéria, isto pode agora ser feito, pois não há mais incompatibilidade com a doutrina da substância, visto que, nesta, o princípio

7 Aristóteles, por outro lado, admite que ocasionalmente uma situação deste tipo

ocorra, e.g. na geração espontânea: tal matéria, que é a matéria de tal inseto, é posta em movimento pelo calor e este é o movimento que daria a ela a forma, se lhe tivesse sido transmitida. No entanto, isso ocorre ocasionalmente, não servindo de regra para a geração animal. No que diz respeito aos seres inanimados, o elemento material predomina e o em vista de é minimamente visível, lá onde predomina a matéria (Meteor. IV 12 390aj4-5: to; ga;r ou| e{neka h{kista ejntau`qa dh`lon, o{pou dh; plei`ston th`~ u{lh~), mas isso jamais elimina totalmente o elemento formal, pois mais que possa atenuá-lo.

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formal foi distinguido do material em termos tais que um é causa do outro, ainda que, no que toca às substâncias sensíveis, não possam existir separadamente. Obviamente a distinção não é física; em nenhum sentido, para ficar com o exemplo da sílaba, você pode separar a forma como você separa B de A. Aristóteles costuma dizer que a forma das substâncias sensíveis é cwristo;n tw/

lovgw/. Para uma substância sensível, a forma é separável, cwristovn; a terminologia muda, porém, quanto se trata da substância não sensível, pois, como ato puro, ela é separada, kecwrismevnh. A substância não sensível é a única que satisfaz propriamente a condição da separação, que é satisfeita de modo condicionado pela forma das substâncias sensíveis. A cláusula restritiva a respeito das substâncias sensíveis é, em grego, tw/ lovgw/. Isto parece indicar que a separabilidade da forma no tocante a estas substâncias está condicionada à capacidade racional de exprimi-la proposicionalmente. Talvez devamos mesmo tomar a expressão aristotélica ao pé da letra: é pela definição, tw/ lovgw/, que a forma se evidencia, pois é unicamente no contexto da definição que ela se manifesta separadamente. A substância não sensível, por outro lado, é separada plenamente, sem nenhuma cláusula restritiva.

Sem nenhuma cláusula restritiva, certamente, mas não sem nenhuma condição. A forma não é somente declarada, na Metafísica, substância; ela é dita ser substância primeira relativamente à matéria e ao composto de forma e matéria. Isto é uma diferença considerável com respeito ao tratado das Categorias. Neste tratado, o indivíduo é tomado como substância primeira, da qual tudo o mais depende, não somente os acidentes que inerem a ela, mas também as substâncias segundas, que não estão nela, mas são ditas dela. A espécie e o gênero são substâncias segundas, a espécie sendo mais substância que o gênero por estar mais próxima do que este da substância primeira. A reformulação que encontramos na Metafísica é notável, pois não somente a forma, que corresponde à noção de espécie nas Categorias, toma o posto do indivíduo como substância primeira, como também o gênero, que antes era substância a título segundo, é retirado por inteiro do campo da substancialidade. Em Z 3, é afirmado que, se a forma for anterior e tiver mais ser que a matéria, pela mesma razão ela será

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anterior e, subentende-se, terá mais ser que o composto (1029a5-7). A afirmação é governada por um se, mas não parece haver dúvidas que a forma é anterior e tem mais ser que a matéria, a apódose estando portanto garantida8. Assim, a forma, ao servir de vicário para uma substância de outra natureza, é um vicário robusto, pois o é, no campo da substância sensível, a título de substância primeira, ainda que só exista de modo imanente ao composto.

