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FILOSOFIA, RECONHECIMENTO E DIREITO

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FILOSOFIA, RECONHECIMENTO

E DIREITO

Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 2

UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PELOTAS

Chanceler

D. Jayme Henrique Chemello

Reitor

Alencar Mello Proença

Pró-Reitora de Graduação

Myriam Siqueira da Cunha

Pró-Reitora de Pós-Graduação, Pesquisa e Extensão

Vini Rabassa da Silva

Pró-Reitor Administrativo

Carlos Ricardo Gass Sinnott

EDUCAT - EDITORA DA UCPel

Editor

Wallney Joelmir Hammes

CONSELHO EDITORIAL Wallney Joelmir Hammes- Presidente

Lino de Jesus Soares

Luciano Vitória Barboza

Luiz Roberto Bitar Real

Vilson José Leffa

EDUCAT

Editora da Universidade Católica de Pelotas - EDUCAT

Rua Félix da Cunha, 412

Fone (53)3284.8297 - FAX (53)3225.3105 - Pelotas - RS - Brasil

Filosofia, Reconhecimento e Direito 3

AGEMIR BAVARESCO

MANUEL MOREIRA DA SILVA

Organizadores

FILOSOFIA, RECONHECIMENTO

E DIREITO

EDUCAT Editora da Universidade Católica de Pelotas

Pelotas – 2006

Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 4

© 2006 Agemir Bavaresco, Manuel Moreira da Silva

Direitos desta edição reservados à

Editora da Universidade Católica de Pelotas

Rua Félix da Cunha, 412

Fone (53)3284.8030 - Fax (53)3225.3105

Pelotas - RS - Brasil

E-mail: [email protected]

Loja virtual: http://educat.ucpel.tche.br

Editora filiada à ABEU

PROJETO EDITORIAL EDUCAT

EDITORAÇÃO ELETRÔNICA Ana Gertrudes G. Cardoso

CAPA

Valder Valeirão Ilustração da capa: Fontana di Trevi

Contra-capa: G. W. F. Hegel

F478 Filosofia, reconhecimento e direito / [organizadores] Agemir

Bavaresco, Manuel Moreira da Silva. – Pelotas : EDUCAT,

2006.

182p.

ISBN 85-7590-077-3

1. Filosofia – direito. 2. Direito – Filosofia. I. Bavaresco,

Agemir. II. Silva, Manuel Moreira

CDD 340.1

Ficha catalográfica elaborada pela bibliotecária Cristiane de Freitas Chim

CRB 10/1233

Filosofia, Reconhecimento e Direito 5

SUMÁRIO

Apresentação .............................................................................. 7

A. Eticidade e Intersubjetividade: observações acerca da

influência de Fichte sobre Hegel ...................................... 13 Erick Calheiros de Lima

1. Intersubjetividade e direito em Fichte ................................... 13

2. A crítica de Hegel na Differenzschrift: dois modelos de

intersubjetividade .................................................................. 23

3. Intersubjetividade e Einssein: o Naturrechtaufsatz ............... 38

B. Reconhecimento Intersubjetivo no Viés Jusfilosófico

de Hegel e Kojève .............................................................. 67 Agemir Bavaresco e Sérgio B. Christino

1. Do precário conceito de intersubjetividade dos modernos ... 71

2. Intersubjetividade e Reconhecimento em Hegel .................. 73

2.1 Nos primeiros Escritos .................................................. 73

2.2 Na Fenomenologia do Espírito ...................................... 80

3. Reconhecimento e Intersubjetividade no Esboço de uma

Fenomenologia do Direito de Kojéve ................................... 82

3.1 Questão metodológica ................................................... 82

3.1.1 A dialética hegeliana .......................................... 83

3.1.2 Monismo sim, monismo não .............................. 84

3.1.3 A dialética Kojèviana ......................................... 85

3.2 O desejo antropogênico ................................................. 87

3.3 Modelos de Direito, ou ideal de justiça, segundo

Kojéve ......................................................................... 95

3.3.1 A justiça da igualdade ou o Direito aristocrático 96

3.3.2 A justiça da equivalência ou o Direito burguês .. 99

3.3.3 A justiça da eqüidade ou o Direito cidadão ...... 102

Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 6

4. Modelos Metodológicos de Reconhecimento: do direito

subjetivo ao intersubjetivo ................................................ 108

C. O Idealismo Especulativo e o Problema da

Fundamentação Ético-Política da Mediação

Institucional e do Reconhecimento Intersubjetivo na

Filosofia Prática Contemporânea .................................. 117 Manuel Moreira da Silva

1. Posição do Problema ........................................................... 117

2.Limites e aporias de algumas considerações não-

especulativas em torno da mediação institucional e do

reconhecimento intersubjetivo ........................................... 127

1. O Realismo-naturalismo e a destranscendentalização

da Razão prática ............................................................ 131

2. O Idealismo relativo e a retranscendentalização da

Razão prática ................................................................ 139

3. Necessidade da Passagem a uma Concepção Especulativa

do Direito, Elementos para sua Retomada e

Desenvolvimento na Atualidade ......................................... 150

1. O que é o Especulativo puro? ....................................... 154

2. Nota sobre a Concepção especulativa do Direito e

sua atualidade ............................................................... 162

4. A guisa de conclusão: O Eu plural e a ordem normativo-

institucional ......................................................................... 176

Referências bibliográficas ...................................................... 178

Filosofia, Reconhecimento e Direito 7

Apresentação

Adentramos cada vez mais em um novo patamar da

existência humana, uma existência consciente não só de seus

próprios limites, mas também de estar para além dos mesmos, a

qual, contudo, ainda não é capaz de afirmar-se na plenitude da

efetividade espiritual que ela mesma se atribui. A dissolução do

Cosmos natural antigo e medieval, bem como da concepção

estritamente nomotética do Direito natural e da Antropologia

política nele fundada, aparece nos dias de hoje quase

completamente realizada; a sobrevivência desse Cosmos natural

em certas concepções atuais de algo como ―mundo da vida‖,

―formas de vida‖, etc., que dele ainda guardam resquícios, não

mais operam segundo o princípio de uma razão cósmica

abrangente e da comunidade ético-política que a reflete.

Outrossim, a fragmentação e os estilhaços da subjetividade

transcendental absolutamente fixada em si e por si mesma,

própria dos modernos e contemporâneos, bem como da

concepção estritamente hipotética de um Cosmos limitado à

transcrição matemática e da liberdade como reciprocamente

limitada, parecem estar em vias de perfazer a sua mais completa

aniquilação; portanto, levando às suas últimas conseqüências –

fazendo-a referir-se a si própria – a dissolução do Cosmos natural

por ela mesma instaurada. Isso, ainda que nos apareça como um

resultado meramente negativo, confirmando assim as posições

dos mais diversos niilismos, contudo, apresenta-se

positivamente; a saber, como resultado efetivo de um longo

processo de desenvolvimento espiritual que, como tal, só pode

ser compreendido em sua efetividade se o concebermos

especulativamente.

Eis aí o pano de fundo que, de certo modo, está na base e

constitui o estofo dos artigos que compõem a presente obra,

Filosofia, reconhecimento e Direito. São três estudos em torno

da concepção hegeliana do reconhecimento recíproco, os quais,

respectivamente, cada um a seu modo e os três em conjunto,

perfazem o arco e a envergadura mesma dessa que foi a primeira

tentativa de se pensar, em seu rigor histórico-sistemático, o lugar

e a função do que hoje se designa mediação institucional e

Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 8

reconhecimento intersubjetivo. Mais que isso, embora cada um

considere o problema do reconhecimento em Hegel, a partir de

um aspecto específico e sob um viés distinto, a unidade

sistemática do todo que no conjunto da presente obra se perfaz é

garantida: (1) pela exigência do tempo presente no que tange ao

repensamento de nosso lugar no Cosmos – mas não mais

subordinados a ele, como no caso do Cosmos natural antigo e

medieval e do Mundo representado moderno e contemporâneo –

e da reestruturação de nossa vida comunitária como seres

espirituais livres. (2) Pela tentativa mesma de retomar e

desenvolver, ainda que em esferas distintas, os próprios

princípios motores da Concepção especulativa do Direito – de

fato, apenas esboçada em Hegel no que respeita ao elemento

intersubjetivo – nos quadros de seu ponto de partida histórico-

sistemático, de sua retomada fenomenológica e de seu

desenvolvimento propriamente especulativo puro. O que, de

certo modo, levando-se em conta certa dialética de atração e

repulsão que salvaguarda a liberdade das orientações que

presidem cada um dos textos apresentados a seguir, se constitui

como uma verdadeira reproposição do que Hegel chamara ponto

de vista especulativo.

No primeiro artigo, ―Eticidade e Intersubjetividade:

observações acerca da influência de Fichte sobre Hegel‖, Erick

Lima procura delinear a influência da doutrina fichteana da

intersubjetividade, tal como apresentada na Grundlage des

Naturrechts [Fundação do Direito Natural] (1796-1797), sobre a

formação do conceito hegeliano de Sittlichkeit [Vida ética ou

Eticidade]. Partindo da relação entre a concepção de

intersubjetividade e a filosofia social de Fichte, o autor expõe a

seguir a crítica do jovem Hegel ao conceito fichteano de

Comunidade política – onde, para Hegel, se conflitariam duas

concepções distintas em torno da Intersubjetividade – e,

finalmente, nos apresenta uma importante análise da famosa

crítica de Hegel à concepção do Direito em Fichte.

Respectivamente, Lima discute aí o chamado Differenzschrift

[Escrito da Diferença], de 1801, onde Hegel tematiza o sistema

fichteano da filosofia a partir de seu confronto com o de

Schelling, e o Naturrechtsaufsatz [Artigo sobre o Direito

Filosofia, Reconhecimento e Direito 9

Natural], publicado no Kritisches Journal der Philosophie

[Jornal Crítico de Filosofia] de 1802-1803; nesse artigo, tendo

como pano de fundo o próprio desdobramento de sua concepção

do Absoluto apresentada no Differenzschrift – a Identidade da

identidade e da não-identidade – Hegel lança mão de uma crítica

das tradições empirista e formalista do Direito natural moderno, a

fim de revelar a suprassunção de ambas como preâmbulo ao

delineamento do processo de auto-diferenciação do Absoluto no

plano de sua vida ética efetiva. Lima termina seu artigo

explicitando alguns pressupostos de sua leitura do

Naturrechtaufsatz, notadamente a subseqüente integração da

teoria fichteana da intersubjetividade operada por Hegel no

System der Sittlichkeit [Sistema da Vida Ética].

No segundo artigo, ―Reconhecimento intersubjetivo no

viés jus-filosófico de Hegel e Kojève‖, Agemir Bavaresco e

Sérgio Christino procuram retomar a leitura kojèviana da Luta

pelo reconhecimento em Hegel; leitura essa que, talvez por se

fixar nos limites estritos da esfera fenomenológica, se associa à

perspectiva da humanização pelo trabalho em Marx e à

contribuição existencialista em seu desenvolvimento do percurso

antropológico que conduz o homem de sua condição animal até à

condição de humanidade. Os autores mostram primeiramente o

desenvolvimento da teoria hegeliana do reconhecimento e, logo

depois, analisam o desejo antropológico de reconhecimento

como fonte da idéia de justiça em Kojève; isso, mediante a

distinção da dialética de Hegel [articulação negativa do imediato

no movimento de sua própria mediação] e a de Kojève [de

natureza dual-linear], de modo a retomar a recusa kojèviana do

dualismo ontológico e do monismo materialista como ponto de

partida para a compreensão de um processo de tipo reflexivo,

como é o caso do fenômeno jus-filosófico. Desse modo, a partir

do dualismo dialético linear instaurado com a luta pelo

reconhecimento, os autores justificam a introdução por Kojève

de um terceiro desinteressado (imparcial) como mediador das

posições litigantes, superando assim a dialética dualista linear do

senhorio e da escravidão, enquanto momento de superação do

antagonismo no embate entre os litigantes; com o que, segundo

Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 10

os autores, teríamos um momento especulativo que seria o

mesmo da metodologia hegeliana.

Em seguida os autores nos apresentam a fenomenologia

da justiça, segundo Kojève, a partir do princípio de que o desejo,

conforme Hegel, quer o reconhecimento, sendo este a fonte

última da idéia de justiça. Retrata-se aí a exposição kojèviana da

idéia de justiça em sua delimitação fenomenológica, segundo os

momentos da justiça aristocrática ou a igualdade, da justiça

burguesa ou a equivalência e da justiça cidadã ou a eqüidade;

isso, em mostrando a evolução da idéia de justiça conforme uma

lógica do reconhecimento simétrico entre deveres e direitos,

entre universal e particular, bem como explicitando a

coincidência do universalismo do direito aristocrático e o

particularismo do direito burguês. O que, como tal, se funda na

compreensão dos direitos e dos deveres os mais pessoais,

enquanto exercidos pelo indivíduo, se mostrarem como os

direitos e deveres os mais universais, como direitos e deveres do

cidadão enquanto cidadão ou aqueles de todos e de cada um; daí

a conclusão segundo a qual o reconhecimento intersubjetivo se

dá em vários níveis de mediação sócio-jurídico-político e, por

isso, a necessidade da inserção, como complementar à de Hegel,

da teoria do reconhecimento intersubjetivo no viés jus-filosófico

de Kojève, como uma referência incontornável na construção de

um Direito intersubjetivo capaz de enfrentar os desafios do

tempo presente. Enfim, se de um lado, no dizer dos autores, a

elaboração de uma hermenêutica jusfilosófica de viés

intersubjetivo na complexidade da sociedade mundializada

encontra, na teoria hegeliana do reconhecimento, um pressuposto

epistemológico fundamental; de outro, ainda que limitada à

aplicação da idéia de justiça e à descrição fenomenológica de sua

tipologia, a passagem de Kojève ao especulativo – expressa em

sua aplicação das três idéias de justiça para o Direito

internacional, Direito público, Direito penal e Direito privado –

também se mostrará fundamental no cenário ético-político atual.

No último artigo, ―O Idealismo especulativo e o

problema da fundamentação ético-política da mediação

institucional e do reconhecimento intersubjetivo na filosofia

prática contemporânea‖, Manuel Moreira da Silva tematiza o

Filosofia, Reconhecimento e Direito 11

papel das instituições como elemento mediador entre os

indivíduos, em situação de reconhecimento recíproco; isso, a

partir do que o autor considera a retomada e o desenvolvimento

da Concepção especulativa do Direito tal como estabelecida por

Hegel. O ponto de partida do artigo consiste no reconhecimento

de algumas insuficiências da filosofia hegeliana no tocante ao

problema da Intersubjetividade, sobretudo, como esfera lógico-

real da mediação dos sujeitos que não mais se circunscrevem à

esfera do Espírito subjetivo, mas que também ainda não

passaram à esfera do Espírito objetivo; os quais, embora já

tenham passado pelo reconhecimento fenomenológico, ainda não

se puseram como eus espirituais em si e para si, e uns para os

outros, perfeitamente livres – ao mesmo tempo não-idênticos e

idênticos: (1) autônomos, (2) absolutamente rígidos, (3) opondo-

se mútua resistência e, no entanto, (1) não-autônomos, (2) não

impenetráveis, (3) de certo modo confundidos – e, por isso, ainda

não se puseram em situação de reconhecimento intersubjetivo

como seres espirituais, reconhecendo-se a si mesmos como tais

no Absoluto. Neste sentido, o autor se propõe a elaborar um

esboço do que seria a esfera intermediária posterior ao Espírito

subjetivo e anterior ao Espírito objetivo, a qual se desenvolve no

plano de uma Filosofia do Espírito intersubjetivo ou das

Instituições, de onde o mesmo limitar-se aos problemas atinentes

à atividade prática do Espírito livre em seu vir-a-ser objetivo.

Bem entendido, não nos quadros da objetividade constituída – as

instituições instituídas ou objetivadas do Direito, da Moralidade

e da Eticidade, que, como tais, se apresentam como elementos

operativos ou constitutivos no interior dessas subesferas – e sim,

do Ato pelo qual a instituição do que quer que seja se instaura

como tal nesse Ato mesmo enquanto o próprio Instituir.

Partindo da questão fundamental segundo a qual a

solução dos problemas da mediação institucional e do

reconhecimento intersubjetivo não pode se limitar à revinculação

do Jurídico ao Político, mas tem que fundá-la em um plano

estritamente lógico-metafísico, o autor se põe a discutir com

Vittorio Hösle sobre os limites e as especificidades do tratamento

hegeliano da mesma. Para isso, o autor lança mão de um

desenvolvimento do que ele próprio designa os limites e

Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 12

contradições das concepções não-especulativas do Direito e, mais

precisamente, da Razão prática, enquanto circunscrita ao

horizonte de sua destranscendentalização de um lado, e, de

outro, de sua retranscendentalização. Disso resulta o

reconhecimento, pelo autor, de pelo menos duas contribuições

dessas concepções para a Concepção especulativa do Direito tal

como ele mesmo pretende expô-la. De um lado, a dissolução

realista interna do dualismo kantiano de noumeno e fenômeno ou

de coisa em si e aparência tal como desenvolvida por Habermas;

de outro, a reproposição da postulação kantiana de ―eus

noumenais e atemporais‖, agora como constituintes de uma

estrutura intersubjetiva absoluta, que tomam decisões éticas,

sem que as mesmas estejam sujeitas à lei causal, desenvolvida

pelo Idealismo objetivo de Hösle. Enfim, o autor conclui seu

artigo, buscando esclarecer a efetivação do Espírito como

Universal ativo que se particulariza na multiplicidade dos

espíritos finitos, livres de determinações causais espácio-

temporais; pelos quais – em sua relação consigo e com os outros,

instituída no processo de mediação institucional e

reconhecimento intersubjetivo – ele concretiza sua própria

universalidade ativa, em se singularizando sob a forma de uma

Comunidade Ideal do Espírito.

Com esses três estudos em torno da concepção hegeliana

do reconhecimento recíproco, Filosofia, reconhecimento e

Direito insere-se na perspectiva da Filosofia do Direito ou,

melhor dito, pretende estabelecer um diálogo interdisciplinar

jusfilosófico. Neste livro, tendo por horizonte a problemática

contemporânea da luta pelo reconhecimento, nossa atenção

voltou-se, especificamente, à filosofia do Direito hegeliana,

expondo temas e problemas de sua elaboração teórico-prática,

conforme os enfoques dos autores. Esperamos, desta forma,

apontar para importância deste debate e o aprofundamento e

atualização do pensamento hegeliano para o Direito.

Os organizadores

Filosofia, Reconhecimento e Direito 13

A. Eticidade e Intersubjetividade: observações acerca da

influência de Fichte sobre Hegel

Erick Calheiros de Lima1

1. Intersubjetividade e direito em Fichte

No universo temático que forma a Wissenschaftslehre2,

Fichte parte de uma distinção entre espontaneidade e liberdade.

Para ele a diferença entre estes termos é que a liberdade supõe

consciência do agir livre, ao passo que a espontaneidade, como

condição de possibilidade de toda consciência, dela prescinde.

Enquanto há apenas a espontaneidade absoluta da pura

autoposição do eu, a absoluta identidade a si e a contínua

superação de todo limite, pelo intuir de si mesmo, não pode

haver autoconsciência propriamente dita da liberdade, a qual

requer separação entre sujeito e objeto e um movimento reflexivo

de retorno a si, a partir desta separação – ou, na terminologia

imortalizada por Fichte, a partir do choque (Anstoß). A faculdade

prática absoluta é mera espontaneidade sem consciência do seu

agir livre: somente mediante um outro independente de si o eu

pode pôr a si mesmo conscientemente como ser-para-si, somente

1 Doutorando em Filosofia pela Unicamp (Universidade Estadual de

Campinas). 2 Nos referimos aqui não simplesmente à obra de Fichte publicada em 1794

com o título Grundlage des gesamten Wissenschaftslehre, mas também às

obras de filosofia prática publicadas com a designação nach den Prinzipien

der Wissenschaftslehre, isto é, a Grundlage des Naturrechts (1796/1797) e o

System der Sittenlehre (1798). O contexto sistemático da primeira

Wissenschaftslehre também é consideravelmente ampliado por textos

programáticos, como é o caso das Vorlesungen über die Bestimmung des

Gelehrten (1794) ou mesmo pelas Vorlesungen compaginadas como

Wissenschaftslehre nova methodo (1798). A citação das obras completas é

feita com base na edição Fichte, J. G Werke em 20 volumes, Editadas por

Immanuel H. Fichte, Walter De Gruyter, Berlin,1971. A partir de agora

utilizaremos a abreviação GNR para a Grundlage des Naturrecht nach den

Prizipien der Wissenchaftlehre, e Sittenlehre para o System der Sittenlehre

nach den Prizipien der Wissenchaftlehre, ambos presentes no volume 3 da

referida edição.

Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 14

sob a condição da posição de um não-eu se torna possível a

consciência-de-si da atividade como livre.

Fichte introduz uma importante modificação na

arquitetônica da filosofia prática ao localizar o ponto de partida

do sistema real de liberdade – e, por conseguinte, da ―ciência real

do direito‖3 – não na vontade pura, mas na vontade finita. Desta

maneira, o ponto de partida da concepção fichteana de

comunidade se vê vinculado à investigação ―transcendental‖ das

condições de possibilidade de consciência efetiva da liberdade.

Na medida em que a autoconsciência individual tem como uma

de suas condições a interação (Wechselwirkung) com outra

vontade, abre-se com isso um novo terreno para a teoria

liberdade, a saber: o terreno da constituição intersubjetiva da

liberdade individual4.

3 Quatro importantes comentadores de Fichte defendem, de maneira diversa, a

tese de que a Grundlage des Naturrechts contém rupturas na sistemática,

bem como divergências em relação à obra fichteana posterior. Enquanto

Baummans vê não somente ausência de rigor lógico na dedução do conceito

de direito, mas também uma ruptura intransponível entre a obra sobre o

direito e a doutrina-da-ciência de 1794, Schottky identifica, no procedimento

filosófico de Fichte após a dedução do conceito de direito nos §§ 1-4, um

retorno ao direito natural de Hobbes. Principalmente a visão de Baummans

quanto à incoerência entre o direito natural e a filosofia primeira é ratificada

pela obra de Verweyen, através do recurso às obras posteriores de Fichte

sobre o direito. Contra todas estas interpretações posiciona-se Ludwig Siep,

para quem as principais incoerências da obra de Fichte se tornam aparentes,

se se puder interpretar o método utilizado pelo filósofo desde a abertura da

obra como uma forma prototípica do método de exposição segundo

―experiências da consciência‖, mais tarde assimilado pelo próprio Hegel.

Verweyen, H. – Recht und Sittlichkeit in J.G. Fichtes Gesellschaftslehre,

München, 1975; Baumanns, P. – Fichtes ursprüngliches System. Sein

Standort zwischen Kant und Hegel, Stuttgart, 1972 Siep, Ludwig – „Einheit

und Methode von Fichtes „Grundlage des Naturrechts――, in: Siep, Ludwig–

Praktische Philosophie im deutschen Idealismus, Frankfurt am Main, 1992,

41-64 4 Para Ludwig Siep, o método de dedução transcendental empregado na

dedução do conceito de direito se caracteriza por uma modificação tão

intensa deste conceito herdado por Kant que se deixa derivar desta

modificação um conceito de experiência da consciência. Ludwig Siep (1992).

Este método se caracteriza decerto pelo intento geral de fornecer as ações

cognitivas e volitivas que têm de ser pressupostas como condições de

possibilidade da consciência da eficiência livre. Entretanto, esta aplicação

Filosofia, Reconhecimento e Direito 15

O conceito de individualidade é... um conceito recíproco

(Wechselbegriff), isto é, um conceito que somente em

relação a um outro pensar pode ser pensado, e que é

condicionado, segundo a forma, pelo mesmo – e, na

verdade, por um igual – pensamento. Ele somente é

possível em um ser racional, na medida em que é posto

de maneira conclusa por um outro. Portanto, ele não é

nunca meu, e sim, segundo minha admissão (Geständnis)

e a admissão do outro, meu e seu, seu e meu. É um

conceito comunitário (ein gemeinschaftlicher Begriff),

no qual duas consciências são unificadas na unidade.5

É Fichte, portanto, que introduz a idéia de que o

indivíduo como tal, considerado isoladamente e apartado da

interação ―real‖ em que se encontra, desde sempre e que constitui

o ―a priori‖ que condiciona sua consciência-de-si como

indivíduo, nada mais é do que uma abstração. O ser humano é

um gênero, e o indivíduo somente é livre e consciente de si como

tal, em meio a outros seres humanos6. A posição de si é

condicionada pela posição do outro, de maneira que o eu não

pode existir como tal sem relação ao outro. Para Fichte, a

consciência da liberdade não é um estado em que a auto-reflexão

revela uma faculdade previamente dada, ou um fato da razão,

mas um processo de encontrar-se a si mesmo através de

―choque‖ com outros seres humanos. Estas concepções formam a

geral do intento transcendental da Wissenschaftslehre representa uma

extensão metodológica na medida em que passa do âmbito das condições de

uma unidade subjetiva e da consciência da objetividade na base de uma

espontaneidade absoluta para a unidade transcendental de um sujeito que é

um ser racional finito. 5 GNR, 47/48 6 ―O ser humano (da mesma forma que todos os seres finitos em geral) só se

torna ser humano entre seres humanos; e como ele não pode ser outra coisa a

não ser um ser humano – e não seria mais nada, se ele não fosse isto que ele é

– se devem haver de algum modo seres humanos, então tem de haver

muitos.‖ [GNR, 39] ―...isto é uma verdade que deve ser provada estritamente

a partir do conceito de ser humano. Tão logo se determina completamente

este conceito, é-se impelido do pensamento de um indivíduo à aceitação de

um segundo, a fim de se poder explicar o primeiro. O conceito de ser humano

não é, pois, o conceito de um indivíduo – pois um tal ser é impensável –, mas

o conceito de um gênero.‖ [GNR, 39]

Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 16

gênese da teoria fichteana da intersubjetividade nos escritos de

1794 a 1798, baseada no modelo Aufforderung/Anerkennung.

Com sua ligação entre intersubjetividade e teoria da

consciência, Fichte antecipa a teoria hegeliana do

reconhecimento, especialmente em sua versão mais tardia, que se

notabiliza, justamente, por uma primazia na consideração do

papel do processo de reconhecimento para a teoria da

consciência7 em detrimento de uma discussão sobre temas

relativos à filosofia prática. Uma distinção que deve ser levada

em conta quando se aborda o problema do reconhecimento em

Fichte, desenvolvido em sua teoria do direito, é o fato, não

especialmente visível para a maioria dos comentadores8, de que

7 Segundo Wildt e Honneth, na compreensão fenomenológica da teoria do

reconhecimento desde a Fenomenologia, o processo de reconhecimento não

pode mais ser entendido simplesmente como um caminho para a apropriação

cognitiva de uma relação de reconhecimento originária prévia, pois, neste

novo âmbito em relação à teoria do reconhecimento em Jena, Hegel não

pressupõe mais uma ―eticidade natural‖ do amor na relação familiar. Ver

Wildt, Andreas – Autonomie und Anerkennung. Hegels Moralitätskritik im

Lichte seiner Fichte-Rezeption, Stuttgart, 1983, 360 e Honneth, Axel–Kampf

um Anerkennung. Zur moralischen Grammatik sozialer Konflikte, Suhrkamp,

Frankfurt am Main, 1992, 73. Em sua crítica à compreensão fenomenológica

da teoria do reconhecimento, Honneth acredita que ela tenha, através de um

―re-direcionamento para a teoria da consciência‖, obstruído a possibilidade

de se pensar o processo de reconhecimento como um processo de formação

da autonomia pessoal, o que teria como decorrência um ―modelo

substancialista de eticidade‖. No entanto, há que se pensar se esta leitura não

poderia ser considerada equivocada. Somente através deste re-

direcionamento, no Systemenentwurf de 1803/1804, foi possível a Hegel a

superação da representação tradicional de natureza como essência das

conexões ordenadoras estruturadas teleologicamente e a ocupação paulatina

com a autonomia do indivíduo. Na verdade, a compreensão antiindividualista

da eticidade enquanto substância espinosana é muito mais ferrenha nos textos

políticos da primeira fase do período de Jena, como o Naturrechtaufsatz e o

System der Sittlichkeit. 8 Na vertente de comentadores especialmente atentos a este fato, são dignos de

nota Siep e Honneth. Siep lembra este fato em praticamente todos os seus

textos que fazem referência à teoria da intersubjetividade desenvolvida por

Fichte no Naturrecht. Já Honneth, ao considerar a apropriação hegeliana do

conceito de reconhecimento no System der Sittlichkeit de 1802, diz : ―em seu

escrito sobre a fundamentação do direito natural‖, Fichte compreendeu o

Filosofia, Reconhecimento e Direito 17

Fichte não concebe o direito como idêntico ao processo de

reconhecimento, mas concebe este processo como uma estrutura

intersubjetiva primária, no bojo da qual as relações jurídicas

entre arbítrios se tornam possíveis: ―a toda interação arbitrária de

seres livres jaz uma interação originária e necessária dos mesmos

como fundamento, a seguinte: o ser livre necessita, através de sua

simples presença no mundo sensível, sem mais, todo outro ser

livre a reconhecê-lo como uma pessoa ... Ambos conhecem

(erkennen) um ao outro em seu interior, mas estão isolados,

como antes.‖9 É no quadro deste fundamento intersubjetivo da

possibilidade da relação (jurídica) entre arbítrios que se deixa

compreender o desenvolvimento da Grundlage a partir do §8 na

forma de uma antinomia a ser solucionada.

Pessoas como tais devem ser absolutamente livres e

simplesmente dependentes de sua vontade. Pessoas

devem, tão certo quanto elas o são, estar em influência

recíproca e, portanto, não simplesmente dependentes de

si. Como ambas as coisas possam subsistir em conjunto,

responder a isso é a tarefa da ciência do direito

(Rechtswissenschaft); e a pergunta que jaz como seu

fundamento é esta: como é possível uma comunidade de

seres livres como tais?10

Fichte pretende resolver esta antinomia, demonstrando

que a interação com o outro é condição necessária da formação

prático-cognitiva da autoconsciência individual. É na interação

com o outro que a liberdade originariamente absoluta do eu é

limitada pela liberdade do outro, uma limitação que não é

exterior ao conceito de liberdade, mas que lhe é essencial, já que

sem a limitação da atividade em si infinita do eu não seria

possível nenhuma posição do não-eu. No entanto, chama atenção

a vinculação, declarada acima, da idéia de reconhecimento ao

isolamento do indivíduo, e nisto reside a verdadeira

reconhecimento como uma interação entre os indivíduos que subjaz à relação

jurídica.‖ Honneth (1992). 9 GNR, 85/86 10 GNR, 85

Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 18

conseqüência da unilateralidade do desenvolvimento dado por

Fichte ao elemento intersubjetivo, isto é, o caráter propriamente

negativo de seu conceito intersubjetivo de liberdade, que o faz

compreender a relação ao outro como essencialmente limitativa,

apesar de constitutiva para a consciência individual. Fichte não

chega a conceber a mediação intersubjetiva da liberdade

individual de uma maneira ―solidária‖ e não excludente, mas

essencialmente limitativa. Isto é bastante notório na tese

fichteana acerca da durabilidade hipotética da obrigatoriedade,

mas se torna evidente numa declaração feita por Fichte em outro

contexto, a saber: a ―fundação do saber teórico‖ na

Wissenschaftslehre de 1794. Fichte diz que ―a forma da

interação (Wechselwirkung) consiste no excluir e ser-excluído

dos membros recíprocos um pelo outro.‖11

Fichte deduz o reconhecimento recíproco como relação

que subjaz às relações jurídicas e que é, como tal, condição de

possibilidade da consciência-de-si. A idéia de que a liberdade

originariamente infinita do sujeito tem de ser limitada na relação

11 WL 1794, 195. Deve-se notar que introduzimos uma modificação na

tradução desta passagem em relação à tradução de Rubens Rodrigues. No

original, Fichte diz: ―Die Form der Wechselwirkung besteht im gegenseitigen

Ausschliessen und Ausgeschlossenwerden der Wechselglieder

durcheinander.‖. R. R traduz Wechselwirkung por alternância. Sem dúvida,

existem boas razões para esta escolha, principalmente se se considera o

contexto eminentemente teórico da declaração. Não somos partidários da tese

defendida por Philonenko e aprofundada por Rénaut de que a primeira

Doutrina-da-Ciência contenha já uma teoria da intersubjetividade, o que,

segundo Rénaut, leva a considerar que a Grundlage des Naturrechts vem

justamente resolver, graças à sua discussão intersubjetivista da categoria

Wechselwirkung, a aporia deixada pela primeira versão da Doutrina-da-

Ciência no tocante ao problema da representação. No entanto, como este

trabalho tem como ponto específico de preocupação o registro prático da

filosofia do idealismo alemão, preferimos continuar a traduzir o termo pelo

seu equivalente mais apropriado no contexto da filosofia fichteana do direito.

Ver também Philonenko, A. – L’oeuvre de Fichte , J.Vrin , Paris , 1984;

Métaphysique et politique chez Kant et Fichte, Bibliothèque d'histoire de la

philosophie / Nouvelle série , J.Vrin, Paris, 1987; e Renaut, Alain – Système

du droit : philosophie et droit dans la pensee de fichte, P.U.F, Paris, 1986;

„Deduktion des Rechts (Dritter Lehrsatz: §4)―, in: Merle, Jean-

Christophe(Hg) – Johann Gottlieb Fichte, Grundlage des Naturrechts ,

Akad.-Verl. , Berlin , 2001, 81-95.

Filosofia, Reconhecimento e Direito 19

com um outro, a fim de poder se pôr como real, é, do ponto de

vista das premissas de Fichte, bastante consistente; pois todas as

determinações são em si, inicialmente, negações e, portanto,

limitações. No entanto, resta sempre a questão acerca da

necessidade de que a relação recíproca entre sujeitos seja um

excluir recíproco. Isto se deve ao fato de que Fichte põe como

fundamento de sua teoria um indivíduo atomizado, o qual não

entra com o outro em uma relação possivelmente solidária, nem

deixa que o outro ―participe‖ da formação de sua

individualidade, mas que apenas necessita da esfera exclusiva da

alteridade, para afirmar sua individualidade. ―Eu devo ser um eu

autônomo (ein selbständiges Ich), este é meu fim-término

(Endzweck); para tudo aquilo através do que as coisas fomentam

esta autonomia, eu devo utilizá-las, este é o seu fim-término.‖12

Na abertura da teoria da intersubjetividade no System der

Sittenlehre (§ 17), torna-se mais clara a relação que Fichte

pretende existir entre o eu e o outro. A existência do outro

assume a conotação de um instrumento ao restabelecimento da

minha liberdade originária. Se, por um lado, a existência de

outros seres racionais exteriores a mim possibilita a formação

cognitiva da consciência da liberdade; por outro lado, ela é

associada univocamente ao momento negativo da necessária

limitação de liberdade individual como condição para aquela

formação. A teoria fichteana da intersubjetividade parece se

converter num subterfúgio para a corroboração individual da

própria liberdade frente aos outros; e como isto, também para o

outro somente é possível pelo asseguramento de um espaço de

liberdade, o reconhecimento parece se tornar um processo para a

produção de um excluir recíproco. Este é o significado da

―repressão jurídica‖ do reconhecimento em Fichte. A relação de

direito, deduzida a partir do reconhecimento, é compreendida por

Fichte numa adesão ao programa kantiano13

da limitação

12 Sittenlehre, 208 13 Em GNR, 52, Fichte diz: ―Eu tenho que reconhecer o ser racional fora de

mim em todos os casos como tal, isto é, limitar minha liberdade pelo conceito

da possibilidade de sua liberdade.A deduzida relação entre seres racionais,

segundo a qual cada um limita sua liberdade pelo conceito da possibilidade

da liberdade do outro, sob a condição de que o primeiro limite da mesma

Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 20

recíproca. Desta maneira, o ser racional reconhecido por mim

como livre permanece sempre um limite, para além do qual não

existe minha liberdade. Fichte constrói uma filosofia social

realmente baseada no direito estrito, e por isso chega a

compreender a lei, que deve ser o ―direito natural realizado‖14

,

somente como Zwangsrecht, o qual atua com ―necessidade

mecânica‖ contra o ―egoísmo universal‖ dos indivíduos15

.

Esta identificação da coerção jurídica com o ―direito

natural realizado‖ se baseia numa concepção negativa da

liberdade do indivíduo. ―O conceito de direito deve ser um

conceito originário da razão pura.‖16

Como se origina da razão

pura, o direito se constitui, para Fichte, como uma coerção

imanente17

à liberdade do indivíduo, a qual é por isso mesmo

compreendida como condição da consciência-de-si individual.

―Encontra-se na intenção deste conceito, que ele se torne

necessário, mediante o fato de que o ser racional não pode se pôr

como tal com consciência-de-si, sem se pôr como indivíduo,

como um dentre outros seres racionais, os quais ele supõe

estarem fora de si, da mesma forma como ele supõe a si

mesmo.‖18

Para Hegel, a compreensão atomística da relação

intersubjetiva, juridicamente reduzida, enquanto incapaz de

forma a sua pela do outro, denomina-se relação de direito (Rechtsverhältnis),

e a fórmula que foi agora apresentada é o princípio do direito (Rechtssatz).‖ 14 GNR, 149 15 GNR, 142/152 16 GNR, 7 17 ―Se os efeitos dos seres racionais devem poder coincidir no mesmo mundo,

ter, conseqüentemente, influência uns sobre os outros, estorvar-se e criar

impedimentos reciprocamente, então a liberdade nesta última significação

somente seria possível para pessoas, que estão nesta situação de uma

influência recíproca uns com os outros, sob a condição de que todos

encerrassem sua efetividade em certos limites e que dividissem de certa

maneira entre si o mundo como esfera de sua liberdade. Como eles são

postos livres, então um tal limite não poderia encontrar-se fora da liberdade,

pelo que ele seria suspenso (aufgehoben) e de forma alguma seria limitado

como liberdade. Antes, todos precisariam pôr-se a si mesmos este limite

através da liberdade, isto é, todos precisariam tomar-se como lei não causar

dano à liberdade daqueles com os quais se encontram em comunidade de

influência recíproca (in gegenseitiger Wechselwirkung) ‖[ GNR, 8/9] 18 GNR, 8

Filosofia, Reconhecimento e Direito 21

render uma liberdade individual positiva, torna-se tanto mais

evidente na própria intenção de compreender a ―relação

comunitária‖ como condição da liberdade individual.

Na concepção de uma gênese intersubjetiva da liberdade

individual está aglutinado o potencial ético para uma relação

positiva e mutuamente formadora das individualidades. Fichte

identifica no §3 o conceito de Aufforderung com a educação ou

formação dos indivíduos para se tornarem seres humanos. Se o

modelo de um striktes Recht conduz à investigação de condições

de realizabilidade do direito, não parece com isso ter sido tolhido

totalmente o potencial inclusivo da relação intersubjetiva. No

contexto dos §§ 8-1319

, que concerne à determinação da

realizabilidade do direito como lei coercitiva, Fichte declara que:

―a possibilidade da relação jurídica entre pessoas no âmbito do

direito natural é condicionada por fidelidade e crença (Treue

und Glauben). A crença e a fidelidade mútuas não são, no

entanto, dependentes da lei do direito: elas não se deixam coagir,

nem há um direito para tal. Não se pode coagir alguém a ter uma

crença interior na minha retidão, porque esta não se exterioriza, e

jaz, portanto, fora da esfera do direito natural.‖20

Apesar de

19 Siep vê nesta ruptura um retorno a Hobbes, na medida em que Fichte passa a

pressupor que não se encontra no indivíduo nenhuma moralidade, mas

somente amor próprio. Segundo Siep, entretanto, que a vontade de

autoconservação se contraponha à livre autolimitação não se deixa deduzir

nem do conceito de vontade, nem imediatamente como condição da

consciência-de-si.. Para Siep (1992), a ruptura que identificamos a partir do

§7 deixa-se dissipar, se se compreende o Naturrecht como baseado num

método de apresentação de experiências da consciência, de maneira que a

conexão entre livre autolimitação, egoísmo universal e lei de coerção

garantida pelo estado possa ser compreendida sem a tese de uma ruptura da

exposição e recaída no método ―pré-transcendental‖ do direito natural, isto é,

o abandono da dedução das condições de possibilidade da consciência-de-si e

do ponto de vista da consciência agente em nome de pressuposições

concernentes à antropologia, como a tese de um egoísmo universal. Para

nossa interpretação do direito natural de Fichte uma tal compreensão é sem

dúvida marcante, principalmente quando auxilia na manutenção da unidade

da obra. Entretanto, não nos parece ir contra a tese de que a repressão jurídica

do conceito de reconhecimento em Fichte acaba por limitar as

potencialidades ético-intersubjetivas do conceito de interpelação. 20 GNR, 138

Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 22

Fichte ter insistido na independência do direito natural, em

relação a um vínculo ―moral‖ e positivo entre as vontades, a

possibilidade da relação jurídica é condicionada por uma relação

recíproca de confiança e de expectativa positiva de

comportamento, a qual jaz fora da esfera do direito natural, isto

é, não é realizável mediante coerção. Ora, se o reconhecimento,

enquanto relação intersubjetiva originária, fundamenta toda

relação entre arbítrios; e se toda relação jurídica tem, como

condição de possibilidade, um ―substrato‖ formado pela

inteligibilidade mútua, pela confiança e pela expectativa positiva

no comportamento do outro, é lícito supor que este estofo de

mútua compreensibilidade seja engendrado pelo – ou melhor,

seja uma outra designação para o – reconhecimento recíproco,

compreendido agora não em sua limitação jurídica, mas na

plenitude de seu potencial inclusivo como resposta à

interpelação21

. Este âmbito não pode ser coagido, ele é

originariamente engendrado como condição da

―individualização‖.

O adiantamento de confiança mutuamente atribuída

pressupõe uma comunidade de consciências, de tal maneira que o

agir, segundo esta orientação mutuamente estabelecida somente

se torna plausível, se as consciências não possuem motivos fortes

para deixar de proceder conforme uma autolimitação voluntária:

tem de se mostrar minimamente plausível para as mesmas a

opção preliminar por um respeito mútuo. Com efeito, o conceito

21 Sob o título de ―repressão jurídica do conceito de reconhecimento em

Fichte‖, espera-se aqui compreender, na linha de Ludwig Siep (1992), aquele

processo pelo qual, segundo Fichte, a relação de reconhecimento recíproco se

sobrepõe ao paradigma da interpelação, na medida em que ela, enquanto

resultado de uma limitação da liberdade por uma solicitação intersubjetiva,

não pode ser compreendida de imediato como educação em seu sentido mais

geral, como formação prática da individualidade em seu sentido mais

profundo. Eis porque, com a qualificação de uma repressão jurídica

pretendemos dar conta desta redução da intersubjetividade que Siep identifica

ao propor uma interpretação da passagem entre os §§ 3 e 4 como uma

reflexão da consciência interpelada, como uma conseqüência que a

consciência que se forma retira da experiência de interpelação, a qual

somente confere sentido à compreensão que propõe Fichte deste

desenvolvimento como educação.

Filosofia, Reconhecimento e Direito 23

jurídico de reconhecimento parece limitar a riqueza e o potencial

de uma concepção participativa e inclusiva de intersubjetividade

que, entretanto, poderia ser percebida no escopo mais geral da

interpelação como formação ou educação. Não é difícil ver que

Hegel pretenderá reconhecer no potencial não excludente desta

compreensão da intersubjetividade, na mútua implicação de

unidade e diferenciação das consciências, a estrutura dialética do

espírito, o que o conduzirá, na consecução de seu conceito de

eticidade, a enunciar como preâmbulo, para o chegar-a-si da

individualidade um modo plenamente acabado de

intersubjetividade, um nexo de mútuo reconhecimento de que

ele, sob o nome de amor, atribui aos estágios ainda naturais de

uma existência comunitária. Neste sentido, quando pretendemos

que uma concepção não excludente de intersubjetividade se

sobreponha como um negativo da repressão jurídica do conceito

fichteano de reconhecimento, pretende-se com isto sustentar a

tese de que, em vista do problema de demonstrar aplicabilidade

do direito e de torná-lo um conceito real, o egoísmo fundamental,

cuja reversão é tarefa da coerção sob o estado, somente pode ser

introduzido na exposição fichteana, através de uma experiência

da perda de confiança. Por conseguinte, se este quadro geral de

uma expectativa positiva, com respeito ao comportamento do

outro for atribuída, em sua gênese e possibilidade, às

potencialidades não coercitivas da interpelação, resta ao conceito

de direito, fundado sobre o reconhecimento recíproco e cuja

aplicabilidade é o objetivo da teoria mostrar uma limitação das

potencialidades daquela relação intersubjetiva.

2. A crítica de Hegel na Differenzschrift: dois modelos de

intersubjetividade

Pretende-se, aqui, não promover um apanhado geral da

crítica hegeliana à concepção fichteana do estado, mas antes

chamar atenção para o fato de que, na constituição do conceito

hegeliano de eticidade, que se pode localizar nos primeiros anos

de Jena, um papel de suma importância é desempenhado pela sua

Auseinandersetzung com a concepção fichteana de

intersubjetividade. Pretende-se mostrar que a constituição do

Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 24

conceito hegeliano de eticidade no Naturrechtaufsatz e no System

der Sittlichkeit, o qual se caracteriza, em primeiro lugar, por uma

decantação filosófico-especulativa das investigações sobre a

intersubjetividade em Frankfurt, tem seu impulso mais essencial

no que, num primeiro momento, é uma refutação da

intersubjetividade, ―juridicamente reprimida‖, da filosofia social

de Fichte; mas também que, por outro lado, o itinerário trilhado

pela filosofia social de Hegel, nos anos subseqüentes em Jena, e

que contém a prefiguração da forma definitiva da filosofia do

―espírito objetivo‖, somente se torna possível por uma re-

assimilação e revalorização do viés jurídico do conceito

fichteano de reconhecimento. Do ponto de vista do resultado das

investigações de Hegel sobre a intersubjetividade em Frankfurt,

este movimento de distanciamento e reaproximação em relação à

concepção fichteana de intersubjetividade, movimento que

contribuirá à amplitude normativa do conceito hegeliano de

eticidade, diz respeito sobretudo à possibilidade de aglutinar, por

um lado, a intuição frankfurtiana da intersubjetividade como

superação da dicotomia entre o universal da pura consciência-de-

si e o particular da consciência-de-si empírica ou individual; e,

por outro lado, a intuição propriamente fichteana de que os

momentos de formação das individualidades e de sua unificação

numa ―consciência universal‖ se condicionam reciprocamente22

.

Hegel pretende que Fichte, apesar de ter apreendido o

ponto de partida especulativo, propriamente dito na unidade de

ser e pensar, não procedeu, na construção do sistema, de maneira

condizente com este princípio; e isto porque, segundo Hegel,

manteve irredutivelmente separadas a atividade incondicionada

da consciência-de-si (Eu=Eu) e a consciência empírica, limitada

pelo não-eu23

. O elemento que desempenha um papel importante

22 Siep, Ludwig – Anerkennung als Prinzip der praktischen Philosophie,

Freiburg/München, 1976, 52/53 23 Na Differenzschrift e em Glauben und Wissen, Hegel chega a discutir, sob a

luz de sua caracterização geral da auto-suspensão da reflexão na razão

especulativa, aspectos intrincados das filosofias de Kant, Fichte e Jacobi, e

até mesmo a oferecer uma caracterização sistemática da ―completude de

formas‖ da filosofia da reflexão. Um estudo sobre a sua profundidade – e

mesmo plausibilidade – excederia o intento deste trabalho e talvez tivesse de

Filosofia, Reconhecimento e Direito 25

na crítica hegeliana à moral e ao direito formalistas, é a

dicotomia entre pura consciência-de-si e consciência-de-si

efetiva, pela qual se expressa o enunciado fichteano da dicotomia

absoluta entre subjetividade e objetividade, cujo desdobramento

é importante para as ―ciências reais‖ 24

. ―O ater-se firmemente à

subjetividade da intuição transcendental, por meio do qual [o] Eu

permanece um sujeito-objeto subjetivo, aparece de maneira que

mais salta aos olhos na relação do eu com a natureza, em parte

na dedução da mesma, em parte nas ciências que se fundam

sobre isso.‖(TWA 2, 72) Trata-se para Hegel, principalmente, de

oferecer, a partir da crítica ao subjetivismo em que permanece o

absoluto da filosofia fichteana, uma compreensão da gênese da

contraposição absoluta entre razão e natureza. ―Na apresentação

e dedução da natureza, tal como ela é fornecida no Sistema do

Direito Natural, mostra-se a contraposição absoluta da natureza e

da razão e a dominação da reflexão em toda a sua dureza‖(TWA

2, 79). Para Hegel, a relação da razão à natureza interior ou

exterior ao homem é uma ―síntese do dominar‖, e a natureza é,

em suas múltiplas formas, apenas algo ―determinado e morto‖. A

perseguir o fio condutor da crítica de Hegel em suas obras de maturidade,

onde diversos pontos estão melhor decantados. No entanto, na tentativa de

promover a passagem à crítica do ―formalismo do entendimento prático‖,

parece profícuo delimitar os contornos da crítica hegeliana ao primeiro

sistema de Fichte. Na medida em que Glauben und Wissen concentra-se, à

exceção de ataques à filosofia do direito de Fichte, muito mais na obra

Bestimmung des Menschen, de 1800, cabe aqui chamar antes a atenção para

os elementos contidos na Differenzschrift. Para a citação das obras de Hegel

estamos utilizando o seguinte texto. Hegel, G. W. F. Werke em 20 volumes –

Auf der Grundlage der Werke Von 1832-1845 neu ed. Ausg., Ausg. in

Schriftenreihe „Suhrkamp-Taschenbuch Wissenschaft― / [Red. Eva

Moldenhauer und Karl Markus Michel] – Frankfurt am Main : Suhrkamp. A

referência a este texto ao longo do trabalho será feita através da sigla TWA e

o número da página. 24 Este itinerário é, de resto, o fio condutor da crítica hegeliana na

Differenzschrift. ―Na seguinte apresentação do sistema fichteano deve-se

tentar mostrar que a pura consciência, a identidade de sujeito e objeto

estabelecida no sistema como absoluta, é uma identidade subjetiva de sujeito

e objeto. A apresentação vai tomar o itinerário de provar o eu, o princípio do

sistema, como sujeito-objeto subjetivo, tanto imediatamente, quanto no modo

de dedução da natureza e, especialmente, nas relações da identidade nas

ciências particulares da moral e do direito natural‖ (TWA 2,50)

Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 26

natureza é deduzida, segundo Hegel, no tocante à filosofia

teórica, apenas como condição da autoconsciência, enquanto que,

na filosofia moral e na filosofia social de Fichte, ela é deduzida

apenas como limitação, tanto como impedimento necessário ao

esforço infinito, quanto como condição exterior do agir livre.

Esta absoluta contraposição entre natureza e razão é o

que propriamente dá origem à crítica hegeliana às concepções

jurídico-morais de Fichte. Para Hegel, a concepção fichteana de

comunidade humana, compreendida como um sistema ético e

jurídico de autolimitações e de limitações recíprocas, subordina

tanto a natureza pulsional dos seres humanos considerados

individualmente, quanto suas relações espontâneas uns aos

outros. A absoluta contraposição de razão e natureza se

transforma numa relação de negação recíproca entre a liberdade

limitada dos direitos e deveres, e a liberdade absoluta do eu puro.

A idéia de comunidade como limitação implica a idéia de que,

em comunidade, a liberdade absoluta tem que ser renunciada.

Contra esta concepção, Hegel lança mão do substrato de todas as

suas intuições de juventude que se ligam ao caráter plenamente

livre da vida pública: o ideal de uma comunidade como a mais

elevada liberdade, uma comunidade viva enquanto uma ―relação

recíproca da vida, verdadeiramente livre e infinita, isto é, bela‖

(TWA 2, 82).

Portanto, para Hegel, as insuficiências especulativas de

Fichte se tornam ainda mais evidentes, na medida em que está

subjacente às suas contribuições à filosofia prática e à filosofia

da natureza aquela forma ―mais concreta‖ da contraposição

absoluta entre sujeito e objeto, a qual Hegel compreende como

―contraposição entre razão e natureza‖; e que, na medida em que

se funda na exterioridade intransponível da natureza em relação

ao conceito, converte-se numa relação de dependência. ―Esta

relação de dependência da natureza ao conceito, a contraposição

da razão sobressai mais ainda devido às conseqüências que se

seguem, daí em ambos os sistemas da comunidade dos seres

humanos.‖ (TWA 2, 81) O caráter funesto destas conseqüências

se revela sobretudo na renúncia a uma concepção não limitativa e

plenamente livre da comunidade humana – compreendida tanto

como relação intersubjetiva, quanto no que concerne à relação

Filosofia, Reconhecimento e Direito 27

entre indivíduo e estado – em nome da sua compreensão em

termos essencialmente individualistas e atomísticos.

Somente se a idéia é, primeiramente, finitizada através

disso: que ela é contraposta a uma esfera empírica e posta

enquanto [esfera] espiritual e, em seguida, esta esfera /

espiritual é, ela mesma, desmembrada qualitativamente,

mais uma vez, numa multidão infinita de átomos

espirituais, subjetividades, enquanto cidadãos de uma

coisa que se chama reino do espírito, pode se falar de

conseqüências espirituais. (TWA 2, 427/428)

É a partir deste diagrama geral que Hegel pretende

mostrar, nos primeiros escritos de Jena, que, na ―doutrina da

ciência aplicada‖, revelam-se as mesmas insuficiências que

acometem o arcabouço mais fundamental do pensamento

fichteano: o subjetivismo e o formalismo intransponíveis ao

princípio fichteano da identidade de sujeito e objeto.

Primeiramente, Hegel segue sua intuição do período de Frankfurt

de que a dominação do universal vazio sobre o particular, que

caracteriza o formalismo prático de Kant e Fichte, mostra-se

tanto no âmbito intra-subjetivo da consciência moral, quanto na

esfera intersubjetiva das relações de direito. Para Hegel, o que

diferencia a dominação do conceito formal na esfera moral da

dominação, na esfera do direito é que, neste caso, a exterioridade

mútua de universal e singular se revela como contraposição

absoluta da vontade universal e da vontade individual enquanto

exteriores uma à outra, ao passo que aquela contraposição é

considerada, na esfera moral, como devendo ser superada no

interior do indivíduo.

A doutrina dos costumes tem em comum com o direito

natural que a / idéia domine absolutamente o impulso, a

liberdade domine absolutamente a natureza. Entretanto,

eles se diferenciam em que, no direito natural, a sujeição

de seres livres sob o conceito é, em geral, absoluto

autofim (absoluter Selbstzweck), de maneira que o

abstraktum fixado da vontade comum esteja também fora

do indivíduo e tenha poder sobre ele. Na doutrina dos

Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 28

costumes o conceito e a natureza têm de ser postos como

unificados numa e na mesma pessoa. No estado somente

o direito deve dominar, no reino da eticidade somente o

dever deve ter poder, na medida em que ele é reconhecido

pela razão do indivíduo enquanto lei. (TWA 2, 87/88)

Com efeito, o ponto comum entre ambas as ―realizações‖

práticas da dominação sob o universal vazio é uma ―absoluta e

fixa polaridade de liberdade e necessidade‖, a qual não permite

―pensar em nenhuma síntese e em nenhum ponto de indiferença‖

e pela qual ―a transcendentalidade se perde totalmente no

fenômeno e em sua faculdade, o entendimento.‖ Desta maneira,

diz Hegel, a identidade absoluta ―não pode se resolver

verdadeiramente nem para o indivíduo no ponto de indiferença

da beleza do ânimo e da obra, nem para a comunidade livre

completa dos indivíduos numa associação (Gemeinde).‖ (TWA

2, 90) Entretanto, esta concepção, que tem suas raízes na crítica

da filosofia prática ensaiada em Frankfurt, não mais é

considerada em sua indiferença para com a ―interiorização do

senhor‖, mas antes a relação de dominação sobre a natureza

pulsional do indivíduo, que se processa pela interiorização do

universal formal, revela, frente à exterioridade mútua de vontade

universal e vontade singular, seu caráter ―mais inatural‖25

; pois,

enquanto o direito formalista supõe que ―a crença na unicidade

do interior com o exterior não se dá‖; por outro lado, na moral,

se ... o mandante é transferido para o próprio ser humano,

e nele são absolutamente contrapostos um mandante e um

sujeitado, então a harmonia interior é destruída. Não-

unicidade e cisão absoluta constituem a essência do ser

humano. Ele tem de procurar por uma unidade, mas, no

25 ―Ser seu próprio senhor e escravo parece, na verdade, ter uma vantagem

diante do estado em que o ser humano é o escravo de um estranho.

Entretanto, a relação (Verhältnis) da liberdade e da natureza, se acaso, na

eticidade, ela deve se tornar uma dominação e escravidão subjetiva, uma

opressão própria da natureza, se torna muito mais inatural do que a relação

(Verhältnis) no direito natural, no qual o mandante e detentor do poder

aparece como um outro que se encontra fora do indivíduo vivo.‖ (TWA 2,

88)

Filosofia, Reconhecimento e Direito 29

caso de uma não-identidade que jaz no fundamento, resta-

lhe tão-somente uma unidade formal. (TWA 2, 88)

Para os propósitos do presente trabalho convém,

sobretudo, sublinhar que o programa da crítica hegeliana ao

direito natural de Fichte nos ―textos especulativos‖ dos primeiros

anos de Jena (Differenzschrift e Glauben und Wissen), não se

limita somente a uma crítica a um certo modelo de estado, ou

melhor, a um certo modelo de relação entre o indivíduo e o

estado, mas antes diz respeito fundamentalmente a um modelo

jurídico de intersubjetividade dos indivíduos em comunidade

política. Primeiramente, o problema para Hegel é que a

comunidade política é compreendida como uma rede de relações

limitativas e definidoras das esferas de ação e cuja finalidade é

propiciar a vida em comunidade de liberdade exterior: ―esta

comunidade de seres racionais, aparece enquanto condicionada /

pela limitação necessária da liberdade, a qual dá a si mesma a lei

de se limitar.‖ (TWA 1, 81/82) Que, no direito natural de Fichte,

a ―comunidade ... seja representada como uma comunidade de

seres racionais, a qual tem de pegar o atalho pela dominação do

conceito‖ (TWA 2, 81); e o estado, compreendido como

subsunção26

dos indivíduos sob o universal exterior, ―o inteiro

edifício da comunidade de seres vivos ... seja erguido pela

reflexão‖ (TWA 2, 81), tem seu fundamento, para Hegel, numa

compreensão limitativa da intersubjetividade social que torna

inviável a recuperação, na esfera comunitária, da identidade

originária da razão, enunciada como ponto de partida do sistema.

―Cada ser racional é um duplo para o outro: a) um ser racional,

livre; b) uma matéria modificável, um apto (ein Fähiges) a ser

tratado como mera coisa.‖ (TWA 2, 81) É nestes termos que

Hegel compreende que a matriz intersubjetiva da teoria fichteana

do direito dilacera de maneira irreconciliável a unidade da razão

viva e livre e a transforma numa multidão atomística de seres

racionais que revelam, cada um em si mesmo e para o outro, a

26 ―O direito deve acontecer, mas não enquanto liberdade interior, mas sim

enquanto liberdade exterior dos indivíduos, a qual é um ser-subsumido dos

mesmos sob o conceito, que lhes é estranho.‖(TWA 2, 425)

Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 30

heterogeneidade absoluta da liberdade e da matéria modificável

que os ―compõem‖ individualmente. ―Esta separação é absoluta

e, desta maneira, assim como ela uma vez jaz no fundamento da

sua inaturalidade, nenhuma relação pura (reine Beziehung)

[deles] um em face do outro é mais possível, e toda relação é um

dominar e ser-dominado conforme leis de um entendimento

conseqüente.‖ (TWA 2, 81)

Para Hegel, o estado fichteano se constitui pela

ampliação ―vertical‖ de uma estrutura limitativa de relação

intersubjetiva ou horizontal às diferentes esferas da interação

social, uma estrutura que Hegel compreende, seguindo sua

investigação em Frankfurt, como tributária da racionalidade,

fundada na reflexão, e que se depara com o outro tal como se

defronta com um objeto manipulável, e cujo exercício

intrasubjetivo aparece no embate virtuoso entre o impulso ético e

a natureza impulsiva. ―O direito natural se torna, através da

oposição absoluta do impulso puro e do impulso natural, uma

apresentação da completa dominação do entendimento e

escravidão do vivo‖ (TWA 2, 87) A contraposição absoluta e

irreconciliável no interior do indivíduo entre o impulso vazio

para a liberdade e para a autodeterminação e o impulso natural

ou Naturtrieb, estão, para Hegel, necessariamente conectadas à

compreensão fichteana de comunidade, como um ordenamento

jurídico que, muito embora se veja impelido ao melhoramento,

conforme a razão, vê-se condenado a permanecer eternamente no

âmbito de um Notstaat, numa esfera da ampliação indefinida da

matriz jurídica de uma intersubjetividade individualista e

atomística (Verhältnis) a toda e qualquer relação comunitária

(Beziehung), pelo quê se faz renúncia a ter que ―tornar

prescindíveis as leis através dos costumes‖ (TWA 2, 83/84).

―Este estado (Stand) da necessidade é afirmado como direito

natural e, na verdade, não de maneira que seu fim supremo fosse

suspendê-lo e, no lugar desta comunidade conseqüente

(verständig) e irracional, construir, pela razão, uma organização /

da vida livre de toda escravidão sob o conceito; mas antes o

estado da necessidade (Notstand) e sua extensão infinita sobre

todos os estímulos (Regungen) da vida valem, enquanto

necessidade absoluta.‖ (TWA 2, 83/84)

Filosofia, Reconhecimento e Direito 31

É neste sentido, portanto, que Hegel constata, na

compreensão fichteana de comunidade, que uma compreensão

essencialmente limitativa da intersubjetividade implica a total

ausência de relações (Beziehungen) que caracterizam uma

comunidade bela e livre, mas acima de tudo viva, dotada de uma

constituição orgânica. A comunidade política de Fichte é, para

Hegel, ―um edifício no qual a razão não tem nenhuma

participação e o qual ela, portanto, censura, porque ela tem de se

encontrar, de maneira mais expressa, na organização mais

perfeita que pode conferir a si mesma: na configuração de si

mesmo em um povo.‖ (TWA 2, 87) Para Hegel, a matriz da

intersubjetividade jurídica, que se caracteriza sobretudo pela

necessidade prática de limitação interior ou exteriormente

motivada da liberdade exterior do indivíduo, em nome da

liberdade exterior dos outros, reverte-se em dominação do

conceito e escravidão da natureza, isto é, em violação da beleza

da unificação vital originária dos indivíduos pelo cálculo

intelectual das condições de possibilidade de uma comunidade

em liberdade exterior. ―A liberdade é o caráter da racionalidade,

ela é o que em si suspende toda limitação e o mais elevado do

sistema fichteano. Na comunidade com os outros, entretanto, ela

tem de ser renunciada, para que a liberdade de todos os seres

racionais que estão em comunidade seja possível; e a

comunidade é, novamente, uma condição da liberdade.‖ (TWA 1,

81/82) É por trás desta violação da vida pela fixação das

limitações da liberdade que se esconde, para Hegel, o caráter

desumano e tirânico das leis reguladoras da vida comum dos

indivíduos. ―Se a comunidade dos seres racionais fosse,

essencialmente, um limitar da verdadeira liberdade, então ela

seria em si e / para si a suprema tirania.‖ (TWA 2, 82/83) Desta

consideração essencialmente negativa do teor ―jurídico‖ do

conceito fichteano de comunidade política é que se segue, para

Hegel, a transformação do princípio de liberdade absoluta numa

compreensão do estado como máquina, como construção do

entendimento, que reduz tanto relações éticas intersubjetivas,

quanto a relação entre indivíduo e estado a um ―dominar e ser-

dominado segundo regras de um intelecto conseqüente‖.

Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 32

Mas aquele estado do entendimento não é uma

organização, mas uma máquina, o povo não [é o corpo

orgânico de uma vida comum e rica, mas uma pluralidade

atomística e pobre de vida, cujos elementos são

substâncias absolutamente contrapostas, em parte uma

porção de pontos, de seres racionais, em parte matérias

multiplamente modificáveis pela razão – isto é, nesta

forma: pelo entendimento – elementos cuja unidade é um

conceito, cuja ligação é um dominar sem-fim. (TWA 2,

87)

Com efeito, para Hegel, o colapso formalista da

identidade originária da razão pela sua fixação na ―metade‖

supra-sensível do sujeito transforma a liberdade verdadeira, que

se objetiva em relações intersubjetivas ―solidárias‖ ou ―não-

excludentes‖, numa liberdade subjetivizada e apenas negativa,

exercida em relações intersubjetivas empobrecidas pelo caráter

essencialmente limitativo:

o conceito do limitar constitui o reino da liberdade, no

qual cada relação recíproca (Wechselverhältnis)

verdadeiramente livre, para si mesma infinita e ilimitada,

isto é, bela da vida, é aniquilada por meio disso: que o

vivo no conceito e matéria é lacerado, e a natureza é

posta em sujeição (Botmässigkeit). (TWA 1, 81/82)

A partir desta concepção negativa da liberdade do

indivíduo que faz valer sua esfera de um agir, de acordo com a

razão, pode-se reconduzir a crítica hegeliana à filosofia social de

Fichte ao embate entre duas concepções de liberdade. A partir de

Jena, o princípio fundamental da filosofia prática de Hegel é o

princípio da unidade de liberdade objetiva e subjetiva, ao passo

que a Fichte se reprova a fixação em um conceito eminentemente

subjetivo de liberdade. ―A liberdade tem de suspender a si

própria para ser liberdade. Evidencia-se novamente a partir disso

que liberdade aqui é somente um mero negativo, a saber:

indeterminidade absoluta, ou seja, assim como foi mostrado a

respeito do pôr-se a si mesmo, é um fator ideal – a liberdade

considerada do ponto de vista da reflexão.‖ (TWA 1, 81/82)

Filosofia, Reconhecimento e Direito 33

Obviamente, ambos são herdeiros diretos da compreensão

kantiana de que a autodeterminação perfaz a essência da

liberdade. Entretanto, enquanto Fichte se prende à idéia da

indeterminidade do ―pôr-se a si mesmo‖, Hegel pretende que a

unidade entre sujeito e objeto somente seja plenamente racional,

quando compreendida como totalidade, isto é, na medida em que

se entenda por liberdade o configurar-se a si mesma da razão

numa totalidade, objetivação da livre autodeterminação, a qual,

caso contrário, permanece apenas subjetiva e formal. Neste

embate se encontra o sentido maior daquela célebre sentença pela

qual Hegel, no Naturrechtaufsatz, marca a gênese de seu

conceito de liberdade absoluta a partir da crítica especulativa ao

livre-arbítrio e à compreensão jurídico-formalista do problema da

coerção: ―uma liberdade para a qual houvesse algo realmente

exterior e estranho, não é nenhuma liberdade: a essência dela e

sua definição formal são, justamente, que nada há de

absolutamente exterior.‖ (TWA 2, 476) Um tal conceito de

liberdade se distingue completamente do conceito formal de

liberdade como independência, justamente porque a concepção

desta autodeterminação formal concebe como exterior a si aquilo

de que quer se fazer independente, de maneira que, segundo

Hegel, a independência ou autonomia não satisfazem a uma

caracterização plenamente racional da liberdade, mas consistem

antes numa determinação da reflexão para a qual subsiste algo

exterior à racionalidade. Eis porque a liberdade racional de Hegel

se constitui em embate ferrenho contra a concepção reflexiva da

liberdade como inapelavelmente imersa na contradição, isto é,

contra o livre arbítrio, o conceito negativo de liberdade, a

indeterminidade. Para Hegel, o arbítrio, ―a contingência tal como

é enquanto vontade‖, ou ―a vontade enquanto

contradição‖(LFFD §15)27

, nada mais é do que a decantação

desta compreensão formal e finitizada da liberdade que é

somente engendrada pela autonomização do momento unitário da

27 Tradução de Marcos Lutz Müller: ―Linhas Fundamentais da Filosofia do

Direito ou Direito Natural e Ciência do Estado no seu Traçado

Fundamental‖. Texto completo em fase de publicação. Versão gentilmente

cedida pelo tradutor. A partir daqui, LFFD.

Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 34

razão concreta, uma compreensão à qual Hegel opõe a acepção

verdadeira da liberdade enquanto unidade dialética da identidade

ou do ser-um e da não-identidade ou do contrapor.

Por conseguinte, diante desta teoria inovadora da

verdadeira liberdade, torna-se possível um conceito não

limitativo da liberdade individual, isto é, a do indivíduo que se

objetiva em relações intersubjetivas ―solidárias‖ ou ―não-

excludentes‖ como constitutiva de relações vitais, relações éticas

plenamente racionais e, por isso mesmo, condições da identidade

dos indivíduos. Se, no quadro geral da matriz intersubjetiva da

concepção fichteana de interação social, ―o direito tem de

acontecer, mesmo que, para isso, confiança, prazer e amor, todas

as potências de uma identidade genuinamente ética, tenham de

ser, como se diz, completamente extirpadas‖ (TWA 2, 87); para

Hegel, um outro tipo de intersubjetividade é mais condizente

com sua compreensão não limitativa de liberdade individual: ―a

comunidade da pessoa com outra tem, por isso, de ser vista não

como uma limitação da verdadeira liberdade do indivíduo, mas

antes como uma ampliação da mesma.‖ (TWA 2, 82) Para Hegel,

é, justamente, no âmbito de uma relação intersubjetiva solidária,

não-excludente, não-limitativa, não-individualista que a

liberdade individual encontra sua verdade e, pela suspensão de

sua fixação na subjetividade da independência e da

indeterminação, encontra-se objetivada no mundo. ―Através de

uma comunidade genuinamente livre de relações vivas

(Beziehungen) o indivíduo renunciou à sua indeterminidade, que

se compreendia como liberdade. Na relação viva (in der

lebendigen Beziehung) somente há liberdade, na medida em que

ela encerra em si a possibilidade de suspender a si mesma e de

travar outras relações (Beziehungen), isto é, a liberdade é,

enquanto fator ideal, nulificada.‖ (TWA 2, 83)

É verdade que Hegel permite, na Differenzschrift e em

Glauben und Wissen, que se compreenda apenas muito

indiretamente, a partir de sua crítica à intersubjetividade e à

compreensão de comunidade política em Fichte, o que ele

mesmo compreende como sendo o genuinamente livre e

Filosofia, Reconhecimento e Direito 35

verdadeiro conceito de comunidade28

. Em tais escritos, Hegel

não deixa claro como deve se configurar politicamente esta

28 Baumanns (1972) compreende a crítica hegeliana à filosofia social e política

de Fichte, especialmente em sua forma apresentada na Differenzschrift, no

registro geral da refutação daquela tese acerca do desenvolvimento do

idealismo alemão imortalizada por Richard Kroner e segundo a qual as

filosofias de Fichte e Schelling deveriam ser consideradas como estágios no

desenvolvimento da concepção de filosofia do idealismo absoluto de Hegel.

Kroner, Richard – Von Kant bis Hegel, Tübingen, 1961. Neste sentido, a

crítica hegeliana tanto aos princípios fundamentais do idealismo fichteano

como à sua filosofia social são marcadas, para Baumanns, por uma tentativa

mais ou menos manifesta de Hegel de encontrar em Fichte os prenúncios

tanto de sua concepção de filosofia especulativa, quanto de seu conceito de

liberdade absoluta.(Baumanns, 141). Entretanto, segundo Baumanns,

enquanto a crítica da Differenzschrift à doutrina-da-ciência é desferida a

partir de uma posição que Hegel não mais abandona no desenvolvimento

subseqüente de seu sistema – qual seja, a dialética da razão absoluta –, a

crítica hegeliana à filosofia político-jurídica de Fichte se baseia sobretudo

numa concepção ético-política que, ao contrário, Hegel abandonaria no

desenvolvimento posterior (Baumanns, 143). Aquilo que aqui nós

gostaríamos de perceber como uma re-aproximação de Fichte e uma absorção

da estrutura intersubjetividade jurídica no quadro mais amplo de uma teoria

dos estágios de intersubjetividade que contribuem para a gênese da

identidade entre o indivíduo e a comunidade na eticidade absoluta – processo

que, sem dúvida, encontra ecos tanto nos Jenaer Systementwürfe, quanto nas

versões da Enciclopédia, assim como na própria teoria da eticidade moderna

nas Grundlinien – Baumanns vê apenas como o sinal de que Hegel vai

paulatinamente abandonando, pela absorção da gewalthabendes Gesetz ou

mesmo da Rechtspflege no quadro mais amplo do desenvolvimento da

eticidade, o projeto inicial que se vincula à Differenzschrift: a concepção

excessivamente ligada à idealização juvenil da polis grega de uma

comunidade bela, livre e viva. Neste sentido, para Baumanns, o próprio

desenvolvimento da filosofia política de Hegel em Jena já marca este

processo pelo qual a idéia jenense original de substituir leis pela imediatidade

mediatizada dos costumes é simplesmente abandonada por uma revalorização

do papel a ser desempenhado pela estrutura da intersubjetividade jurídica na

construção do conceito de eticidade (Baumanns, 144 e seg.). Por outro lado,

o presente trabalho se filia a uma concepção deste desenvolvimento que

remonta aos trabalhos de Ludwig Siep (1976) e Axel Honneth (1992). O fato

de que a estrutura formal da intersubjetividade jurídica tenha sido

paulatinamente incorporada ao processo de gênese da eticidade absoluta não

significa, de maneira nenhuma, que o projeto de uma compreensão não

individualista de comunidade tenha sido abandonado. O direito e os modos

de ação recíproca associados ao paradigma jurídico-moral de

Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 36

interação viva dos indivíduos uns aos outros, ou entre os mesmos

e a vontade comum da comunidade. Entretanto, Hegel já antecipa

que, primeiramente, a razão se encontra mais expressamente a si

mesma em sua autoconfiguração em um povo (TWA 2, 87); em

segundo lugar, que, nesta totalidade ética orgânica do povo, a

comunidade humana encontra, politicamente, sua expressão

plenamente racional, que nadifica as contraposições da reflexão:

―a mais elevada comunidade é a mais elevada liberdade, tanto

segundo o poder, quanto segundo a execução – a mais elevada

comunidade, na qual, contudo, justamente a liberdade, enquanto

fator ideal, e a razão, enquanto contraposta à natureza, são

inteiramente anuladas.‖ (TWA 2, 82). Finalmente, para Hegel,

nesta totalidade orgânica, a natureza ética tem sua ―efetividade,

intersubjetividade são compreendidos por Hegel como um estágio de

desenvolvimento da totalidade ética e parecem estar nela conservados

enquanto garantia institucionalizada de proteção à identidade da pessoa. Por

outro lado, o estágio da relação intersubjetiva efetivada na totalidade ética do

povo traz em seu bojo não somente esta garantia institucionalizada de

respeito universal à pessoa na forma de direitos individuais e que se funda na

limitação recíproca da liberdade de ação, mas sobretudo o reconhecimento e

reafirmação por parte do outro e da comunidade como um todo de aspectos

singulares da formação da identidade individual. É neste sentido que

interpretamos aqui a tese de Honneth segundo a qual o estágio de

intersubjetividade que se efetiva ao nível da eticidade absoluta contém, além

dos aspectos eminentemente negativos e limitativos da intersubjetividade

jurídica, também a afirmação de possibilidades individualizadas de formação

das identidades, cujo espectro é considerado em geral como a esfera ética de

uma ―solidariedade social‖. No System der Sittlichkeit, Honneth pretende ver

alcançado este estágio de relação intersubjetiva no início do capítulo sobre

eticidade absoluta com a consideração acerca da wechselseitige Anschauung

dos indivíduos. ―Em sua apresentação da ―eticidade absoluta‖, que se segue

ao capítulo sobre o crime, é afirmado, como fundamento intersubjetivo de

uma futura comunidade, uma relação específica entre os sujeitos, para a qual

se encontra aqui a categoria de ―intuição recíproca‖: o indivíduo ―vê-se‖ em

todo outro como a si mesmo. Com esta formulação, Hegel... tentou

caracterizar uma forma superior de relação recíproca entre os sujeitos. Tais

modelos de um reconhecimento que chega até o elemento afetivo, para a

qual se oferece sobretudo a categoria de ―solidariedade‖, devem

manifestamente fornecer a base comunicativa sobre a qual os indivíduos

isolados uns dos outros pela relação de direito, possam se reencontrar mais

uma vez no quadro mais amplo de uma comunidade ética.‖

Filosofia, Reconhecimento e Direito 37

na qual o eticamente infinito, ou o conceito, e o eticamente finito,

ou a individualidade, são pura e simplesmente um.‖ (TWA 2,

425)

A relação genuinamente ética entre o indivíduo e o

universal é abordada com considerável amplitude já no

Naturrechtaufsatz, numa discussão que tem seu cume na

decantação, sob a forma de uma Ständelehre de forte inspiração

platônica, da compreensão da relação entre a eticidade absoluta

do povo e a eticidade na perspectiva do singular, o momento

inorgânico da vida ética na esfera econômica da persecução dos

interesses particulares regulada pelas relações de direito privado.

Entretanto, se o objeto privilegiado do Naturrechtaufsatz é esta

absorção da eticidade na perspectiva da singularidade à

totalidade ética do povo, o processo mesmo de como esta

eticidade absoluta da comunidade política se constitui como

resultado do desenvolvimento da perspectiva individual, o qual

perpassa diversos níveis intersubjetivos de relação que são

conservados na totalidade do povo – dentre os quais a própria

dimensão jurídica do contato entre pessoas dotadas de direito –

jaz fora de seu interesse essencialmente crítico e programático.

Também em System der Sittlichkeit, a organicidade da eticidade

absoluta converge para uma Ständelehre similar àquela do

Naturrechtaufsatz e de forte inspiração platônica, em que a

relação do indivíduo à comunidade se vê atrelada à tese geral da

―tragédia no ético‖, isto é, ao auto-sacrifício do absoluto ao

inorgânico com vistas a se reconciliar, abarcando em si o

individualismo e a eticidade relativa da esfera jurídico-

econômica, com o destino engendrado, na história universal, pelo

destacamento do ―burguês‖ da eticidade imediata da polis antiga

e a elevação do Privatleben à categoria de modus vivendi

tipicamente moderno. Contudo, no System der Sittlichkeit, Hegel

se, vê pela primeira vez, envolvido, no registro da filosofia

social, com a tarefa traçada na Differenzschrift para a filosofia de

construir o absoluto, a partir da reflexão: no System der

Sittlichkeit, Hegel descreve o processo da gênese da eticidade

absoluta na totalidade do povo tendo como ponto de partida a

subjetividade singular do sentimento prático que se contrapõe ao

mundo, como esfera da satisfação de suas carências. Este

Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 38

processo se desenvolve também, segundo estágios prévios de

relação intersubjetiva entre os seres humanos e que, ao fim e ao

cabo, são conservadas em sua ―verdade relativa‖ e incompleta na

totalidade ética do povo. É justamente, neste contexto, que se

abre com System der Sittlichkeit que tem início a reaproximação

de Hegel com a concepção ―juridicamente reprimida‖ do

reconhecimento em Fichte: a limitação recíproca e o

reconhecimento omnilateral da liberdade de ação dos indivíduos,

seja no que concerne ao estofo originário de inteligibilidade que

as torna possível, seja em seu papel imprescindível na efetivação

ética da orientação universal pela persecução dos interesses

privados, ou ainda no potencial normativo inerente às

possibilidades de seu rompimento efetivo, é assimilado ao

processo de gênese intersubjetiva da plena reconciliação entre o

universal da comunidade e o indivíduo. De maneira geral, este

movimento de revalorização da intersubjetividade fundacional do

direito natural de Fichte29

, bem como sua ―generalização‖ na

forma da vinculação de suas condições de possibilidade e de

efetivação a outros níveis do Zusammenleben humano, é a tônica

dos ―esboços de sistema‖ do período jenense anterior à

Fenomenologia, os quais, em sua compreensão da relação entre

direito e eticidade, prenunciam o esquema geral do sistema

tardio, segundo o qual a unidade ética da eticidade natural da

família, cindida em seus momentos pelo advento do ethos

individualista da sociedade moderna, é recuperada no âmbito

político-público da cidadania do estado ético.

3. Intersubjetividade e Einssein: o Naturrechtaufsatz

A peculiaridade e a percepção fundamental do programa

para a construção do ―sistema da eticidade‖, lançado com o

Naturrechtaufsatz está sobretudo em que a compreensão

verdadeira da eticidade somente pode ser alcançada, se a

perspectiva do absoluto organicamente efetivado em um povo se

sobrepõe à existência social em sua perspectiva individualista,

29 Riedel, Manfred – „Hegels Kritik des Naturrechts― in: Studien zu Hegels

Rechtsphilosophie, Frankfurt am Main, 1969, 42-74

Filosofia, Reconhecimento e Direito 39

nadifica-a e a reintegra em si como um momento seu. Esta

percepção fundamental se concretizará, como já mencionado,

numa Ständelehre de inspiração platônica, pela qual Hegel

espera absorver na totalidade ética do povo, como fundamento

para sua concepção de reconciliação ou integração política, a

dilaceramento da vida ética imediata pela intensificação do

modus vivendi próprio às sociedades modernas. Numa

perspectiva histórica, este dilaceramento se processa pelo

destacamento, a partir da vida plenamente pública, de um âmbito

eminentemente individualista de realização da liberdade, de uma

esfera da vida econômica regulada pelos princípios jurídico-

privados, na qual os indivíduos, contrapondo-se entre si como

pessoas privadas, são ―liberados‖ para a persecução de seus fins

e interesses particulares. Para Hegel, é somente nesta esfera

destacada e reabsorvida na totalidade ética do povo, nesta cisão

do absoluto consigo mesmo e reintegração (a)dentro de si de seu

momento de diferença, que a ―eticidade do singular‖ obtém –

quer como um sistema de ―virtudes públicas‖, quer como um

sistema de prescrições jurídico-morais que reflete as exigências

normativas dos dispositivos jurídicos reguladores da atividade

econômica – sua verdade. Neste movimento, a ―eticidade do

singular‖ tem expostas as condições do amortecimento de suas

tendências político-comunitárias desagregadoras.

Resta muito pouco a fazer no que diz respeito a

promover uma compreensão adequada das reflexões presentes no

texto de 1802/180330

. O alvo privilegiado deste trabalho no que

30 Na análise de temas discutidos no Naturrechtaufsatz, o presente trabalho se

encontra numa situação mais ―complicada‖ do que aquela que M. L. Müller

retrata na introdução de seu brilhante artigo sobre o importante texto

hegeliano. ver Müller, Marcos L. –―O direito natural de Hegel:

pressupostos especulativos da crítica ao contratualismo‖, in: Filosofia

Política. Rio de Janeiro, RJ: , n.5, p.41 - 66, 2003. Esta situação se explica

pelo fato de que, além da interpretação genial fornecida por Bernard

Bourgois ver Bourgeois, Bernard – Le Droit Naturel de Hegel (1892-1803)-

Commentaire: Contribuition à l´étude de la genèse de la spéculation

hégélienne à Iéna, Paris, 1986, a qual, para além da discussão precisa do

texto, confere ao artigo de Hegel importante papel não só na solidificação e

tematização de suas principais teses ético-políticas, mas ainda na elaboração

de sua filosofia especulativa como um todo, temos também diante dos olhos a

Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 40

concerne ao Naturrechtaufsatz não é tanto aquilo que poderia ser

compreendido sob o tópico geral do ―processo de auto-

diferenciação do absoluto prático‖(Müller 2002), o qual

direciona a crítica especulativa ao ―formalismo do entendimento

prático‖ e à sua compreensão do nexo social, fundado na coerção

como preâmbulo para a ―demonstração‖ especulativa da pertença

do indivíduo à totalidade ética do povo, bem como para a

recuperação na modernidade do teor sócio-integrador próprio à

tese aristotélica da ―anterioridade da polis sobre o indivíduo‖.