No entanto, é importante observar que a forma não é vicária para qualquer substância não sensível. Aristóteles navega, na verdade, por entre dois escolhos. De um lado, ele precisa assegurar, no interior da doutrina geral da substância, que haja um lugar para uma substância de outra natureza; de outro, contudo, tem de evitar que este lugar seja ocupado por certos candidatos, as Idéias e os números, propostos pela escola platônica como substâncias não sensíveis que são mais substância que as sensíveis e que rondam com insistência a nova metafísica. Ao examinar a natureza da substância sensível, a forma serve de vicário à substância não sensível, mas ao mesmo tempo este exame introduz condições que não podem ser satisfeitas pelas Idéias ou números como candidatos ao posto de substância não sensível. Com efeito, em algum sentido deve haver uma conexão entre as duas regiões9. Aristóteles encontra esta conexão na propriedade do

8 No entanto, deve-se observar que, segundo Ab, o comentário de pseudo-

Alexandre e a correção da segunda mão em E, teríamos como texto que, se a forma for anterior e tiver mais ser que a matéria, pela mesma razão o indivíduo será anterior e, subentende-se, terá mais ser que a matéria, o que dá uma lição bem diferente (retomada algumas linhas abaixo, em 1029a29-30: dio; to; ei\do~ kai; to; ejx ajmfoi`n oujsiva dovxeien a]n ei\nai ma`llon th`~ u{lh~, “por isso a forma e o composto parece serem mais substância do que a matéria”).

9 Também a Metafísica de Teofrasto designa como problema (apresentado em primeiro lugar neste texto) o de saber se “há uma certa conexão e como que uma comunidade entre os objetos inteligíveis e os da natureza ou se não há nenhuma, mas cada um é separado, operando conjuntamente, porém, de algum modo, em direção a uma única substância” (4a9-13). A resposta é pela primeira opção; a segunda é atribuída a Speusipo e sua metafísica episódica, comparada a uma má tragédia em N 3 1090b20. Ao proceder deste modo, Aristóteles obedece à injunção de Parmênides, que, no diálogo homônimo de Platão, caracterizava como o quarto e mais decisivo problema o

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movimento ou mudança, que caracteriza, em geral, a substância sensível. A substância não sensível, puro ato, é o princípio último do movimento das substâncias sensíveis a título de motor imóvel; explicar por que, no mundo sensível, certas coisas estão em movimento e outras em repouso requer apelar, em última instância, a uma substância de natureza não sensível que funciona como o motor imóvel para as sensíveis10. O apelo a uma substância não sensível fica assim condicionado a sua capacidade de explicar o movimento no mundo sensível. Ora, como Aristóteles reiteradamente enfatiza, nem as Idéias nem os números podem servir de princípios explicativos do movimento, o que os elimina como bons candidatos a substância não sensível.

Convém igualmente observar que o próprio vocabulário aristotélico preserva esta situação de vicariato que a forma tem em relação à substância não sensível. A forma, to; ei\do~, é bem susbtância primeira enquanto substância de uma substância, (Z 3 1028b35: oujsiva eJkavstou). Como ei\do~ designa também a espécie, Aristóteles não raramente a exprime pela noção de qüididade, to; tiv h\n

ei\nai (cf. Z 7 1032b1-2: ei\do~ de; levgw to; tiv h\n ei\nai kai; th;n prwvthn oujsivan, “entendo por forma a qüididade, isto é, a substância primeira”). A forma, porém, é de separar o mundo ideal do sensível, de modo a ter lá Idéias às quais nada correspondesse aqui (Parm. 133b-135c).

10 O argumento, como se poderia esperar, é bastante complexo, envolvendo, entre outras, a distinção, no interior da substância sensível, entre substância passível de corrupção e substância eterna (os corpos celestes, compostos de éter), de modo que o motor imóvel funciona como causa (final) do movimento das esferas celestes, e estas, notadamente pela do sol, são a causa da geração e corrupção no mundo sensível em função da rotatividade das estações. O imóvel é causa assim das mais extravagantes mudanças no mundo sub-lunar, mas unicamente por intermédio do movimento circular das esferas celestes. Ao mesmo tempo, isto determina uma pluralidade de substâncias não sensíveis, uma vez que cada esfera tem seu próprio motor, segundo uma certa ordem, na qual o motor imóvel da primeira esfera tem prioridade em relação aos outros. L 3 introduz a distinção entre substâncias corruptíveis e eternas e L 8 condiciona o número de motores imóveis ao das esferas, que, segundo o astrônomo Callipo, são em número de 55. Sobre isso, ver a discussão recente conduzida por M. Frede em Aristotle’s Metaphysics Lambda, Oxford 2000, ed. M. Frede e D. Charles, pp. 1-80.