Pretende-se, aqui, lançar bases para a conexão, nos dois

primeiros textos de filosofia prática em Jena, o Naturrechtaufsatz

e System der Sittlichkeit, entre a relação indivíduo-comunidade,

recente, concisa e excepcional interpretação de Müller acerca da articulação

entre a crítica do formalismo, empreendida na segunda parte do artigo, e a

parte propriamente positiva, a terceira parte, na qual Hegel delineia pela

primeira vez seu programa para um ―sistema da eticidade‖. Na medida em

que Müller se ocupa principalmente da gênese do processo de

―autodiferenciação do absoluto prático‖ enquanto totalidade ética a partir da

crítica ao formalismo da concepção fichteana de comunidade política e da

suspensão da infinitude absolutamente negativa da filosofia da reflexão – e

isto com vistas a tematizar, pela via da consideração dos conceitos de

liberdade absoluta e de pertença do indivíduo à comunidade ética, o resgate

hegeliano da tese aristotélica da ―anterioridade da polis sobre o indivíduo‖

em face do individualismo e atomismos próprios às doutrinas modernas do

direito natural – torna-se com isso, aliado à amplitude da obra de Bourgeois,

o fundamento da interpretação que aqui desejamos utilizar acerca do ―direito

natural‖. Outrossim, vinculada a esta interpretação principal, há que se

mencionar também a obra de Kimmerle, que se constitui, enquanto resultado

de um trabalho especialmente importante de datação dos escritos de Jena,

como um marco dentro da Hegelforschung ver Kimmerle, Heinz – Das

Problem der Abgeschlossenheit des Denkens. Hegels „System der

Philosophie“ in den Jahren 1800-1804, Bonn(Beiheft 8 der HST), bem

como o recente e competente artigo de Cruysberghs ver Cruysbergs, Paul –

―Hegel´s critique of modern natural law‖ ‖, in: Wylleman, A. (ed.) – Hegel

on the ethical life, religion and philosophy , 1793 – 1807, 81-117. Para

além destes trabalhos, deve-se incluir ainda o formidável livro de

Schnädelbach, o qual permite a visualização das conexões que podem ser

estabelecidas entre o Naturrechtaufsatz e os demais textos hegelianos sobre

filosofia prática, especialmente o System der Sittlichkeit, os Jenaer

Systementwürfe e as Grundlinien. ver Schnädelbach, Herbert – Hegels

praktische Philosophie: Ein Kommentar der Texte in der Reihenfolge ihrer

Entstehung, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 2000

Filosofia, Reconhecimento e Direito 41

compreendida segundo o ―processo de autodiferenciação do

absoluto prático‖ e a questão, que já faz parte de System der

Sittlichkeit, de que modo e como esta relação de

autodiferenciação da substância ética suscita uma compreensão

do processo de apresentação da totalidade ética como contendo

níveis de intersubjetividade, dentre os quais se constituem a

intersubjetividade íntima e afetiva dos membros da família, a

relação jurídica do respeito recíproco à esfera de ação da pessoa

e o pleno reconhecimento ―solidário‖ dos cidadãos no âmbito

público da comunidade. O intuito geral desta investigação seria o

aprofundamento da tese segundo a qual os primeiros textos de

filosofia prática de Jena propiciariam a integração da filosofia

política clássica e do direito natural moderno na forma de uma

unificação entre a concepção aristotélica da ―anterioridade da

polis‖ e a concepção jusnaturalista hobbesiana-espinosana31

. Tal

31 Ilting, Karl-Heinz – „Hegels Auseinandersetzung mit der aristotelischen

Politik―, in: Frühe politische Systeme: System der Sittlichkeit, Über die

wissenschaftlichen Behandlungsarten des Naturrechts, Jenaer

Realphilosophie. Herausgegeben und kommentiert von Gerhard Göhler,

Frankfurt am Main, Ullstein 1974, 759-785 Neste célebre artigo, Ilting

sustenta conexões interessantes capazes de indicar o teor da integração

promovida por Hegel entre a filosofia política clássica e as teorias modernas

do direito natural. Em primeiro lugar, segundo Ilting, o programa de um

―sistema da eticidade‖, delineado no Naturrechtaufsatz e levado a termo

graças ao alinhamento de Hegel à Potenzenmethode de Schelling no System

der Sittlichkeit, caracteriza-se sobretudo por uma equiparação da doutrina

espinosana da substância infinita, à qual Hegel adere imediatamente depois

da Seinsmetaphysik do período de Frankfurt graças à influência do projeto

schellingniano de mediação entre Kant e Espinosa, com a doutrina

aristotélica da comunidade política. Esta equiparação permite a Hegel

fundamentar a primazia do positivo ou do povo no fato de que este, enquanto

substância que se diferencia, é primordial em relação ao negativo ou ao

indivíduo. Segundo Ilting, esta intenção hegeliana de recuperar a

determinação espinosana da relação entre a substância e suas modificações

no interior da discussão político-filosófica definida pela relação aristotélica

entre indivíduo e estado, se processa na contramão da própria intenção

espinosana: esta equiparação ultrapassa a compreensão espinosana do direito

natural, na medida em que Espinosa não compreende, em nítida vinculação

às concepções jusnaturalistas de Hobbes, o estado segundo o paradigma

aristotélico de uma efetividade primordial da comunidade em face do

indivíduo. Neste sentido, Ilting compreende o projeto hegeliano traçado nos

Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 42

aprofundamento consistiria na percepção da importância do

conceito fichteano de intersubjetividade, o qual se liga,

principalmente, à dedução da Rechtsverhältnis, para este projeto

de integração. Lançar bases para que se possa futuramente fazer

ver na consecução, por parte de Hegel, do programa geral de

desenvolvimento conceitual da eticidade segundo níveis de

intersubjetividade, uma integração de Aristóteles e Fichte32

seria

o objetivo primordial do presente artigo.

primeiros textos de filosofia prática em Jena como uma tentativa de unificar

visceralmente a política de Aristóteles com o direito natural tal como ele é

compreendido pelo pensamento político que se inicia com Maquiavel, passa

por Hobbes e chega até Espinosa. Esta tese de leitura Ilting pretende

confirmar sobretudo apelando à estrutura tripartite de System der Sittlichkeit.

Para Ilting, nesta chave de leitura, três autores teriam sido significativos para

Hegel. Primeiramente Maquiavel, cujas teses políticas pragmáticas incapazes

de ultrapassar os limites da prudência política somente com Hobbes

adquiriram fundamentação filosófica rigorosa (Honneth 1992). À

incontestável influência de Hobbes nas concepções hegelianas desta fase em

Jena e que se vinculam à luta por reconhecimento já se aludiu de maneira

bastante consistente. ver Siep, Ludwig –„Der Kampf um Anerkennung. Zu

Hegels Auseinandersetzung mit Hobbes in den Jenaer Schriften―, in: Hegel-

Studien (1974), 155-209 32 Uma tal tendência interpretativa encontra respaldo na mais recente pesquisa

sobre a datação dos manuscritos jenenses de Hegel. Em 2002, foi reeditado

na Alemanha aquele manuscrito hegeliano de 1802-1803, copiado por Karl

Rosenkranz, publicado por Georg Lasson com o título de ―System der

Sittlichkeit‖ [in G.W.F Hegel, Sämtliche Werke, Band 7, Schriften zur Politik

und Rechtsphilosophie,Leipzig, 1913, 415-499]. Nesta nova edição,

preparada por Horst D. Brandt e prefaciada por Kurt Rainer Meist, defende-

se, com excelente embasamento técnico, a tese de que não só a presumida

data de composição está errada, mas que, possivelmente, não se trata no texto

de um trabalho preparatório de Hegel acerca daquilo que depois seria

apresentado, de maneira completa, como a filosofia do espírito objetivo, e

sim de uma crítica sistemática da teoria fichteana do direito natural, ou pelo

menos de parte de uma obra projetada por Hegel com este objeto. Em vista

das pesquisas técnicas levadas a termo com o fim de confirmar esta tese,

Brandt publica a reedição do texto com o seguinte título: G.W.F Hegel,

System der Sittlichkeit [Critik der Fichteschen Naturrechts], Hamburg:

Meiner, 2002. O System der Sittlichkeit representaria este interessante híbrido

na trajetória do desenvolvimento de Hegel, no qual a correção do

individualismo e atomismo próprios ao direito natural moderno, cuja forma

melhor acabada é o ―formalismo do entendimento prático‖, através do

recurso às concepções aristotélicas a respeito da ―anterioridade da pólis‖ –

Filosofia, Reconhecimento e Direito 43

A concepção do absoluto em voga no Naturrechtaufsatz

é decerto tributária da crítica hegeliana à filosofia da reflexão nos

primeiros anos em Jena, mas diferentemente matizada33

; e isto

tanto em virtude da intenção de promover a visualização do

absoluto ético em seu processo de autodiferenciação, quanto no

que concerne à progressiva adesão à filosofia de Schelling,

adesão que não é ainda completa na Differenzschrift ou em

Glauben und Wissen34

, mas se aprofunda nos textos de filosofia

correção que se realiza certamente pelo itinerário de uma equiparação da

polis aristotélica com a substância espinosana e se condensa na teoria da

autodiferenciação do absoluto prático –, encontra a possibilidade, suscitada

pela teoria fichteana da intersubjetividade, de apresentar o desdobramento da

totalidade ética na forma de uma superposição de paradigmas de relação

intersubjetiva que são conservados na efetivação da liberdade como

comunidade. Neste processo pelo qual a teoria fichteana da intersubjetividade

é absorvida na constituição da eticidade, também a importância dada por

Hegel à relação dos indivíduos que, no momento da reprodução material da

vida social, deparam-se como proprietários é consideravelmente aumentada,

ao passo que também as teses herdadas de Aristóteles com respeito à

eticidade natural da família também são reintegradas ao desdobramento da

comunidade ética na forma de um estágio de relação intersubjetiva. Não seria

um exagero, portanto, ver nesta integração de Fichte e Aristóteles o

nascedouro do plano definitivo de desdobramento da eticidade, e nem o

estabelecimento da conexão propriamente hegeliana entre eticidade e direito. 33 Não convém aqui tecer uma consideração pormenorizada das continuidades e

descontinuidades entre a Differenzschrift e o Naturrechtaufsatz. Para uma

compreensão segura deste tópico, indicamos os seguintes trabalhos:

Kimmerle, Heinz – Das Problem der Abgeschlossenheit des Denkens. Hegels

„System der Philosophie“ in den Jahren 1800-1804, Bonn(Beiheft 8 der

HST); Horstmann, R – „Problem der Wandlung in Hegels Jenaer

Systemkonzeption― in: Philosophische Rundschau, 19, 1973, pp. 87-118;

Meist, Kurt – „Hegels Systemkonzeption in der frühen Jenaerzeit―, in: Hegel

in Jena, pp 59-79. Especialmente no que diz respeito à relação entre Hegel,

Schelling e a ―administração‖ de sua herança espinosana, ver: Cruysbergs,

Paul – ―Hegel´s critique of modern natural law‖ ‖, in: Wylleman, A. (ed.) –

Hegel on the ethical life, religion and philosophy , 1793 – 1807, 81-117 34 Para uma consideração das principais divergências nas concepções do

absoluto em Hegel e Schelling, principalmente naquilo que, nos primeiros

anos da estadia de Hegel em Jena, fora costumeiramente considerado desde

o século XIX como uma adesão total, ver: Düsing, Klaus – „Die Entstehung

des Spekulativen Idealismus―, in: Transzendentalphilosophie und

Spekulation, hg. v. Walter Jaeschke, Hamburg, 1994, 144-163; Düsing, Klaus

– „Spekulation und Reflexion. Zur Zusammenarbeit Schellings und Hegels in

Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 44

prática, na forma de um alinhamento mais direto de Hegel com a

metafísica espinosana da substância – como expediente para a

compreensão da relação comunidade/indivíduo enquanto relação

substância/modificações 35

–; e alcança seu apogeu na utilização

do método das potências de Schelling, tanto na gênese da

liberdade absoluta no Naturrechtaufsatz, como na tentativa mais

ou menos artificial36

de submeter o desdobramento da

Jena―, in: Hegel-Studien 5 (1969), 95-128. No contexto em que estamos

trabalhando, é especialmente notável a consideração de que, ao contrário de

Hegel, que concebe como acesso apropriado ao absoluto a unidade de

reflexão e intuição, Schelling continua a se vincular ao privilégio do acesso

pela via da intuição intelectual. Ver: Siep, Ludwig – Der Weg der

Phänomenologie des Geistes. Ein einführender Kommentar zu Hegels

„Differenzschrift“ und „Phänomenologie des Geistes“, Suhrkamp, Frankfurt

am Main, 2000 35 Ver a penúltima nota sobre artigo de Ilting 36 Schnädelbach (2000) atribui o caráter fragmentário do System der Sittlichkeit

não simplesmente ao caráter inacabado do texto, mas sobretudo à tomada de

consciência por parte de Hegel da impossibilidade de utilizar o método das

potências de Schelling como princípio de construção da filosofia prática. Para

Schnädelbach, esta impressão é suscitada no leitor principalmente na parte

destinada à tentativa de sistematização segundo as potências dos motivos e

elementos da concepção da eticidade absoluta, onde o material parece

simplesmente não mais querer se submeter ao esquematismo do método.

Acerca de certas artificialidades na exposição, Schnädelbach diz: ―o que

Hegel pratica aqui metodicamente é a cunhagem particular de um apriorismo

conseqüente, segundo o qual tudo que nós podemos saber seriamente nós

sabemos a priori. As formulações diretivas deste método se encontram em

Schelling ... na introdução ao Esboço de um sistema de filosofia da natureza.

‖(111) Schnädelbach identifica, nestas insuficiências de método, o abandono

por parte de Hegel da tentativa de construir sua filosofia prática a partir da

subsunção alternada de conceito e intuição. Para ele, ―o Sistema da Eticidade

é o resultado problemático da tentativa de Hegel de repetir, na filosofia

prática, a concepção schellingniana de uma física especulativa. Mas sempre

se apresenta novamente que os dados empíricos não queiram se mobilizar em

favor do construído a priori. Isto tem início já com a construção do ―povo‖

enquanto intuição da totalidade do ético. Empiricamente restituível é isto

apenas com o recurso a um helenismo estilizado de maneira classicista no

mais alto grau e às auto-imagens que se encontram disto em Platão,

Aristóteles e no trágicos.‖(112) A virulência desta colocação certamente

impõe limites à tentativa de resgatar elementos pertinentes à concepção

hegeliana de intersubjetividade forjada a partir da assimilação da teoria

fichteana do reconhecimento. Neste ponto, entretanto, seguimos a

Filosofia, Reconhecimento e Direito 45

comunidade ética ao método de subsunção recíproca de conceito

e intuição. Assim, o projeto jenense de oferecer uma correção do

exacerbado individualismo em que incorrem as modernas teorias

do direito natural, através do recurso à filosofia política clássica

tem que ser compreendido dentro do desenvolvimento geral do

pensamento de Hegel: tem suas raízes na adesão frankfurtiana ao

ideário da Vereinigungsphilosophie e na posterior identificação

com a filosofia da identidade de Schelling, de maneira que se

enquadra no projeto de conhecimento absoluto do absoluto.

Diante da crítica hegeliana à filosofia da reflexão, pode-se dizer

que o objetivo desta correção não é uma ―restauração‖ pura e

simples do ideal político-comunitário da polis grega, mas antes a

demonstração da negatividade intrínseca à absolutização da

liberdade individual e do elemento social em que esta se realiza:

a atividade econômica juridicamente regulada. De acordo com a

tese jenense da ―cisão como fator da vida‖, se a negatividade da

esfera de exercício da liberdade individual tem de ser relativizada

em face do positivo da plena realização da liberdade na

comunidade, isto somente pode ocorrer não pela supressão pura e

simples deste momento, mas apenas pela demonstração de seu

caráter de momento do todo – um momento ao qual,

especialmente em circunstâncias modernas, cabe um devido

direito de existência.

Quaisquer que sejam as inovações introduzidas pela

concepção hegeliana do absoluto no Naturrechtaufsatz, em

relação à adesão anterior, à filosofia da identidade de Schelling,

elas devem ser consideradas como pano de fundo diante do

objetivo primordial do artigo: lançar mão de uma crítica das

tradições empirista e formalista do direito natural moderno, que

as procura relativizar pela concepção de absoluto, a fim de

revelar a suspensão de ambas como preâmbulo ao delineamento

do processo de autodiferenciação do absoluto ético. Portanto, a

interpretação de Honneth, para quem ―Hegel utiliza no System der

Sittlichkeit, enquanto forma de sua exposição, o método da subsunção

recíproca de conceito e intuição.... Entretanto, ao teor filosófico-social do

escrito o procedimento metódico permanece, se acaso eu vejo corretamente,

amplamente exterior.‖ (Honneth 1992)

Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 46

medida utilizada na crítica do direito natural é o que Hegel

chama de idéia da eticidade absoluta e que corresponde ao modo

do aparecimento do absoluto, enquanto natureza ética, isto é,

enquanto unidade absoluta da indiferença e do momento

relacional no qual há primazia da unidade sobre a multiplicidade.

O destaque dado ao formalismo reside em que este eleva o

procedimento do empirismo ao seu conceito, de maneira que,

tomando como ponto de partida o conceito absoluto, torna-se

mais simples ―complementar‖ a concepção de absoluto em toda

sua envergadura; pois ―se nós isolássemos agora este lado da

identidade relativa e não reconhecêssemos, para a essência da

natureza ética, a unidade absoluta da indiferença e desta

identidade relativa, mas antes, o lado da relação ou da

necessidade, então nós estaríamos no mesmo ponto no qual a

essência da razão prática... é determinada... e o absoluto é

apreendido (begriffen) somente, enquanto negativamente

absoluto, ou seja, enquanto infinito.‖ (TWA 2, 457) Assim, pode-

se dizer que o ponto fundamental da crítica hegeliana a ambas

vertentes jusnaturalistas é que elas se encontram estagnadas no

momento relacional, no momento da oposição fixa entre unidade

e multiplicidade. As duas se distinguem, de acordo com Hegel,

pelo fato de o empirismo é presa de uma espécie de ―dogmatismo

dos fatos‖, de maneira que não toma consciência de que seu

proceder se caracteriza pela elevação de um momento particular

do múltiplo ao status de absoluto; o formalismo absolutiza, por

sua vez, o momento da unidade pura, da infinitude e, por meio

disso, toma consciência da relação como tal, mas, ao permanecer

nesta posição fixa e unilateral, não é capaz de mover-se até a

indiferença como momento essencial do absoluto.

Princípio e fim do formalismo é a infinitude como

negatividade absoluta, a unidade resultante do processo de

negação de toda multiplicidade finita, o absoluto negativo. Para

Hegel, esta posição é insuficiente, pois o absoluto é, ao lado de

sua unidade puramente negativa no conceito, também unidade

positiva da intuição, não somente forma absoluta, mas também

substância absoluta: o absoluto não é somente oposição de

unidade e multiplicidade, mas totalidade absoluta, unidade como

indiferença de ambos. De posse de seu princípio na unidade

Filosofia, Reconhecimento e Direito 47

puramente formal e ao abstrair da multiplicidade, o formalismo

abstrai também da indiferença entre uno e múltiplo, impede a si

mesmo de vislumbrar a nulidade da oposição destes dois termos

enquanto opostos. ―Esta ciência do ético, que fala sobre a

identidade absoluta do ideal e do real, não procede, portanto,

segundo suas palavras, mas antes a razão ética da mesma é, na

verdade e em sua essência, uma não-identidade do ideal e do

real.‖ (TWA 2, 456) O Fazit hegeliano com respeito à posição

formalista é a fixação da oposição como absoluta e a redução da

realidade ao momento relacional da causalidade recíproca

(teórica ou prática) entre unidade e multiplicidade (TWA 2,

455/456).

Esta compreensão da atitude formalista, que recupera

toda a crítica hegeliana ao universal vazio desde Frankfurt e dos

primeiros textos de Jena, está na base de sua posição de que uma

moral da razão pura prática construída formalmente, é

impossível: como o conteúdo é o que, por definição, é

absolutamente apartado da forma racional, uma determinidade

qualquer somente pode ser assimilada à forma pura de uma

maneira puramente contingente ou empírica, o que, de certa

maneira, já fora o procedimento do empirismo, ainda que

inconscientemente.

Este real está posto essencialmente fora da razão, e

somente na diferença em face do mesmo há a razão

prática, cuja essência é apreendida (begriffen) como uma

relação de causalidade sobre o múltiplo - como uma

identidade que é afetada absolutamente por uma diferença

e que não escapa para fora do aparecimento

(Erscheinung). (TWA 2, 456)

Hegel mostra, primeiramente, esta impossibilidade numa

crítica ácida da moral kantiana, a qual, apesar de não considerar

com inteira isenção à posição de Kant, é retomada, em suas

linhas gerais, no desenvolvimento subseqüente da filosofia

hegeliana. De qualquer forma, no Naturrechtaufsatz, a baliza

crítica é sempre o fato de que a absolutização da unidade vazia

traz consigo a impossibilidade da compreensão da nulidade da

Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 48

oposição entre forma e conteúdo, o que implica a fixação da

eticidade individual como uma relação de dominação da unidade

sobre a multiplicidade. Para Hegel, a razão pura prática de Kant,

―ao ser desta maneira isolada, ela própria é somente a forma sem

força, abandonada pelo poder verdadeiramente nadificador da

razão, forma que assimila a si as determinidades e as abriga

sem nadificá-las, mas antes as pereniza em seu contrário.‖ (TWA

2, 468/469)

A consideração de Fichte é, decerto, mais fiel ao espírito

do direito natural fichteano e retoma questões presentes na

Differenzschrift. Mas no Naturrechtaufsatz a concepção

unilateral da comunidade política atribuída a Fichte é referida

diretamente à inobservância do momento da indiferença. Tal

como na relação interior ao indivíduo, que caracteriza a moral

kantiana, a absolutização do momento da infinitude negativa

conduz Fichte a uma compreensão do estado como um sistema

coercitivo, como uma vontade universal que se realiza enquanto

unidade coagida das múltiplas vontades dos indivíduos. Não se

pretende aqui percorrer toda a crítica de Hegel ao estado

fichteano, o que conduziria a um exame da crítica da concepção

de Eforado, bem como sua demonstração da impossibilidade de

funcionamento de um estado assim concebido37

. Mais uma vez o

que nos interessa aqui é, propriamente, a crítica hegeliana a uma

certa concepção de intersubjetividade que está por trás da

possibilidade de dominação social institucionalizada da unidade

sobre a multiplicidade. A crítica de Hegel não se dirige apenas ao

fato de que as vontades individuais têm de ser subsumidas, sob a

vontade universal da comunidade política, mas ainda mais

fundamentalmente ao fato de que devem ser coagidas pela

vontade universal a estabelecerem um ambiente intersubjetivo de

mútuo respeito aos direitos do outro.

No Naturrechtaufsatz, Hegel se ocupa, ainda que de

maneira implícita, com a compreensão fichteana de

intersubjetividade, na medida em que esta diz respeito à

constituição da comunidade, segundo os preceitos individualistas

37 Para uma leitura pormenorizada sobre a crítica hegeliana ao Eforado, ver

Müller (2002) e Bourgeois (1986)

Filosofia, Reconhecimento e Direito 49

de uma intersubjetividade ―excludente‖. Curiosamente, isto se dá

em íntima conexão com uma crítica à separação entre moral e

direito. Compreender o caráter exclusivamente conceitual que,

segundo Hegel, reveste a passagem entre a discussão da moral

universalista e o jusracionalismo fichteano, não é tão simples.

Conforme Hegel, operante nesta ―relação ulterior‖ (nähere

Beziehung) continua sendo a ―contraposição insuperável posta‖

(gesetzte unüberwindliche Trennung) que consiste na sua fixação

como uma identidade relativa (TWA 2, 468). Entretanto, assim

pensa Hegel, a discussão passa de um nível geral para um âmbito

em que a contraposição aparece em sua maneira peculiar.

O que pode facilitar a compreensão do difícil parágrafo

inicial da crítica a Fichte, no Naturrechtaufsatz, é a interpretação

que Hegel faz da separação fichteana entre moralidade e

legalidade, tendo como pano de fundo o movimento dialético do

ser-para-si, que marca a passagem da qualidade à quantidade na

lógica do ser, desenvolvida por Hegel de maneira pormenorizada,

no primeiro livro da Ciência da Lógica (TWA 5, 174 e seg) e,

resumidamente, nos §§ 96 a 98 da Enciclopédia. O ser-para-si é,

segundo Hegel, o resultado da dialética da alteração, da

passagem incessante de algo ao outro, a restauração do ser como

negação da negação. O sendo-para-si, a consumação da

qualidade, é, na medida em que contém o ser como

suprassumido, a imediatez da relação a si mesmo; mas, na

medida em que contém como suprassumidos o ser-aí e a

determinidade, é, enquanto relação do negativo para consigo

mesmo, o uno, que, pela suspensão da diferença em sua

determinidade infinita, é em si mesmo carente-de-diferença, isto

é, exclui o outro. Mas o uno é, para Hegel, não carente-de-

relação como o ser, mas relação negativa a si mesmo e, por

conseguinte, o pressuposto do múltiplo, e está incluído no

pensamento do uno o pôr-se como múltiplos. Portanto, o ser-

para-si contém em si o duplo movimento: na relação negativa do

uno consigo mesmo é sua diferenciação de si mesmo, que Hegel

compreende como repulsão ou pôr de muitos unos que se

Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 50

excluem reciprocamente (Enciclopédia §97)38

; por outro lado, o

―comportar-se negativo dos muitos unos entre si‖ é, de qualquer

forma, também relação recíproca de uns com os outros, isto é,

relação do uno a si mesmo, ou atração. Se, por um lado, segundo

Hegel, a igualdade da atração e repulsão suspende o uno

exclusivo ou o ser-para-si e constitui a passagem para a

quantidade enquanto determinidade indiferente e não mais

idêntica com o ser, a asserção unilateral da repulsão do uno como

posição dos muitos unos constitui, por outro lado, o ponto de

vista da filosofia atomística, que, em geral, afirma a contingência

da atração. À compreensão, calcada na reflexão, de que os

muitos unos se comportam de maneira exclusiva e mutuamente

excludente e segundo a qual o uno ―é o repelente e o múltiplo o

repelido‖, Hegel contrapõe o progredir imanente do ser-para-si:

―é antes o uno... que é justamente isto: excluir-se de si mesmo e

pôr-se como muitos; mas cada um dos muitos é ele mesmo uno, e

por isso, ao comportar-se como tal, essa repulsão de todos os

lados se converte, assim, em seu contrário: a

atração.‖(Enciclopédia §97 adendo)

É o próprio Hegel que chama a atenção para as

ressonâncias prático-políticas de sua crítica especulativa à

compreensão atomística da matéria. O ―exemplo mais próximo

do ser para si‖ é o eu como relação infinita e negativa a si

mesmo, a ―autoconsciência como ser-para-si posto e consumado‖

(TWA 5, 175). Na Ciência da Lógica, a independência

(Selbständigkeit), ―impelida ao ápice do uno sendo-para-si‖, é

compreendida como ―independência formal que se destrói a si

mesma, o engano mais elevado e renitente que se toma pela mais

elevada verdade‖. Segundo Hegel, suas formas mais concretas

aparecem como liberdade abstrata, eu puro e então como o mal.

Esta liberdade abstrata é o ―comportamento negativo para

consigo mesmo, o qual, ao querer obter seu próprio ser, destrói o

mesmo‖. Em uma digressão que retoma o tema da reconciliação

38 Refiro-me aqui à Enciclopédia de 1830. G.W.F Hegel – Enciclopédia das

Ciências Filosóficas em compêndio: 1830; texto completo, com os adendos

orais, traduzido por Paulo Meneses, com a colaboração de José Machado. –

São Paulo: Loyola, 1995.

Filosofia, Reconhecimento e Direito 51

do indivíduo criminoso com as relações vitais lesadas pela sua

posição exclusivista, tão presente nos escritos de Frankfurt, de

Jena e assimilado à discussão sobre o perdão na Fenomenologia,

Hegel diz que ―este seu fazer é somente a manifestação da

nadidade deste fazer‖ e que ―a reconciliação é o reconhecimento

daquilo contra o que o comportar-se negativo se dirige, antes

como reconhecimento de sua essência.‖(TWA 5, 192/193). Por

outro lado, a asserção unilateral da repulsão, que se mantém

numa compreensão da atração como contingente e exterior,

caracteriza a ―visão atomística‖(Enciclopédia §98), que, diz

Hegel, tornou-se ―nos tempos modernos ...ainda mais importante

no campo político do que no campo físico. Segundo esta

visão, a vontade dos singulares, como tal, é o princípio do

estado; o que atrai é a particularidade das necessidades,

inclinações; e o universal, o próprio estado, é a relação externa

do contrato.‖(Enciclopédia §98).

Para Hegel, a compreensão de que o uno forma o

pressuposto do múltiplo e de que está contida na asserção do uno

exclusivo sua necessária dispersão e diferenciação de si – e que,

por isso, a dispersão desemboca no reencontro do uno consigo

mesmo – somente é acessível ―segundo o conceito‖. Já na

representação que dá vida à ―visão atomística‖, os muitos unos

são considerados como ―imediatamente presentes‖ (Enciclopédia

§97). É justamente no sulco desta compreensão do movimento do

―conceito absoluto‖, de sua posição da multiplicidade (TWA 2,

469) e do retorno dele a si mesmo nesta multiplicidade, enquanto

contrapostos à concepção contingente e exterior da atração, que

Hegel critica a gênese da perspectiva jurídica em Fichte, que,

segundo Hegel, supõe a separação irrecuperável entre direito e

moral (TWA 2, 509).

O conceito absoluto, enquanto ele mesmo é uma

diversidade, é uma porção de sujeitos, e a estes ele é, na

forma da pura unidade, enquanto quantidade absoluta,

contraposto em face deste seu ser-posto qualitativo. Então

ambos são postos, um ser-um interior (ein inneres

Einssein) dos contrapostos, o que é a essência de ambos,

o conceito absoluto; e um estar-saparado dos mesmos,

Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 52

primeiro sob a forma da unidade, na qual ele é direito e

dever, segundo sob a forma da diversidade, na qual ele

é sujeito que quer e pensa. (TWA 2, 469)

A estrutura dialético-especulativa do ―conceito absoluto‖

no Naturrechtaufsatz suporta, como seus momentos que podem

ser fixados em separado, por um lado, o ser-um qualitativo ou

intrínseco aos sujeitos particulares, a identidade interior dos

mesmos e do conceito absoluto pela qual eles, em sua dispersão,

reencontram o uno como sua essência; e, por outro lado, a

contraposição quantitativa do próprio uno, a determinidade

indiferente aos singulares, que o cinde em unidade pura e

multiplicidade, direito e dever de um lado, vontades singulares

do outro. ―Aquele primeiro lado do ser um interior E.C.L,

segundo o qual a essência do direito e do dever e a essência do

sujeito que pensa e / quer são pura e simplesmente um uno, é –

assim como em geral a abstração superior da infinitude – o lado

grandioso da filosofia kantiana e fichteana.‖ (TWA 2, 469/470)

Antecipando o teor normativo de sua concepção de eticidade

absoluta, Hegel interpreta o conceito kantiano-fichteano de

moralidade segundo o momento da indiferença, a indiferença ou

identidade absoluta dos sujeitos e do normativo. O problema para

Hegel é que este expediente, pelo qual Kant e Fichte poderiam

ter-se alçado à perspectiva da verdadeira eticidade – tal como a

razão pura ou o Eu=Eu em sua absolutidade constituíra o ponto

de partida da filosofia especulativa não resgatado pela filosofia

da reflexão – não é compreendido como momento da indiferença,

mas é, antes, fixado em seu movimento e separado da identidade

relativa, que é compreendida como relação de subsunção da

dispersividade das vontades particulares sob a unidade do

normativo, ou legalidade. Para Hegel, a posição formalista ―não

permaneceu fiel a este ser-uno, mas antes, ao reconhecer, na

verdade, o mesmo enquanto a essência e enquanto o absoluto, ela

põe da mesma maneira a separação em uno e múltiplo

absolutamente e um ao lado do outro, com a mesma dignidade.‖

(TWA 2, 470) Assim, para Hegel, diz respeito propriamente não

tanto à concepção da moralidade, mas à contraposição irredutível

da mesma à legalidade, o que se reverte também sobre ela, na

Filosofia, Reconhecimento e Direito 53

medida em que a torna extremamente unilateral, uma disposição

de ânimo ideal dos sujeitos: ao invés de ser reconhecida como o

momento de indiferença, para onde se faz reconduzir toda a

perspectiva relacional, segundo a qual as vontades particulares

são subsumidas sob a unidade vazia do dever e do direito –

perspectiva em que se dão desvios de conduta, crime e coerção –

o momento da unidade vital, a moralidade, é posta como esfera

isolada em relação à esfera isolada da legalidade. Para Hegel, o

resultado deste isolamento intransponível é a idealidade tanto do

ser-um do uno e do múltiplo, quanto de sua relação ou separação

na identidade apenas relativa, o que leva à compreensão de

ambos como apenas possíveis:

tanto não é o absoluto positivo, o que constituiria a

essência de ambos e em que eles seriam um, mas antes o

absoluto negativo ou o conceito absoluto; como ainda

aquele necessário ser-uno se torna formal, e ambas as

determinidades contrapostas, enquanto postas

absolutamente, caem em seu subsistir sob a idealidade, a

qual é, nesta medida, a mera possibilidade de

ambos.(TWA 2, 470)

Para o formalismo jurídico-moral de Kant e Fichte, os

momentos de indiferença e da relação se tornam simples

possibilidades. Tanto é possível a moralidade, enquanto unidade

essencial de direito e dever, por um lado, e das vontades

singulares, por outro; quanto é possível que ambos os lados

estejam somente em relação, isto é, que os diversos agentes se

deparem, em sua dispersão particularizada, com a unidade

normativa pura como com um particular, que os unifica apenas

exteriormente. O formalismo resulta em duas ciências do prático:

a ciência da moral, ―a qual diz respeito ao ser-uno do conceito

puro e dos sujeitos ou à moralidade das ações‖; e a ciência do

direito, ―a qual diz respeito ao não-ser-uno ou à legalidade‖. E

isto ocorre de tal forma que, ―nessa separação do ético em

moralidade e legalidade, ambos se tornam simples possibilidades

... Não é que uma seja o absolutamente positivo e a outra o

absolutamente o negativo, mas antes cada uma é ambas as coisas

Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 54

na relação de uma à outra; e, por meio de que ... ambas somente

são relativamente positivas, nem a legalidade nem a moralidade

são absolutamente positivas ou verdadeiramente éticas.‖ (TWA

2, 470)

O formalismo concebe uma unidade formal de dever e

direito no sujeito ou conceito absoluto, mas, ao postular esta

unidade na moralidade das intenções e estabelecer a

possibilidade do não-ser-um desta unidade e dos sujeitos

empíricos em sua multiplicidade, contrapõe-na a eles como um

dever: faltou-lhe conceber o momento relacional como imanente

ao absoluto. Desta maneira, Hegel se vê em condições de

promover uma crítica da concepção fichteana da esfera político-

jurídica, compreendida como irreconciliavelmente apartada

daquilo que, segundo Hegel, é o momento da unidade essencial e

interior entre a razão e as vontades particulares. Para Hegel, a

conseqüência fundamental deste caráter, relativamente positivo

de legalidade e moralidade, está justamente em que a

―possibilidade de que o conceito puro e o sujeito do dever e do

direito não sejam um tem pura e simplesmente de ser posta de

maneira inapelável.‖ (TWA 2, 470) Hegel se revela um bom

leitor da obra fichteana de 1796/97, ao declarar que o direito

natural de Fichte, enquanto ciência do âmbito da legalidade, tem

a gênese de seus ―conceitos fundamentais‖ na passagem entre

autoconsciência pura e a autoconsciência empírica ou individual

(TWA 2, 470/471), passagem que, segundo Fichte, é condição

daquela autoconsciência absoluta e essencial: a espontaneidade

absoluta do eu tem de se efetivar na consciência individual da

liberdade como impulso limitado pelo mundo objetivo. Ora,

Fichte concebe assim, para Hegel, a condicionalidade do que era,

por princípio, absoluto. O resultado desta manobra é, por

conseguinte, a exterioridade de ambas: ―aquela pura

autoconsciência, a pura unidade ou a lei ética vazia, a liberdade

universal de todos, é contraposta à consciência real, isto é, ao

sujeito, ao ser racional, à liberdade singular‖ (TWA 2, 471) Para

Hegel, esta separação irreconciliável está na base da

compreensão do ético como reduzido ao momento da relação, da

separação entre sujeito e conceito da eticidade, ao âmbito legal

da razão que se contrapõe ao sujeito agente, como um Sollen:

Filosofia, Reconhecimento e Direito 55

sobre esta separação ―é fundado um sistema através do qual,

apesar da separação do conceito e do sujeito da eticidade, e,

contudo, justamente por isso, ambos devem ser unificados apenas

formal e exteriormente – e esta relação (Verhältnis) se chama

coerção.‖ (TWA 2, 471) Em vista da exterioridade mútua da

autoconsciência pura e autoconsciência efetiva, a racionalidade

das relações sociais éticas somente pode ser compreendida sob o

título geral de coerção ou subordinação do indivíduo ao

universal.

Compreender a autoconsciência universal como exterior

à autoconsciência individual é compreender, na verdade, as

vontades individuais como recíproca e irredutivelmente

exteriores entre si. Elas não constituem a partir de si uma vontade

de todos que as permeia, mas esta sua unificação lhes é antes

exterior e, por isso, representa uma coerção, uma subordinação

sob o universal. O próprio Fichte já fundamentara a necessidade

da coerção na pressuposição de um rompimento inelutável da

relação intersubjetiva, não necessariamente excludente, pela qual

se torna primeiramente possível o ponto de vista individualista

das relações jurídicas que é o ponto de vista do contratualismo: a

perspectiva das vontades individualizadas e mutuamente

exteriores. Nisto residia propriamente o potencial ético do

conceito fichteano de reconhecimento. Entretanto, o pressuposto

de uma perda inexorável daquele estofo intersubjetivo, que

responderia por um vínculo orgânico e integrador entre os

indivíduos, capaz de engendrar uma unidade sócio-política

imanente às vontades singulares e, por isso, genuinamente ética,

denuncia como a compreensão fichteana da intersubjetividade

jurídica, único paradigma de relação que se oferece à

compreensão fichteana da intersubjetividade numa comunidade

política, vê-se incapaz de vislumbrar aquela unidade que ela

mesma presume ter existido e cuja falta suscita a coerção. Para

Hegel, esta idéia geral é expressa por Fichte de uma maneira

―popular‖. O sistema coercitivo, isto é, o sistema que deve

garantir uma unificação exterior das vontades singulares é

construído sobre ―a pressuposição de que fidelidade e crença se

perderam‖ (TWA 2, 471), isto é, sob a pressuposição de que uma

relação intersubjetiva solidária e não-excludente não mais é

Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 56

possível e de que as vontades singulares se encontram numa

perspectiva de mútua e completa exterioridade que, não podendo

retroceder sob condições de uma individualização plenamente

acabada, constitui o ponto de partida do direito natural. Portanto,

a compreensão fichteana da exterioridade e do caráter

necessariamente coercitivo da unificação das vontades

individuais subjaz uma concepção excludente e limitativa de

intersubjetividade, a qual não alcança os nexos de uma

intersubjetividade originária mediante a qual Hegel pretende que

se constitua a verdadeira unidade política: ―ao ser pura e

simplesmente fixada esta exterioridade do ser-uno e posta como

algo absoluto sendo-em-si, então a interioridade, a reconstrução

da fidelidade e crença perdidas, o ser um da liberdade universal e

individual e a eticidade são tornadas impossíveis.‖ (TWA 2, 471)

Para Hegel, é somente a pressuposição de uma exterioridade

fundamental entre as vontades singulares que conduz Fichte à

compreensão da unificação socialmente efetiva das vontades

singulares como exterior às mesmas, isto é, como não alcançando

uma identidade originária, a qual, entretanto, é

inconscientemente pressuposta como tecido social que torna

possível o ponto de vista jusnaturalista centrado na

―individualização plena, acabada e fundamental‖, isto é, que

toma como arcabouço das relações sócio-políticas a vontade

singular.

O reverso da exterioridade mútua das individualidades,

desta sociabilidade excludente tomada como princípio do direito,

é este ―dispositivo atuante com necessidade / mecânica‖, cuja

tarefa, ―à qual é pressuposta a contraposição da vontade singular

em face da vontade universal‖, consiste em que ―a eficiência de

cada singular seja coagida pela vontade universal‖ (TWA 2,

471/472). O que realmente fica vetado a esta compreensão da

vida comunitária centrada na exterioridade mútua de vontade

singular e vontade universal é justamente a imanência do

universal com respeito às vontades singulares, pelo que as

mesmas, para além de um agregado, poderiam revelar sua

unidade universal absoluta e originária: o universal verdadeiro da

vida ética ou o ser-um do universal e dos singulares. ―O ser-uno

com a vontade universal não pode, com isso, ser apreendido e

Filosofia, Reconhecimento e Direito 57

posto enquanto majestade interior absoluta, mas antes como algo

que deve ser produzido pela relação exterior ou coerção‖ (TWA

2, 471/472). Se a eticidade se reduz somente a esta relação de

coerção do universal sobre os singulares, e a dupla exterioridade

– dos singulares entre si, e por isso, da unidade coercitiva e da

vontade singular – é compreendida como totalidade da existência

social, o que há é a supressão da eticidade enquanto vínculo

orgânico entre os singulares: ―o ético, o qual é posto apenas

segundo a relação (nach dem Verhältnis), ou a exterioridade e a

coerção, pensadas como totalidade, se suprimem.‖ (TWA 475)

O que particularmente nos interessa notar é a implicação

recíproca entre, por um lado, a exterioridade do universal em

relação às liberdades singulares, e, por outro, a mútua

exterioridade dos indivíduos concebidos como átomos

subsistentes por si, na medida em que esta implicação recíproca

se conecta com a percepção, por parte de Hegel, da exigência de

expor conceitualmente o desenvolvimento da eticidade moderna.

Segundo interpretamos, o intento programático

Naturrechtaufsatz se deixa principalmente perceber no fato de

que não se ocupa com a questão de como, enquanto condição

para o ser-um de liberdade universal e liberdade singular, os

indivíduos vão paulatinamente rompendo sua exterioridade

mútua. Conforme atesta o feixe de questões discutidas sob o

tópico da ―tragédia no ético‖, o Naturrechtaufsatz privilegia, com

sua tentativa de articulação da assimilação da eticidade relativa à

eticidade absoluta, a relação entre universal e singular, mas não a

relação intersubjetiva propriamente dita, cujo desenvolvimento

até um ponto em que se rompe a exterioridade mútua dos

indivíduos é o que pode constituir o tecido social da totalidade

ética como povo. Entretanto, Hegel parece indicar, em sua

referência crítica à tese fichteana da necessidade da coerção sob

condições incontornáveis de rompimento de uma relação

intersubjetiva que se pode caracterizar como ―solidária‖ ou ―não

excludente‖, que somente o paulatino rompimento da

exterioridade recíproca entre os indivíduos poderia desembocar

numa apresentação conceitual da constituição do ser-um do

universal e dos singulares.

Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 58

Alguma indicação neste sentido parece estar presente na

―tipologia das ciências práticas‖ oferecida pelo

Naturrechtaufsatz. Hegel compreende o direito natural como

ciência da eticidade absoluta real. Em face desta ciência prática

primordial39

, moral e ética constituem ciências associadas à

subjetividade do indivíduo e possuem um objeto que, por

conseguinte, tem de ser compreendido como algo negativo.

Entretanto, a ética é relacionada à descrição da natureza das

virtudes enquanto aparecem nos indivíduos do primeiro

estamento, ao passo que a moral em sentido kantiano é

compreendida como ciência da eticidade do indivíduo do

segundo estamento, isto é, como potencial para expressão da

eticidade universal na vida do burguês. A educação tem em

comum com ambas a referência à subjetividade do indivíduo.

―Assim como... a ética tem relação (Beziehung) ao subjetivo ou

negativo, então o negativo em geral tem de ser diferenciado

enquanto subsistir da diferença e enquanto falta (Mangel) da

mesma... a falta (Mangel) de diferença representa a totalidade

enquanto um encoberto e não desdobrado (Eingehülltes und

Unentfaltetes), no qual o movimento e infinitude não são em sua

realidade.‖ (TWA 2, 507/508) Desta maneira, enquanto na moral

e na ética a negatividade aparece, especificamente, como

diferença existente, como existência de um indivíduo

39 Para Hegel, ―a partir desta idéia da natureza da eticidade absoluta resulta ... a

relação da eticidade do indivíduo à eticidade absoluta real, a relação das

ciências das mesmas, da moral e do direito natural.‖ (TWA 2, 504). Com

efeito, enquanto a eticidade absoluta real ―compreende (begreift) em si a

infinitude ou o conceito absoluto, a pura e simples singularidade como

unificada em sua suprema abstração‖, ela é ―imediatamente eticidade do

singular‖, de forma que, inversamente, ―a essência da eticidade do singular é

o pulsação do sistema inteiro e mesmo o sistema inteiro.‖ (TWA 2, 504)

Segundo Hegel, o direito natural, co-extensivo à sua teoria da eticidade

absoluta, é responsável por uma inversão na relação tradicional entre moral e

direito, de maneira que ―à moral somente cabe propriamente o âmbito do em

si negativo, mas ao direito natural o verdadeiramente positivo, segundo seu

nome, que ele deva construir a maneira como a natureza ética chega a seu

verdadeiro direito.‖ (TWA 2, 505). Desta forma, o objeto da moral são as

―virtudes que são em si possibilidades e que estão em um significado

negativo‖ (TWA 2, 505)

Filosofia, Reconhecimento e Direito 59

diferenciado que parece ser subsistente por si como elemento

dotado de propriedades éticas ou de disposição moral, na

educação a negatividade aparece, ao contrário, como falta de

diferença, isto é, como uma diferença não-desenvolvida entre

indivíduo e totalidade, uma indiferença imediata, já que se trata

da não realidade da infinitude, mas apenas da possibilidade do

movimento que a põe. ―A criança é, enquanto forma da

possibilidade de um indivíduo ético, um subjetivo ou negativo,

cujo tornar-se humanizável (Mannbarwerden) é o cessar desta

forma e cuja educação é a disciplina ou o subjugar da mesma.‖

(TWA 2, 507) Para Hegel, a criança a ser educada não se

destacou ainda da totalidade como aquele indivíduo que parece

existir por si mesmo como um átomo. Na criança, a disposição

moral e as virtudes têm que ser desenvolvidas, pois a eticidade

ainda não se manifesta como o espírito do indivíduo. ―O positivo

e a essência é que ela, sorvendo o seio da eticidade universal,

primeiramente viva em sua intuição absoluta como um ser

estranho, compreenda-a (begreift) cada vez mais e assim passe

para o espírito universal.‖ (TWA 2, 507) Num significativo

paralelo às formas paradigmáticas do processo de

reconhecimento desenvolvidas em Nuremberg e Berlim, Hegel

compreende este processo de educação como o aprendizado

gradual pela criança de suspensão da exclusividade de sua

própria subjetividade40

. Esta compreensão da educação como

processo de gradual manifestação da eticidade no indivíduo

40 Ao fim de sua pequena mas ilustrativa digressão a respeito da relação da

educação à eticidade absoluta, Hegel declara o devir das virtudes e da

―indiferença mediatizada‖ entre indivíduo e totalidade ética assumem o

caráter oposto à tentativa de estabelecer um ethos peculiar a um indivíduo ou

a um grupo específico dentro do povo. Para Hegel, as virtudes, bem como o

seu desenvolvimento pela educação, somente obtêm sua significância

genuína pela imersão que permitem do indivíduo no ethos comunitário.

―Esclarece-se aqui a partir de si mesmo que tanto aquelas virtudes, quanto a

eticidade absoluta são tampouco um empenho por uma eticidade peculiar e

apartada como / o devir das mesmas pela educação, e que o esforço por uma

eticidade peculiar positiva é algo em si mesmo impossível e, com respeito à

eticidade, somente as palavras dos homens mais sábios da antiguidade são o

verdadeiro: ser ético é viver de acordo com os costumes de seu país.‖ (TWA

2, 507/508)

Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 60

originariamente indiferente até o ponto de uma ―indiferença

mediatizada‖ entre o indivíduo e os costumes, suscita as mesmas

questões que se dirigem à concepção fichteana da Aufforderung

como educação. Em vista desta necessidade de elevar o indivíduo

não plenamente diferenciado ao patamar da manifestação da

eticidade, como se poderia compreender este processo resultante

apenas de uma relação limitativa e excludente aos outros

indivíduos, se o indivíduo que se forma, não é propriamente

capaz de se defrontar aos outros enquanto subjetividade

exclusiva e engajada pela observância de seus direitos ? Uma tal

compreensão da educação requer a participação dos outros

indivíduos na formação da identidade e na individualização

daquele sujeito que, originariamente, é imediatamente

indiferente. Mas uma tal participação ativa só pode ser pensada

num paradigma de sociabilidade positiva e não excludente. A

uma compreensão do processo de formação do indivíduo como

se efetivando apenas no círculo de uma intersubjetividade

limitativa, individualista e excludente, como a que possibilita as

relações de direito privado, poder-se-ia objetar o mesmo que

Hegel objetara à tentativa fichteana de compreender a relação de

coerção como unificação da vontade universal e da vontade

singular: tratar-se ia com isso de tornar o singular absoluto

através de algo que em si mesmo não é absoluto. Ao

compreender a educação como ―subjugar‖ da ―forma da

possibilidade de um indivíduo ético‖, Hegel parece indicar que

aqui sua filosofia prática se abre para compreender a natureza

deste processo de formação do indivíduo, contendo em si, além

da forma de intersubjetividade própria ao defrontamento jurídico

das pessoas, formas positivas da sociabilidade.

Sob a pressuposição do povo como configuração

concreta do absoluto prático, o Naturrechtaufsatz enfatiza o

processo de autodiferenciação desta totalidade que subjaz à sua

tese primordial de reconciliação entre política e economia,

articulada na reintegração da esfera econômico-jurídica pela

eticidade absoluta. Contudo, o desafio de uma exposição

conceitual da eticidade moderna parece estar ao menos indicado:

mostrar como a intersubjetividade excludente que se efetiva na

esfera econômico-jurídica constitui-se como um estágio

Filosofia, Reconhecimento e Direito 61

insuficiente no itinerário que conduz a uma intersubjetividade

solidária, a qual representaria a constituição de uma vontade

universal como ―identidade especulativamente estruturada‖ das

vontades singulares, mas que possui, ainda assim, seu momento

de verdade no itinerário de rompimento da exterioridade mútua.

O que se quer é indicar que o problema da constituição da

vontade universal, a partir dos singulares, é o problema da

intersubjetividade, ou melhor, da constituição conceitual da

comunidade ética, a partir do indivíduo como sobreposição de

níveis de intersubjetividade que integram os singulares em níveis

crescentes de existência ética e de autoconsciência universal. Se

no Naturrechtaufsatz, a ênfase recai sobre a prioridade de

eticidade absoluta sobre a relativa, o System der Sittlichkeit

articula pela primeira vez sua teoria da eticidade moderna na

forma de esferas efetivação comunitária da liberdade.

Nossa tese de leitura do Naturrechtaufsatz deixa-se

determinar pela subseqüente integração da teoria fichteana da

intersubjetividade, operada por Hegel no System der Sittlichkeit.

Segundo nossa interpretação, Hegel baseia sua recuperação

moderna da tese aristotélica da anterioridade da comunidade

política em relação ao indivíduo no princípio da unidade primeira

e originária das vontades singulares que constituem a

comunidade, concepção à qual ele opõe justamente a constituição

individualista desta comunidade segundo os preceitos atomistas

do contratualismo. Mas se é assim, se à recuperação moderna da

tese aristotélica, a qual fornece o sentido da autodiferenciação

interna do absoluto ético em eticidade relativa e eticidade

absoluta, subjaz uma compreensão da constituição originária e

―pré-política‖ da comunidade, isto é, da unidade pré-política das

vontades singulares, trata-se com isso fundamentalmente de uma

concepção de intersubjetividade que se pretende radicalmente

diferente da intersubjetividade limitativa e excludente que é o

ponto de partida geral do jusnaturalismo contratualista. Na última

parte do Naturrechtaufsatz, Hegel menciona que o formalismo,

enquanto fruto da dissolução da eticidade viva, isto é,

mentalidade que, em sua expressão filosófica mais bem acabada,

é responsável pela consolidação do individualismo e do

atomismo como produtos mais tardios do destacamento das

Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 62

individualidades de sua unidade vital, na medida em que

dissemina a figura jurídica do contrato civil como o paradigma

das relações intersubjetivas, destrói aquela unidade orgânica em

que lei e costume não se diferenciavam. Entretanto, a consciência

de que a recuperação da anterioridade da comunidade política em

relação ao indivíduo singular, tem que passar pela elaboração de

uma teoria do desenvolvimento de níveis de intersubjetividade

somente alcança Hegel no texto subseqüente: o System der

Sittlichkeit, certamente sugerida pela proximidade em relação à

concepção aristotélica de formas societárias pré-políticas que se

completam na comunidade política, proximidade que é, por sua

vez, modernamente recuperada por influência do estudo dos

economistas políticos. Por outro lado, é a própria tese segundo a

qual, em favor da reconciliação política, a eticidade relativa tem

que ser integrada como momento da eticidade absoluta, conduz

esta teoria dos níveis de intersubjetividade a incorporar como um

de seus momentos a ―defrontação‖ dos indivíduos enquanto

proprietários e pessoas jurídicas.

Sugeriu-se acima que todo este itinerário que doravante

se apresenta a Hegel como desafio de uma exposição conceitual

da eticidade pode ser compreendido como uma tentativa de

mediação entre Aristóteles e Fichte. Pretende-se com isso dizer

que o desafio consiste em articular a tese de que ―o povo é,

segundo a natureza, anterior ao indivíduo‖ com uma teoria

segundo a qual a consciência universal é formada pela relação de

reconhecimento entre as consciências singulares. Elaborando sua

própria teoria do desenvolvimento da eticidade, segundo estágios

de intersubjetividade, Hegel pretende justamente reconciliar as

duas posições: por um lado, a mediação intersubjetiva da

autoconsciência universal é de tal forma dinamizada que se

constitui como unidade conceitualmente superior aos indivíduos,

de maneira que o todo é superior à soma das partes; por outro

lado, o engendramento da comunidade política na forma de uma

sobreposição de estágios de comunidade ética correspondentes a

graus diferencidados de autoconsciência comum faz justiça ao

momento de constituição ética da identidade do sujeito no solo

de uma intersubjetividade não excludente, pelo quê não se cai no

Filosofia, Reconhecimento e Direito 63

elemento modernamente inviável de uma dissolução da

identidade individual na substância ética.

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Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 66

B. Reconhecimento Intersubjetivo no Viés Jusfilosófico de

Hegel e Kojève

Agemir Bavaresco

1

Sérgio B. Christino 2

Referências atuais a respeito de Kojève buscam coligir o

legado intelectual deste pensador em pelo menos duas direções,

por um lado a capacidade de pensar a geopolítica, isto

correspondendo ao final de sua carreira, quando, em desempenho

junto ao Ministério de assuntos econômicos da França, foi o

principal representante deste país nas negociações internacionais,

que desenharam o atual sistema aduaneiro da Comunidade

Econômica Européia. Neste particular - do pensamento

geopolítico - merece destacar excerto divinatório de um

memorando de aconselhamento assinado por Kojève e dirigido a

Charles De Gaulle em fins da Segunda Guerra Mundial :

A Era onde toda a humanidade junta será uma realidade

política ainda remanesce no futuro distante. O período de

realidades políticas nacionais esta ultrapassado. Este é a

época dos impérios, diga-se de unidades políticas

transnacionais, mas formada por nações associadas

(Kojève, 1945).

Nada mais atual; e por aí a preocupação em resgatar-se a

riqueza desta face do pensamento de Kojève, que, no entanto,

não será o objeto precípuo do presente trabalho.

Por outro lado, reputa-se igualmente notória atualidade

ao pensamento deste autor, desde a leitura que faz da luta por

reconhecimento — a partir da Fenomenologia do Espírito —

associada à perspectiva da humanização pelo trabalho em Marx

e associada ainda à contribuição existencialista, mediante a qual

conecta a abordagem marxista citada à noção de que o homem

1 Doutor pela Universidade de Paris 1, Professor de Filosofia da UCPel, Pós-

Graduação/MPS e Diretor ISF. 2 Advogado e pós-graduado em Filosofia pela UFPel.

Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 68

trabalha em uma atitude de rebelião, para debelar a

irrefutabilidade da morte.

Aqui, conforme veremos a seguir, Kojève trata de

desenvolver o percurso antropológico que conduz o homem

desde sua condição animal até uma condição de humanidade:

... o homem é também um animal (da espécie Homo

sapiens). Para existir como homem, ele deve então existir

enquanto homem assim como ele existe enquanto animal:

ele deve se realizar em sua qualidade de homem no

mesmo plano ontológico sobre o qual ele existe em sua

qualidade de animal. Ora duas entidades estão no mesmo

plano ontológico quando elas entram em interação, quer

dizer — no limite — quando uma pode anular a outra. O

homem que é reconhecimento deve, portanto, poder

anular-se enquanto animal: seu desejo do desejo deve

poder anular seu desejo animal ou natural. O desejo

natural sendo, em última análise, ―instinto de

conservação‖, o desejo de conservar sua vida animal, o

desejo antropológico deve poder anular este ―instinto‖.

Dito de outra forma, para realizar-se enquanto ser

humano, o homem deve poder arriscar sua vida pelo

reconhecimento (Kojève, 1981, 240).

Dada esta condição proto-humana, que caracteriza o

homem em sua animalidade, na qual os desejos são de ordem

instintiva, bem como dela não se pode inferir qualquer espécie de

direitos, impõe-se outra aproximação de caráter extremamente

atual, qual seja a pesquisa que vem sendo implementada por

Giorgio Agamben no corpus por ele mesmo denominado Homo

Sacer, que trata de examinar as condições em que se verifica a

produção do humano, a partir do animal, e ainda de apontar

quando esta humanidade acha-se suspensa, remetendo a uma

condição subhumana, em que os direitos fundamentais,

definidores da condição humana, são também suspensos, assim

ensejando, por um estado de exceção, o advento de seres que,

por estarem fora da proteção e dos deveres do mundo jurídico,

são passíveis de serem mortos, sem que nenhuma conseqüência

venha a ser posta, pois estes estão fora da perspectiva de serem

Filosofia, Reconhecimento e Direito 69

reconhecidos. Aqueles que numa visão kojèviana são retornados

à proto-humanidade, e que, na atualidade, nada mais são do que

os elencados pela política de Bush, como constituindo o eixo do

mal, ou os frutos da imigração, os povos economicamente

excluídos, cuja condição de matabilidade, que se lhes é

unilateralmente imputada, favorece o musulmanismo3 praticado

nos campos de concentração.

Neste sentido, é que, também atualmente, Axel Honneth,

em seu Luta por Reconhecimento, procura expandir o conceito

do reconhecimento, para abranger o aspecto ético de todo o

conflito social (Honneth, 2003).

A conjuntura atual, conflituosa, com seu acentuado nível

de exclusão social, com sua redefinição de nacionalidades e de

blocos regionais, tende novamente a clamar pela aplicação do

reconhecimento, enquanto conceito ético, de maneira a

possibilitar uma interação entre os sujeitos internacionais, em

que sejam respeitadas as diferenças e identidades num plano de

interação justa e eqüitativa, quer do ponto de vista cultural, quer

do ponto de vista econômico.

A relevância e a ubiqüidade do tema do reconhecimento

na obra de Hegel é indiscutível, por outro lado, é igualmente

verdade que o esforço mais contundente, no sentido de

estabelecer uma teoria do reconhecimento, enquanto conceito

ético, foi realizado por Alexander Kojève, em seu Esboço de

uma Fenomenologia do Direito. Livro este, em que o filósofo

russo, radicado em Paris, elaborou um instrumental de

3 Der Muselmann, o mussulmano designa, no jargão dos campos de

concentração, o homem-múmia, a morte que vive, aquele que cessou de lutar,

que perdeu toda consciência e toda vontade. Este termo remete

provavelmente ao sentido literal do termo árabe muslim, significando aquele

que se submete sem reserva à vontade divina (Ce qui reste d’Auschwitz,

Bibliothèque Rivages, p. 53). De acordo com o Encyclopedia Judaïca, a

expressão poderia ser proveniente « da postura típica destes prisioneiros,

encolhidos absolutamente sós, as pernas curvadas à maneira oriental, o rosto

rígido como uma máscara. ». Segundo Giorgio Agamben (Homo sacer – o

poder soberano e a vida nua, Editora UFMG, 190-191), para o muçulmano

que passou para um outro mundo, sem memória e sem comiseração, (...) vale

literalmente a afirmação de Hölderlin, segundo a qual, « no limite extremo

da dor não subsiste nada além das condições de tempo e de espaço ».

Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 70

interpretação lógico-histórico cuja base conceitual é,

declaradamente, inspirada na Fenomenologia do Espírito, de

Hegel, de 1807.

O tema do reconhecimento na obra de G. W. F. Hegel é

central, como se disse, porque tenciona um dos pilares da

filosofia política da modernidade: a questão do sujeito de direito4

e seus corolários; dentre estes a intersubjetividade. No tocante à

abordagem dos comentadores, há uma dupla possibilidade

hermenêutica: de um lado, situa-se, classicamente, este tema do

reconhecimento na figura da luta entre o senhor e o escravo na

Fenomenologia do Espírito; de outro, estuda-se esta figura na

Enciclopédia. A intersubjetividade, e, portanto, o

reconhecimento, na obra hegeliana, coloca o problema: Como é

possível construir uma interpretação que supere o conceito de

subjetividade moderna, positivado pela prática jusfilosófica,

garantindo um novo paradigma, fundado na intersubjetividade,

portanto, pressupondo a teoria hegeliana do reconhecimento?

Neste estudo, mostra-se primeiramente, o

desenvolvimento da teoria do reconhecimento em Hegel. Depois,

analisa-se o desejo antropológico de reconhecimento como fonte

da idéia de justiça em A. Kojève. Em seguida, apresenta-se a

fenomenologia da justiça, segundo o mesmo autor, que parte do

princípio de que o desejo, conforme Hegel, quer o

reconhecimento, sendo este a fonte última da idéia de justiça.

Kojève expõe, fenomenologicamente, a idéia de justiça em três

momentos: a justiça aristocrática ou a igualdade, a justiça

burguesa ou a equivalência e a justiça cidadã ou a eqüidade.

Enfim, a análise fenomenológica, feita por Kojève, prova que a

4 No que concerne à importância da invenção do sujeito de direito para a

compreensão da modernidade, merece colacionar um pouco do que expõe

Yves Charles Zarka (1997), em seu artigo A Invenção do Sujeito de

Direito:...essa definição de homem como ser de direito não é atemporal, pois

foi inventada pela filosofia moral e política moderna, da qual ela constitui

uma das principais inovações. É possível apresentar várias formulações

sobre a importância dessa inovação. (...) apenas uma : a transformação da

noção renascentista de dignidade humana na noção de homem como

portador de direitos na século XVII. Que, prossegue: remete o homem à sua

própria liberdade de se fazer a si mesmo o que é ...(pp. 9/10).

Filosofia, Reconhecimento e Direito 71

idéia de justiça evolui, segundo uma lógica do reconhecimento

simétrico entre deveres e direitos, entre universal e particular. O

universalismo do direito aristocrático e o particularismo (ou o

individualismo) do direito burguês coincidirão, pois os direitos e

os deveres os mais pessoais, exercidos pelo indivíduo, serão os

direitos e deveres os mais universais, isto é, aqueles do cidadão

tomado, enquanto cidadão, ou aqueles de todos e de cada um.

Enfim, conclui-se que o reconhecimento intersubjetivo se dá em

vários níveis de mediação sócio-jurídico-político.

Assim, produzir na complexidade da sociedade

mundializada, uma hermenêutica jusfilosófica de viés

intersubjetivo, encontra na teoria do reconhecimento hegeliano

um pressuposto epistemológico fundamental.

1. Do Precário Conceito de Intersubjetividade dos Modernos

Temos pugnado pela ubiqüidade de um esboço do

reconhecimento na obra de Hegel, asseverando que a feição

precoce desta noção é suprassumida ao longo das diferentes

etapas da démarche hegeliana, sem perder, no entanto, sua

essencialidade; até mesmo como uma ferramenta inerente à

própria perspectiva relacional do método especulativo,

desenvolvido pelo filósofo do espírito.

A primeira vista, parece totalmente inadequado aceitar-

se, na esteira do pensamento hegeliano, que a idéia da

autoconsciência de um sujeito promanasse de circunstância em

que não estivessem pressupostas as determinações do meio

social. Não que não se possa conceber um tal sujeito atomizado e

quase ficcional, hobbesiano, somente que este figuraria como o

negativo. O que precisaria ser progressivamente suprassumido,

posto que constitui a singularidade, aquilo que com seus valores

de ordem moral nega a vida ética absoluta, em nada obstante o

fato de que nesta singularidade esteja presente o absoluto em sua

diferenciação. Esta determinidade negativa da vida ética absoluta

somente alcançará a verdade, ou seja, somente será

suprassumida, através do reconhecimento. Mas o que importa,

aos propósitos deste estudo, é reafirmar tanto a precocidade,

quanto a ubiqüidade desta noção da intersubjetividade, mediante

Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 72

a figura do reconhecimento, na linha evolutiva do pensamento

hegeliano.

O primeiro ponto que temos destacado como referencial

do pensamento de Hegel, e até mesmo referencial a todo o

chamado idealismo alemão, é a necessidade de superar os limites

positivados pela abordagem crítico-transcendental, que cindira a

realidade em dois mundos: o da natureza física e o da liberdade.

Nessa linha, se o comportamento humano, enquanto fenômeno

espaço-temporal, está afeto, como as demais coisas existentes, à

causalidade da natureza física, tornava-se inviável delimitar um

comportamento humano livre, moral, infenso ao bordão da

necessidade. Inexistindo mediação, o homem estaria sempre sob

os ditames ou da obrigação natural (müssen) ou da obrigação

especificamente humana (sollen). Era preciso, pois, para o

criticismo, pensar a liberdade como estando fora do mundo dos

fatos, apartada do mundo da causalidade física. E necessitava

admiti-la efetiva apenas, quando aquele a quem se diz livre, fosse

ele próprio a causa única e suficiente de sua ação, vale dizer, a

liberdade sendo viável somente mediante o pressuposto da

autonomia. E a liberdade jurídica era, na verdade, uma mônada

alheia ao mundo dos fatos. E mais, com a exigência de que cada

pessoa fosse considerada como um fim em si mesma

(selbstzweck), que nunca poderia ser posta a serviço dos fins de

outra pessoa, estabeleceu-se a pedra angular da filosofia do

direito transcendental, da qual todo o resto dos direitos era

derivado. É a partir desta precária autonomia jurídica que se vai

estabelecer a divergência fundamental entre o direito que está

antes de Hegel e o pensamento jurídico e político deste.

No caso específico de Hegel, como já se apontou antes, o

reconhecimento será a categoria chave para a compreensão do

sujeito de direito. Mas, antes, a visão precária do criticismo

transcendental jurídico, baseada na autonomia, já fora objeto de

tentativa de superação no seio do idealismo alemão, tanto em

Jacobi, quanto em Fichte, contribuições estas que foram

refutadas por Hegel já em Iena, por exemplo em Fé e Saber

(Glauben und Wissen):

Filosofia, Reconhecimento e Direito 73

Assim, de um lado encontra-se a pura razão integrada.

Quando ela se afirma como pura vontade, ela é na sua

afirmação uma vã declamação. Se ela se dá um conteúdo,

é preciso que o tome, empiricamente, e logo que lhe deu a

forma da idealidade prática, ou se ela o tornou uma lei e

um dever, então ele se encontra em conflito absoluto,

privado da totalidade deste conteúdo que suprime toda

ciência (Hegel, 1988, 192).

Em contraposição, do outro lado, prossegue Hegel,

[....] está a natureza que foi feita pelo ato da vontade pura

enquanto realidade empírica. O que o lado idealista

negava, porque se decretava, absolutamente, ele mesmo,

deve de novo emergir. Se a realidade empírica (ou o

mundo dos sentidos) não estivesse em toda força de sua

oposição, então o eu cessaria de ser eu, ele não poderia

agir e sua elevada destinação seria perdida. [....] Com

efeito, a essência do eu consiste na ação‖ (Hegel, 1988,

192-193).

E este agir é um agir no mundo, logo, a contraposição

ativa entre a subjetividade proposta pelo viés transcendental

crítico e perseverante em alguns seguidores, mesmo dentro do

idealismo alemão, terá que se submeter ao crivo da ação, descer

das alturas, para conceber uma outra liberdade, que

necessariamente virá à luz na forma da intersubjetividade.

2. Intersubjetividade e Reconhecimento em Hegel

2.1 Nos primeiros Escritos

Tem sido apontado pelos comentadores que o germe da

noção do reconhecimento se encontra mesmo nos escritos

anteriores a Iena, Religião e Amor e O Espírito do Cristianismo e

seu Destino, por exemplo. Ainda que, nestes estudos iniciais, o

que era apresentado por Hegel não constituísse uma formulação

minimamente acabada do que viria a ser, posteriormente,

consolidado a respeito do reconhecimento, as idéias contidas

Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 74

nestes fragmentos espelham a potência de um devir conceitual.

Por exemplo, a idéia de reconciliação (veremos a seguir) e

aquela da relação do particular com o todo (universal) – de

inspiração aristotélica.

Assim, enquanto no viés kantiano-fichteano, o direito é a

propriedade de emenda do criminoso, no jovem Hegel, do O

Espírito do Cristianismo e seu Destino, há uma inconciliável

diferença entre o amor e o direito, de tal forma que, se aquele que

for agredido reclamar justiça pela via do direito, esta não se

realizaria e não haveria possibilidade de emenda porque o direito

que é um ser pensado, por conseguinte um universal, está no

agressor como um outro ser pensado; assim haveria dois

universais que se destruiriam e que, não obstante, persistem

(Hegel, 1988, 55). Não haveria aí conciliação, cada um

defenderia o seu direito como sendo o mais justo e mesmo que o

Estado viesse a punir o agressor, este, uma vez punido, não se

haveria de reconciliar com o absoluto. A reconciliação

verdadeira somente se realizaria através do destino e do amor,

quando aí sim, ambos envolvidos, agressor e vítima,

descobririam que com a contenda destruíram sua unidade com o

todo da vida a que ambos pertencem. Ou seja, só com o

sentimento interno de ruptura com o absoluto seria possível a

reconciliação, pois aí haveria uma boa ação do destino, enquanto

algo que se o criminoso se impunha a si próprio e não através de

uma coerção externa. Neste sentido, observa Habermas que,

ainda no Espírito do cristianismo e seu destino, Hegel vai

contrapor às leis da moral, leis que surgem em decorrência da

culpa que sente o transgressor, pela consciência que tem de ter

cindido uma totalidade ética pressuposta.

A dinâmica do destino resulta antes da desordem das

condições de simetria e das relações recíprocas de

reconhecimento de um contexto de vida constituído

intersubjetivamente do qual se isolou uma parte, tendo-se

assim todas as outras também alienado de si mesmas e da

sua vida coletiva (Habermas, 1998, 38).

Filosofia, Reconhecimento e Direito 75

Esta noção inicial se afeiçoa ao Novo Testamento; ela

segue na direção da mensagem cristã, mediante a qual o Cristo

pregara aos discípulos o despojamento de seus direitos e

propriedades, para com isso evitar a ruptura com a bela unidade

da vida: "e àquele que quer pleitear contigo, para tormar-te a

túnica, deixa-lhe também a veste (Mt 5,40)”, e "caso a tua mão

direita te leve a pecar, corta-a (Mt. 5,30). E, por outro lado, está

presa à evocação da polis grega, enquanto ideal de vida coletiva.

Haveria aí, na órbita da reconciliação, um

reconhecimento que se impunha ao delinqüente, precedendo ao

ato criminoso, qual seja o da existência de uma bela ordem que

veio a ser rompida pela perpetração da conduta indesejada.

Já no fragmento Amor e Religião, Hegel expõe o que

intui como imprescindível para pautar uma relação ética, quer

dizer, uma relação que reflita, portanto, as condições de

identidade com o ideal infinito, em que não esteja presente a

cisão sujeito/objeto, destruidora da bela unidade — logo, em que

os envolvidos nela se reconheçam:

Há união verdadeira, de amor propriamente dita, apenas

entre seres vivos iguais em poderes e que são de fato

vivos uns para os outros e de nenhum modo mortos uns

para os outros; ela exclui todas as oposições, ela não é o

entendimento no qual as relações deixam sempre subsistir

o múltiplo enquanto múltiplo e cuja própria unidade é

feita apenas de oposições; ela não é a razão que opõe seu

ato determinador ao determinado; não é nada que limita,

nada de limitado, nada de finito. (Hegel, 1988, p. 142)

(tradução dos autores)

Conforme acentuado, até os escritos de Frankfurt, em

relação ao tema do reconhecimento, o que se tem são idéias

fragmentárias que delineiam de maneira tênue este instrumental

teórico e que não tem a complexidade e acabamento alcançados,

a partir de Iena, conforme veremos a seguir.

Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 76

No Sistema da Vida Ética a concepção de relação

jurídica de Fichte5, pautada na intersubjetividade, será

valorizada, suprassumida, constituindo ferramenta importante

para a descrição da liberdade, efetivada na forma da luta pelo

reconhecimento. A partir dela, Hegel extrai um modelo de

abordagem explicativa para a relação padrão ocorrida nas

interações de reconhecimento entre os indivíduos, a qual se

resume em que: (...) na medida em que se sabe reconhecido por

um outro sujeito em algumas de suas capacidades e

propriedades e nisso está reconciliado com ele, um sujeito

sempre virá a conhecer, ao mesmo tempo, as partes de sua

identidade inconfundível e, desse modo, também estará

contraposto ao outro novamente como um particular (Honneth,

2003, 47).

Este desenvolvimento se dará na forma da efetivação da

liberdade que, segundo Axel Honneth, ganha a figuração

múltipla de uma luta por reconhecimento que o indivíduo realiza,

de maneira ascendente, em três esferas: na da família, a que

corresponde o reconhecimento afetivo; na da sociedade civil, a

que corresponde o reconhecimento legal (pela igualdade de

direitos) e, por fim, no do reconhecimento ético (pela

solidariedade social).

Honneth, no primeiro capítulo de seu livro Luta por

reconhecimento examina com profundidade o escrito de Hegel,

chamado System der Sittlichkeit (1802-03), extraindo dali a

fundamentação para sua atual teoria da luta pelo reconhecimento,

cujo modelo, de confessada inspiração hegeliana, comporta

aquelas três esferas de reconhecimento, que asseguram as

condições para os indivíduos virem a ser bem sucedidos, do

ponto de vista da realização pessoal, nas sociedades modernas. A

esfera do amor, que supõe a relação de reconhecimento ligada à

existência de outras pessoas físicas, com as quais a pessoa realiza

5 Segundo a qual: A relação entre os seres racionais que se deduziu, a saber,

que cada um limite sua liberdade pelo conceito da possibilidade da liberdade

do outro, à condição que este limite igualmente a sua por aquela do outro,

chama-se a relação jurídica; e a fórmula que acaba de ser enunciada é a

proposição do direito (Fichte, 1984, p. 67 – Tradução dos autores).

Filosofia, Reconhecimento e Direito 77

a experiência de um reconhecimento de natureza afetiva, que lhe

permitirá desenvolver uma atitude de autoconfiança, traduzida

por uma segurança emocional na expressão de suas necessidades.

A esfera do direito, que julga poder uma pessoa sentir-se

portadora dos mesmos direitos que outras, e desenvolver, assim,

um sentimento de respeito social. Aqui, a relação de

reconhecimento baseia-se em direitos iguais entre indivíduos e

repousa sobre um saber compartilhado das normas que regulam

direitos e deveres iguais. Por último, a esfera da contribuição à

sociedade, a esfera da solidariedade, que considera a contribuição

dos sujeitos para o coletivo, cujas particularidades individuais

construíram-se através de uma história de vida singular, ou seja,

em que cada um foi tratado sem discriminação e, por aí, pôde

desenvolver um sentimento de ter sido considerado pelos demais.

Portanto, o caminho percorrido pelo indivíduo através

das esferas mencionadas, já desde o Sistema da Vida Ética, deixa

antever que as condições para se reconhecer a efetivação

concreta da justiça é, antes de tudo, a verificabilidade das

condições concretas para o indivíduo poder ser reconhecido em

qualquer uma de tais esferas.

Aquela mesma concepção do injusto que, em Frankfurt

era suprassumida pelo amor, é retomada no período de Iena,

sendo a pena como a única maneira de restituição da objetividade

do direito quando a integridade da pessoa tenha sido prejudicada.

É a partir do System der Sittlichkeit que Hegel aborda, de

maneira mais metódica, a questão do crime como rompimento da

vida social e, embora esta questão apareça problematizada num

capítulo intermediário, entre a vida ética natural e a vida ética

absoluta, é na terceira seção do livro, que trata da eticidade, no

subtítulo O segundo sistema de governo. Sistema da justiça, que

a questão da conduta delituosa recebe tratamento mais acabado.

Nesta parte do Sistema da Vida Ética, Hegel estabelece a

divisão entre ilícito de ordem civil e de ordem penal, divisão cujo

critério será mantido até mesmo nas obras maduras, posto que

regrada pela lógica especulativa. E aqui é elucidativo o recurso,

por exemplo, à Enciclopédia, para se apresentar uma concepção

esmerada daquilo já contido no pensamento juvenil. Ao analisar

o juízo, no § 166 e seguintes da Enciclopédia – 1830, Hegel se

Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 78

vale da analogia com a referida tipificação dos delitos, inclusive

mencionando, exemplificativamente, uma e outra das ordens de

delito como correspondendo a um e outro tipo de juízo.

Cotejemos, rapidamente, os dois textos: no Sistema da

Vida Ética, conforme referido, Hegel estabelece a seguinte linha

de considerações:

A negação da singularidade, que é uma negação

mediante a singularidade — e não por meio do

absolutamente universal — é também puramente negação

da posse enquanto tal; ou a negação de uma singularidade

no indivíduo; ou a negação da totalidade do indivíduo

vivo; o segundo caso é um ato de violência; o terceiro é

um assassínio.

(...) Na jurisdição civil, só a determinidade como tal é que

é absolutamente negada no litígio, e determinidade pode

tornar-se a atividade viva, o trabalho, o que é pessoal.

Na jurisdição penal, porém, não é a determinidade, mas a

individualidade, a indiferença do todo, a vitalidade, a

personalidade. Aquela negação é no direito civil uma

negação puramente ideal; no direito penal, é uma negação

real; com efeito, a negação que visa a uma totalidade é

por isso mesmo real. Estou na posse da propriedade de

um outro, não por rapina ou por roubo, mas porque a

reivindico como minha e de um modo legal. Reconheço

assim a capacidade de posse do outro; mas a violência, o

roubo opõem-se a semelhante reconhecimento. São

constringentes, visam ao todo; suprimem a liberdade e a

realidade do ser-universal, do ser-reconhecido (Hegel,

1991, 82-83).

E, por fim, acrescenta:

A justiça civil visa, simplesmente, à determinidade; a

justiça penal, além da determinidade, deve também

suprimir a negação da universalidade e suprimir a

universalidade que se pôs no seu lugar, a oposição à

oposição.

Semelhante supressão é a pena, e esta é justamente

determinada segundo a determinidade em que a

universalidade foi suprimida (Hegel, 1991, 84).

Filosofia, Reconhecimento e Direito 79

E na Enciclopédia 1830, nos parágrafos acima

mencionados, Hegel no exame do juízo, explica que o juízo

imediato, ou do ser-aí, pode ser classificado como

negativamente-infinito ou, simplesmente, negativo. No adendo

ao § 173, Hegel dirá:

Como exemplo objetivo do juízo negativamente infinito,

pode-se considerar o crime. Quem comete um crime,

digamos, mais precisamente um roubo, não nega,

simplesmente, como no litígio civil o direito particular de

um Outro sobre tal coisa determinada, mas [nega] o seu

direito em geral, e por esse motivo também não é

simplesmente obrigado a restituir a coisa que roubou, mas

é além disso punido porque violou o direito como tal, isto

é, o direito em geral. O litígio civil, ao contrário, é um

exemplo do juízo simplesmente negativo, pois nele se

nega simplesmente este direito particular, e assim se

reconhece o direito em geral (Hegel, 1995, v.1, 309).

Deste modo pode-se ver que a concepção numa e noutra

das obras é a mesma, ou seja, a diferença de grau quanto ao

reconhecimento perante o direito é que determina a esfera da

lesão. A conduta humana lesiva pode constituir uma negação do

direito meramente ideal (abstrato) ou real: enquanto no primeiro

caso, a capacidade jurídica (pessoa) do outro é reconhecida, no

segundo, (esfera penal) não.

Aparece, assim, a centralidade da pessoa no

desenvolvimento histórico da liberdade, e, portanto, do modelo

de justiça em Hegel pois, se a pessoa se equipara ao direito, todo

aquele que, desde a condição de pessoa que o direito lhe atribui,

ofende alguém, ofende o direito e, por sua vez, a si próprio.

O direito é concebido por Hegel como um sistema social,

em que o reconhecimento universal da liberdade da vontade

expresso, na categoria da pessoa, é uma relação de justiça com

outras pessoas, compreendidas dentro do movimento

intersubjetivo em que ocorre o reconhecimento das

autoconsciências tanto no desenvolvimento fenomenológico,

como no lógico.

Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 80

2.2 Na Fenomenologia do Espírito

Hegel situa o aparecimento mais evidente da figura da

pessoa, do ponto de vista lógico, na conhecidíssima dialética que

envolve a relação do senhor e do escravo, após ter afirmado que

só mediante o pôr a vida em risco, a liberdade [se comprova],

Hegel acrescenta: O indivíduo que não arriscou a vida pode bem

ser reconhecido como pessoa; mas não alcançou a verdade

desse reconhecimento como uma consciência-de-si independente

(Hegel, 2002, 146). O teor desta afirmação permite pensar que a

célebre dialética do senhor e do escravo aponta um modelo de

relação social em que a intersubjetividade é perpassada pela

assimetria, pois trata de uma relação de submissão, em nada

obstante à sutileza de que nem um, nem outro dos pólos da

relação possam ser tomados como figuras auto-subsistentes. Há,

do ponto de vista lógico, estreita dependência entre ambos. E

somente na coincidência da autodeterminação da vontade (a

verdade da certeza de si sem dependência do outro) e da negação

da exterioridade (pelo trabalho e fruição) num mesmo sujeito é

que se poderia acolher um sentido superior de pessoa. Esta figura

das pessoas, envolvidas na dialética do senhor e do escravo,

permite ver, primeiro, que é absurdo pensar, unilateralmente, um

conceito de pessoa, entendida como átomo de uma

universalidade que se repatriou nos indivíduos. E, segundo, que o

verdadeiro conceito de pessoa se determinará em uma relação

intersubjetiva sem as precariedades da relação do senhor e do

escravo, ou seja, verificar-se-á, somente, quando a relação

intersubjetiva atingir o reconhecimento, porém desde uma

relação simétrica.

Esta relação simétrica de reconhecimento, do ponto de

vista histórico, unicamente será possível onde cada homem seja

livre, e, portanto, só no mundo da modernidade isto será factível,

pois, conforme observa Hegel, no comentário feito ao § 21 da

FD: O escravo não tem conhecimento de sua essência, de sua

infinitude, da liberdade, não se conhece como essência; - e ele

não se conhece, quer dizer [:] ele não se pensa (Hegel, 1998,

113).