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sempre forma de um composto, sendo imanente a algo que tem uma matéria do qual é feito. Quando se refere à substância não sensível, Aristóteles não mais se serve do termo ei\do~, mas diz ou bem atualidade, ejnevrgeia, ou primeiro motor, to;

prwton kinoun. De algum modo, embora a forma sirva de vicário a esta outra substância, sua própria noção parece por demais ligada a certas condições materiais de existência a ponto de o termo não ser aplicado à substância não sensível. De todo modo, não se deve, penso, pôr demasiado peso a este cuidado teminológico. A forma imanente das substâncias sensíveis também é, por vezes, designada por ejnevrgeia. A alma, que é substância a título de forma de um certo composto, o ser animado, é preferencialmente apresentada como enteléqueia, ejntelevceia, sem que isso em nada afete seu estatuto de forma imanente. No mesmo diapasão, a categoria da substância é tripartida em forma, matéria ou composto (cf. De anima II 1 412a6-9), e isto parece valer para toda substância, seja ela sensível ou não sensível; como esta última não possui matéria, resta-lhe somente a rubrica de forma. Mais importante, parece-me, é uma outra assimetria que está ligada a este cuidado terminológico. A forma é separável pela razão, cwristo;n tw/ lovgw/, enquanto a substância não sensível é separada, kecwrismevnh, como observei acima. Como a forma é separável da matéria, pode-se pensar que a separabilidade atribuída sem restrição à substância não sensível também se refira à matéria: ela seria uma forma sem nenhuma matéria. No entanto, em duas passagens Aristóteles completa sua expressão, e em ambas é afirmado que a substância não sensível é separada das substâncias sensíveis (Z 17 1041a8-9: kecwrismevnh twn aijsqhtwn; L 7 1973a4: kecwrismevnh twn aijsqhtwn). Na verdade, o complemento é outro. Enquanto a forma é sempre imanente ao composto, a substância não sensível é transcendente em relação às substâncias sensíveis. Ela é transcendente, ainda que mantenha certa conexão com o mundo sensível. Em L 10, Aristóteles se vale da comparação com um exército: o general é distinto e separado do exército, mas, na medida em que o exército mantém a ordem que ele lhe impôs, de algum modo se não o chefe, pelo menos a chefia está presente no exército. A substância não sensível não está no mundo sensível,

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mas seus efeitos são de algum modo visíveis em nosso mundo. O cuidado terminológico de Aristóteles favorece a afirmação de transcendência.

No que segue, gostaria de mostrar algumas estratégias de que Aristóteles se vale no livro Z para pôr em realce a forma enquanto cwristo;n tw/ lovgw/, separável pela razão no domínio da imanência, mas servindo de vicário à transcendência. Não tenho nenhuma pretensão à exaustão, e talvez as estratégias que apresentarei aqui não sejam nem mesmo as mais importantes para preservar a possibilidade de uma substância separada com base em um exame metodologicamente restrito às substâncias sensíveis. Contento-me em assinalar que todas elas convergem a um mesmo ponto, a saber: substâncias sensíveis obviamente estão envolvidas com a matéria e suas definições devem em algum sentido dar evidência disso, mas mesmo aqui a forma garante sua autonomia ao mostrar-se como princípio da identidade F para todo x¸ na medida em que, como causa do ser F para x, ela condiciona e governa a materialidade da substância. Isto é tudo o que Aristóteles deve obter em um exame da substância sensível com vistas a uma doutrina geral da substancialidade que preserve a possibilidade de uma substância não sensível.