Filosofia, Reconhecimento e Direito 81

Entretanto, a relação de reconhecimento justo pode ser

conformada ao modelo hegeliano da figura do ―senhor e do

escravo‖ (Hegel, 2002, 142ss). A figura do senhor e do escravo

hegeliana conduz a um reconhecimento bipolar entre as duas

autoconsciências. O movimento lógico do reconhecimento opera-

se por ambas as consciências. Trata-se da bipolaridade essencial

a toda consciência que, segundo a Ciência da Lógica, na

Doutrina da Essência, o movimento da reflexão acontece em três

momentos: reflexão que se põe, reflexão exterior e reflexão

determinante que se distinguem em momento subjetivo e

objetivo. Desse modo, a ação do reconhecimento de cada uma

das autoconsciências obedece à seguinte lógica: aquilo que,

individualmente, como sujeito uma realiza na outra como objeto,

ela o faz, ao mesmo tempo, nela mesma, de tal modo que há uma

conjunção de um agir na própria autoconsciência e de um agir na

outra.

Nós temos duas autoconsciências – Autoconsciência ¹ e

Autoconsciência ² – e distinguimos em cada uma delas o

momento da subjetividade e o da objetividade – A¹s e A¹o; A²s e

A²o – conforme o esquema lógico abaixo, o qual constitui o

estatuto lógico de todo o reconhecimento (Jarczyk e Labarrière,

1996, 75-76):

Autoconsciência¹ [s] Autoconsciência ² [s]

Autoconsciência ¹ [o] Autoconsciência ² [o]

No entanto, tal processo de reconhecimento pode passar

pelo combate de vida e morte que resulta no fracasso da

unilateralidade, na qual apenas uma autoconsciência é auto-

subsistente, no caso, o senhor. A relação dissimétrica entre

senhor/escravo encontra-se num impasse, embora o escravo pelo

Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 82

medo e pelo trabalho – serviço e cultura – introduza os elementos

para a conquista de sua liberdade. Porém a superação da

contradição não pode ser efetivada apenas por um lado dos pólos,

no caso, o escravo. Ela precisa engajar ambas as

autoconsciências, para alcançar o verdadeiro reconhecimento.

Por isso, a contradição da figura do senhor/escravo evolui para a

autoconsciência estóica e a céptica que encontram já na

―consciência infeliz‖ uma expressão da razão. A aventura do

reconhecimento continua seu caminho. Os protagonistas da

figura encontrarão somente, no momento da ―razão‖, a resolução

da experiência contraditória, que gera a dissimetria entre

senhor/escravo (Jarczyk e Labarrière, 1996, 80-81).

3. Reconhecimento e Intersubjetividade no Esboço de uma

Fenomenologia do Direito de Kojève

Alexandre Kojève (1902-1968) é russo por nascimento,

alemão por formação e francês por escolha, contribuiu na

introdução do pensamento de Hegel na França. O livro Esboço

de uma fenomenologia do Direito de Alexandre Kojève, foi

redigido em 1943 em Gramat (França), afirma o editor da edição

francesa, por ocasião de uma visita à família de Éric Weil, não

obstante, a primeira página do texto fazer referência à cidade

mediterrânea de Marseille. Este trabalho permaneceu inédito,

embora o autor tenha se declarado satisfeito, guardando sua

forma original.

3.1 Questão metodológica

Antes de ingressarmos na interpretação kojèviana de

Hegel sobre o fenômeno do Direito, elucidaremos a diferença

metodológica entre a dialética hegeliana e kojèviana. Isto é muito

importante para compreendermos o que nos interessa na

metodologia kojèviana e em que medida ela pode ser aproveitada

para o nosso estudo.

Primeiramente, o que é a dialética hegeliana? A resposta

a esta pergunta remete ao problema central, subjacente, do

monismo e do dualismo na filosofia hegeliana. Vejamos.

Filosofia, Reconhecimento e Direito 83

3.1.1 A dialética hegeliana

O termo dialética vem de uma longa tradição histórica,

na qual Hegel se insere, dando-lhe porém, amplidão e uma

posição específica no seu sistema: A dialética para Hegel,

designa um dos momentos do processo total do conhecimento –

ou um dos momentos do processo total da efetividade -;

exatamente, o segundo, aquele que articula negativamente o

imediato no movimento de sua própria mediação (Jarczyk-

Labarrière, 1986, 88).

a) O segundo momento do processo: No Prefácio da

Ciência da Lógica, O Ser, assim se entendem os três momentos

do processo: O entendimento determina e fixa as determinações;

a razão é negativa e dialética, porque ela reduz a nada as

determinações do entendimento; ela é positiva porque produz o

universal e subsume nele o particular. O termo dialética aparece

aqui, somente no segundo momento, e não como uma entidade

subsistindo por si, fora do todo. A razão, sob a forma negativa,

depois sob a forma positiva, concerne o segundo e o terceiro

momentos do processo do conhecimento. No momento dialético,

realiza-se a mediação do imediato, em que o particular se

determina dialeticamente como idêntico ao universal.

b) Motor da filosofia especulativa: Na Enciclopédia das

Ciências Filosóficas, no fim do Conceito preliminar, é dito: A

lógica tem, segundo a forma, três lados: a) o abstrato ou do

entendimento; b) o dialético ou negativamente-racional; c) o

especulativo ou positivamente racional (Hegel, 1995, § 79). Em

relação ao texto anterior da Ciência da Lógica, aqui, aparecem

dois termos novos: abstrato e especulativo. A dialética está

situada no meio deste processo, pois ela é o meio-termo,

carregando o movimento da negação e da mediação, daí que esse

processo se realiza especulativamente. ―Em Hegel o processo do

conhecer e da efetividade dá-se sempre a conhecer de modo

recapitulado no seu acabamento – uma vez que igualmente esse

terceiro momento, é aquele do espírito, termo integrativo – seria

mais fundado caracterizar o sistema de Hegel como uma filosofia

especulativa do que uma filosofia dialética‖ (Jarczyk-Labarrière,

1986, 90).

Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 84

c) Um movimento dialético-especulativo: A dialética

hegeliana está ligada a uma henologia, pois se propõe a unidade

como uma tarefa da liberdade, uma unidade plural, como

veremos abaixo, de articulação interna de termos diferentes.

Trata-se ainda de uma ontologia, pergunta Labarrière? ―Não, se

entendermos por aí alguma ciência do ser, que seria pensado

como subsistindo por si, totalmente realizado, no seu objetivismo

imediato, anterior à inteligência de sua significação relacional.

Sim, se a ontologia é tomada como a exposição desta história

compreendida, que nasce no ponto de encontro e de

pressuposição mútua do interior e do exterior, da idéia e de sua

efetivação. Esta ontologia é uma doutrina da liberdade‖ (id. p.

100-101).

Pelo exposto, constatamos que para Hegel a dialética é

um momento de sua metodologia especulativa, como ficou

provado em sua Ciência da Lógica e na Enciclopédia das

Ciências Filosóficas.

3.1.2 Monismo sim, monismo não

O que é o dualismo? Para responder a esta pergunta,

Denise Souche-Dagues, distingue o dualismo metafísico do

ontológico. O dualismo ontológico opõe-se ao monismo e ao

pluralismo. Então, ele engloba as doutrinas do ser que admitem

duas fontes, duas figuras irredutíveis uma a outra: a matéria e o

espírito. O dualismo metafísico tem um caráter puramente formal

que apresenta as seguintes oposições: mundo sensível e mundo

suprasensível, fenômenos e noumeno, contingente e necessário,

relativo e absoluto, tempo e eternidade, ser e aparência etc. Ora,

o hegelianismo é um idealismo absoluto, daí ser caracterizado

como uma ontologia monista, ou seja, uma interpretação una do

ser, superando as expressões do dualismo metafísico (Souche-

Dagues, 1990, 9-10).

Para Gwendoline Jarczyk, o modo como Hegel se

posiciona em relação ao dualismo, tal como se apresenta, de um

lado, no empirismo ou no transcendentalismo, e de outro, o

monismo, quer seja de Leibniz, de Spinoza ou de Schelling,

revela o que ele entende por unidade e por infinitude em nível

Filosofia, Reconhecimento e Direito 85

propriamente especulativo. As críticas que Hegel endereça, de

uma parte, a Leibniz e a Spinoza, e de outra, a Kant e a Fichte

mostram que Hegel não defende uma passagem do monismo ao

dualismo e vice-versa. Isso equivaleria a passagem entre dois

extremos inertes, próprio do juízo. Somente, a economia do

silogismo, que assume os extremos na sua negação, impõe-se

aqui. Nesse sentido, a filosofia de Hegel poderia ser

caracterizada de monismo articulado, ou dualidade relacional da

unidade (Jarczyk-Labarrière, 1986, 352-353).

O monismo articulado, no entender do Jarczyk, é um

processo de mediação reflexivo cuja forma elaborada é o

processo silogístico, que ela também denomina uma ―articulação

evolutiva – evolução ao mesmo tempo linerar e circular – de três

momentos ou determinações da realidade que são a

universalidade, a particularidade e a singularidade. Processo

silogístico cujas diferentes etapas ou figuras marcam as

diferentes dimensões em profundidade de uma afirmação única‖

(id. p. 358-359).

3.1.3 A dialética Kojèviana

Na Introdução à leitura de Hegel, Kojève em uma nota

(id. p. 485, nota 1) descreve seu modo de compreender a

dialética, partindo da tese em que a totalidade da realidade é

dialética. Então, tem-se o seguinte:

a) Monismo ontológico: Os gregos descobriram, sob o

ponto de vista filosófico, a Natureza e aplicaram ao ser humano

sua ontologia naturalista, determinando-o por uma única

categoria, a identidade.

b) A dialética da Natureza e do ser humano (= História):

Hegel, afirma Kojève, descobriu as categorias da Negatividade e

da Totalidade, analisando o ser humano na perspectiva da

tradição pré-filosófica judeu-cristã. De posse desta ontologia

dialética antropológica, ele a aplica à natureza. Tem-se, assim,

em Hegel a aplicação de uma única ontologia dialética ao ser

humano e à natureza.

Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 86

Ora, a ação (= Negatividade) tem uma dinâmica diferente

que o ser (= Identidade), ou seja, há uma diferença essencial

entre a natureza que é revelada pelo discurso do ser humano, e o

homem que revela a realidade própria e àquela outra da natureza.

Kojève acentua que é preciso distinguir na ontologia dialética do

ser revelado ou o do espírito (dominada pela totalidade), uma

ontologia não-dialética da natureza de inspiração grega e

tradicional (dominada pela identidade); e uma ontologia dialética

(de inspiração hegeliana) do homem ou da história (dominada

pela negatividade).

Segundo, Kojève, o erro monista de Hegel é o seguinte:

Baseado sobre a ontologia dialética única, Hegel elabora uma

metafísica e uma fenomenologia dialéticas da natureza, para

substituir a ciência vulgar (a antiga e a de Newton). Admitindo a

dialeticidade de tudo o que existe, Hegel vê na circularidade do

saber o único critério da verdade. Ora, para Kojève, a

circularidade do saber só é possível no fim da história. Então,

Kojève afirma ―que um dualismo ontológico é indispensável para

explicar o fenômeno da história‖ (id. p. 486).

G. Jarczyk e P-J. Labarrière escreveram o livro que traz

por título: De Kojève a Hegel, tratando da recepção do

pensamento hegeliano nos últimos 150 anos na França. Nesta

obra, os autores fazem uma apreciação crítica de como Kojève

interpreta Hegel. Os traços dominantes, no entender de Jarczyk e

Labarrière, da leitura de Kojève são os seguintes: Há uma

antropologização do sistema, em que o homem toma o lugar do

Espírito, quando se trata da liberdade e de suas realizações. Éric

Weil de um lado, Gérard Lebrun de outro, sublinharam que esta

abordagem, embora inspiradora, carece do que constitui uma das

tensões fundamentais entre singularidade e universalidade no

pensamento hegeliano. Kojève persegue a origem desse homem,

no gesto antropogênico capital que é a submissão de um dos dois

antagonistas, fechando provisoriamente a luta de vida e morte,

no começo de nossa história. Esta dialética, entre dois

humanóides no exercício da liberdade, torna-se o paradigma da

leitura da história em que, sistematicamente, o oprimido torna-se

vitorioso. Esta figura, sob o nome de dialética do senhor e do

escravo, determina-se no percurso trágico-revolucionário, ao

Filosofia, Reconhecimento e Direito 87

longo do caminho, em direção ao reconhecimento de ambos. Há,

afirmam Jarczyk e Labarrière, uma extrema violência que

atravessa a vida dos homens, donde surge a necessidade de

pensar o desenvolvimento histórico como fim da história,

efetivamente acontecido. Ora, esta figura terminal foi inaugurada

pela revolução de 1917, concretizada na pessoa e na obra de

Staline.

Porém, no entender dos autores, o mais original no

pensamento de Kojève encontra-se na recusa que este faz tanto

do dualismo ontológico como do monismo materialista. Embora

defenda um dualismo dialético linear, é uma porta de entrada

possível para a compreensão de um processo de tipo reflexivo

(Jarczyk e Labarrière, 1996, 30) 6. É esta chave hermenêutica que

nos interessa na recepção do pensamento kojèviano em nosso

estudo, e que nós consideramos importante para compreender o

fenômeno jus-filosófico, que passamos, agora, a expor.

3.2 O desejo antropogênico

Definir o Direito, para Kojève, é encontrar a essência e o

modo de sua realização para, assim, por comparação com outras

atividades humanas, demonstrar sua especificidade e autonomia.

A via de acesso à essência do direito seria aquela

inaugurada por Platão: encontrar a Idéia. Caminho este que

corresponde na démarche weberiana ao tipo Ideal e em Husserl

ao Fenômeno. Deve-se descobrir, em outras palavras, o

conteúdo que faz com que o caso dado é um caso de direito por

exemplo, e não de religião ou de arte, etc. De maneira que para

definir o direito, é preciso primeiro encontrar sua essência,

enquanto fenômeno; e porque este é um fenômeno humano, é

6 Reconhecem, os autores, os méritos de Kojève sob este ponto de vista, sem,

no entanto, aceitar as conseqüências que o filósofo russo, deduz disto, tais

como: a entrada numa fase da história, sem possibilidade de mudança, ou

seja, o fim da história e o ateísmo total desta visão de mundo. Esta posição,

reiteram os filósofos, conduz a espoliar a imagem essencial de Hegel que é a

plasticidade de seu pensamento levado até o fim de sua vida. Trata-se, de

uma interpretação de um sistema fechado, esgotando suas potencialidades e

sem possibilidades de inovação, concluem Jarczyk e Labarrière.

Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 88

preciso mostrar inicialmente, no ato que engendra o homem

enquanto tal através dos tempos, o aspecto que faz nascer no

mesmo o fenômeno jurídico (Kojève, 1981, 10-11).

Assim, na segunda seção do Esquisse, denominada

L’origine et l’évolution du droit, Kojève trata de mostrar que o

desejo antropogênico de reconhecimento pode ser a fonte da

idéia de Justiça de uma maneira geral, e, assim, fonte de tudo o

que é autenticamente o Direito.

Nos §§ 35 a 38, Kojève reconstitui sua chave de leitura

da Fenomenologia do espírito, anteriormente consagrada nos

seminários, por si ditados em presença daqueles que,

posteriormente, viriam a ser o escol da intelectualidade européia,

tais como Lacan, Bataille, Merleau-Ponty, etc.

Nestes parágrafos Kojève esquadrinha as seções A e B

do capítulo IV (A verdade da certeza de si mesmo) da

Fenomenologia, respectivamente, Independência e dependência

da consciência de si: Dominação e Escravidão e Liberdade da

consciência de si: Estoicismo, cepticismo e Consciência Infeliz.

Todo o núcleo desta parte da obra em comentário afirma-

se sobre o que Kojève reivindica para si, como sendo uma teoria

do desejo do desejo, a propósito da qual, convém invocar os

termos utilizados pelo próprio filósofo, quando em

correspondência endereçada a Tran-Duc-Thao, autor de um

artigo publicado no ano seguinte ao aparecimento da

Introduction à la lecture de Hegel:

... minha teoria do "desejo do desejo", também não está

em Hegel e não estou certo de que ele efetivamente a

tenha visto. Introduzi esta noção porque tinha a intenção

de fazer, não um comentário da fenomenologia, mas uma

interpretação; em outros termos, tentei reencontrar as

premissas profundas da doutrina hegeliana e construir

deduzindo-a logicamente destas premissas. O "desejo do

desejo" parece-me ser uma das premissas fundamentais

em questão, e se Hegel mesmo não o desenvolveu

claramente, considero que, formulando-o expressamente,

realizei certo progresso filosófico. É, talvez, o único

progresso filosófico que realizei, sendo, o resto, mais ou

menos filologia, ou seja precisamente uma explicação de

Filosofia, Reconhecimento e Direito 89

textos (Jarczyk e Labarrière, 1996, 64-65).

O § 35 começa por uma grande definição do ser

especificamente humano, dizendo que este é criado a partir do

animal Homo sapiens no e pelo ato (livre por definição) que

satisfaz um desejo (Begierde), portanto sobre um outro desejo

tomado enquanto desejo. Melhor ainda, o homem cria-se

enquanto este ato, e seu ser especificamente humano é apenas

este ato mesmo: o ser verdadeiro do homem é sua ação. (Kojève,

1981, 237).

Embora esta primeira abordagem traga em si uma

oposição primordial — homem e animal, o conteúdo mais

importante é o que extrema a consciência de si do sentimento de

si, ambos concernindo, respectivamente, ao desejo humano e ao

desejo animal.

Ao longo do § 35 e até meados do § 36 da Esquisse,

grosso modo, Kojève reprisa, de maneira sintética e aplicada à

questão jurídica, a supracitada chave de leitura da

Fenomenologia que discorre sobre o desejo, para então desaguar

na consideração de que é o ato antropogênico — aquele que

satisfaz um desejo puramente humano — que engendra a

consciência de si (Selbstbewusstsein, a partir do sentimento de si

animal, do Selbstgefühl), o reconhecimento por outro sendo

também o reconhecimento por si, o conhecimento de si ou a

tomada de consciência de si por si mesmo (Kojève, 1981, 246).

A partir do que, segundo o autor, o homem pode opor ao animal,

que também o constitui, tanto sua condição de ―sujeito

religioso‖, quanto sua condição de ―sujeito moral‖, quanto sua

condição de sujeito de direito.

A esta altura, resulta proveitoso esquadrinhar-se a

questão do lugar e do papel do desejo na antropogênese ora

focalizada; para tanto, favorece o recurso à Introdution à la

lecture de Hegel, na qual a interpretação dada por Kojève à

Fenomenologia do Espírito é revelada em sua plenitude.

Ainda em sede introdutória à leitura que faz da

Fenomenologia, Kojève assenta com clareza que, embora a

diferença entre o homem e o animal trespasse a distinção entre

consciência de si e sentimento de si, isto não importa em que o

Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 90

elemento cognitivo seja a combustão da antropogênese, mas sim

o Desejo:

... a análise do ―pensamento‖, da ―razão‖, do

―entendimento‖, etc. — de uma maneira geral: do

comportamento cognitivo, contemplativo, passivo de um

ser ou de um ―sujeito cognoscente‖, não descobre jamais

o porquê ou o como do nascimento da palavra ―Eu‖, e,

portanto, da consciência de si, isto é, da realidade

humana. O homem que contempla é ―absorvido‖ por

aquilo que ele contempla; o ―sujeito cognoscente‖ se

―perde‖ no objeto conhecido (Kojève, 1994, 11).

Desta atividade absorta, segundo Kojève, não é possível

resultar qualquer referência ao sujeito que contempla a si mesmo.

Somente o Desejo pode levar este sujeito a dizer ―Eu‖.

Esta consideração inicial será posteriormente retomada,

no resumo que faz dos seis primeiros capítulos da

Fenomenologia, às páginas 161 a 195 da obra ora comentada,

onde, em uma reflexão posta a partir do referencial cartesiano,

situa a questão do desejo do desejo, enquanto instância

ontológica do homem.

Diz Kojève, a resposta cartesiana: eu sou um ser

pensante, à questão: ―Eu penso, logo sou; mas o que eu sou?‖

não satisfaz Hegel. Eu não sou somente um ser pensante, (...) eu

sou ainda - antes de tudo – Hegel. (Kojève, 1994, 163) E este

Hegel é um homem de carne e osso, que se sabe ser tal e que,

sentado em uma cadeira, diante de uma mesa, munido de papel e

caneta escreve, enquanto ouve ruídos vindos de longe e que os

reconhece como sendo o barulho proveniente dos tiros de

canhão, usados por Napoleão na batalha de Iena.

Assim, partindo do eu penso, Descartes teria fixado sua

atenção apenas sobre o penso, negligenciando completamente o

eu, tendo, pois, obtido uma resposta, não só sumária quanto falsa,

posto que parcial e unilateral. O homem, e, portanto o filósofo,

não é somente Consciência (Kojève, 1994, 165), mas

Consciência de si e, levar-se em conta tão-somente o penso, joga

o homem naquela condição contemplativa, em que ele se

Filosofia, Reconhecimento e Direito 91

confunde com a coisa contemplada, é absorvido por ela.

Então, para que o homem venha a pronunciar a palavra

Eu, é necessário a existência do desejo; com isso Kojève opõe ao

conhecimento a ação, enquanto elemento genético do ser do

homem:

Ao contrário do conhecimento que mantém o homem em

uma quietude passiva, o Desejo o torna in-quieto e põe-

no em ação. Sendo nascido do Desejo, a ação tende a

satisfaze-lo... (Kojève, 1994, 12).

A forma como ser humano age é essencialmente

histórico, e não é possível defini-lo a partir de um a identidade

estática como a do cogito, apenas.

Característica da ação constituinte do homem é a

negação; ou seja, desejar é destruir o objeto, é torna-lo uma

posse, assimila-lo, negando-o enquanto não-eu. Mas a ação não é

puramente destruidora, ao desejar aquilo que não é o eu, o

homem constitui-se como um ser no mundo em separado daquilo

que deseja; porém esta caracterização da ação negadora ainda

não distingue o homem do animal, que também luta pela posse e

assimilação de um objeto alheio a si para a satisfação de um

desejo. Esta espécie de desejo incide sobre um objeto exterior

natural é satisfeito pela assimilação, transformando-se no sujeito

que o negou pela assimilação, portanto este sujeito é, da mesma

forma, um sujeito natural, ou na acepção de Kojève: O eu criado

pela satisfação ativa de um tal desejo terá a mesma natureza que

as coisas sobres as quais ele incide: será um eu coisista, um eu

somente vivo, um eu animal (Kojève, 1994, 12). A conseqüência

disto é que este eu natural, apenas poderá auto revelar-se e

revelar-se aos outros, enquanto sentimento de si, ele não se

tornará jamais consciência de Si (Kojève, 1994, p.12).

O desejo que ensejará a consciência de si, é o desejo

tipicamente humano; é o desejo que incide sobre um objeto não-

natural, sobre algo que ultrapasse a realidade dada. Logo, como o

único que supera a realidade natural dada, é o próprio desejo, ou

seja, o desejo antes da satisfação, apenas o desejo de outro desejo

preenche a exigência de um desejo tipicamente humano, vale

Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 92

dizer, capaz de viabilizar a consciência de si. Diz Kojéve: O

desejo que incide sobre outro desejo, enquanto desejo, criará,

pois, pela ação negadora e assimiladora que o satisfaz, um eu

essencialmente diferente do eu animal. (...) Este eu não será,

como o eu animal, identidade ou igualdade consigo, senão

“negatividade-negadora”. Dito de outra forma, o ser mesmo

deste eu será devir, e a forma universal deste ser não será

espaço, mas tempo (Kojève, 1994, 12).

Aquela condição de sujeito de direito, acima

mencionada, é a negação substancializada da base animal do

homem. Havendo casos em que o sujeito de direito

corresponderá a uma ―pessoa moral‖ individual, coletiva ou

abstrata. É esta negação que autorizará a distinção entre ação

puramente humana e ação puramente animal, sendo que a

primeira é possível, mesmo onde a segunda não esteja presente, o

que dá vez a que se obtenha a noção de ―Fundação‖ a partir da

noção de ―pessoa moral abstrata‖ e a de ―Sociedade‖ a partir da

noção de ―pessoa moral coletiva‖ (Kojève, 1981, 247).

Ainda que de passagem, Kojève registra que,

independentemente do que possam propor diferentes teorias a

respeito da pessoa moral, o que importa é que a realidade ideal

da “pessoa moral” deve sempre remeter a um animal Homo

sapiens que lhe serve de suporte; em suma, sendo uma realidade

especificamente humana, a pessoa moral só pode ser proveniente

de um ato antropogênico, o qual, por ser uma negação da

animalidade, implica na condição não física da personalidade

moral jurídica.

Mais, dirá o autor, esta oposição entre o homem e o

animal se pode dar tanto na esfera do ser, quanto na esfera do

agir; portanto do que é e do que devesse ser. Entre o que se faz e

o que se deve fazer. Assim, o animal, pelo instinto de

conservação faz o que é necessário, para não arriscar a vida que

tem, ele recusa o risco; porém, para que este mesmo animal se

torne homem ele deve arriscar sua vida; nesse sentido é que a

humanidade é um horizonte a ser implementado por um ato livre,

o ato antropogênico, o qual, além do atributo da reflexão,

enquanto realidade consciente, caracteriza-se ainda por ser um

ato valorado positivamente, que deve ser. Em nota explicativa,

Filosofia, Reconhecimento e Direito 93

Kojève esclarece que o dever-ser é, ao fim e ao cabo, o dever-

ser-reconhecido, que é uma tomada de consciência do querer-

ser-reconhecido, ou do próprio ato antropogênico. Que o aspecto

do dever, revela apenas o fato de que o desejo ou o querer

antropogênico implica necessariamente uma negação do dado

natural ou animal que é a base da existência de quem deseja

(Kojève, 1981, 248).

Mas é no § 37, após retomar a noção de que a luta por

reconhecimento é, por excelência, o ato instaurador do advento

do especificamente humano, que Kojève vai situar a imanência

da intersubjetividade na constituição do humano. Neste desejo de

reconhecimento, diz o autor, está a fonte última da idéia de

existência da Justiça (Kojève, 1981, 250). Porque sendo travada a

luta por reconhecimento, a partir de um ato de vontade mútua

entre os contendores, qualquer lesão a pretendidos direitos daí

decorrentes não se pode dizer injusta, haja vista mesmo a

chancela do consentimento decorrente da vontade livre

manifestada pelo contendor lesado. Não há mais como se falar

meramente do emprego da força de um sobre o outro, posto que

houve mútuo consentimento7 (Kojève, 1981, 250).

Porém, alerta, Kojéve, o consentimento afasta a injustiça,

mas nem por isso vai promover de imediato a justiça. É preciso ir

além do consentimento para encontrar o conteúdo da idéia de

Justiça (Kojève, 1981, 252). Ou seja, somente se houver

igualdade de risco na luta é que se fará presente a idéia de

Justiça. O consentimento e a mutualidade são índices de justiça,

no entanto, a objetividade da justiça está no elemento igualdade,

o que permite a Kojéve declinar que toda interação será dita

justa, na medida em que ela implique consentimento mútuo e

igualdade dos participantes (Kojève, 1981, 253). E ainda, que se

a luta foi justa seu resultado, da mesma forma, será aceito como

justo. Assim, se a luta antropogênica, a luta por reconhecimento,

7 Esta mesma base de consensualidade mútua presente na luta é que será

depois a fonte da idéia da contratualidade no sentido propriamente jurídico,

para tanto, porém, será preciso a presença de um terceiro, de um árbitro.

Nada obstando, na luta por reconhecimento haver apenas duas partes, duas

vontades independentes, dois adversários em confronto deliberado.

Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 94

a luta que permite o advento do homem dentro da

intersubjetividade, se realiza pelo reconhecimento do mestre-

vencedor pelo escravo-vencido, há então uma desigualdade justa,

que remete a uma igualdade primordial, aquela de que ambos

arriscaram igualmente a vida e a morte no embate.

Kojéve identifica no consentimento o elemento subjetivo

da justiça e, na igualdade de contendores, o elemento objetivo da

justiça; remetendo então estes corolários à questão da luta por

reconhecimento, dirá o filósofo que esta luta começa num

patamar de igualdade mas, ela culmina na injustiça, e diz: (...) é

porque a justiça é ainda outra coisa além do que a igualdade

(Kojève, 1981, 254).

A injustiça em que culmina a luta pelo reconhecimento,

dá-se em face do reconhecimento unilateral do senhor–vencedor

pelo escravo-vencido, o que revela uma desigualdade total dos

participantes, no entanto se a luta foi justa, igualmente justo

haverá de ser o resultado, o que conduz a uma desigualdade

justa, que somente é justa, porque remete a uma igualdade

primordial. Surge, portanto, uma Justiça da desigualdade, que se

caracteriza fenomenologicamente pelo fato de a desigualdade,

que no caso é o reconhecimento unilateral, nasce em razão de

que um dos adversários abandona a luta, rendendo-se ao outro

pelo medo da morte, rendição esta oferecida de maneira

consciente e voluntária, tanto quanto fora o engajamento na luta;

sendo a rendição aceita também de maneira livre, presente está o

consentimento mútuo no resultado da luta. É assim que uma

situação aparentemente injusta, pode então ser justa, muito

embora desigual (Kojève, 1981, 255). Se, em presença da

mutualidade consensual, cabe ainda este pode, como uma

potência, é o consenso ainda apenas indício da justiça.

Uma análise qualitativa das conseqüências deste

consenso mútuo será, pois, reveladora da idéia de justiça aí

encerrada. Primeiro, sendo o reconhecimento unilateral, não há,

objetivamente, igualdade propriamente dita e, segundo, não

haverá igualdade propriamente dita como subjetiva porque:

(...) um [adversário] posto no lugar do outro não agiria

como este: o Senhor no lugar do Escravo não se renderia,

Filosofia, Reconhecimento e Direito 95

e o Escravo no lugar do Senhor não teria continuado na

luta até o fim. O Escravo, tanto quanto o Senhor, sabe

que não há igualdade entre o Senhor e o Escravo, entre a

atitude de um e de outro. Mas se não há igualdade de

condição e de atitude, há equivalência (Kojève, 1981,

255).

Qual a materialidade desta equivalência? Que elementos

são aí cotejados? A segurança, desde o ponto de vista do escravo,

equivale à dominação. Desde o ponto de vista do senhor, a

dominação equivale à segurança. Como a desvantagem do risco é

compensada pela dominação para o senhor, e como a vantagem

da segurança compensa, para o escravo, a desvantagem da

servidão, diz Kojéve que há equivalência entre as duas posições e

que é esta equivalência que constitui a nova idéia de justiça; e

assim: À justiça igualitária primordial vem acrescer-se a justiça

da equivalência (Kojève, 1981, 255).

Ainda, enquanto corolário, ao final do § 37 Kojéve faz

ver que se nem o Escravo pode ser senhor e nem o senhor pode

ser escravo, por este jogo de equivalências das vantagens e

desvantagens que o resultado da luta apresenta, ambos podem ser

cidadãos. E que, a evolução histórica da justiça não é nada mais

do que a efetivação gradual no tempo da síntese, ou pelo menos

de um compromisso entre a justiça aristocrática da igualdade e a

justiça burguesa da equivalência, resultando em uma justiça da

equidade.

3.3 Modelos de Direito, ou ideal de justiça, segundo

Kojève

Para Kojève o Direito é apenas a aplicação de um ideal

de Justiça às interações sociais dadas, sendo esta aplicação feita

por um terceiro imparcial e desinteressado, isto é, agindo,

unicamente, em função de seu ideal de justiça (Kojève, 1981,

267).

O senhorio e a escravidão são fenômenos ―sociais‖ e não

fenômenos jurídicos ―primários‖. Assim, o terceiro, enquanto

terceiro pode fazer abstração do fato de ele ser senhor ou

Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 96

escravo. Um senhor pode aplicar os princípios da justiça

burguesa de equivalência, da mesma forma que um escravo pode

aplicar os princípios da justiça aristocrática de igualdade, de tal

sorte que os senhores podem realizar o Direito burguês e os

escravos – o Direito aristocrático (Kojève, 1981, 271).

As duas fontes da justiça e do Direito são independentes.

Os dois adversários adotam, porém, uma relação dialética: O

escravo renuncia a igualdade aceitando a equivalência; o senhor

não considera a equivalência, mantendo a igualdade, pois ele está

quase indo à morte, que não levaria a nada. A dialética sócio-

política do senhorio e da escravidão que alcança a cidadania,

coincidem a grosso modo com a dialética jurídica do Direito

aristocrático e burguês, levando ao Direito sintético do cidadão.

Este direito é uma síntese de dois elementos autônomos,

efetivando-se progressivamente: um Direito do cidadão em

estado de devir.

O Direito nasce duplo e no fim, torna-se uno, ou seja, sua

evolução vai da oposição antitética à unidade sintética. Kojève,

descreve esta antítese pura como uma construção teórica, que

será apresentada, brevemente, abaixo.

3.3.1 A justiça da igualdade ou o Direito aristocrático

O ser humano nasce do ser animal pela negação deste

último, isto é, pelo risco de vida em função do desejo de

reconhecimento. Ele nasce pela interação entre dois agentes

iguais, colocados nas mesmas condições em relação à luta e ao

risco. Esta é a existência humana realizada pelo senhor, situando-

se do ponto de vista aristocrático, pressupõe a igualdade do risco.

Sem esta igualdade primordial, não se teria o ser humano: a

humanidade criou-se na igualdade (Kojève, 1981, 274).

O senhorio consiste no risco da vida para o

reconhecimento, em vista da honra pura e simples. Ora, ser

homem é ser senhor. Este é o fato, que é um dever-ser,

realizando a justiça no sentido aristocrático, ou seja, a igualdade

de condições humanas no senhorio sob os diversos aspectos: a)

Do ponto de vista, sócio-político, o aristocrata considera justas as

instituições que garantem a igualdade com os outros aristocratas,

Filosofia, Reconhecimento e Direito 97

recusando toda submissão; b) A justiça, do lado econômico,

alcança um comunismo descrito em utopias mitológicas de

origem aristocrata. Enfim, ser “justo” para o senhor, é tratar os

senhores como senhores, isto é, como iguais: primus inter pares

(Kojève, 1981, 277).

Porém, uma sociedade aristocrática, um grupo de

senhores, não é jamais igualitária, no sentido moderno da

palavra, pois implica ter escravos. Isso, não provoca contradição,

pois para o senhor o escravo não é um ser humano e sua relação

com o escravo não tem nada haver com a justiça. A contradição

aparece, apenas, no momento em que o escravo é considerado

um ser humano e o Direito trata-o como sujeito de direito, pessoa

jurídica. Então, do ponto de vista da justiça aristocrática, toda a

injustiça entre senhor e escravo será considerada como injusta

(Kojève, 1981, 278).

Um senhor que reconhece a humanidade do escravo não

é mais um senhor integral, pois ele se coloca do ponto de vista do

escravo. Ele sintetiza seu senhorio com a escravidão e ele é mais

ou menos um cidadão, adotando o ideal burguês de justiça. Ora,

esta justiça de equivalência, não exige a igualdade, podendo-se

reconhecer a humanidade do escravo sem afirmar sua igualdade

com o senhor. Assim, as revoluções igualitárias, inspiradas pela

justiça aristocrática, se aburguesam, isto é, aceitam a justiça

burguesa da equivalência de condições políticas, sociais e

econômicas que implicam uma desigualdade fundamental, aquela

da propriedade, por exemplo. No início da revolução, a

desigualdade é considerada como injusta, porque os

revolucionários aplicam o ideal da justiça aristocrática, porém, ao

conquistarem o poder, eles impõem também sua justiça burguesa,

então, a desigualdade pode cessar de ser considerada como

injusta pelas revoluções (id. p. 278).

As sociedades aristocráticas são hierarquizadas,

implicando desigualdades, além daquela do senhor-escravo. Isso

é inegável, porém não existem sociedades puramente

aristocráticas, pois, para que exista o Estado, são necessários

cidadãos. Ora, o cidadão é sempre uma síntese do senhor-

escravo. Há uma acomodação, de uma certa desigualdade,

sobretudo, entre governantes e governados. Desigualdades estas,

Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 98

que não são injustas, porque o ideal de justiça cidadão aplicado é

mais ou menos sintético, ou seja, mais ou menos contraditório.

O senhorio constitui-se como uma situação ―justa‖ do

ponto de vista da justiça aristocrática da igualdade. O Direito

aristocrático afirma que o senhor, enquanto sujeito de direito ou

pessoa jurídica, possui todos os direitos subjetivos e não tem

nenhum dever ou obrigação jurídica. Então, cada senhor possui a

plenitude dos direitos, sendo os senhores iguais do ponto de vista

jurídico. Logo, toda pessoa jurídica, ou seja, o senhor aristocrata

pode exercer os seus direitos à condição de não lesar aqueles dos

outros. Caso contrário, o terceiro intervém para restabelecer a

igualdade. Porém, esse princípio do senhorio é difícil de ser

aplicado, quase impossível, pois a maioria das interações sociais

pressupõe uma desigualdade ou aí acaba chegando. Esse ideal

não existe em ato, isto é, não se aplica. Ele apenas é chamado a

eliminar as ações e reações que lesem a igualdade, sendo

sobretudo um Direito criminal.

O Direito aristocrático, fundado sobre a igualdade,

portanto, sobre o estatuto estatal, tem a tendência de se confundir

com o Direito criminal, ao contrário, o Direito burguês, funda-se

sobre o princípio da equivalência, portanto, do contrato, porque

admite uma validade jurídica infinita de interações sociais,

sendo, assim, um Direito civil. Nas sociedades ―primitivas‖, isto

é, verdadeiramente aristocráticas, as interações sociais são

sobretudo criminais. Aí as pessoas vivem isoladas, não tendo

necessidade umas das outras, entrando em interação, sobretudo

para se lesarem mutuamente, através do roubo, o rapto ou a

morte, ao invés de realizarem trocas comerciais pelo contrato de

colaboração.

Na sua relação com o escravo, o senhor tem todos os

direitos, ou quase direitos pois essa relação não é, propriamente

falando, jurídica, pois ele não tem nenhum dever. O senhor tem o

direito de propriedade sobre seu escravo e suas terras. Este é um

direito aristocrático, enquanto o Direito civil é o do contrato e

das obrigações (Kojève, 1981, 281-291). Enfim, se os animais

lutam entre eles pela posse de uma coisa, os homens lutam

também, para que uma coisa seja reconhecida como

exclusivamente sua pelo outro.

Filosofia, Reconhecimento e Direito 99

Kojève analisa o modelo de justiça da igualdade

descrevendo, fenomenologicamente, o direito aristocrático. Este

é um direito de iguais, em que o reconhecimento passa pelo risco

de vida, buscando a honra pura e simples. O reconhecimento dá-

se pelo escravo, enquanto submissão, e pelos outros senhores, na

medida da igualdade.

3.3.2 A justiça da equivalência ou o Direito burguês

Assim, como a justiça aristocrática, a justiça burguesa

reflete a luta antropogênica. A luta se refletia, antes, na

consciência do senhor, agora na do escravo. O senhorio constitui-

se pelo risco, ou seja, na e pela luta enquanto tal, enquanto que a

escravidão é o resultado desta luta, determinado pela negação

do risco e da luta, pela recusa de continuar até à morte (Kojève,

1981, 291). A justiça aristocrática corresponde à luta, enquanto

que a justiça burguesa corresponde a sua saída, o resultado. Ora,

se a luta se efetua na igualdade absoluta de condições, isto é, do

risco, o resultado é uma negação total desta igualdade, pois o

escravo não é o senhor e inversamente. Assim, está excluída a

igualdade, pois ela implica a diferença do senhor e do escravo.

Para o senhor o escravo não é humano, e mantém seu ideal de

igualdade, todavia, para o escravo, a humanidade é desigual.

Essa igualdade não é justa para o escravo. Este justifica a

desigualdade entre ele e o senhor pelo fato de ter aceitado

livremente. O escravo renunciou o risco da luta e submeteu-se ao

senhor. Aquele é humano, porque arriscou sua vida na luta pelo

reconhecimento, porém, como ele não a levou até o fim,

recusando o risco de atualizá-la na e pela morte, ele não atualizou

sua humanidade. Por isso, o escravo é um ser humano em

potência, daí, a necessidade de mudar, para se atualizar, ou seja,

ele deve deixar de ser escravo e tornar-se cidadão, para existir em

ato, enquanto ser humano.

Tanto para o senhor como para o escravo, ser humano é

um dever-ser, porém, o primeiro se realiza, permanecendo

idêntico a si mesmo, ou sendo igual a si, enquanto que o último

realiza seu dever-ser homem mudando, tornando-se outro. Ele

torna-se outro, negando-se, enquanto escravo. Sua humanidade

Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 100

atual de cidadão pressupõe sua humanidade virtual de escravo, e

esta última implica desigualdade e pressupõe a equivalência.

Para o escravo, o dever-ser funda-se sobre a equivalência e não

sobre a igualdade. A equivalência é, pois, um “dever-ser”, e o

“dever-ser” enquanto equivalência é “justo”, mesmo se ele

implica a desigualdade. A justiça burguesa do escravo é uma

justiça de equivalência (Kojève, 1981, 294).

Na história, encontramos sistemas sociais e jurídicos

fundados sobre o princípio da equivalência, justificando e

reconhecendo a desigualdade. Por exemplo, o sistema cristão de

Santo Tomás de Aquino, em sua teoria da justiça social e

jurídica, afirma a possibilidade para cada um viver segundo sua

categoria. A diferença de categoria é aceita e justificada pela

equivalência de condições; em cada condição os encargos são

equivalentes aos benefícios. Hoje, vive-se, em grande parte,

segundo o ideal da justiça burguesa de equivalência, admite-se a

desigualdade, por exemplo, econômica. Assim, o salário de um

diretor de empresa é considerado equivalente ao salário do

trabalhador, porque exige mais esforço intelectual ou moral (a

responsabilidade), ou por ser ele o proprietário. Ainda, do ideal

de equivalência nasceu a idéia de imposto progressivo sobre a

renda, pois parece justo que aquele que ganha mais que os

outros, pague mais que eles. No entanto, o mesmo burguês, que

reconhece que esse sistema de imposto é justo, recusa-se,

absolutamente, a admitir que seria justo igualar as fortunas,

recusando-se ao projeto de imposto sobre o capital (Kojève,

1981, 296-297).