Para iniciar, voltemos à crítica que Aristóteles faz da proposta de Sócrates o jovem relativamente às definições de objetos. O que escapa a este filósofo, ao propor que a definição de homem deveria seguir o padrão exemplificado pela definição do círculo (na qual não entra nenhum elemento material), é que, enquanto o círculo pode existir sem matéria, o homem não pode, pois ele é uma substância sensível e não matemática ou inteligível, como o círculo. Para Aristóteles, na medida em que o homem é um ser sensível, “não pode ser definido sem referência ao movimento e por isso tampouco sem as partes em uma certa relação” (Z 11 1036b29-30: a[neu kinhvsew~ oujk e[stin oJrivsasqai, dio;

oujd j a[neu twn merwn ejcovntwn pwv~). Vou fixar minha atenção inicialmente na primeira parte de sua observação, a[neu kinhvsew~ oujk e[stin oJrivsasqai, não pode ser definido sem referência ao movimento. Deve-se observar que Aristóteles bem poderia ter dito que não pode ser definido sem referência à matéria, mas escolheu dizer sem referência ao movimento. Aristóteles usa por vezes movimento no sentido geral de ser

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afetado e, se for este o sentido aqui, parece claro que o que pode ser afetado faz menção à matéria, pois é ela unicamente que recebe as afecções. Tudo isto é verdade, mas penso que devemos ficar atentos ao fato que Aristóteles preferiu não dizer matéria e sim movimento. Talvez esta escolha seja significativa, ou mais significativa do que aparenta à primeira vista. Em uma passagem similar a esta, na qual compara definições de objetos matemáticos com as de seres sensíveis, Aristóteles escreve o seguinte: “é possível definir o par e o ímpar, o reto e o curvo e, ademais, número, linha e figura sem movimento (a[neu kinhvsew~), mas não é mais possível carne, osso e homem – ao contrário, estas coisas são ditas como o nariz adunco, não como o curvo” (Phys. II 3 194a3-7). Novamente, Aristóteles não disse sem matéria, mas sem movimento. É pouca coisa, o sei, mas talvez seja significativo. Por quê? Porque, ao definir e.g. homem como animal racional, estou enunciando qual é sua função própria – viver segundo a razão ou não sem razão – sem, contudo, introduzir elementos materiais no definiens. Se é animal racional, deve ter sensação, pois o pensamento em um ser sensível depende das imagens obtidas pela sensação; se tem sensação, tem os órgãos correspondentes, e assim por diante, o que obviamente supõe a matéria, mas nada disso aparece explicitamente na definição como a matéria comparece na de nariz adunco: concavidade na carne. Aparentemente, o modelo do adunco é mais restritivo do que se gostaria. Ele exige que não se possa definir a[neu u{lh~, ao passo que Aristóteles parece estar satisfeito em afirmar que em geral não se pode definir as substâncias sensíveis a[neu kinhvsew~.

Se a definição não pode ser sem movimento, a[neu kinhvsew~, segue-se com certeza que um tal ser, e.g. o homem, não pode existir sem a matéria, mas ela não está tão flagrantemente na definição como está no caso do adunco – e mesmo talvez só esteja de esguelha. Passo agora à segunda parte da afirmação de Aristóteles: dio; oujd j a[neu twn merwn ejcovntwn pwv~, por isso tampouco sem as partes em uma certa relação. Aparentemente, isto é muito mais forte do que afirmar que a definição deve conter matéria, pois se estaria dizendo que não é possível definir o homem sem as partes em uma certa relação. Não se trataria, por conseguinte, de somente mencionar a matéria – carne, osso e assim por diante –, mas de as

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mencionar em uma certa relação – por exemplo, o coração, que se forma primeiramente com o feto, tem tal relação com outros órgãos e assim por diante. Definir o homem implicaria não somente alçar a matéria ao corpo da definição, mas também explicitar as relações entre as partes materiais constitutivas do objeto, o que certamente não pode ser feito de esguelha ou implicitamente. No caso do homem, para exemplificar, seria necessário apresentar as relações entre os principais órgãos, o primeiro dos quais sendo o coração. Ora, se é bem verdade que o conhecimento físico dos animais leva ao detalhamento de suas partes e suas relações, nada parece, contudo, corresponder, na obra de Aristóteles, a uma exigência tão forte quanto à definição de animais. Mais ainda, enquanto na primeira parte Aristóteles como que alivia a presença da matéria escrevendo em seu lugar movimento, na segunda parte ele definitivamente a robusteceria, obrigando não somente a mencionar a matéria, mas também a relatar certas relações entre as partes no interior mesmo da definição.

Parece natural subentender o mesmo verbo (definir) na segunda parte, mas talvez isso não seja obrigatório em função do contexto. Na comparação proposta por Sócrates o jovem, tratava-se de justificar a afirmação que se pode definir o círculo sem referência à matéria alegando que ele, enquanto inteligível, existe sem matéria. Em 1036b35-37a7, Aristóteles considera uma segunda resposta: o ponto agora é que, embora seja definido sem menção à matéria, todo círculo existe na matéria. É verdade que o círculo não é um ser sensível, como o é o homem, mas talvez isso não mude nada, h] oujqe;n diafevrei (1036b35), pois o círculo não existe sem matéria, embora seja uma matéria inteligível (1037a4-5: e[sti ga;r u{lh hJ me;n

aijsqhth; hJ de; nohthv). Não quero discutir aqui a respeito da matéria inteligível, se ocorre em Aristóteles e qual seu papel; o ponto é, nitidamente, que, se o círculo (matemático) não existe sem matéria sensível, então sua matéria só pode ser a inteligível. Aristóteles apresentou duas respostas, sem nos dizer à qual recaía sua preferência (ao que tudo indica, é à primeira, mas a passagem não permite decidir). O que me interessa ressaltar aqui é que se trata claramente, nesta segunda resposta, de transitar entre o modo de definição e as condições de existência. Antes, Aristóteles tentou barrar a conclusão alegando que a definição

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de homem envolve menção ao movimento; agora, parece disposto a dizer que, mesmo que não envolva, não se segue daí que possa existir sem matéria, pois tampouco pode o círculo, desde que se introduza a noção de matéria inteligível. Do mesmo modo como é parte do homem individual o braço, assim também é parte do círculo (matemático) individual o semicírculo, mas nem o braço está na definição de homem nem o semicírculo na de círculo. Esta segunda resposta consiste em assinalar que a comparação não era boa já de início, pois do fato de ser definido sem menção à matéria não se segue ainda que o círculo exista sem matéria (inteligível). Então talvez também na primeira resposta se tratasse do problema não somente da definição, mas sobretudo da passagem do modo de definição às condições de existência. Se for isso, então, para Aristóteles, o homem “não pode ser definido sem referência ao movimento e por isso tampouco <pode existir> sem as partes em uma certa relação”. A segunda condição, a da relação das partes, muito mais forte do que a exigência de uma menção ao movimento, não estaria vinculada ao modo de definição, mas às condições de existência.

Muito provavelmente, para o adunco ou a soleira, a menção à matéria é decisiva, mas a matéria figura somente de esguelha em outras substâncias, como o homem. Isto, por si só, já seria capaz de descolar a forma da matéria no campo da substância sensível, preparando assim o terreno para uma substância de outra natureza. Parece, porém, que há alguma coisa a mais aqui. Com efeito, gostaria de sugerir que o fato de Aristóteles ter condicionado a definição da substância sensível à menção não propriamente da matéria, mas mais especificamente do movimento, está ligado ao fato que o descolamento da forma da matéria, de modo a preservar um espaço para uma substância de outra natureza, não deixa, contudo, de introduzir uma exigência que tem de ser satisfeita por um tal substância. Esta exigência, como havíamos visto, que permitirá justamente conectar o universo inteiro de modo não episódico, era sua capacidade de explicar o movimento das substâncias sensíveis. Não é qualquer substância não sensível que pode cumprir este papel – notoriamente, Idéias e números são incapazes de fornecer uma explicação satisfatória para o movimento das substâncias sensíveis. Não parece

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assim gratuita a afirmação do movimento, e não da matéria, como elemento da definição das substâncias sensíveis, tanto em Z 11 como em Phys. II 3.