A justiça de equivalência realiza-se pelo Direito burguês,

sendo aplicada por um terceiro imparcial e desinteressado. O

Direito burguês reconhece desde o começo uma estrita

equivalência entre os deveres e os direitos, ou seja, a cada dever

equivale um direito e vice-versa. Por exemplo, se o escravo tem

o direito e o dever de trabalhar, o senhor tem o dever e o direito

de fazer a guerra. O princípio fundamental do Direito burguês é

a equivalência dos direitos e dos deveres junto a cada pessoa

jurídica. Todo sujeito de direitos tem direitos que são,

rigorosamente, equivalentes a seus deveres, ou seja, deveres que

são equivalentes a seus direitos (Kojève, 1981, 300). Vê-se que

Filosofia, Reconhecimento e Direito 101

há uma diferença entre o Direito burguês e o Direito

aristocrático, este atribui a cada pessoa jurídica a plenitude de

direitos sem nenhum dever, enquanto que aquele, ao contrário,

exige uma equivalência rigorosa entre direitos e deveres.

O conceito de propriedade para Kojève de estático torna-

se dinâmico, uma perpétua “mudança”. Contrariamente, ao

princípio aristocrático, a propriedade não se mantém, portanto,

na sua “igualdade” ou identidade consigo. Ela permanece

“equivalente” a ela, mudando de natureza. E pode-se dizer

também que do ponto de vista do Direito burguês a propriedade

não é mais um “estatuto” eterno e imutável, mas uma simples

“função” (Kojève, 1981, 301). A propriedade será uma função

de seu trabalho e o resultado de um contrato, ou seja, toda

mudança de propriedade se reduzirá a uma troca de trabalho. O

Direito de propriedade é substituído por um Direito de contrato,

que regulará as trocas de trabalho. A propriedade deixa de ser um

estatuto para tornar-se um simples termo de contrato (Kojève,

1981, 301-302, nota nº 2). Enfim, o Direito burguês substitui o

conceito aristocrático de estatuto, por aquele de função,

tornando-se um Direito de contrato.

O contrato sanciona trocas de propriedade e prestações,

pressupondo a desigualdade nas trocas, pelo fato que uns não têm

ou não fazem o que têm e fazem os outros. Ora, se o Direito

aristocrático condena a desigualdade, o Direito burguês o

reconhece, pois o princípio aqui é o da equivalência de

condições, de direitos e deveres. Kojève considera dois exemplos

de equivalência:

a) O princípio de herança jurídico-aristocrática é o

estatuto da igualdade em que o herdeiro sucede o morto, sem que

a sucessão modifique em nada o estatuto, tornando-o imutável. O

princípio do contrato burguês é, ao contrário, o da equivalência

de condições, implicando mudanças após a morte da pessoa que

deixa a herança.

b) No Direito Penal, anular o crime é restabelecer a

equivalência lesada. No crime é lesada a equivalência de

condições entre o criminoso e a vítima, daí o restabelecimento da

equivalência operar-se na pessoa da vítima e do criminoso. Ou

seja, a pena deve compensar o crime, ela deve contrabalançar as

Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 102

vantagens que o crime teria produzido. Pois, aqui, não se trata

mais de restituir a igualdade, pelo princípio do talião, mas a

equivalência pela compensação, considerando a intenção e o

aspecto subjetivo do criminoso (Kojève, 1981, 303-306).

3.3.3 A justiça da eqüidade ou o Direito cidadão

A justiça e o Direito nascem sob duas formas autônomas:

como justiça de igualdade e como justiça de equivalência. Essas

duas justiças, segundo Kojève, nascem, simultaneamente, da

mesma fonte: da luta antropológica entre o senhor e o escravo. A

justiça e o Direito aristocrático de igualdade (igualdade de risco)

refletem esta luta e o resultado é segundo a opinião do senhor,

enquanto que a justiça e o Direito burguês de equivalência

(equivalência de condições) refletem a opinião do escravo. Esse

dualismo jurídico, aristocrático e burguês, mostra o dualismo

humano entre senhor e escravo, sendo a evolução jurídica um

aspecto da evolução histórica do ser humano. Esta evolução vai

do dualismo à unidade, como as relações de senhor e escravo se

sintetizam na existência do cidadão, o Direito aristocrático e

burguês se unem no Direito cidadão. Kojève entende que o devir

do cidadão é o sentido da história da humanidade.

As duas justiças, no começo da vida jurídica da

humanidade, são autônomas, de maneira que se pode realizar a

igualdade, sem levar em conta o princípio da equivalência,

porém elas não se excluem. Na origem, o Direito considera a

pessoa, enquanto senhor, de tal modo que coincidem o conceito

de senhor e o de pessoa jurídica, pois todos os senhores são

iguais, enquanto senhores. Todos os seres humanos, porém, não

podem ser senhores, pois não há senhorio sem servidão, de tal

sorte que a sociedade aristocrática implica ter escravos.

O Direito aristocrático evolui para uma extensão

progressiva da igualdade, na medida em que um senhor

reconhece um não-senhor, sem luta. Então, não é mais um senhor

verdadeiro, e o Direito aristocrático não se aplicará mais a esse

tipo de reconhecimento. Nesse caso, será aplicado o Direito

burguês, admitindo a equivalência jurídica dos senhores com os

não-senhores e não, sua igualdade. O senhor reconhecerá os

Filosofia, Reconhecimento e Direito 103

direitos do não-senhor, mas não admitirá a igualdade de seus

direitos com os dele, mas apenas sua equivalência.

O reconhecimento de novas pessoas jurídicas se faz por

razões extra-jurídicas, e o Direito se satisfaz em aplicar seu

princípio de igualdade a todos os sujeitos de direito. O Direito

reconhece a igualdade jurídica de todas as pessoas jurídicas, isto

é, dos seres reconhecidos como humanos. Ora, não há razões

extra-jurídicas para o senhor reconhecer a humanidade de um

não-senhor (escravo, mulher ou criança). O não-senhor é para o

senhor, o escravo. O senhor não quer ser não-senhor realmente, e

nem idealmente, isto é, na sua consciência, colocando-se do

ponto de vista do não-senhor, assumindo mentalmente seu lugar.

O senhor não quer tornar-se realmente um não-senhor, pois ele

prefere morrer.

Outra é a opinião do escravo e de seu Direito burguês,

pois o escravo reconhece desde o início a humanidade do senhor.

O escravo elabora um Direito, considerando-se como uma pessoa

jurídica, um ser humano, portanto, reconhecerá o senhor como

uma pessoa jurídica. No entanto, o escravo admite sua

desigualdade com o senhor, daí criar um Direito baseado no

princípio da equivalência. Ora, se o escravo é uma pessoa

jurídica, um ser humano, então, ele não é mais, somente, um

escravo, mas também um não-escravo, ou seja, um senhor.

Então, ele toma o ponto de vista de um senhor, e mentalmente

toma o seu lugar. Ele aceita, pois, o princípio fundamental do

Direito e da justiça aristocrática. Haverá uma evolução do Direito

burguês e uma síntese com o princípio do Direito aristocrático.

Há uma razão jurídica desta evolução do Direito burguês,

uma vez que os dois se reconhecem como sujeitos de direito.

Esta igualdade é puramente formal ou abstrata: o conteúdo dos

direitos dos respectivos sujeitos podem ser diferentes. Porém

toda a forma tende a tornar-se semelhante ao seu conteúdo, pode-

se dizer que toda igualdade formal tende a transformar-se igual

ao conteúdo. Portanto, a justiça e o Direito de equivalência

tendem a tornar-se uma justiça e um Direito de igualdade. O

escravo é inclinado a querer a igualdade por razões sociais. Se o

senhor não quer tornar-se escravo, este, sim, quer tornar-se

sempre senhor. Por razões tanto sociais quanto jurídicas, o

Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 104

escravo não quer realizar seu Direito burguês no estado puro,

mas tenderá reuni-lo com o Direito aristocrático num Direito de

eqüidade.

O senhor que se torna senhor, é outra coisa que o senhor

que nasceu como tal: Ele é cidadão. A evolução do Direito

burguês implica uma revolução igualitária. Não é alcançada a

simples igualdade do Direito aristocrático. O Direito que se torna

igualitário é um Direito cidadão, em que a igualdade se reúne

com a equivalência na eqüidade. O Direito burguês não existe em

ato, é necessário atualizá-lo no Direito do cidadão. Este é um

direito fundado na justiça da eqüidade, isto é, na síntese do

princípio burguês de equivalência com o princípio aristocrático

de igualdade.

Esta é a lógica da evolução do fenômeno do Direito e da

idéia de justiça: segue a lógica da contradição imanente. O

Direito organiza-se, como vimos acima, em dois princípios

jurídicos: a igualdade (em ato) e a equivalência (em potência).

Estes dois princípios, convivendo num mesmo sistema jurídico,

são contraditórios. Esse conflito interno, entre o Direito

aristocrático e o burguês, mostra que os mesmos direitos não têm

o mesmo valor, quando referidos a sujeitos diferentes: sendo

iguais do ponto de vista formal, eles podem não ser equivalentes

de fato. Por isso, o Direito burguês modificará a igualdade formal

para torná-la conforme a equivalência. A suprassunção dos dois

modelos de Direito conduzirá segundo, Kojève, ―à última forma

de Direito (do cidadão), um Direito absoluto. Ora, esse Direito

absoluto, em que a equivalência dos direitos e dos deveres de

cada um se acompanha de uma igualdade de direitos e deveres de

todos, pode ser atual apenas lá onde todos são iguais e

equivalentes, não somente sob o aspecto jurídico ―diante da lei‖,

mas também política e socialmente, isto é, de fato‖ (Kojève,

1981, 313-314).

A justiça de eqüidade será satisfeita, quando reinar a

maior igualdade possível. Porém, a realização da igualdade não

suprimirá a equivalência. A equivalência interna não pode ser

constatada e fixada objetivamente, senão houver crescimento de

vantagens e inconvenientes de uns em relação aos outros. O

crescimento de interesses estimula as trocas, e aquelas,

Filosofia, Reconhecimento e Direito 105

verdadeiramente, equivalentes estabelecem a igualdade. Cabe

ressaltar que a igualdade de todos é uma idéia limitada, pois, as

diferenças biológicas (homem/mulher), de personalidade etc.,

exigirão a aplicação do princípio da equivalência junto ao da

igualdade. E assim, a preponderância da equivalência gerará uma

extensão da igualdade, e vice-versa. A idéia de justiça evolui no

sentido de ampliar os dois princípios e estabelecer uma relação

entre ambos. De um modo geral, o Direito de uma época estará

de acordo com a idéia de justiça desta mesma época. Porém,

aqui, ainda se pode encontrar um desnível e, então, temos o

estímulo da justiça pelo Direito, ou do Direito pela justiça. E nos

dois casos o Direito será um intermediário entre a idéia de justiça

e a evolução da realidade social, pois o Direito aplica tal idéia a

esta realidade. Vejamos as características do Direito do cidadão,

que realiza a justiça de eqüidade.

No Direito aristocrático, sob o ponto de vista puramente

teórico, a pessoa jurídica possui a plenitude de direitos, sem ter

nenhum dever. O Direito burguês, ao contrário, em seu nível

puro, ou apenas teórico, põe o princípio da equivalência entre

direitos e deveres em relação a cada pessoa jurídica. Há, aqui,

uma desigualdade das pessoas que se reflete nas diferenças entre

os direitos e deveres de uma pessoa e aqueles de uma outra.

O Direito do cidadão, fundado sobre a justiça da

eqüidade, combina os direitos e deveres anteriores. Assim, face

ao Direito aristocrático, não se admitirá a existência de direitos

não compensados pelos deveres, nem de deveres sem direitos

correspondentes, mas haverá uma interação entre direitos e

deveres.

Aqui, afirma Kojève, temos uma síntese do

universalismo (ou do coletivismo) do Direito aristocrático e do

particularismo (ou do individualismo) do Direito burguês. Assim

como o senhor, o cidadão terá direitos e deveres universais. Os

direitos de todos sendo iguais, decorrem da pertença à sociedade

e ao Estado, bem como os deveres em relação a todos. É,

enquanto cidadão, membro do Estado e indivíduo que a pessoa

será portadora de direitos e deveres. Isto significa que o

individualismo e o universalismo coincidem, ou seja, os direitos

e os deveres mais pessoais, que podem ser exercidos apenas pelo

Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 106

indivíduo, serão os direitos e os deveres mais universais, isto é,

aqueles do cidadão tomado enquanto cidadão, ou aqueles de

todos e de cada um (Kojève, 1981, 320).

A liberdade jurídica consistirá na possibilidade de cada

um fazer tudo o que quiser, com a condição de permanecer de

acordo com a igualdade de direitos e deveres e sua equivalência

respectiva. E igualdade jurídica será garantida pelo fato de que o

valor jurídico de uma interação não será modificado, se

invertidos os seus membros. Ora, quando acontece esse

intercruzamento de direitos e deveres, deve-se admitir a interação

social. Nisso o Direito do cidadão é conforme ao Direito burguês

e contrário ao Direito aristocrático, que admite o estatuto e exclui

o contrato. O estatuto aristocrático se caracteriza por se isolar,

foge da interação com os outros, permanece idêntico a si mesmo.

O contrato do cidadão, ao invés, realiza o estatuto aristocrático,

pois ele une os princípios da igualdade e da equivalência. Os

contratos com a sociedade, com o Estado fixam o estatuto de

pessoas jurídicas. Porém, o estatuto cidadão difere do estatuto

aristocrático, porque ele será o resultado de interações sociais. O

estatuto será pois um contrato, e o contrato um estatuto. É assim

que não se terá mais nem estatuto no sentido aristocrático do

termo, nem contratos no sentido burguês (Kojève, 1981, 321).

Os estatutos cessam de ser hereditários e vitalícios, pois se pode

mudar de trabalho, de classe social, de família e mesmo de

nacionalidade. E cada pertença é uma atividade voluntária e

consciente, em interação com o Estado ou a sociedade: Agora,

cada um é o que faz, ou seja, a atividade não é mais fixada pelo

ser.

O Direito do cidadão adota o conceito funcional de

propriedade. Ela é o resultado do trabalho em obtê-la e, depois,

fixada juridicamente, sendo sua fonte última a interação, ou seja,

o contrato.

Assim, vimos os três modelos de idéia de justiça, sendo

que a última, de eqüidade, a única real, admite muitas aplicações

da idéia de justiça e suas interações sociais.

Após a apresentação das três idéias de justiça,

correspondendo a três modelos de Direito perecebe-se que

Kojève expõe a idéia do Direito como que parafraseando a obra

Filosofia, Reconhecimento e Direito 107

de Hegel sobre os Princípios Fundamentais da Filosofia do

Direito. Hegel afirma logo no início de sua obra: A ciência

filosófica do Direito tem por objeto a idéia do direito, o conceito

do direito e sua efetivação (§ 1º). E no parágrafo 4º diz: O

sistema do Direito é o reino da liberdade efetivada, o mundo do

espírito produzido a partir de si mesmo como uma segunda

natureza (Hegel, 1998). Ora, idéia e sistema são também os

conceitos principais de Kojève para determinar o Direito sob o

conteúdo da justiça.

O desejo de reconhecimento é, para Kojève, a fonte da

idéia de justiça. É este ato antropogênico que dá conteúdo à idéia

de justiça e se torna efetivo na história, regulando as relações

entre os indivíduos e os grupos, de modo simétrico e assimétrico.

Disto resulta os três tipos de justiça, acima expostos, os quais

suscitam diversos modelos de relações sócio-políticas.

O ato antropogênico determina-se pela luta do

reconhecimento, modificando a idéia de justiça e do Direito, no

qual ela se realiza. Assim, o que determina a relação jurídica é o

consentimento mútuo, em primeiro lugar, baseado no

reconhecimento da igualdade. Todavia, esta cessa de existir,

quando um dos combatentes pede para terminar a luta,

oferecendo em contra-partida sua submissão. Vê-se que a luta

antropogênica começa na igualdade e termina na injustiça.

Depois, esta injustiça em relação à justiça da igualdade provoca

um novo consentimento mútuo, que pode ser constatado e

garantido por um terceiro desinteressado, engendrando uma

nova idéia de justiça que é a equivalência. Aqui, a situação pode

ser justa, sendo porém, desigual. Kojève, após ter reconhecido

que estas duas justiças se opõem como uma justiça do senhor e

uma justiça de escravo, conclui que o homem nasce de um ato

único (duplo, mas recíproco), portanto ele só pode atualizar-se

completamente pela síntese do senhor e do escravo. Enfim, tem-

se um novo processo, o último na luta antropogênica: a idéia de

uma justiça de eqüidade, suscita o nascimento na história da

figura do cidadão (cf. Labarrière, 2001, 558).

Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 108

4. Modelos Metodológicos de Reconhecimento: do direito

subjetivo ao intersubjetivo

Conforme se viu acima, a passagem de uma perspectiva

auto-referencial de sujeito de direito para uma perspectiva

intersubjetiva veio a ser promovida, primeiramente pela noção de

relação jurídica esboçada por Fichte; mas, será em Hegel que

esta intersubjetividade fichteana precária alcançará o status de

instrumentação metodológica capaz de abordar, de maneira

eficaz e conseqüente, as aporias apresentadas pela realidade

social, posta à luz pela modernidade, para as quais a filosofia

social moderna não está em condições de explicar (...) já que

permanece presa a premissas atomísticas...(Honneth, 2003, 42).

Tais aporias, e elas são muitas, Hegel as examina nas

duas primeiras partes do artigo sobre o Direito Natural, de

maneira crítica e refutadora, para a seguir, na terceira e quarta

partes, resgatar das teorias, ditas, empíricas e formalistas, o que

de universal era pelas mesmas aportado. Mas, sem dúvida, é na

abordagem do conceito de pessoa jurídica, feita por Hegel, que

situamos o ponto de inflexão entre uma perspectiva auto-

referencial e uma perspectiva intersubjetiva (ou relacional) do

Direito.

Se a todo o momento o Direito Natural afirmara, até

então, a liberdade do ponto de vista do indivíduo, na questão

específica da pessoa jurídica, esta noção era exacerbada no

jusnaturalismo de corte racionalista da ilustração. Assim, Hegel,

apontando as características produtivas da concepção moderna de

pessoa jurídica, a coloca no devido lugar, mesmo constatando

que o direito abstrato (jusnaturalismo da ilustração) é formal,

aproveita ainda, a concepção de pessoa jurídica aí formulada,

situando-a, porém, no direito abstrato, §§ 35, 36 e 37 da Filosofia

do Direito; portanto, numa situação de passagem para o direito

da eticidade.

Inobstante, duas constatações devem ser consignadas:

que, conforme tem sido apontado por Bobbio, por exemplo,

também na perspectiva jusfilosófica o pensamento da ilustração

limitou-se em definir a sociedade civil, tomando-a pelo Estado; e

que, em nada obstante o alertado por Hegel, esta necessidade de

Filosofia, Reconhecimento e Direito 109

superação do direito abstrato, com sua visão exacerbada do

indivíduo, não foi contemplada.

De tal maneira que, mesmo na Alemanha, toda a doutrina

jurídica permaneceria acolhendo, como pessoa jurídica, a este

indivíduo livre, que não reconhece nenhuma norma acima dele,

autônomo — no sentido pobre do termo — e que concebe o

ordenamento jurídico como sendo criado a partir de acordos

livremente pactuados entre si e os demais que a ele se

assemelham. Ora, a metodologia hegelo-kojèviana, por ser

intersubjetiva, constitui a superação do modelo subjetivista

moderno do Direito.

Pelo exposto em Hegel e Kojève, percebemos que

existem modelos metodológicos diferenciados de

reconhecimento e da idéia de Direito. No que se refere ao

problema da metodologia como vimos acima, Hegel inclui a

dialética como um dos momentos fundamentais do método

especulativo. Enquanto que, para Kojève, a dialética é o fim de

sua metodologia. Mais ainda, seu modelo tem, como pressuposto,

um dualismo originário, enquanto que para Hegel, há uma

constituição monista que se movimenta, especulativamente, em

seus diversos conteúdos e momentos do sistema.

Em nada obstando o fato de terem sido já levantadas

argüições, no sentido de apontar como abusivamente

antropologizante, a leitura kojeviana da Fenomenologia do

Espírito, e, assim, inadequada, concordamos com a perspectiva

de Labarrière (1996), segundo a qual a leitura de Kojève não

caracteriza um mau uso da obra de Hegel. Esta leitura constitui

íntima conexão entre a dialética idealista e [a dialética]

materialista, conforme Marcuse (1978, 409), em seu suplemento

bibliográfico à Razão e Revolução.

Na Esquisse d’une phénoménologie du Droit, Kojève, ad

perpetuam rei memoriam, repisa que a especificidade do Direito

reside, precisamente, na presença do terceiro desinteressado

(imparcial); diz ainda que a dominação e a servidão são

fenômenos sociais e que, portanto, para compreender o fenômeno

jurídico é necessário centrar-se no estudo deste terceiro

(Kojève,1981, 191).

Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 110

Por esta senda, é do desempenho deste terceiro imparcial

que se chega ao Direito, enquanto aplicação de uma idéia de

justiça às interações sociais dadas, e mesmo que caibam outros

atores neste desempenho (tais como o legislador e o

administrador público) é, especialmente, a atividade do Juiz que

a ele corresponde (Kojève1981, 192).

Mesmo que na Esquisse venha tão afirmativamente

destacada figura deste terceiro imparcial, não resta claro o lugar

que é por ele ocupado metodologicamente, na estrutura da

dialética esposada por Kojève.

No entanto, se nos socorremos da Introduction à la

lecture de Hegel, veremos que se pode evidenciar uma

aproximação entre o desempenho do terceiro desinteressado e a

categoria da mediação. Nesta obra, diz Kojève que:

Hegel expressa a diferença entre o Ser e o Real ―téticos‖

(Identidade) e o Ser e o Real ―sintéticos‖ (Totalidade)

dizendo que os primeiro são imediatos (unmittelbar),

enquanto que os segundos são mediatizados (vermittelt)

pela ação ―antitética‖ (Negatividade) que os nega

enquanto ―imediatos‖. E pode-se dizer que as categorias

fundamentais da Imediatidade (Unmitterlbarkeit) e da

Mediação (Vermittlung) resumem toda a dialética real

que Hegel tem em vista (Kojève, 1994, 481).

Vistas, assim, as posições dos litigantes em uma relação

social, como entidades imediatas, como realidades estáticas

dadas, a entidade mediatizada, que as porá em movimento é a

ação do Juiz que as suprassume, ou seja que, pela aplicação da

equidade, reconhecerá, em cada uma das posições, suas

especificidades, expressando assim na decisão a identidade da

identidade e da diferença.

A substância jurídica própria da decisão deste terceiro é

imanente à ordem concreta em que ele e os litigantes se inserem,

ou seja, é a Idéia de Justiça ai posta, isto é, o conceito jurídico

concreto e nunca um direito abstrato qualquer, uma vez que,

conforme Carl Schmitt, sem o sistema de coordenadas da ordem

concreta, o positivismo jurídico não saberia distinguir entre

Filosofia, Reconhecimento e Direito 111

direito e não direito, entre objetividade e arbitrariedade subjetiva

(Schmitt,1995, 92).

Em Hegel, o Direito tem seu estatuto na determinação da

idéia de liberdade nos diversos momentos que compõem a

Filosofia do Direito. O reconhecimento simétrico de direitos e

deveres percorre o itinerário do direito abstrato, da moralidade e

da eticidade. Ora, a metodologia hegeliana implica que a pessoa

garanta o reconhecimento de seus direitos e deveres no direito

abstrato moderno, enquanto sujeito moral, capaz de agir

intersubjetivamente, como cidadão na esfera da eticidade, ou

seja, participando do Estado.

Para Kojève, o Direito é o resultado da luta originária

pelo desejo de reconhecimento entre o senhor e o escravo. Disto

decorre uma tríplice tipologia da idéia de Direito, configurando-

se em idéia de igualdade aristocrática, idéia de equivalência

burguesa e idéia de eqüidade cidadã. O Direito é, então, a

determinação da idéia de justiça.

Sabe-se que Kojève em sua análise da Fenomenologia do

Espírito de Hegel aplica, permanentemente, a metodologia

dialética do senhor e do escravo. Ora, será que Kojève mantém a

mesma metodologia para analisar o fenômeno do Direito? Pode-

se defender duas hipóteses: a) Kojève manteria a mesma

metodologia dialética na determinação da idéia de justiça; b)

Porém, na descrição fenomenológica da tipologia, ele introduz

um terceiro imparcial e desinteressado, ou seja, quando o autor

aplica a idéia de justiça para o Direito, haveria uma superação da

dialética pela mediação do terceiro, enquanto momento de

superação do antagonismo no embate entre os litigantes.

Teríamos assim, um momento especulativo que seria o mesmo da

metodologia hegeliana. Isto fica explícito já na segunda seção

(Origem e evolução do Direito) e comprova-se na terceira (O

sistema do Direito) em que Kojève faz uma aplicação das três

idéias de justiça para o Direito internacional, Direito público,

Direito penal e Direito privado.

Em que medida esses modelos metodológicos são

importantes para compreender o fenômeno jurídico? Qual é a

vantagem de um e de outro, ou ainda, como podem ser

complementares para a superação do Direito moderno, centrado

Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 112

na garantia subjetiva dos direitos?

A metodologia de Kojève descreve o desejo de

reconhecimento, enquanto uma idéia de justiça na sua polaridade

máxima do senhor e do escravo. Essa tipologia permite

compreender o fenômeno jurídico na sua constituição sócio-

histórica. Nesse sentido, a reflexividade entre os sujeitos que

buscam o reconhecimento constitui um momento fundamental

para a constituição intersubjetiva do Direito. Tem-se a posição de

sujeitos que determinam os seus desejos pela idéia de igualdade-

equivalência-eqüidade, na superação dos conflitos advindos de

interesses contraditórios. O terceiro imparcial e desinteressado

que atravessa todo o Esboço de Kojève insere o momento

intersubjetivo na constituição do Direito.

Em Hegel o reconhecimento passa pela mediação da

eticidade, enquanto momento garantidor de um Direito

intersubjetivo. Então, pode-se afirmar que os modelos são

complementares, na medida, em que Kojève acentua o momento

dialético e a idéia de justiça, e Hegel, o momento especulativo e

a idéia de liberdade. Assim, ambos os modelos são importantes,

para a constituição do Direito intersubjetivo.

Nosso propósito inicial, foi encontrar referenciais

teórico-práticos, para superar o modelo subjetivista do Direito e

construir uma metodologia da intersubjetividade jusfilosófica.

Para isso, descrevemos a arqueologia da teoria hegeliana do

reconhecimento, fixando-nos, sobretudo, na Fenomenologia,

onde encontramos na figura do senhor e do escravo a luta pelo

reconhecimento. Ora, esta é a figura paradigmática que Kojève

utiliza para construir sua metodologia dialética, partindo do

desejo antropogênico como fonte originante do reconhecimento.

As metodologias de Hegel e Kojève, embora tenham suas

especificidades, ambas são importantes para fundamentar um

Direito intersubjetivo.

Pressupondo que a metodologia hegeliana desenvolvida

na Filosofia do Direito já é assaz conhecida, enquanto

desenvolvimento da idéia de liberdade intersubjetiva, expomos a

determinação da idéia de justiça em Kojève na sua tríplice

tipologia: Igualdade, equivalência e eqüidade, constituindo-se,

atualmente, num referencial teórico-prático da intersubjetividade

Filosofia, Reconhecimento e Direito 113

jusfilosófica em três níveis, aqui enunciados, e que permanecem

como abertura para futuros estudos:

1°) A idéia de justiça como igualdade determinando-se

no reconhecimento do Direito nas esferas global, nacional e

local, garantindo identidades e diversificação cultural.

2°) A idéia de justiça como equivalência de direitos e

deveres na redefinição do Estado de Direito e a organização de

blocos regionais no início deste novo milênio.

3°) Enfim, a idéia de justiça como eqüidade, enquanto

síntese cidadã intersubjetiva, em nível sócio-econômico

sustentável e inovação político-tecnológica.

A teoria do reconhecimento hegeliano e a fenomenologia

do Direito, baseada na determinação da idéia de justiça de

Kojève, ratifica o movimento por um Direito intersubjetivo, ou

seja, ratifica a tese comunitarista jusfilosófica. Trata-se de uma

concepção pluralista da justiça fundada na idéia de igualdade

complexa (Walzer); um maior cuidado no que concerne ao

problema da distribuição dos bens culturais, bem como às

questões relacionadas aos grupos vulneráveis (Young); dos

aspectos importantes da relação entre justiça e democracia

deliberativa (Habermas); por fim, da análise do princípio de

imparcialidade como base eqüitativa para o acordo entre as

diferentes concepções do bem que coexistem nas sociedades

plurais e democráticas (Barry) (Rabenhorst, 2006, 494-495 In:

Barreto, Vicente de Paulo. Dicionário de Filosofia do Direito).

Assim, postos estes desafios de atualização, tanto em

nível sócio-jurídico, bem como no debate comunitarista, insere-

se a teoria do reconhecimento intersubjetivo no viés jusfilosófico

de Hegel e Kojève, como uma referência incontornável na

construção de um Direito intersubjetivo.

Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 114

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C. O Idealismo Especulativo e o Problema da

Fundamentação Ético-Política da Mediação Institucional

e do Reconhecimento Intersubjetivo na Filosofia Prática

Contemporânea

Manuel Moreira da Silva

1

1. Posição do Problema

Trata-se de uma consideração especulativa – nos limites

de uma primeira aproximação – em torno do problema da

fundamentação estritamente filosófica do Direito

contemporâneo; de modo mais específico, do problema da

constituição de sua natureza a um tempo mediativo-institucional

e intersubjetivo-recognoscível. Nosso esforço consiste numa

tentativa de se pensar o papel das instituições, enquanto elemento

mediador das relações entre os indivíduos que se colocam em

situação de reconhecimento recíproco; isso, a partir da retomada

e desenvolvimento da Concepção especulativa do Direito, tal

como estabelecida por G. W. F. Hegel em suas Grundlinien der

Philosophie des Rechts2, agora no âmbito da mediação entre os

sujeitos que não mais se circunscrevem à esfera do Espírito

1 Guarapuava – UNICENTRO/PR 2 Veja-se, G. W. F. HEGEL, Grundlinien der Philosophie des Rechts oder

Naturrechts und Staatswissenschaft im Grundrisse, neu herausgegeben von

Hermann Glockner. Stuttgart: Frommans Verlag, 1952 [SW, 7]. Esse texto

será doravante citado com a sigla ‗GPhR‘, seguida de ‗§‘ para os parágrafos,

‗A.‘ para as respectivas anotações e ‗Ad.‘ para os adendos por ventura

existentes. No caso do Vorrede e quando mais for necessário, indicar-se-á a

página antecedida de J (do Jubileu). A versão brasileira dessa obra (a partir

da edição de Eva Moldenhauer e Karl Markus Michel, v. 7, das Werke,

Surhkamp, Frankfurt a. M., 1970), a cargo de Marcos Lutz Müller, está em

progresso – vejam-se as publicações do IFCS da UNICAMP: Clássicos da

Filosofia: Cadernos de Tradução, no. 10, no. 5, no. 6, respectivamente para a

Introdução, O Direito Abstrato e A Sociedade Civil; bem como, Idéias, no. 2,

para A Moralidade, e Textos Didáticos, no. 32, para O Estado. Seguiremos de

perto a referida versão em nossas citações do texto em questão, mas sem nos

prendermos a todas as preferências do tradutor; isso, em geral, sem especial

indicação, o que faremos quando necessário – como no caso de conceitos

chave ou passagens especialmente recalcitrantes.

Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 118

subjetivo, mas que também ainda não passaram à esfera do

Espírito objetivo. Esses, embora já tenham passado pelo

reconhecimento fenomenológico, mais epistêmico que prático ou

espiritual, ainda não se puseram como eus espirituais que ―em si

e para si, e uns para os outros, são perfeitamente livres,

autônomos, absolutamente rígidos, opondo resistência – e, no

entanto, ao mesmo tempo idênticos – uns aos outros, e assim

não-autônomos, não impenetráveis, mas de certo modo

confundidos‖3; portanto, ainda não se puseram em situação de

reconhecimento intersubjetivo como seres espirituais. Vamos

proceder a um primeiro esboço da esfera intermediária posterior

ao Espírito subjetivo e anterior ao Espírito objetivo – a rigor, não

tematizada por Hegel – que, como tal, se põe no plano de uma

Filosofia do Espírito intersubjetivo ou, como se tem

desenvolvido na filosofia mais recente, Filosofia das Instituições;

bem entendido, que pretendemos desenvolver, das Instituições

como Ato de instituir e, assim, objetivar o próprio Eu espiritual

no âmbito de uma Comunidade ideal do Espírito, efetiva em si e

para si, em seu Conceito e em sua Objetividade.

Assim, não discutiremos aqui nenhuma problemática

referente ao Direito stricto sensu, tal como ele se faz valer nos

dias de hoje, ou o que é o mesmo, no âmbito restrito da ciência

positiva particular voltada para o fenômeno ou para a teoria pura

do Direito. Tomaremos, em questão, o Direito lato sensu – no

âmbito da Idéia mesma do Direito, da Identidade negativa de seu

Conceito e sua efetividade – portanto, da esfera total da Ciência

do Direito, como realização da Filosofia prática e seus momentos

constitutivos. Mas isso nos quadros da atividade prática do

3 Ver, G.W.F. HEGEL, Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Compêndio

(1830). III. A Filosofia do Espírito. Trad. Paulo Meneses e José Machado,

São Paulo: Loyola, 1995, pp. 207. [De ora avante citada pela inicial ‗E‘,

seguida de ‗§§‘, para os parágrafos correspondentes, e, se for o caso, de ‗A‘,

para a respectiva Anotação (Anmerkung) ou ‗Ad.‘, para o adendo (Zusatz) do

―§‖ correspondente. No caso: E, § 436 Ad. Sempre que não houver

indicações especiais, estaremos utilizando a Enzyklopädie der

philosophischen Wissenschaften im Grundrisse (1830), herausgegeben von

Wolfgang Bonsiepen und Hans-Christian Lucas. Hamburg: Felix Meiner,

1992; para os adendos, faremos uso da edição Glockner; no caso dos

―Prefácios‖ e dos adendos, sempre se indicará a versão utilizada.

Filosofia, Reconhecimento e Direito 119

Espírito livre, em seu vir-a-ser objetivo, não nos quadros de uma

objetividade, enquanto já constituída como tal. Portanto, não,

enquanto o conjunto das instituições instituídas ou objetivadas,

próprias do Direito abstrato, da Moralidade ou da Eticidade, que

como tais se apresentam como elementos operativos ou

constitutivos no interior dessas subesferas e sim, do Ato pelo

qual a instituição do que quer que seja se instaura como tal nesse

Ato, mesmo enquanto o próprio instituir. Isso,

fundamentalmente, consiste na explicitação dos elementos

ativamente constituintes da mediação efetiva da instituição da

Moral – como esfera da práxis individual – e da instituição da

Ética, enquanto âmbito da práxis coletiva e social, de modo a

pensar o Espírito intersubjetivo – em sua efetividade lógico-real

– como o elemento atuante e instituinte de si mesmo, da

subjetividade e da objetividade, bem como das respectivas

esferas que, a partir de cada uma dessas determinações, se

tornam emergentes no interior do próprio Absoluto e em seu

autodesenvolvimento manente4. Em suma, trata-se de mostrar

como o próprio indivíduo – subjetividade finita e particular que

age consciente de sua liberdade e das instituições (como

subjetividades transfinitas, mas ainda particulares); nas quais, e

pelas quais essa ação livre e consciente se plasma em seus mais

4 Autodesenvolvimento manente, aqui, diz respeito à Manência ou à Monè, o

permanecer do princípio na própria causa enquanto aquilo que, a um tempo,

torna imutável e dinâmica cada uma das esferas nas quais ele se desdobra;

bem como, ao mesmo tempo, engendra o processo de cada esfera – henádica

ou monádica – ou a processão de seus derivados e os faz retornar ao seu

ponto de partida. Veja-se: PROCLUS, Éléments de théologie, trad. Jean

Trouillard, Paris: Aubier-Montaigne, 1965, pp. 67-90 ss.; 100-120 ss.; 127-

159 ss.; 162-166 ss. [De ora avante citada conforme se segue: ETh, §§ 11-44

ss.; 64-100 ss.; 113-165 ss.; 171-175 ss.]. Veja-se também, W.

BEIERWALTES, Proclo: I fondamenti della sua metafísica, trad. Nicoletta

Scotti, – Seconda edizione – Milano: Vita e Pensiero, 1988. p. 161 ss. Sobre

a identidade do Manente e do Especulativo puro, isso discutiremos em outra

oportunidade; para o momento, veja-se: G. W. F. HEGEL, Vorlesungen über

die Geschichte der Philosophie, III, Glockner, pp. 71-92 [citado de ora

avante conforme se segue: (VGPh, III, J, pp. 71-92)]; sobretudo, p. 84; p. 72.

Versão espanhola: G. W. F. HEGEL, Lecciones sobre la História de la

Filosofia, III, traducción de Wenceslao Roces, Mexico: FCE, 1997, pp. 54-

68; sobretudo, p. 63; p. 67; compare-se com E., § 82 Ad.

Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 120

diversos planos e níveis de objetividade – não é, senão (a) uma

instituição instituída cuja instauração (b) só pode ter lugar

mediante um Instituir tal que, por sua vez, só pode ser atividade

espiritual em si e para si, una e absoluta.

Contudo, como boa parte das teorias científicas e

filosóficas do presente não só tem se resignado a certo

naturalismo – orientação hoje dominante em todas as esferas do

ser e do pensar; mas também, sobretudo, tem recaído em formas

de mediação que, embora segundo determinados pontos de vista

não sejam reconhecidas como naturalistas, são comuns tanto às

filosofias naturalistas quanto às filosofias que se opõem ao

naturalismo5. O ponto de vista aqui a ser desenvolvido não só

não se mostra evidente ao sensus communis, como caminha na

própria contracorrente deste. Prova disso é o fato mesmo da

postulação – pela quase totalidade das correntes da filosofia mais

recente – da Linguagem como medium universal, e da

Intersubjetividade, enquanto princípio fundante não só das

ciências em geral, mas também, a rigor, da Ética e da Metafísica;

mas isso tão só em vista de uma justificação do estado presente,

em que se encontra o Ser-autoconsciente do Espírito em nossa

época. Esse, ainda imerso na fragmentação operada pela

hipertrofia das faculdades cognitivas humanas, cada uma

exclusiva por si e, portanto, pela dissolução da Cidade subjetiva,

na qual cada indivíduo é, para si não só uma pluralidade de eus

integrados num Eu infrapessoal ou transpessoal6; mas uma

totalidade absoluta que, como Espírito livre, media-se

5 No caso de Hegel, no âmbito de sua retomada na filosofia mais recente, isso

é representado entre outros, de um lado, por A. HONNETH, Luta por

reconhecimento: A gramática moral dos conflitos sociais, trad. Luiz Repa,

Rio de Janeiro: Editora 34, 2003, pp. 23-24; 122-123 ss.; de outro, V.

HÖSLE, Moral und Politik: Grundlagen einer Politischen Ethik für das 21.

Jahrhundert. München: Beck, 1997, p. 422 ss. 6 Ver, entre outros, F. GUATTARI, Restauração da Cidade Subjetiva, in:

Caosmose: Um novo paradigma estético, trad. Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia

Cláudia Leão. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992, pp. 167-179; B. LAHIRE, ‚

Homem plural: Os determinantes da ação, trad. Jaime A. Clasen. Petrópolis:

Vozes, 2002; K. WILBER, Transformações da consciência: o espectro do

desenvolvimento humano, trad. Sônia Maria Christopher. São Paulo: Cultrix,

2000.

Filosofia, Reconhecimento e Direito 121

negativamente consigo mesma no âmbito da mediação positiva

com seu oposto – a totalidade das totalidades absolutas que são

cada espírito livre7 – sob o horizonte da Cidade objetiva, na qual

e a partir da qual todos os indivíduos são compreendidos e se

compreendem, reciprocamente, como membros de uma

Comunidade ideal do Espírito. Eis aí, pois, o escopo e o desafio

maior que aqui nos propomos: não só restaurar a Cidade

subjetiva, mas, precipuamente, estabelecer os limites e o alcance

da Idéia da Comunidade ideal do Espírito, como horizonte último

de toda mediação institucional e de todo reconhecimento

intersubjetivo; com isso, pensamos estar contribuindo para a

retomada e o desenvolvimento daquilo que outrora foi

denominada Concepção especulativa do Direito.

Em sua expressão clássica, essa concepção foi levada a

cabo tão somente nas Grundlinien der Philosophie des Rechts,

sobretudo na Einleitung, por G. W. F. Hegel. Essa tentativa,

entretanto, fazendo nossas as palavras de Lima Vaz, apesar de

seu intento em ―unificar, numa superior Filosofia do Espírito

objetivo, praxis individual e praxis social, reintegrando num

campo mais abrangente de significação Ética e Moral, não

encontrou herdeiros à altura das suas ambições teóricas‖8. Ainda

que Lima Vaz se limite às relações entre Ética e Moral –

respectivamente, entre a defesa da realidade histórica e social dos

costumes e o privilégio da subjetividade do agir – não se

voltando, portanto, para os problemas do Direito stricto sensu,

em especial, para o problema de como aí a praxis individual e a

praxis social se constituem legitimamente como tais; na medida

em que a subjetividade do agir e a realidade histórica e social dos

costumes se põem como problema para o Direito lato sensu, isso

acarreta graves conseqüências quanto à aplicação da Lei e sua

legitimação9 – sobretudo para o próprio Direito stricto sensu –,

7 Ver, E, §§ 436 Ad.; 441 Ad.; 481 ss. 8 Ver, H. C. de LIMA VAZ, Escritos de Filosofia IV. Introdução à Ética

Filosófica 1. São Paulo: Loyola, 1999, p. 15. 9 Para uma primeira aproximação em torno do problema da Lei na perspectiva

que fazemos nossa, veja-se, M. M. SILVA, Introdução ao problema da

fundamentação especificamente filosófica do Direito Contemporâneo. In:

Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 122

extrapolando assim os limites do procedimentalismo estrito até

agora vigente10

. É interessante notar que, justamente, a partir das

últimas décadas, ao contrário da dicotomia cada vez mais

crescente no plano das relações entre Ética e Moral; no plano do

Direito lato sensu e do Direito stricto sensu, essa dicotomia não

só se torna cada vez menos significativa, mas aquela relação

mais acima referida; entre a defesa da realidade histórica e social

dos costumes e o privilégio da subjetividade do agir – ainda que

em se invertendo em relação ao modo como se dá no caso da

Ética e da Moral; torna-se como que o âmago das relações entre

o Direito lato sensu e o Direito stricto sensu. Se, de um lado, a

Moral parece encarnar-se no Direito lato sensu, justificando

assim a subjetividade do agir, mesmo no âmbito de sua

compreensão pelo Direito stricto sensu como ilegal, e pela Ética

como destituída de eticidade; de outro lado, por conseguinte,

embora pareçam ainda permanecer em campos opostos, Ética e

Direito stricto sensu aproximam-se cada vez mais; justamente em

função de ambos se fundarem, em última instância, na defesa da

realidade histórica e social dos costumes. De onde, enfim, aquela

dicotomia inicial começar a se dissolver, à medida mesma que o

Direito a absorve, terminando assim também por absorver a Ética

e a Moral; fazendo, portanto, com que o programa especulativo

de uma Ciência rigorosa do Direito se mostre mais uma vez

como algo efetivo.