Volto-me agora a uma outra estratégia que, quer-me parecer, vai na mesma direção. Nada impede de nos referirmos a homem como composto de forma e matéria, a matéria não sendo tomada individualmente, como o é no caso de Sócrates, mas universalmente (Z 10 1035b29-30: suvnolovn ti ejk toudi; tou lovgou

kai; thsdi; th~ u{lh~ wJ~ kaqovlou; 11 1037a6-7: oJ d j a[nqrwpo~ h] to; zw/on to; ejx

ajmfoin wJ~ kaqovlou). Não se trata, portanto, de um indivíduo, mas de um modo geral de ser da união de forma e matéria. Não é esta matéria, a carne de Sócrates, mas a carne em geral; e, no limite, é carne e similares, isto é, tudo o mais que materialmente pode substituir a carne sem comprometer as funções realizadas. Isto fica mais evidente no caso da serra: seus dentes são de ferro ou do que mais puder realizar sua função, como o aço. Não há nada de excepcional neste procedimento, pois costumamos introduzir elementos materiais em nossas definições de substâncias sensíveis. Ao proceder assim e definir o homem como tal forma, a alma, em tal corpo, tomo certas partes a título universal. Algumas delas são simultâneas à vida, como o coração ou o cérebro, havendo óbvio proveito do ponto de vista do conhecimento natural, pois faço então a descrição típica do estudioso da natureza.

Não há nada de excepcional nisto, repito; o que é notável é que Aristóteles declara então que homem assim tomado é por certo um universal, mas não é substância (10 1035b28-29: kaqovlou dev, oujk e[stin oujsiva). O que é assim aplicado a vários indivíduos (1035b28: ta; ou{tw~ ejpi; twn kaq j e{kasta) difere, pois, tanto do indivíduo quanto da forma: os dois últimos são substâncias, mas não o primeiro. O indivíduo continua a ser na Metafísica o que ele já era no tratado das Categorias: substância. É bem verdade que, lá, ele era substância primeira, enquanto aqui, na Metafísica, o composto de matéria e forma tomado individualmente aparece somente como substância. A forma, por sua vez, ganha inegavelmente o estatuto de substância na Metafísica, e mesmo o de substância primeira: ora, quando anexamos à forma uma matéria tomada universalmente, não estes órgãos de Sócrates, mas os órgãos em geral, o resultado é que o que era substância

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(primeira), a forma, torna-se agora por certo um universal, mas perde o título de substância. No entanto, à primeira vista não estávamos fazendo senão o desdobramento da própria definição da substância homem. Se o acréscimo de matéria aqui fosse similar ao de branco, então seria fácil compreender por que tal composto perde o título de substância. Aristóteles ilustra este caso dando à noção composta homem branco o nome simples de veste (iJmavtion, Z 4). Sob a aparência de um termo simples, o nome esconde um complexo em que um acidente se une ao sujeito, o que não constitui uma unidade como o é a substância. A composição é feita mediante uma atribuição acidental, sob o signo da alteridade e, lá onde há alteridade, aí não há mais qüididade (Z 4 1030a3-4: o{tan d j a[llo kat j a[llou

levghtai, oujk e[stin o{per tovde ti). No entanto, o que exclui agora o composto a título universal do campo da substancialidade não é uma união acidental, mas justamente a explicitação daqueles elementos materiais sem os quais o homem não pode existir, quando tomados universalmente. Se o ponto de Aristóteles consistisse em incluir simplesmente na definição a matéria a título do necessário, esta exclusão ganharia o ar de espesso mistério, pois ela ocorre justamente ao se tomar a matéria universalmente, que é o modo próprio de incluí-la na definição11.

Uma terceira estratégia pretende igualmente descolar matéria e forma no exame da substância sensível, somente desta vez insistindo mais sobre um papel digamos assim positivo da forma do que sobre o fator negativo da matéria, que, quando anexada à forma a título universal, a faz decair do campo da substancialidade. A argumentação do livro Z é interrompida pelos capítulos 7-9, que tem por tema o exame da geração das substâncias sensíveis. No entanto,

11 Esta dificuldade está ligada a uma outra, mais geral, que é apresentada em toda

sua força em Z 13, a saber, a tese aristotélica segundo a qual nenhum universal é substância. Isto obviamente põe um problema a respeito do modo como compreendemos a forma, pois ela não pode ser um universal, ou não simplesmente um universal, visto ser substância (e não qualquer substância, mas substância primeira). Não posso aqui examinar esta dificuldade, que é central para a reconstrução da doutrina aristotélica da substância; limito-me a observar que sua solução condiciona e está condicionada pela do problema exposto da forma conjugada à matéria tomada universalmente.

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estes capítulos têm uma contribuição importante, a saber, demonstram que, na geração, unicamente o indivíduo é gerado, a forma e a matéria preexistindo à geração. Esta conclusão é obtida em Z 8 1033b16-19 e repetida em Z 15 1039b20-27 e H 5 1044b21-24. A importância deste grupo de capítulos é que tal resultado dá à forma uma certa preeminência, ainda que preexistir à geração não acarrete preexistir ao composto. Na verdade, Aristóteles não quer nem pode ter um resultado tão forte, preexistência ao composto; tudo o que ele precisa, e que ele consegue ao longo destes capítulos, é ressaltar a preeminência da forma na medida em que ela, ainda que sempre imanente ao composto, preexiste à geração do composto. Ela é a forma do pai, que a transmite ao filho e, em ambos os casos, é imanente ao composto, mas, em um sentido metafísico relevante, unicamente o composto (o filho) é gerado, a forma (e a matéria) preexistindo à geração. Um outro modo de assinalar tal preeminência é mostrar que a forma é eterna, enquanto o composto é gerado e perece, somente se alçando à eternidade na figura da espécie. Em H 3 os dois pontos são conectados, pois lá é dito que a forma é eterna, pois vem-a-ser sem gerar-se: preexistindo ao composto, que é gerado, ela é simultânea a ele sem passar por um processo de geração, e é isto o que quer dizer eternidade para a forma das substâncias sensíveis (com efeito, um dos sentidos de eterno é não passar por processo de geração). Não se trata de retirar a forma do composto ao qual é imanente, mas de ressaltar a sua preeminência e, deste modo, descolá-la da matéria, à qual, contudo, está inevitavelmente acoplada do ponto de vista da existência.

O que indicam estas diferentes estratégias? Em primeiro lugar, que o livro Z é composto por diferentes linhas argumentativas, o que lhe dá um certo ar de colcha de retalhos, como já observaram vários comentadores12. Porém, estas linhas todas parece convergirem a um mesmo ponto: substâncias sensíveis são nosso ponto de início e estão, como é manifesto, inevitavelmente conjugadas à matéria, o que de algum modo tem de transparecer na definição; no entanto,

12 Dos quais o último em data é o notável livro de Myles Burnyeat, A Map to

Metaphysics Zeta, Mathesis Publications 2001. Ver também, a este respeito, M. Frede e G. Patzig, Aristoteles Metaphysik Z, 2 vols, Munique 1988.