Temos, portanto, um exemplo concreto daquilo que

Hegel designou como a Idéia do Direito, isto é, o Conceito do

Direito e sua efetivação11

. Porém, para que possamos

compreender o que se pretenderá desenvolver, há que se ter em

conta que os termos ‗Idéia‘ e ‗Conceito‘ não designam o que

comumente se entende pelos mesmos; mas, respectivamente, ―a

Guairacá, Guarapuava/PR, no. 21, (2005): 103-121. [Revista impressa em

2006/1]. 10 Exemplo disso é o caso recente de processos pró ou contra o aborto, veja-se,

a respeito, a decisão do ministro Edson Vidigal em torno do HABEAS

CORPUS Nº. 51.982 - SP (2005/0215644-4), sobre o direito de interrupção

de gravidez. URL=< http://www.stj.gov.br/webstj/Noticias/imprime_noticia.

asp?seq_noticia=16127>, acesso em abril de 2006. 11 GPhR, § 1.

Filosofia, Reconhecimento e Direito 123

efetividade dos homens, por isso, não a Idéia que eles têm, mas a

que eles são‖12

e ―o que unicamente tem efetividade e que a tem

de modo tal, que ele mesmo se dá essa efetividade‖13

. Essa

efetividade, por conseguinte, põe-se como ―a configuração que o

Conceito se dá na sua efetivação‖14

; o que significa, em suma,

que o Conceito aqui não é senão o próprio homem compreendido

enquanto Espírito livre ou Vontade livre que é para si mesma

como Vontade livre; uma vontade livre como tal efetiva, mas não

ainda perfeitamente efetivada ou desenvolvida em sua

objetividade15

, que ainda se limita, portanto, a uma atividade

formal que, como Infinitude, se funda no que Hegel designa

―Negatividade que se reporta a si‖ (sich auf beziehender

Negativität)16

; cujo phulchrum é o mediar-se de si consigo

mesma dessa atividade e seu retorno adentro de si, como

Vontade17

. De onde, enfim – ainda que isso não seja explícito

para Hegel ele mesmo –, a fundação da própria Idéia no que em

outro lugar denominamos primeiro princípio motor do

Especulativo puro18

, a saber: no Juízo infinito; pois, como ele

próprio nos diz, enquanto ―síntese do Infinito e do Finito‖19

ou

como ―o Juízo infinito cujos lados são, cada um, a totalidade

autônoma, e, justamente, porque cada um nela se implementa, [e

12 E, § 482 A. 13 GPhR, § 1, A. 14 Ibid. 15 E, §§ 481-482. 16 GPhR, § 7, A. Esse termo é traduzido por Müller como ―Negatividade se

relacionando a si mesma‖. 17 Ibid. 18 Sobre esse ponto, veja-se, M. M. SILVA, O problema da fundação

especulativa do Especulativo puro no Sistema de Hegel e a determinação

especulativa dos princípios motores da Lógica especulativa, in: Revista

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Centro de Estudios Constitucionales, 1980, p. 160; nota 7, pp. 232-233.

Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 124

assim] passa para o outro lado‖20

, a Idéia é a totalidade

consumada; à qual nenhum conceito determinado pode se elevar,

em seus dois lados, fora do Conceito mesmo e da Objetividade.

Esse, contudo, parece-nos o ponto mais problemático,

tanto da consideração hegeliana em torno do que hoje em dia

designamos mediação institucional e reconhecimento

intersubjetivo quanto do lugar sistemático dessas determinações

no âmbito da Ciência do Direito na atualidade. De modo mais

rigoroso, é preciso reconhecer que a complexidade a que chegou

o Direito chamado positivo, na época atual, apresenta ao

estudioso, interessado na sua consideração especificamente

filosófica, alguns paradoxos que a pura teoria jurídica

contemporânea ou deixa intocados, ou resolve de modo apenas

dogmático e, por isso mesmo, anacrônico21

. Exemplo disso,

ainda que reconheça ao Direito contemporâneo o título de

Ciência do Espírito e mesmo supere o dualismo entre Direito e

Estado, é que a Teoria pura do Direito – nomeadamente segundo

sua elaboração por Hans Kelsen22

– não é capaz de reconciliar

Filosofia do Direito e Ciência jurídica; de onde cada uma ser

compreendida sob formas as mais diversas, quase sempre ficando

para a primeira tão somente a explicitação do sentido e o

significado das normas jurídicas como tais e das proposições

teóricas que a segunda tem, por tarefa, demonstrar; do que resulta

a mais completa dissociação entre o trabalho do jus-filósofo, o do

cientista do direito e o do jurista propriamente dito. Por isso, a

objetividade postulada pela Teoria pura do Direito, ao limitar-se

à objetividade meramente metodológica e/ou epistemológica –

em última instância: procedimental – não só se mostra incapaz de

compreender organicamente o fenômeno do Espírito objetivo

como tal, como também não ignora que os problemas da

mediação institucional e do reconhecimento intersubjetivo

20 E, § 214 A. 21 Para uma discussão introdutória desses paradoxos no âmbito da

fundamentação filosófica do Direito contemporâneo, ver: M. M. SILVA,

Introdução ao problema da fundamentação especificamente filosófica do

Direito contemporâneo, in: op. cit., pp. 103-121. 22 Veja-se, H. KELSEN. Teoria pura do Direito. Trad. João Baptista Machado.

‗São Paulo: Martins Fontes, 2000. [Edição original, 1960].

Filosofia, Reconhecimento e Direito 125

exigem fundamentalmente sua assunção em um plano

ontológico, mais precisamente: ontoprático; o que, devido ao seu

ponto de partida – a desvinculação do Jurídico em relação ao

Político –, a Teoria pura do Direito não pode realizar.

A questão fundamental é que a exigência ontoprática da

solução dos problemas da mediação institucional e do

reconhecimento intersubjetivo não pode se limitar à revinculação

do Jurídico ao Político, mas, nessa revinculação, mediante a qual

se produz o que designamos Instituições, tem que fundá-la em

um plano estritamente lógico-metafísico; pelo menos no que diz

respeito ao conceito de Instituições, como afirma Vittorio

Hösle23

, nem mesmo Hegel – em sua obra maior, a Wissenschaft

der Logik – foi capaz de realizar24

. Ora, do ponto de vista

especulativo, o problema que se põe não é o de uma fundação

meramente a priori do que é principiado, como tal distinta do a

posteriori, mas a exigência da fundação especulativa do próprio

princípio fundante e levá-la a cabo em um plano que suprassuma

tanto o princípio fundante quanto o principiado nele

distintamente fundado; por isso, ao contrário do ponto de vista do

Idealismo objetivo hösliano25

, o que caracteriza o ponto de vista

23 Veja-se, a respeito, V. HÖSLE, Die Stellung Hegels Philosophie des

objektiven Geistes in seinen System und ihre Aporie, in: Ch. JERMANN

(Hg.), Anspruch und Leistung von Hegels Rechtsphilosophie, Stuttgart-Bad

Cannstatt: Frommann-Hozsboog, 1987, p. 49 ss. 24 Para uma primeira tentativa de retomada e desenvolvimento especulativo

dessa questão, sobretudo em resposta à crítica contemporânea ao Idealismo

absoluto hegeliano, ver: M. M. SILVA, A natureza especulativa da

objetividade no Idealismo absoluto da Subjetividade e o formalismo do

Idealismo objetivo da Intersubjetividade, in: Revista Eletrônica Estudos

Hegelianos, Recife/PR, v. 01, n. 01, (2004): URL =

<http://www.hegelbrasil.org/rev01c.htm>; veja-se, em especial, Seção III. O

conceito hegeliano da Objetividade e sua função no Mundo do espírito, o “a

priori objetivo” e a Intersubjetividade. 25 Ver, V. HÖSLE, Hegel e la fondazione dell’idealismo oggetivo, traduzione

dal tedesco e cura di Giovanni Stelli, Milano: Guerini e Associati, 1991; ver

também: V. HÖSLE, Begründungsfragen des objektiven Idealismus, in:

Forum für Philosophie Bad Homburg (hrsg), Philosophie und Begründung,

Frankfurt, 1987, pp. 212-267. O último texto aparece também na primeira

parte de Hegel e la fondazione dell’idealismo oggetivo (pp. 13-69), cuja

segunda parte é publicada originalmente em italiano; assim, o mesmo será

Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 126

especulativo é justamente a unidade do fundamento e do

fundado, aqui, a unidade da Ciência filosófica do Direito e a

Ciência positiva do Direito, antes, da Filosofia do Espírito

intersubjetivo (do Instituir) e a Filosofia das Instituições (do

instituinte ou instituído). No caso da objeção de Vittorio Hösle,

isto é, o fato de não ser possível interpretar as instituições como

conceito integrativo normativo, regulador das relações

intersubjetivas, a partir da Wissenschaft der Logik; além de não

considerar o que é próprio do Elemento especulativo, a unidade

do fundamento e do fundado, mas posicionando-se justamente

contra o mesmo – tal como e juntamente com Theunissen –

Hösle concebe as instituições como um terceiro ao lado de

Sujeito e Objeto – portanto, como elemento exterior a estes – ao

qual, não obstante, estará a cargo a mediação dos mesmos26

.

Dessa forma, Hösle termina por conceber a mediação

institucional e o reconhecimento intersubjetivo de modo apenas

formal e, por isso, como elementos exteriores (tomados em

última instância meramente como justapostos) entre si27

e à

Identidade negativa de Sujeito e Objeto à qual ele substitui pela

Relação Sujeito-Sujeito28

, mas, não obstante, de um ponto de

vista especulativo, aquelas têm que ser concebidas enquanto

momentos.

Embora reconhecendo os limites da elaboração hegeliana

da Concepção especulativa do Direito e, portanto, as

contradições que essa elaboração encerra, se levada às suas

últimas conseqüências – com isso, considerando a sério as

objeções acima indicadas, tentaremos aqui retomar e desenvolver

o que há de específico na Concepção especulativa do Direito e

citado de ora avante pela expressão ‗Begründungsfragen‘, segundo a

numeração por capítulos, seções e parágrafos, que se encontra tanto no

original como na tradução, bem como, quando for o caso, das paginações

correspondentes [por ex.: Begründungsfragen, I, 2, 2, p. 217 (ed. it., p. 20)].

Veja-se ainda, do mesmo autor, Hegels System. Der Idealismus der

Subjektivität und das Problem der Intersubjektivität, 2 Bde, Hamburg: Felix

Meiner, 1987. 26 Veja-se, V. HÖSLE, Die Stellung, op. cit., p. 49 ss. 27 Ver, V. HÖSLE, Moral und Politik, op. cit., pp. 422-431. 28 V. HÖSLE, Begründungsfragen, III, 2, p. 264 (ed. it., p. 66).

Filosofia, Reconhecimento e Direito 127

que a torna não só a concepção mais propriamente atual e efetiva

no que tange ao Conteúdo próprio disso que no Direito

contemporâneo está em jogo, mas também, sobretudo, a forma

mesma imanente a esse Conteúdo. Por isso, a seguir,

discutiremos inicialmente, sob a forma de breves anotações –

rigorosamente pontuais – alguns dos principais elementos

constituintes dos problemas circunscritos à fundamentação ético-

política da mediação institucional e do reconhecimento

intersubjetivo na atualidade; os quais, de um modo ou de outro,

ao serem deixados de lado e mesmo ao serem negligenciados

pelos diversos pontos de vista não-especulativos, fazem com que

esses pontos de vista entrem em aporia e ou se dissolvam

enquanto tais ou permaneçam existentes tão só em função de sua

oposição determinada ou de sua indiferença entre si. Feito isso,

procederemos à proposição das linhas gerais da solução dessas

aporias a partir do ponto de vista especulativo, a qual, sob a

forma de breves anotações, pensamos ser capaz de apresentar-

nos o arcabouço de uma nova Ciência especulativa do Direito a

ser perseguida de ora avante.

2. Limites e aporias de algumas considerações não-

especulativas em torno da mediação institucional e do

reconhecimento intersubjetivo

A postulação das instituições como um terceiro ao lado

de Sujeito e Objeto resolve o problema da mediação positiva do

Si-mesmo e seu Outro, afirmando positivamente um e outro

como outro Si-mesmo; todavia, as instituições elas mesmas –

enquanto um terceiro – permanecem exteriores aos elementos por

elas mediados, na medida em que elas mesmas se constituem

como um Si-mesmo ele mesmo carente de mediação e

reconhecimento. Ainda que se postule algo como a Linguagem e

a Intersubjetividade – sob quaisquer de suas formas e fórmulas –

enquanto estrutura exemplar do conceito de Instituição, aqui em

jogo, a questão permanece; deixa-se de lado, justamente, o modo

como a Linguagem e a Intersubjetividade se estruturam e se

constituem enquanto instituições – o mesmo valendo para

instituições instituídas como Família, Direito, Estado, e assim

Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 128

por diante. Isso nos impõe o problema da Instituição, não apenas,

enquanto uma determinada estrutura instituída e como tal

institucionalizada que cumpre funções reguladoras, constituintes

ou mesmo instituintes de outras estruturas dela distintas, mas

também como Ato instituinte ou processo de instituição de si

mesma enquanto Instituição e de seu Si-mesmo; de onde, mais

que princípio, as Instituições se nos mostrarem como resultado –

a rigor, como resultado de um processo de mediação que, por seu

turno, poderíamos designar mediação institucional. Daí que as

instituições não possam constituir-se como um terceiro ao lado

de Sujeito e Objeto, nem como princípio ou elemento mediador

das relações entre os indivíduos que se colocam em situação de

reconhecimento recíproco em sendo exterior a essas mesmas

relações; pois, as próprias Instituições não se mostram senão,

enquanto primeiro momento de um processo tal de

reconhecimento intersubjetivo – vale dizer, no plano efetivo de

uma Comunidade ideal do Espírito – que tem por seu horizonte a

Objetividade mesma, com a qual a Subjetividade se identifica,

negativamente, por meio de seu desenvolvimento e conseqüente

reconhecimento intersubjetivo, como tais mediados parcialmente

pelas Instituições. Estas, aqui, se identificam com a

Intersubjetividade e, por isso mesmo, se colocam a meio

caminho ou enquanto meio termo – mas não como um terceiro –

entre a Subjetividade e a Objetividade; do contrário, mediação

institucional e reconhecimento intersubjetivo, bem como

Instituições e Intersubjetividade, pouco se diferenciarão das

diversas e contraditórias formas de mediação que desde Hobbes

têm imposto o modelo do terceiro como fundante de algo como a

própria autonomia do Eu e do reconhecimento da mesma pelo

seu Outro.

Ainda que mediação institucional e reconhecimento

intersubjetivo sejam conceitos relativamente novos – de fato, não

se tem ainda clareza sobre o que está em jogo, quando se trata de

problemas cujo conteúdo esteja relacionado com um deles a cada

vez ou com ambos ao mesmo tempo; não se mostra plausível

pensá-los enquanto reduzidos a procedimentos formais ou

funções regulatórias meramente universalizáveis e mesmo como

certo tipo de pressuposto intranscendível. Tal é o que está na

Filosofia, Reconhecimento e Direito 129

base – a título de fundamento – de alguns discursos em torno da

Linguagem como medium universal e da Intersubjetividade

enquanto princípio fundante não só das ciências em geral, mas

também, sobretudo, da Ética e da Metafísica; com o que, não

obstante, no âmbito desse princípio fundante – enquanto

princípio fundante – e no âmbito do fundado – enquanto fundado

– põe-se o problema de como a própria Intersubjetividade se

determina, enquanto princípio e de como a mesma determina

aquilo que dela principia. Algo que aos defensores da Linguagem

e da Intersubjetividade não é lícito perceber é que, embora uma e

outra pressuponham – lógica e ontologicamente – a

Subjetividade como seu elemento constitutivo, a defesa e a

instauração que delas eles realizam terminam por dissolver

justamente aquele elemento que permite a uma e a outra mostrar-

se em sua efetividade e em sua efetivação; de onde, portanto, a

redução de algumas posições ao meramente empírico (também

chamado a posteriori) em suas múltiplas formas e em seus mais

variados níveis e modos, bem como a redução de outras ao

meramente formal (por seu turno também designado a priori) –

também em suas múltiplas formas e em seus mais variados níveis

e modos. Essa dissolução, em grande parte, está ligada ao

abandono do elemento da Objetividade, com o qual a

Subjetividade como tal se media e pelo qual se torna efetiva,

pelos defensores da Linguagem e da Intersubjetividade; o que

resulta na crescente exigência – cada vez mais evidente segundo

as mais diversas orientações – da constituição de uma ontologia

da Linguagem, de uma fundação última ontológico-metafísica da

Intersubjetividade ou da redução da Filosofia da Linguagem (e,

portanto, também da Intersubjetividade) a algo como uma

filosofia da mente (ou da Subjetividade) ontologicamente

consistente – como afirmação do caráter objetivo da

Subjetividade. Infelizmente, enfim, na medida em que essas

perspectivas permanecem ainda circunscritas a dicotomias como

―a priori versus a posteriori‖ ou ―Idealismo relativo versus

Realismo-naturalismo‖29

, elas não avançam para o Elemento

especulativo propriamente dito.

29 No âmbito da problemática de uma classificação dos sistemas filosóficos e ou

Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 130

Desse modo, enquanto inúmeras posturas filosóficas do

presente – aqui tomadas em conjunto sob a designação de

Realismo-naturalismo – põem-se como tarefa a chamada

destranscendentalização da Razão prática, duramente erguida e

da fundação de uma tipologia filosófica consistente, considero as seguintes

posições fundamentais, as quais, na maioria dos casos, integram também

subdivisões ou subclassificações: (1) Realismo-Naturalismo, posição monista

circunscrita ao espaço-tempo e que se manifesta sob as mais variadas formas

de descrição e interpretação da realidade espácio-temporal. (2) Idealismo

relativo, posição que de um modo ou de outro distingue o ideal (não espácio-

temporal) do real (espácio-temporal) e vice-versa, integra várias outras

posições distintas entre si e mesmo opostas como: (a) Realismo

transcendental, que defende como reais, em si e por si, propriedades

transcendentais como idéias e universais, acessíveis mediante intuições

abstrativas, em oposição à realidade empírica; (b) Idealismo subjetivo, que

por sua vez integra várias outras e defende a idealidade das categorias e

significados em face à realidade das coisas reais (circunscritas ao espaço-

tempo) a que elas se aplicam; (c) Idealismo objetivo, posição que identifica

as leis do conhecimento a priori e as leis da realidade empírica em admitindo

categorias aprióricas e juízos sintéticos a priori com validade ontológica

enquanto distintas da realidade empírica ou a posteriori. (3) Idealismo

absoluto, posição que assume a realidade empírica ou sensível (espácio-

temporal) enquanto manifestação aparente do desenvolvimento especulativo

ou lógico-real da Idéia que cada Eu livre se concebe como sendo o que é e

que se efetiva intersubjetivamente como ser espiritual (ao mesmo tempo

subjetivo e objetivo) tão somente através de sua automediação especulativa

(não espácio-temporal); razão pela qual, em seu desenvolvimento histórico-

sistemático, se reconhece mais determinadamente como Idealismo

especulativo. Para uma aproximação aos fundamentos dessa classificação,

ver, M. M. SILVA, O conceito de paradigma metodológico-especulativo e a

fundação de uma tipologia filosófica consistente em metafísica, in: Analecta,

Guarapuava/PR, V. 6, No. 2, (2005): 113-124; para uma outra leitura a

respeito desse ponto, veja-se, V. HÖSLE, Begründungsfragen, II, 1, p. 234

ss. (ed. it., p. 38 ss.). Na verdade, ainda que não seja muito claro quanto a

esse ponto e, portanto, não sistematize seu ponto de vista a respeito,

Schelling parece ter sido o primeiro – na Quinta Carta sobre o Dogmatismo e

o Criticismo (1795) – a utilizar os termos ‗idealismo subjetivo‘ (associada ao

realismo objetivo ou ao dogmatismo) e ‗idealismo objetivo‘ (associada ao

realismo subjetivo ou ao criticismo); bem como – no apêndice da Introdução

às Idéias para uma filosofia da natureza (1803) – a ter se referido ao

idealismo oposto ao realismo enquanto Idealismo relativo, do qual distingue

o seu Idealismo absoluto. Veja-se, F. J. W. SCHELLING, Obras escolhidas,

seleção, tradução e notas de Rubens T. Torres Filho, – 3. ed. – São Paulo:

Nova Cultural, 1989, pp. 14-15, nota 4; 52.

Filosofia, Reconhecimento e Direito 131

alicerçada sobre o plano transcendental e desenvolvida a partir

do plano especulativo, e a sua conseqüente naturalização; outras

se colocam a tarefa contrária de sua retranscendentalização, mas

isso – apesar de seus propósitos completamente distintos – em

grande parte utilizando-se dos mesmos instrumentos que as

posturas anteriores. Embora esses dois movimentos não digam

respeito exclusivamente ao Especulativo puro, a ser tematizado

na terceira seção deste trabalho, ambos constituem-se como

fundamentais para a compreensão adequada de uma distinção

entre o que está em jogo no plano rigorosamente especulativo

puro e o que se apresenta como determinante no Transcendental

e no Real-natural; a rigor, (1) na recusa realístico-naturalista do

Transcendental e na dissolução espácio-temporal de suas

oposições originárias, bem como (2) na retomada idealístico-

relativista do Transcendental sob novas formas de oposição em

grande parte resultantes da idealização formal de categorias e

significados que constituem tão só os limites mesmos em que o

espaço-tempo está circunscrito. A seguir, tentaremos explicitar

ambos os movimentos no âmbito da contribuição de cada um na

resolução do problema aqui em tela.

1. O Realismo-naturalismo e a destranscendentalização

da Razão prática

Consideremos inicialmente, a título de exemplo, dois

pontos de vista dentre os mais significativos no âmbito da

discussão atual entre liberalismo e comunitarismo e sua

respectiva fundamentação nos quadros da mediação institucional

e do reconhecimento intersubjetivo. Comecemos com a já

clássica formulação de justiça de John Rawls30

, posteriormente

reformulada31

, segundo a qual ―uma concepção liberal de justiça

como modus vivendi pode, ao longo do tempo, transformar-se

30 Ver, J. RAWLS, Uma Teoria da Justiça, trad. Vamireh Chacon, Brasília:

EdUnB, 1981, passim. [Original, 1971]. 31 Ver, J. RAWLS, Justiça como eqüidade: Uma Reformulação, trad. Cláudia

Berliner, São Paulo: Martins Fontes, 2003. [Original, 2002].

Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 132

num consenso sobreposto estável‖32

. Rawls considera isso como

uma possibilidade real, fundada em premissas psicológicas

subjacentes ao modo pelo qual ―aqueles que afirmam as várias

visões que sustentam a concepção política não retirarão seu

apoio, se o peso relativo de suas visões na sociedade aumentar e

vier a se tornar dominante‖33

. Utópico ou real, e ainda que

limitado a uma interpretação processual, o ―real‖ dessa

possibilidade continua mais próximo do ideal regulativo

kantiano, agora destranscendentralizado34

; com o que Rawls

mantém a visão de fundo apresentada em Uma Teoria da Justiça,

em relação ao fato de que ―os princípios de justiça são também

imperativos categóricos no sentido de Kant‖35

, no que tange à

―moralidade dos princípios‖ e aos ―princípios da psicologia

moral‖36

; do que da pretendida ―idéia de que a justificação de

uma concepção da justiça é mais uma tarefa social prática do que

um problema epistemológico ou metafísico‖37

, no sentido de uma

teoria realista da justiça38

. Aqui parece ser Rawls que se enrola

em sua própria distinção entre ―teoria moral‖ e ―filosofia

política‖, reconhecidamente obscura em Uma Teoria da Justiça,

mas também não esclarecida posteriormente, sobretudo porque o

autor evita se pronunciar sobre as questões suscitadas em vista de

tal distinção39

; o que se complica devido ao conceito central de

ambas as doutrinas não ser senão a concepção de pessoa (livre e

igual), em cujo papel ―a ênfase é posta de maneira mais

explícita‖40

.

Ora, não existe um conceito estritamente político de

pessoa, mesmo quando se toma o cidadão como pessoa livre e

32 Veja-se, J. RAWLS, Justiça como eqüidade, op. cit., § 59.1, p. 278. 33 Veja-se, J. RAWLS, Justiça como eqüidade, op. cit., § 58.4, p. 278. 34 Veja-se, J. RAWLS, Uma Teoria da Justiça, op. cit., § 40, pp. 200-201. 35 Veja-se, J. RAWLS, Uma Teoria da Justiça, op. cit., § 40, pp. 197-201. 36 Veja-se, J. RAWLS, Uma Teoria da Justiça, op. cit., §§ 03-04, 11-13, 19,

39-40, 45, 72, 75. 37 Ver, J. RAWLS, Justiça e Democracia, trad. Irene A Paternot, São Paulo:

Martins Fontes, 2002, p. 202, nota 1. 38 Veja-se, J. RAWLS, Justiça como eqüidade, op. cit., §§ 11.1, pp. 44-45;

55.5, pp. 266-267. 39 Veja-se, J. RAWLS, Justiça e Democracia, op. cit., pp. 201-213ss. 40 Veja-se, J. RAWLS, Justiça e Democracia, op. cit., p. 202, nota 01.

Filosofia, Reconhecimento e Direito 133

igual, está-se aí a pressupor ao menos três conceitos

fundamentais que transcendem à filosofia política stricto sensu:

(1) a consciência de si em cada Eu como ser livre, o que,

necessariamente, não é ainda consciência moral, (2) o

reconhecimento mútuo entre as diversas consciências de si,

(auto) determinando-se cada uma como Eu livre, e (3) a

necessidade prática (e, portanto, moral) da mediação de cada

particular pelo universal da comunidade ou da sociedade em

questão. Do contrário, a noção de cidadania não só se reduz a

uma abstração, mas, precisamente, dá ensejo a um sem número

de confusões e ambigüidades, algumas delas experimentadas

pelo próprio Rawls; por exemplo, em que sentido, em se tratando

de filosofia, podemos dizer que determinado objetivo ―não é

metafísico nem epistemológico, mas prático‖ senão na medida

em que tal objetivo pertence ao âmbito da filosofia prática,

portanto, integrando junto à Política, a Ética (ou a Moral), o

Direito e a Economia? Ora, Rawls começa afirmando que a

―teoria da justiça como eqüidade está concebida como uma

concepção política da justiça‖41

ao mesmo tempo em que

reconhece a evidência de uma concepção política da justiça como

uma concepção moral; todavia, ele deixa em aberto ―se a teoria

da justiça como eqüidade poder ser uma concepção política geral,

(...) ou se ela pode ampliar-se e tornar-se uma concepção moral

geral, ou pelo menos uma parte importante dessa última‖42

.

Apesar dessa indefinição, podemos dizer que Rawls distingue

entre ―uma concepção política geral‖ e ―uma concepção moral

geral‖; entretanto, sem discutir a primeira, que se estende ―a

diferentes tipos de sociedade, em condições históricas e sociais

diferentes‖, ele como que concebe essa última apenas de modo

epistemológico e metafísico, isto é, segundo suas palavras, como

algo que se aplica a um dado objeto (no caso a estrutura básica

da sociedade), como se esse fosse apenas um caso entre outros43

.

Porém, como também ele diz que a sua teoria da justiça é uma

teoria moral, ainda que esta não represente ―a aplicação de uma

41 Veja-se, J. RAWLS, Justiça e Democracia, op. cit., p. 203. 42 Veja-se, J. RAWLS, Justiça e Democracia, op. cit., pp. 203-204. 43 Veja-se, J. RAWLS, Justiça e Democracia, op. cit., pp. 204; 211.

Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 134

concepção moral geral à estrutura básica da sociedade, como se

essa estrutura fosse apenas um caso entre outros aos quais ela se

aplicaria‖; devendo, pois, ―apoiar-se apenas nas idéias intuitivas

que estão na base das instituições políticas de um regime

constitucional e nas tradições públicas que regem a sua

interpretação‖44

, voltamos como que ao ponto de partida, qual

seja, a ambigüidade no tocante ao conceito de pessoa e ao

estatuto propriamente dito de sua ―teoria política da justiça como

eqüidade‖.

Na verdade, Rawls não precisa de algo mais que uma

estrita filosofia política, pois, como já o mostrou Otfried Höffe45

,

ele ―já pressupõe a perspectiva de justiça como postura

normativa básica e procura apenas explicitá-la de um modo

capaz de receber uma concordância universal‖. Tal é o que, em

outro registro, Charles Taylor chamou de liberalismo

procedimental, que, para este, consiste fundamentalmente numa

visão da ―sociedade como uma associação de indivíduos‖; onde

―cada um dos quais tem uma concepção de uma vida boa ou

válida e, correspondentemente, um plano de vida‖ fundada mais

em uma ética do direito que em uma ética do bem, na qual o

fundamental ―são os procedimentos de decisão‖46

. Além dessa

posição, melhor determinada como individualista atomista,

também advinda de Nozick, Taylor ainda nos mostra três outras

determinações possíveis das posições passíveis de se encontrar

no âmbito da discussão liberalismo-comunitarismo: (1) o

coletivismo holista advindo de Karl Marx, (2) o coletivismo

atomista de B. F. Skinner e, por fim, (3) a posição com a qual ele

afirma identificar-se, o individualismo holista advindo de

Humboldt, algo a meio caminho do individualismo atomista e do

coletivismo holista; o coletivismo atomista é considerado como

44 Veja-se, J. RAWLS, Justiça e Democracia, op. cit., p. 205. 45 Veja-se, O. HOFFE, Justiça política: Fundamentação de uma filosofia

crítica do Direito e do Estado, trad. Ernildo Stein, Petrópolis: Vozes, 1991,

p. 18. 46 Veja-se, C. TAYLOR, Propósitos entrelaçados: o debate liberal-comunitário,

in: C. TAYLOR, Argumentos filosóficos, trad. Adail Ubirajara Sobral, São

Paulo: Loyola, 2000, pp. 202-203.

Filosofia, Reconhecimento e Direito 135

destituído de interesse no que toca ao referido debate47

. Segundo

seu próprio ponto de vista, o individualismo holista, Taylor

defende a necessidade de uma adesão comum a uma comunidade

histórica particular para que o bem comum possa realmente

efetivar-se, o que se dá, politicamente, através do patriotismo,

que ―é uma identificação comum com uma comunidade histórica

fundada em certos valores‖48

; os quais, filosoficamente,

encontram sua compreensão adequada no que ele chama de

política do reconhecimento, entendida como força propulsora dos

movimentos políticos nacionalistas49

. Infelizmente, nesse caso,

embora retome o elemento ideal de todo e qualquer

reconhecimento real (não fictício e não falso), o autor não o

desenvolve, limitando-se a descrevê-lo como algo meramente

formal nos limites da esfera ―íntima‖ ou privada e da esfera

pública no que tange ao reconhecimento real.

Ao passo que J. Rawls reivindica uma razão

destranscendentalizada, seguindo o mesmo caminho de

Habermas entre outros, ainda que se distinga de Habermas em

função da afirmação de um modelo estritamente monológico ao

invés de dialógico50

. Taylor reivindica-se herdeiro do

pensamento transcendental; mas isso de modo que em sua

concepção os argumentos transcendentais apareçam como

paradoxais, ainda que válidos, e passem a se fundar justamente

naquilo que deviam fundar: a experiência51

. Todavia, na medida

em que Taylor compreende sua retomada e sua reconstrução do

Transcendental segundo a argumentação de Merleau-Ponty ―em

favor da tese da ação corporificada a partir da natureza da

percepção‖ e, portanto, a partir de ―uma concepção do sujeito

47 Veja-se, C. TAYLOR, Propósitos entrelaçados: o debate liberal-comunitário,

op. cit., pp. 201-202. 48 Veja-se, C. TAYLOR, A política do reconhecimento, op. cit., pp. 241-274. 49 Veja-se, C. TAYLOR, Propósitos entrelaçados: o debate liberal-comunitário,

op. cit., pp. 201-202. 50 Sobre esse ponto, que será discutido mais adiante, veja-se: J. HABERMAS,

A Ética da Discussão e a Questão da Verdade, trad. Marcelo Brandão

Cipola, São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 3 ss. 51 Veja-se, C. TAYLOR, A validade dos argumentos transcendentais, op. cit.,

pp. 33-45.

Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 136

como um agente essencialmente personificado, engajado no

mundo‖52

; podemos dizer que também Taylor, a rigor,

participaria do esforço de transformação da Razão pura numa

razão situada, enquanto razão corporificada, e, portanto, do

projeto de destranscendentalização dos sujeitos cognoscentes53

.

Mas, na medida em que permanece no âmbito da fenomenologia

merleau-pontiana, Taylor parece não assumir a mudança –

afirmada por Habermas – da tensão transcendental entre o Ideal e

o Real ou entre o domínio dos inteligíveis e o das aparências para

a realidade social das coordenações de ações e das instituições;

de fato, esses dois planos se revelam apenas justapostos em

Taylor na medida em que ele não afirma completamente os

argumentos transcendentais como tais e nem a noção mesma de

destranscendentalização, mas permanece a meio caminho de uma

e outra dessas vias. Enfim, não é senão o próprio Taylor quem

reconhece, por um lado, o caráter indubitável de um argumento

transcendental válido; mas isso, por outro lado, com a ressalva de

que ―é difícil saber quando se tem um, ao menos um que tenha

uma conclusão interessante‖54

; razão pela qual, a nosso ver, ele

nem avança para uma reproposição efetiva dos mesmos no

sentido de uma continuação do empreendimento iniciado por

Kant55

nem os nega de modo exclusivo, ainda que os mesmos

não se apliquem de modo rigoroso às suas tematizações dos

problemas que aqui nos interessam56

.

Neste sentido, embora diagnostique de modo correto os

limites de posições como as de Rawls (que a rigor não consegue

avançar para a tematização de problemas como os da mediação

institucional e do reconhecimento intersubjetivo), e mesmo que

52 Veja-se, C. TAYLOR, A validade dos argumentos transcendentais, op. cit.,

p. 35. 53 Veja-se, J. HABERMAS, Agir Comunicativo e Razão

destranscendentalizada, trad. Lúcia Aragão. Rio de Janeiro: Tempo

Brasileiro, 2002, [Original, 2001], p. 31 ss. 54 Veja-se, C. TAYLOR, A validade dos argumentos transcendentais, op. cit.,

p. 45. 55 Veja-se, C. TAYLOR, A validade dos argumentos transcendentais, op. cit.,

p. 35. 56 Veja-se, C. TAYLOR, Seguir uma regra, op. cit., p. 181-195; bem como, C.

TAYLOR, A política do reconhecimento, op. cit., p. 241-274.

Filosofia, Reconhecimento e Direito 137

tome como ponto de partida de sua consideração justamente

esses problemas, Taylor termina por tematizá-los de modo

simplesmente empírico e histórico, colocando-se assim, portanto,

limitado a uma concepção empírico-subjetiva – e por isso

meramente exterior – do reconhecimento intersubjetivo e da

mediação institucional. Isso ocorre devido, justamente, ao fato

daqueles valores em que a comunidade histórica se funda não

serem rigorosamente tematizados, pois, ainda que se exija para

eles um reconhecimento igual, afirma-se, categoricamente, que

―se o juízo de valor pretende registrar algo independente de nossa

própria vontade e desejo, ele não pode ser ditado por um

princípio de ética‖57

; de onde, para além de uma perspectiva

como a de Taylor, a necessidade da passagem a uma concepção

de comunidade ideal ou, de modo mais preciso, do

reconhecimento da mesma enquanto comunidade de

comunicação a priori58

; portanto, a um tempo, como condição

transcendental de possibilidade de todo discurso com sentido e,

por conseguinte, como fundamento da Ética e, mais

precisamente, da Ética política59

. Tal é o que, ainda nos limites

de nossa breve observação em torno das considerações não-

especulativas da mediação institucional e do reconhecimento

intersubjetivo, pretendemos averiguar; contudo, limitar-nos-emos

às linhas gerais dos argumentos principais de Habermas, Apel e

Hösle em torno do Transcendental e do que, com Habermas e

contra Habermas, Apel designa Fundação última da Ética em

geral e da Ética política em particular.

Habermas se afirma um realista nas questões epistêmicas

e um construtivista nas questões morais, mais precisamente, um

realista segundo o viés pragmático60

e um construtivista no

sentido de que ―o discurso prático-moral representa uma

57 Veja-se, C. TAYLOR, A política do reconhecimento, op. cit., p. 271. 58 K-O. APEL, Transformação da filosofia II: O a priori da comunidade de

comunicação, trad. Paulo Astor Soethe, São Paulo: Loyola, 2000. [Edição

original, 1973]. 59 Ver, K-O. APEL, Estudos de Moral Moderna, trad. Benno Dischinger.

Petrópolis: Vozes, 1994, pp. 163-192. 60 Veja-se, J. HABERMAS, A Ética da Discussão e a Questão da Verdade,

op. cit., pp. 46-47.

Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 138

ampliação ideal de nossa comunidade de comunicação a partir da

perspectiva interior‖61

. O que, no primeiro caso, se exprime sob a

forma de um realismo interno segundo o qual ―é ‗real‘ tudo que

possa ser representado em expressões verdadeiras, ainda que os

fatos sejam interpretados em uma linguagem que é a cada vez a

‗nossa‘ linguagem‖62

; mas um realismo interno tal que se mostra

destituído de representações e que, por isso, implica na afirmação

da existência de um mundo percebido independentemente de

nossas descrições e visto como o mesmo para todos nós63

. De

onde, no segundo caso, a possibilidade da conciliação entre

realismo epistemológico e construtivismo moral64

; como tal,

fundada de um lado na afirmação de que ―não existe uma

linguagem do mundo – um livro da natureza que se imporia aos

nossos espíritos‖, mas tão somente ―as linguagens que

inventamos a partir de diversos pontos de vista‖65

e, de outro, na

afirmação segundo a qual ―a razão prática é uma faculdade de

cognição moral sem representação‖66

; o que, em última instância,

implica num certo tipo de mediação entre linguagem e realidade

ou entre agir comunicativo e mundo da vida que, por sua

exigência universalista, ao evitar reduzir-se a um tipo de

mediação simplesmente histórico-cultural – considerado

unilateral – recai perigosamente, na unilateralidade oposta, a

saber, de uma mediação puramente lingüístico-pragmática ou

pragmático-social que – enquanto simples componente do mundo

da vida – se mostra mais como algo a ser mediado que como

61 Veja-se, JÜRGEN HABERMAS, Para o uso pragmático, ético e moral da

razão prática. In: E. STEIN e L. A. DE BONI (Org.), Dialética e Liberdade,

Petrópolis: Vozes; Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 1993, p. 299. 62 Veja-se, J. HABERMAS, Agir Comunicativo e Razão

destranscendentalizada, op. cit., p. 41. 63 Veja-se, J. HABERMAS, A Ética da Discussão e a Questão da Verdade,

op. cit., p. 55 ss. 64 Veja-se, J. HABERMAS, A Ética da Discussão e a Questão da Verdade,

op. cit., p. 55. 65 Veja-se, J. HABERMAS, A Ética da Discussão e a Questão da Verdade,

op. cit., p. 58. 66 Veja-se, J. HABERMAS, A Ética da Discussão e a Questão da Verdade,

op. cit., p. 64.

Filosofia, Reconhecimento e Direito 139

elemento mediador67

. Disso resulta uma fundamentação da Ética

que se limita a uma argumentação meramente hipotético-formal

e, por conseguinte, a uma confirmação, a princípio, empírico-

psicológica e, enfim, idealizionista-performativa da mesma68

.

2. O Idealismo relativo e a retranscendentalização da

Razão prática

A perspectiva da destranscendentalização e do realismo

interno – embora dissolva o Transcendental no Realístico-

naturalístico, na medida em que nos apresenta como seu ponto de

partida a dissolução do dualismo kantiano entre noumeno e

fenômeno ou de coisa em si e aparência, bem como enquanto

liberta os conteúdos particulares de pensamento em relação à

representação – ainda que os aprisione na malha dos

significados; permite-nos também dissolver a oposição entre a

priori e a posteriori ou entre real e ideal em que recaem Apel e

Hösle. Contudo, por seu caráter ao mesmo tempo hipotético-

formal e idealizionista-performista, bem como universalista,

segundo o procedimento, mas pluralista, segundo a concepção,

impede-nos de manter as conquistas e avançar para além do

Transcendental; ainda que mantenha traços do Transcendental,

agora enfraquecido69

, à medida que transfere o sujeito agente do

reino dos seres inteligíveis para o mundo da vida articulado

lingüisticamente dos sujeitos socializados70

, perde de vista o

conteúdo racional que (pressuposto no princípio da

universalização) possibilita não só o discurso real com sentido,

67 Veja-se, J. HABERMAS, Escritos sobre moralidad y eticidad. Traducción

y introducción de Manuel Jiménez Redondo. Barcelona; Buenos Aires;

México: Paidós, 1991, pp. 67-95; ver também, p. 128 ss. 68 Nesse caso, compare-se J. HABERMAS, Consciência moral e agir

comunicativo (trad. Guido A. de Almeida. – 2. ed. – Rio de Janeiro: Tempo

Brasileiro, 2003 [Original, 1983], p. 143 ss.) e J. HABERMAS, Agir

Comunicativo e Razão destranscendentalizada, op. cit., [Original, 2001], p.