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mesmo em um domínio marcadamente material e corporal, a forma se sobressai, ganhando uma preeminência talvez discreta, mas suficiente para servir de vicário a uma outra substância, esta existindo de fato separada. As linhas argumentativas do livro Z convergem a este ponto, e isto parece razoável: se é ambição do livro Z estabelecer uma doutrina da substância que torne possível a existência de uma substância de outra natureza que a sensível, ele não poderia fazer da presença da matéria na definição das substâncias sensíveis, aquelas a respeito das quais todos estamos de acordo, um motivo para o esmaecimento da forma. Ao contrário, é fundamental, por entre o que é condição necessária ou sine qua non, a marca da matéria, encontrar intacta a forma que a governa e comanda. Por outro lado, o que é assim tornado possível não é a existência de qualquer substância não sensível, mas somente daquelas a que devemos apelar para explicar o movimento. Assim, a referência ao movimento na definição das substâncias sensíveis tem o duplo papel de, um lado, remeter às condições materiais de existência destas substâncias, ao mesmo tempo em que, de outro lado, exprime a condição que deve ser satisfeita por todo candidato a substância não sensível.

Os diferentes fios, ou estratégias, do livro Z são reunidos no capítulo final, Z 17, no qual a forma é apresentada como ai[tion prwton tou ei\nai, causa primeira do ser. A este título, ela é aquilo que faz com que x, composto desta matéria aqui, seja um F, sem ser ela própria matéria ou feita de matéria. Deste modo, consegue-se alimentar a esperança peri; ejkeivnh~ th~ oujsiva~ h{ti~ ejsti;

kecwrismevnh twn aijsqhtwn oujsiwn, a respeito daquela substância que é separada das substâncias sensíveis (1041a8-9). Os capítulos anteriores de Z, com suas diferentes estratégias, mostraram que a forma (das substâncias sensíveis) não se reduz à matéria, sendo ao contrário o que coordena e comanda a matéria. Em Z 17, a forma é declarada um algo, tiv, a inscrição mais neutra para a ontologia, mas é este algo que, por mais tênue que seja, permitirá mais tarde, no livro L, expandir o campo da substancialidade para além da substância sensível, pois isto não é incompatível com os resultados do tratado da substância, realizado pelo livro Z. Se há alguma relevância metafísica no realce dado à matéria pelo estudo da substância sensível ao longo do livro Z, trata-se da imposição de uma limitação à

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Forma, Matéria e Definição na Metafísica de Aristóteles 299

expressão ai[tion prwton tou ei\nai: esta expressão não designa uma substância transcendente que daria ao mundo não suas propriedades, mas a existência, tornando-o enfim real, mas, ao contrário, indica somente aquilo que é a causa imanente de x ser F, isto é, deste composto aqui de matéria ter as propriedades que possui. A forma é, neste sentido, para escrever a fórmula completa, ai[tion

prwton tou a ei\nai A, causa primeira de x ser F, algo que, no domínio sensível, é sempre imanente ao composto, mas que não se reduz à matéria nem a um composto de matéria. Reconstruindo-se a sintaxe inteira da expressão, obvia-se o escolho da fonte transcendente de existência; ao distinguir-se claramente a forma da matéria, é como que preservado um lugar para uma outra substância, esta sim transcendente. A substância não sensível, por sua vez, não é referida, no vocabulário aristotélico, pelo termo forma, embora justamente a forma (dos compostos) tenha funcionado de vicário para ela. Este detalhe terminológico pode parecer uma mera curiosidade, mas talvez não chamar a substância transcendente de forma tenha a vantagem de servir de lembrança às leituras que buscavam borrar os limites entre as regiões do universo em nome de uma fundação direta do sensível no supra-sensível que há por certo deuses no cosmo, mas eles estão muito distantes.

Abstract: The main issue of this paper is to study the role form and matter have in defining sensible substances in order to build a general theory of substance which allows for the existence of some non-sensible substances. Although this kind of inquiry must begin with sensible substances, for they are accepted by everyone as substances, it cannot restrain itself to its conditions of existence; somehow, it must point to the the transcendence of non-sensible substances within the very limits of the form of sensible substances.

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