38 ss. 69 Veja-se, J. HABERMAS, Agir Comunicativo e Razão

destranscendentalizada, op. cit., p. 53; p. 55. 70 Veja-se, J. HABERMAS, Agir Comunicativo e Razão

destranscendentalizada, op. cit., p. 52.

Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 140

mas também o caráter regulativo da verdade aí pretendida. Ora,

esse conteúdo racional, determinado enquanto conteúdo

normativo pressuposto no princípio da universalização, embora

não possa ―assumir o valor posicional de uma fundamentação

última‖ ou não tenha que reclamar esse status71

, ao mostrar-se a

um tempo hipotético-formal e idealizionista-performista, termina

por aproximar-se – a despeito de Habermas72

– do que Apel

designara ―o a priori da comunidade de comunicação‖73

; o qual,

justamente no plano da ‗letzte Begründung‘ – explicitação

pragmático-transcendental da estrutura a priori que em cada caso

está em jogo – é tomado como uma condição transcendental de

possibilidade que, mesmo em sendo negada é ainda

[supostamente] pressuposta por aquele que a nega74

. Mas, enfim,

como já lembrara Habermas75

, isso não quer dizer que o

argumento último da Fundamentação última levada a cabo pela

Pragmática transcendental de Apel seja o último argumento

especificamente filosófico possível, ele não é nem mesmo o

primeiro76

.

Como já lembrara Ivan Domingues77

, esse argumento de

Apel – apresentado segundo o método da chamada contradição

pragmática – já aparece ―avant la lettre‖ em Aristóteles sob a

forma do Princípio de Não-Contradição, ―cuja refutação leva a

quem o nega simplesmente a desdizer o que diz e a dizer o que

71 Veja-se, J. HABERMAS, Consciência moral e agir comunicativo, op. cit.,

pp. 104-105 ss. 72 Veja-se, K. O. APEL, Fundamentação última não-metafísica? In: E. STEIN

e L. A. DE BONI (Org.), Dialética e Liberdade, Petrópolis: Vozes; Porto

Alegre: Ed. da UFRGS, 1993, pp. 305-326, aqui, pp. 305-306. 73 Veja-se, K. O. APEL, O a priori da comunidade de comunicação e os

fundamentos da Ética, in: Transformação da Filosofia II, op. cit., p. 407 ss. 74 Sobre o significado estrito de ‗condição transcendental de possibilidade‘ e

sua fundamentação na perspectiva apeliana, veja-se, F. J. HERRERO, O

problema da fundamentação última. In: Kritérion, Belo Horizonte, XXXV,

no. 91, jan-jul, 1995, pp. 7-16; aqui, pp. 8-9. 75 J. HABERMAS, Consciência moral e agir comunicativo, op. cit., p. 107 ss. 76 J. HABERMAS, Consciência moral e agir comunicativo, op. cit., pp. 104-

105 ss. 77 Veja-se, I. DOMINGUES, A questão da fundamentação última na filosofia.

In: Kritérion, Belo Horizonte, XXXV, no. 91, jan-jul, 1995, pp. 29-44.

Filosofia, Reconhecimento e Direito 141

desdiz, por força da contradição entre o falar e o pensar‖78

. Se

isso é realmente assim, pode-se dirigir ao argumento de Apel a

mesma objeção que Jan Lukasievicz dirige ao princípio

aristotélico: a saber, que o mesmo não foi rigorosamente

demonstrado – pois Aristóteles se limita a tentar provar tão

somente sua formulação psicológica79

; isso talvez em razão de o

próprio Aristóteles compreender que a necessidade do Princípio

de Não-Contradição não é nem meramente lógica nem puramente

ontológica80

– de um lado simplesmente por não haver prova, de

outro pelo fato da noção de objetos contraditórios não ser

absurda81

– mas, como pensa Lukasiewicz, fundamentalmente

uma necessidade ética82

. Essa é a mesma necessidade que, a

rigor, está na base das condições transcendentais de

possibilidade de Apel e de Hösle – o princípio a priori da

Comunidade ideal de Comunicação no primeiro e o

conhecimento a priori não-hipotético no segundo; os quais, no

entanto, ao limitarem a ―contradição a ser evitada‖ a um simples

método apagógico para a fundamentação de tais condições,

terminam por cair nas mesmas confusões de Aristóteles entre o

plano dos julgamentos acerca dos objetos e suas propriedades e o

das convicções humanas em torno dos mesmos83

. Com isso,

78 Veja-se, I. DOMINGUES, A questão da fundamentação última na filosofia,

op. cit., pp. 34-35. 79 Ver, J. LUKASIEWICZ, Du principe de contradiction chez Aristote, trad.

Dorota Sikora, préface de Roger Pouivet, Paris; L‘Éclat, 2000 [original,

1910], pp. 56-61 e seguintes. 80 Ver, J. LUKASIEWICZ, Du principe de contradiction chez Aristote, op.

cit., pp. 73-76. 81 Ver, J. LUKASIEWICZ, Du principe de contradiction chez Aristote, op.

cit., pp. 156-163. 82 Ver, J. LUKASIEWICZ, Du principe de contradiction chez Aristote, op.

cit., p. 168 ss. 83 Exemplos disso são a ―evidência para mim‖ e o discurso como medium

intranscendível em Apel [ver, K. O. APEL, Fundamentação última não-

metafísica? op. cit., pp. 321-322; K. O. APEL, El problema de la

fundamentación filosófica última desde uma pragmática transcendental del

lenguage, in: Estúdios filosóficos, Valladolid, XXXVI, 102, mayo-agosto

(1987): 251-299, aqui, p. 283 ss.; F. J. HERRERO, O problema da

fundamentação última, op. cit., pp. 9-10]; bem como as crenças, evidências

e pressuposições que se quer de provar, de um lado, e, de outro, a

Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 142

embora não reduzam o Ético ao Transcendental, tomam-no por

algo real ou a posteriori oposto ao seu fundamento ideal ou a

priori; o que, em geral, se põe como a conseqüência mesma de

sua limitação à ―contradição a ser evitada‖.

Com efeito, Apel e Hösle não percebem que – se a

contradição pragmática tem que ser real e necessariamente

evitada – nem o princípio a priori da Comunidade ideal de

Comunicação poderá ser lógico-transcendental e

performativamente demonstrado nem o conhecimento a priori

não-hipotético será pragmático-transcendental e ontologicamente

provado. Se o fossem realmente, isso implicaria que somente

aquele que já partisse desses fundamentos assim estabelecidos –

embora tão só no âmbito de sua convicção pessoal – poderia

evitar esse tipo de contradição, o que contradiz o cerne mesmo

do argumento que se quer demonstrar [e, com isso, a própria

contradição pragmática enquanto método]; pois, se o que se quer

provar são justamente os fundamentos que já têm que estar

estabelecidos para que se evite a contradição, de duas uma, ou a

lezte Begründung pressuposta não é necessária ou incorre em

petitio principii ou em círculo vicioso. De fato, vemos repetir-se

aqui o mesmo processo da contradição perenemente posta, que

Hegel já constatara, quando de sua crítica especulativa à filosofia

transcendental kantiana e ao resultado da introdução de um

terceiro onde a oposição entre Universalidade e Singularidade ou

entre Subjetividade e Objetividade são dissolvidas84

; de certo

modo a mesma que a das filosofias de Apel e Hösle quando da

respectiva instauração do princípio a priori da Comunidade ideal

de Comunicação em um e o conhecimento a priori não-

hipotético em outro segundo o método da Contradição

identificação das categorias e significados com o reino das entidades ideais

(em última instância subjetivo ou intersubjetivo) e com o conteúdo das

proposições em Hösle [ver, Begründungsfragen, II, 2, 2, p. 250-259 ss. (ed.

it., p. 52-61 ss.); Sobre a impossibilidade de uma fundamentação naturalista

da ética. In: STEIN, E.; DE BONI L. A. (Org.). Dialética e Liberdade.

Petrópolis: Vozes; Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 1993, pp. 588-609, aqui,

pp. 597-599, 604-606; Die Krise der Gegenwart und die Verantwortung der

Philosophie, München: Beck, 1987, pp. 220ss; 229-230ss.]. 84 E, §§ 59-60.

Filosofia, Reconhecimento e Direito 143

pragmática ou da ―contradição a ser evitada‖. Essas filosofias, ao

se fundarem sobre uma ―estrutura reflexiva transcendental‖ e ao

se limitarem à reflexividade das proposições sintéticas a priori

pelas quais buscam fundamentar essa estrutura, não se

distinguem substancialmente das filosofias do entendimento

fundadas meramente no Princípio de Não-Contradição; pois, para

utilizarmos aqui as palavras de Hegel85

, ao evitarem a

contradição, elas mesmas terminam por cometê-la – e isso por

não reconhecerem que a reflexão é fundamentalmente a esfera da

contradição posta86

, a qual deve ser antes assumida que evitada.

O que terá por conseqüência que a esfera do Pragmático não é

necessariamente a mesma que a do Ético e do Prático; essa, por

conseguinte, exige uma outra forma de fundação e

fundamentação em relação àquela.

Da mesma forma, ainda que se incorra em contradição

pragmática, isso não quer dizer que se foi lógico-transcendental,

performativa e ontologicamente reduzido ao absurdo; pois, se tal

contradição pragmática se apresenta de modo rigoroso mais

como princípio ético que como princípio lógico-transcendental

ou ontológico, ela será transgredida assim como o Princípio de

Não-Contradição o é. Todavia, se distinguirmos em geral a esfera

pragmática da esfera prática87

– e com isso, em particular, o

Pragmático-transcendental do Prático-transcendental – e se

concordarmos que a esfera prática é mais abrangente que a

pragmática; mesmo que todo falante aceite de imediato, em seu

uso lingüístico da razão prática, a inevitabilidade dos

pressupostos pragmáticos de toda argumentação com sentido,

isso não quer dizer que não se possam transgredir tais

pressupostos. Isso porque, em última instância, embora todo e

qualquer uso lingüístico, bem como todo e qualquer sentido que

se queira dar a tal ou tal determinação de pensamento, só possa

ser considerado nos limites de sua própria esfera – no primeiro

caso a esfera pragmática ou do fazer, no segundo a esfera das

85 E, § 119, A. 86 E, § 114. 87 Veja-se, a respeito, J. HABERMAS, Para o uso pragmático, ético e moral

da razão prática, op. cit., pp. 288-304.

Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 144

crenças ou das convicções pessoais; a fundamentação desse uso e

desse sentido em algo como um meta-discurso só poderá valer de

modo incondicional para a esfera na qual o uso lingüístico e seu

sentido estão circunscritos, a saber, para a esfera pragmática e

para as crenças e convicções daqueles que as têm. Neste sentido,

ao imputar que todos sem exceção pressupõem tais pressupostos,

Apel e Hösle terminam por realizar um salto ilegítimo, como

lembrado por Margutti Pinto para o caso de Apel88

e por Hans

Albert para o de Hösle89

; pois eles mesmos não consideram que

os pressupostos daqueles com os quais discutem são outros e que

eles mesmos não partem dos pressupostos deles e nem os

assumem; com isso, também não avançam para o Prático-

transcendental ou para a unidade daquilo que Kant chamara

Razão pura prática e seu desenvolvimento especulativo no

âmbito da efetivação lógico-real da Vontade livre. Essa aqui

concebida como independente de toda a esfera espácio-temporal

e dos diversos usos da razão prática que aí têm lugar, mas

assumindo-os e dissolvendo-os como formas aparentes ou

figurações espácio-temporais de tal efetivação, o que vale tanto

para o caso da vontade livre individual como para o caso da

vontade livre coletiva; as quais, nessa efetivação, processam-se

nos planos da Universalidade, da Particularidade e da

Singularidade ou da Subjetividade, da Intersubjetividade e da

Objetividade90

. Enfim, para lembrarmos Hegel, e por deixarem

de lado – sem tematização – justamente o Prático-transcendental

e seu desenvolvimento especulativo, Apel e Hösle não realizam

uma verdadeira refutação das posições por eles criticadas –

deixando-as intactas –, mas uma mera justaposição ou uma

simples paratese; o que torna a própria tese da letzte Begründung

uma simples tese entre outras.

88 Ver, P. R. MARGUTTI PINTO, O problema da necessidade da

fundamentação última não-metafísica em Karl-Otto Apel. In: Kritérion,

Belo Horizonte, XXXV, no. 91, jan-jul, 1995, pp. 17-28. 89 Ver, H. ALBERT, Hösles Sprung in den objektiven Idealismus, in:

Zeitschrift für allgemeine Wissenschaftstheorie, XX, 1 (1999): 124-131. 90 Esse ponto será desenvolvimento mais adiante, na terceira seção do

presente trabalho.

Filosofia, Reconhecimento e Direito 145

O interessante a se notar em nossos autores é a oposição

mesma do Empírico e do Transcendental, ou do a posteriori e do

a priori, bem como a permanência da justaposição de um

defronte o outro; e isso, sobretudo, nos limites daquilo que mais

nos interessa: no elemento da mediação institucional e do

reconhecimento intersubjetivo. Em Apel, o princípio a priori da

Comunidade de comunicação permanece pressuposto subjetivo e

não acompanha de modo necessário e efetivo nem o processo da

mediação institucional (que termina por ser concebido como

simples ideal regulativo dos processos subjetivo-intersubjetivos

de reconhecimento), nem o reconhecimento intersubjetivo; o

qual, ao se limitar à esfera real, tomada como distinta da esfera

ideal, impõe tanto a Si quanto à mediação institucional um

simples dever-ser91

– como tal fundado de modo meramente

negativo –, cuja consistência limita-se ao Empírico ou ao

Pragmático enquanto tal92

. Isso se agrava devido a que, segundo

os defensores do ponto de vista de Apel, a condição

transcendental de possibilidade, da qual a existência do fato

depende e sem a qual o mesmo não existiria, ―não pode, por sua

vez, ser objetivada, pois toda objetivação já supõe a mesma

condição‖93

; de onde, portanto, a implicação de que o acesso a tal

condição por aqueles que a pressupõem e, com isso, a sua

efetivação enquanto princípio a priori que permite tal acesso,

permanecerão para sempre uma simples pressuposição – como

tal inefetiva; ou, esse acesso e essa efetivação, uma vez

realizados, tal como exigido pelo processo da mediação

institucional e pelo reconhecimento intersubjetivo, implicarão na

dissolução mesma dos postulados dualistas da Pragmática

Transcendental e seu a priori da Comunidade de comunicação.

O que, de um modo ou de outro, se mostra na própria adesão de

Apel à Teoria dos Estágios lógicos de desenvolvimento da

Consciência moral segundo Kohlberg, bem como na sua

91 Veja-se, K. O. APEL, O a priori da comunidade de comunicação e os

fundamentos da Ética, op. cit., p. 485 ss. 92 Veja-se, K. O. APEL, O a priori da comunidade de comunicação e os

fundamentos da Ética, op. cit., p. 491. 93 Ver, F. J. HERRERO, O problema da fundamentação última, op. cit., p. 9.

Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 146

retomada e desenvolvimento dessa teoria no âmbito da

reconsideração de um sétimo estágio da Consciência moral,

como tal identificado com a Ética da Responsabilidade94

.

No caso de Hösle, que se reivindica o âmbito da Razão

objetiva concebida como Intersubjetividade, ainda que para ele

não possa haver nenhuma verdadeira diferença entre os sujeitos

[por definição: finitos ou relativos] que constituem a chamada

Estrutura intersubjetiva absoluta e que, portanto, Subjetividade e

Intersubjetividade sejam no medium da idealidade; onde não

pode haver diferença real entre elas ou um sacrifício da primeira

em relação à segunda, mas apenas a prioridade desta em relação

àquela95

; aqui, tal como em Apel, torna-se fundamental a

distinção da esfera da Idealität e a da Realität, o único modo –

segundo Hösle – de tornar possível a ação moral96

. Ora, pois, se

não há diferença real entre Subjetividade e Intersubjetividade no

medium da idealidade, ou elas são apenas uma e mesma Coisa

real ou não são reais; se ocorre o primeiro caso, a

Intersubjetividade não pode ser mais que uma determinação entre

outras da própria Subjetividade; se ocorre o segundo, mesmo que

Subjetividade e Intersubjetividade não se reduzam às

representações finitas que se apresentam nos estados de

consciência subjetivos97

, reduzir-se-ão a meras categorias

ontológicas passíveis de uma simples manifestação fenomênica –

portanto, ainda permanecendo abstratas ou simplesmente ideais,

sem nenhuma concreção real ou efetividade (Wirklichkeit)98

.

Exemplo disso é a ambigüidade da ação moral propriamente dita

enquanto concebida nos limites estreitos do ―a priori objetivo‖, a

qual, embora se apresente no âmbito da Realität (enquanto esfera

fenomênica), como uma das determinações ou um dos momentos

da realização da Idealität (sob a forma de um mandamento

incondicionado); o que aí de fato está em jogo não são apenas

atos subjetivo-intersubjetivos ou processos de reconhecimento

94 Ver, K-O. APEL, Estudos de Moral Moderna, trad. Benno Dischinger.

Petrópolis: Vozes, 1994, pp. 223-294; sobretudo, p. 281 ss. 95 Veja-se V. HÖSLE, Die Krise, op. cit., p. 230. 96 Veja-se V. HÖSLE, Die Krise, op. cit., pp. 221-222. 97 Cf., V. HÖSLE, Begründungsfragen, II, 2, 3, pp. 261-262 (ed. it., p. 63). 98 Ibid.

Filosofia, Reconhecimento e Direito 147

intersubjetivos – como, a rigor, deveria ser o caso nessa esfera –,

mas, ao contrário, a Idéia da Intersubjetividade racional como

determinação suprema do Absoluto; precisamente, sob a forma

de uma luta prática pelo retorno ao Absoluto99

. Em suma, em

sendo isso assim, e se isto não é incompatível com a afirmação

segundo a qual o Idealismo objetivo tem que ser monístico, bem

como com a de que o mundo (no qual vivemos e no qual o

Absoluto se realiza) se apresenta em sua totalidade como

necessário, desdobrando-se sempre em graus superiores100

; em

que medida, de fato, Hösle pode argumentar em favor de um

ponto de vista no qual ―em primeiro lugar, se admite categorias

aprióricas e juízos sintéticos a priori e, em segundo lugar, lhes dá

uma dignidade ontológica‖101

; negando justamente o reportar-se

da esfera dessas categorias e juízos ao a posteriori, ―a entidades

naturais, estados de consciência subjetivos ou processos

intersubjetivos de reconhecimento‖?102

Consideremos melhor essa contradição, ou melhor, essa

ambigüidade, entre o fenomenológico ou empírico-sensível e o

lógico-real ou efetivo. Embora proponha uma filosofia real a

priori enquanto desdobramento de seu Idealismo objetivo, (1)

Hösle não reconhece o desenvolvimento efetivo desse a priori em

uma esfera outra que a do a posteriori, do fenomenológico ou do

empírico-sensível103

; isso, ao mesmo tempo em que (2) nega o

reportar-se do ―a priori objetivo‖ e da Razão absoluta – seu

princípio, que não pode ser reificado104

– a entidades naturais,

99 Ver V. HÖSLE, Die Krise, op. cit., pp. 239-240; V. HÖSLE, Moral und

Politik, op. cit., pp. 165 ss.; 175 ss. 100 Veja-se V. HÖSLE, Die Krise, op. cit., p. 232. 101 Cf., V. HÖSLE, Begründungsfragen, II, 1, 3, p. 242 (ed. it., p. 45). 102 Cf., V. HÖSLE, Begründungsfragen, II, 2, 3, pp. 261-262 (ed. it., p. 63).

Para uma crítica especulativa desse ponto de vista, veja-se M. M. SILVA, A

natureza especulativa da objetividade no Idealismo absoluto da

Subjetividade e o formalismo do Idealismo objetivo da Intersubjetividade,

in: Revista Eletrônica Estudos Hegelianos, Recife/PR, v. 01, n. 01, (2004):

URL = <http://www.hegelbrasil.org/rev01c.htm>; veja-se, em especial,

Seção III. O conceito hegeliano da Objetividade e sua função no Mundo do

espírito, o “a priori objetivo” e a Intersubjetividade. 103 Ver, V. HÖSLE, Moral und Politik, op. cit., p. 165 ss. 104 Cf., V. HÖSLE, Begründungsfragen, II, 2, 3, pp. 261-262 (ed. it., p. 63).

Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 148

estados de consciência subjetivos ou processos intersubjetivos de

reconhecimento; enfim, (3) termina por reconhecer, a rigor, tão

só a exteriorização das categorias e significados próprios do que

chama ―reino ideal dos conceitos puros‖ no plano real da

natureza e da razão finita105

. O que, não obstante, acarreta

conseqüências imprevisíveis para sua concepção da Ética em

geral e das instituições como de um terceiro ao lado de Sujeito e

Objeto em particular; com efeito, a primeira conseqüência não é

senão a dissolução da própria relação ou identidade de Sujeito e

Objeto – que fica reduzida a uma racionalidade técnica cujo

fundamento é dado pelas ciências naturais106

– e sua substituição

pela relação ou identidade Sujeito-Sujeito107

, surgida no âmbito

da racionalidade estratégica fundada nas ciências sociais e

reivindicada pela racionalidade comunicativa daí emergente.

Identidade Sujeito-Sujeito essa, no entanto, concebida

dicotomicamente108

: por um lado, entendida como estrutura

intersubjetiva absoluta, ideal, a priori e objetiva109

, e, por outro,

como estrutura intersubjetiva relativa – as instituições –, real, a

posteriori e subjetiva110

. De acordo com essa concepção, as

instituições se constituem como um terceiro que se interpõe entre

o Ego e o Alter modificando a relação originariamente dual entre

ambos na perspectiva de sua universalização111

; mas isso nos

limites de uma compreensão da própria pessoa [o Ego e o Alter]

como cindida em um lado interior ideal e um lado exterior real,

portanto, em Sujeito e Objeto, ou em Fim e Meio112

. O que,

enfim, ao apelar para ―o reino ideal das categorias e dos

significados, cuja exteriorização é a natureza‖, como ―o

105 Ver, V. HÖSLE, Sobre a impossibilidade de uma fundamentação naturalista

da ética, in; op. cit., pp. 605-606. 106 Ver, V. HÖSLE, Moral und Politik, op. cit., p. 171 ss; V. HÖSLE, Hegels

System, 1, op. cit., pp. 259, nota 194. 107 Ver, V. HÖSLE, Die Krise, op. cit., p. 219. 108 Ver, V. HÖSLE, Moral und Politik, op. cit., pp. 175-177 ss; V. HÖSLE,

Die Krise, op. cit., pp. 221-222. 109 Ver, V. HÖSLE, Begründungsfragen, III, 2, p. 264 (ed. it., p. 66). 110 Ver, V. HÖSLE, Moral und Politik, op. cit., pp. 422-431. 111 Ver, V. HÖSLE, Moral und Politik, op. cit., p. 427. 112 Ver, V. HÖSLE, Moral und Politik, op. cit., pp. 165-171.

Filosofia, Reconhecimento e Direito 149

verdadeiro ser‖113

e que, como tal, só contempla o lado interior e

subjetivo, termina por contradizer o monismo reivindicado pelo

Idealismo objetivo da Intersubjetividade e por transformá-lo,

enfim, a exemplo de Platão, numa simples forma de Idealismo

relativo114

.

Diante disso, parece-nos pertinente a crítica de H. Albert

ao modo intuitivo e direto, com que Hösle alça-se ao Idealismo

objetivo – através de uma pseudo-mediação das posições a ele

opostas115

. Sem entrar no mérito dessa crítica, que se concentra

no uso que Hösle faz do método proposto pela Pragmática

transcendental, há que se convir que pelo menos em um ponto ela

seja certeira: ―Com efeito, ele [Hösle] não estabeleceu sua tese –

sua versão do Idealismo objetivo – através de uma prova, mas, de

certo modo, a alcançou por meio de um salto espiritual, que ele,

por pseudo-provas, tentou ocultar‖116

. Essas pseudo-provas,

como já observado anteriormente, mostram-se assim, sobretudo

em função de não partirem da força mesma do argumento

adversário e, antes de tudo, de o desqualificarem no sentido de

lhe imputar aceitação de teses – como a das condições

transcendentais de possibilidade – que em nenhum momento são

nele ou por ele explicitamente pressupostas; de onde não haver

uma verdadeira refutação das posições supostamente refutadas.

Além disso, como também se observou mais acima, em

desenvolvendo unicamente o método da contradição pragmática

no sentido de uma contradição a ser evitada, o máximo a que a

113 Ver, V. HÖSLE, Sobre a impossibilidade de uma fundamentação naturalista

da ética, in; op. cit., pp. 605-606. 114 Sobre o Idealismo relativo em Platão, veja-se, H. GLOCKNER, Hegel 1:

Schwierigkeiten und Voraussetzungen der hegelschen Philosophie,

Stuttgart: Frommans Verlag, 1954 [SW, 21], pp. 311-312., 115 Ver, H. ALBERT, Hösles Sprung in den objektiven Idealismus, in:

Zeitschrift für allgemeine Wissenschaftstheorie, XX, 1 (1999): 124-131.

Confronte-se com V. HÖSLE, Begründungsfragen, II, 2, 2, 1, pp. 245-249

(ed. it., pp. 47-52). 116 No original: ―Tatsächlich hat er seine These – seine Version des objektiven

Idealismus – nicht durch einen Beweis etabliert, sondern er hat sie

gewissermassen durch einen geistigen Sprung erreicht, den er durch

Scheinbeweise zu kaschieren versucht hat‖ (cf. H. ALBERT, Hösles

Sprung, in: op. cit., p. 131).

Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 150

tentativa hösliana (o que também vale para a tentativa de Apel)

consegue chegar é à explicitação analítica de uma intuição; de

algo que, antes de tudo, é tomado ou pressuposto pelo filósofo

como imposto à razão finita como um dever moral e um

mandamento incondicional117

. Por conseguinte, a distinção de

Hösle entre o ―a priori objetivo‖ – as leis do pensamento que são

elas mesmas reais – e o a posteriori – a realidade cujas leis se

identificam com as leis do pensamento – não só se apresenta

como estranha; mas, para de novo lembrarmos Albert, mostra-se,

sobretudo, como ilegítima118

.

3. Necessidade da Passagem a uma Concepção Especulativa

do Direito, Elementos para sua Retomada e

Desenvolvimento na Atualidade

Há que se reconhecer de saída pelo menos duas

contribuições fundamentais dos pontos de vista discutidos no

passo anterior para a Concepção especulativa do Direito aqui a

ser exposta. Por mais paradoxal que isso se apresente à

consciência ordinária; tais contribuições são: (1) a dissolução do

dualismo kantiano entre noumeno e fenômeno ou de coisa em si

e aparência pelo Realismo interno de Habermas119

e (2) a

reproposição da postulação kantiana de ―eus noumenais e

atemporais‖, agora como constituintes de uma estrutura

intersubjetiva absoluta120

, ―que tomam decisões éticas sem que

estas sejam sujeitas à lei causal‖121

pelo Idealismo objetivo de

Hösle. Enquanto a primeira, a rigor, consiste na libertação dos

conteúdos particulares de pensamento em relação à representação

e com isso, se levarmos a sério a posição de Schopenhauer

117 Ver, V. HÖSLE, Die Krise, op. cit., p. 230. 118 Veja-se, H. ALBERT, Hösles Sprung, in: op. cit., p. 130. 119 Veja-se, J. HABERMAS, Agir Comunicativo e Razão

destranscendentalizada, op. cit., p. 41. 120 Veja-se V. HÖSLE, Die Krise, op. cit., p. 230. 121 Ver, V. HÖSLE, Sobre a impossibilidade de uma fundamentação naturalista

da ética, in; op. cit., pp. 593.

Filosofia, Reconhecimento e Direito 151

segundo a qual ―o mundo é minha representação‖122

, também

destrói a ordem cosmológica na qual o fenômeno e a experiência

se punham ao Idealismo transcendental kantiano como a única

esfera cognoscível do Ser; a segunda repropõe justamente a

existência objetiva, noumenal e atemporal, dos eus ou das

pessoas enquanto habitantes de um reino para além do espaço-

tempo no qual elas não só agem eticamente livres dos limites

causais circunscritos ao espaço-tempo, mas, também, constituem

parte de uma comunidade do espírito123

. Não obstante, porém,

essas duas posições não se mantêm firmes nas conquistas a que

acederam e terminam por recaírem, sob distintas formas e

modos, na esfera espácio-temporal.

A dissolução habermasiana do dualismo kantiano entre

noumeno e fenômeno ou de coisa em si e aparência, embora

liberte os conteúdos particulares de pensamento em relação à

representação, e com isso a totalidade dos objetos

experimentáveis da concepção que a restringe a um mundo ―para

nós‖; ao aprisionar os conteúdos de pensamento na malha dos

significados lingüísticos cujos limites constituirão de ora avante

os limites do mundo enquanto ―sistema de referências

possíveis‖124

e, por conseguinte, ao transferir o sujeito agente do

reino dos seres inteligíveis para o mundo da vida articulado

lingüisticamente dos sujeitos socializados125

; termina por

identificar as representações subjetivas com as expressões

lingüísticas consideradas verdadeiras e assim, ainda que negando

―o ‗ser veritativo‘ dos acontecimentos representados em

expressões verdadeiras e interpretados em uma linguagem que é

a cada vez a ‗nossa‘ linguagem‖ como ―realidade

122 Ver, A. SCHOPENHAUER, O mundo como vontade e como

representação, trad. M. F. Sá Correia, Rio de Janeiro: Contraponto, 2001

[Original, 1819], § 1, p. 9. 123 Veja-se V. HÖSLE, Die Krise, op. cit., p. 240. 124 Veja-se, J. HABERMAS, A Ética da Discussão e a Questão da Verdade,

op. cit., p. 58. 125 Veja-se, J. HABERMAS, Agir Comunicativo e Razão

destranscendentalizada, op. cit., p. 52.

Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 152

representada‖126

, tão só por instaurar uma nova dimensão do

espaço-tempo como ―aquela ‗existência‘ experimentada na

relação prática como resistente a tudo aquilo com que ‗nos

chocamos‘ no mundo perigoso e com que devemos ‗lidar‘‖127

.

Ao contrário disso, por um lado, a reproposição hösliana de ―eus

noumenais e atemporais que tomam decisões éticas sem que

estas sejam sujeitas à lei causal‖128

peca justamente por

identificar esses eus noumenais e suas decisões éticas livres a um

abstrato ―verdadeiro ser‖ ou ―ser absoluto ideal‖ que se

desenvolve na natureza concebida como realidade objetiva

relativa a uma consciência finita; melhor, por confundir esses

―eus noumenais e atemporais‖ e essas ―decisões éticas livres da

lei causal‖ como membros de um ―reino ideal das categorias e

significados, cuja exteriorização é a natureza, que segue,

entretanto, suas determinações objetivas e imanentes sem que

haja qualquer ruptura‖129

. Se levarmos em conta o já dito a

respeito das representações (sejam elas subjetivas ou objetivas) e

dos significados no âmbito da perspectiva habermasiana, cujo

conteúdo como tal exprime o núcleo duro de todas as concepções

fundadas na linguagem ou que a tomam enquanto medium

intranscendível de todo discurso e de toda argumentação com

sentido; não pode ser tomado a rigor enquanto existindo

objetivamente para além do espaço-tempo e do dualismo de um

―a priori objetivo‖ formal e de um a posteriori subjetivo que se

assenta numa base material objetiva, mas indiferente ao que nela

ocorre. Por outro lado, em conseqüência do que foi até agora

constatado, tanto os ―eus noumenais e atemporais‖ quanto as

suas ―decisões éticas livres da lei causal‖ – fazendo abstração de

seu caráter meramente postulado pelo Idealismo objetivo – só

podem existir como tais; a saber, enquanto postulados ou como

126 Veja-se, J. HABERMAS, Agir Comunicativo e Razão

destranscendentalizada, op. cit., p. 41. 127 Veja-se, J. HABERMAS, Agir Comunicativo e Razão

destranscendentalizada, op. cit., pp. 41-42. 128 Ver, V. HÖSLE, Sobre a impossibilidade de uma fundamentação naturalista

da ética, in: op. cit., p. 593. 129 Ver, V. HÖSLE, Sobre a impossibilidade de uma fundamentação naturalista

da ética, in: op. cit., pp. 605-606.

Filosofia, Reconhecimento e Direito 153

existindo realmente em um reino ideal tal qual descrito pela

posição aqui em questão, se e somente se ambos possuem

referentes em um reino contrafaticamente concebido como real

ou, melhor, fenomenal; no caso, o da natureza objetiva exterior

concebida como um mundo ―para nós‖ e o da razão finita com a

qual ela se põe em relação enquanto reino dos eus fenomenais e

suas decisões circunscritas à lei causal; o que implica na

reposição de problemas como o da relação entre corpo (eu

fenomenal) e alma (eu noumenal) ou o da confusão da linguagem

e dos significados, juntamente com as representações aí

expressas e das quais as categorias são tipos particulares; cujo

estatuto ontológico é rigorosamente circunscrito ao plano

espácio-temporal, em suas mais diversas dimensões e aos

fenômenos de toda ordem que aí têm lugar, e cuja resolução

metodológica impõe tal ou tal delimitação ao chamado mundo

segundo a diversidade dos tipos e formas de representação que se

exprimem lingüisticamente como este ou aquele mundo;

respectivamente, como um ideal oposto a um real. O que, enfim,

no afã de mediar os extremos que em cada caso se mostram

como unilaterais, termina por unilateralizar o elemento mediador

ele mesmo – no caso o Absoluto – em o subordinando a um

desenvolvimento circunscrito a um dos extremos da esfera finita,

justamente o concebido como necessário ao seu próprio

desenvolvimento e que, não obstante, a ele permanece

indiferente.

Enfim, de acordo com Kant, ―quando nos pensamos

livres, nos transpomos para o mundo inteligível como seus

membros e reconhecemos a autonomia da vontade juntamente

com a sua conseqüência – a moralidade; mas quando nos

pensamos como obrigados, consideramo-nos como pertencentes

ao mundo sensível e, contudo, ao mesmo tempo também ao

mundo inteligível‖130

. Isso, a rigor, deveria implicar no

reconhecimento da obrigação moral não como limitação ao

sensível e, assim, como um dever do Eu circunscrito em sua

130 Veja-se, I. KANT, Fundamentação da metafísica dos costumes, in: I.

KANT, Textos selecionados, trad. Tânia Maria Bernkopf, Paulo Quintela,

Rubens Rodrigues Torres Filho, São Paulo: Abril Cultural, 1980, p. 154.

Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 154

aparência para consigo enquanto um Eu inteligível que se põe

nos limites do espaço-tempo. Ao contrário, como exigência do

autodesenvolvimento lógico-real da Vontade livre – inclusive na

forma de múltiplos eus livres que se contrapõem e se reconhecem

mutuamente como tais a partir da divisão do espírito nos

mesmos131

– em sua própria esfera. Essa, a esfera em que o

espírito se desenvolve em sua efetividade propriamente espiritual

como despojado de suas aparências contingentes e das figuras

espácio-temporais pelas quais ele pode vir a tornar-se objeto de

representação quando fixado em quaisquer de seus níveis ou sob

quaisquer dos pontos de vista que aí têm lugar. Tal é o que se põe

como problema para o Especulativo puro em geral e para a

Concepção especulativa do Direito em particular.

1.O que é o Especulativo puro?

O ponto de partida e o ponto de vista que aqui fazemos o

nosso consiste na afirmação segundo a qual o Especulativo puro

– embora contenha dentro de si o Transcendental em geral e o

Prático-transcendental em particular, em suma, a chamada

―estrutura reflexiva transcendental absoluta‖ – não se reduz a

uma Filosofia transcendental, ainda que absoluta. A diferença

entre esses pontos de vista está em que o Transcendental se opõe

ao Empírico enquanto distingue o que é ―a priori‖ do ―a

posteriori‖, o plano das condições transcendentais de

possibilidade da experiência da experiência mesma; ao passo que

o Especulativo puro não faz essa distinção e nem opõe o

Transcendental ao Empírico, mas, ao invés, compreende-os no

ato pelo qual, de um lado, o Espírito se manifesta como Ser-

consciente e, de outro, se concebe além do ser e da essência

meramente reflexivos e da simples Inteligência-que-se-pensa-a-

si-mesma in abstractu. O que, segundo a constatação de Hegel,

implica na descoberta de si do Absoluto como essência espiritual

que se põe a si mesma em movimento e que retorna a si enquanto

131 Ao que tudo indica, antes de Hegel (E., § 436 Ad.), Proclus foi o primeiro a

se colocar essa questão (ETh, § 160 ss.).

Filosofia, Reconhecimento e Direito 155

essência consciente132

; mas isso, sobretudo em função do

reconhecimento do Espírito como além da Razão e da

Substância133

, não pode a rigor ser considerado ao modo da

relação entre essência e aparência ou – como querem os

comentadores – a título de um monismo imanentista; mas, ao

contrário, enquanto o despertar-se do próprio Uno em seu

desenvolvimento henádico no âmbito do que se poderia chamar

Experiência pura134

. Algo que, no caso de Hegel, embora

tematizado na Fenomenologia do Espírito como Ciência da

experiência do Ser-consciente, na Ciência da Lógica como

Filosofia especulativa pura e na Filosofia real enquanto

realização metafísica da Efetividade espiritual do Especulativo

puro, jamais fora explicitado.

132 Veja-se, a respeito, G. W. F. HEGEL, Phänomenologie des Geistes (1807),

Stuttgart, 1951, p. 321 ss. [ed. Glockner (SW, 2)]. Para facilitar a leitura,

além da paginação dessa edição original, também lançaremos mão da

numeração dos parágrafos utilizada na versão de Paulo Meneses

[Fenomenologia do Espírito, São Paulo: Loyola, 1992 (2 vols.)], baseada na

edição crítica de Hans Friedrich Wessels e Heinrich Clairmont (GW, 9), e

na versão de A. V. Miller (Phenomenology of Spirit, Oxford: Oxford

University Press, 1977) baseada na edição de J. Hoffmeister

(Philosophische Bibliothek, 114). Assim, de ora avante, citaremos a referida

obra pelas iniciais ‗PhG‘, seguida de ‗§‘ e do número dos respectivos

parágrafos, remetendo às referidas versões e (entre parêntesis) do número

da página correspondente na edição Glockner, precedida pela maiúscula ‗J‘

(de Jubiläumausgabe). De onde, para o caso em questão: PhG, § 418 ss. (J

321 ss.). 133 Ver, PhG, § 438 ss. [J 335 ss.]; ver também, E. § 159. 134 Para o desenvolvimento henádico do Uno, veja-se PROCLUS, ETh, §§ 21,

64, 114 ss., 119, 133 ss., 162 ss.; D. PSEUDO-AREOPAGITA, Dos nomes

divinos. Introdução, tradução e notas de Bento Silva Santos. São Paulo:

Attar, 2004, passim, sobretudo, p. 69 ss.; 171 ss. Para a origem da noção de

Experiência pura aqui a ser desenvolvida, ver PROCLUS, Commentary on

Plato’s Parmenides, trans. Glenn R. Morrow and John M. Dillon, – first

Princeton Paperback printing, with corrections – Princeton: Princeton

University Press, 1992, VII, 1233 ss. (p. 573 ss.); N. CUSA, A visão de

Deus. Tradução e introdução de João Maria André. Lisboa: FCG, 1988.

Confronte-se ainda: PhG, §§ 800-802 (J 611-614) e Eth, §§ 49-56.

Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 156

No primeiro caso, Hegel nos diz que o Ser-consciente é o

Espírito-que-aparece135

e que esse é o Saber em devir136

a ser

apresentado pela Ciência da experiência do Ser-consciente; o

que significa dizer que o objeto da Fenomenologia do Espírito –

como Ciência autêntica do Espírito – não é senão a Experiência,

ou o Saber em devir, do Espírito mesmo enquanto esse aparece

ou devém a si e se reconhece a si mesmo como Ser-

autoconsciente; ocasião em que, ainda como Espírito-que-

aparece, mas cumprindo o programa fenomenológico em sua

inteireza, ele então se despojará de sua aparência em tornando-a

igual à essência; portanto, apreendendo a sua verdadeira essência

e, assim, designando a natureza do próprio Saber absoluto137

isto é, da Filosofia especulativa pura. No segundo caso, em

conseqüência do primeiro, não estamos mais nos limites da

experiência do Ser-consciente ou do Saber em devir – que como

tais se apresentam sob a forma de figuras espácio-temporais

evanescentes ou, ainda, por si mesmas inefetivas; mas sim –

como é forçoso reconhecer – no âmbito da experiência do Ser-

autoconsciente do Espírito, – do Saber puro que, como Saber

absoluto do Absoluto, não devém –, onde as simples figurações

fenomenológicas cedem lugar à configuração lógico-real do

Lógico puro e, por conseguinte, à Realidade espiritual como sua

efetividade. O que, embora num primeiro momento se apresente

como que no âmbito de uma estrutura reflexiva transcendental

absoluta, e por isso sob a forma de um ―a priori objetivo‖; na

medida em que esse ―objetivo‖ não se mostra aí meramente

135 Veja-se, Wissenschaft der Logik. Erster Band: Die objektive Logik

(1812/1813), herausgegeben von Friedrich Hogemann und Walter Jaeschke.

Hamburg: Felix Meiner, 1978 [GW, Band 12], p. 8, (de ora avante, citar-se-

á esse texto como segue: [para Erstes Buch: Die Lehre vom Sein (1812)]:

WL, I, 1, 1812, p. IX). Para Zweites Buch: Die Lehre vom Wesen (1813),

quando for o caso, seguiremos o mesmo procedimento: WL, I, 2, 1813, p.

xx. 136 No original, das werdende Wissen. Expressão utilizada apenas no Hegels

Selbstanzeige der Phänomenologie des Geistes, de junho-novembro de

1807: HEGEL, G. W. F. Phänomenologie des Geistes. Neu hrsg. von Hans-

Friedrich Wessels und Heirinch Clairmont. Mit e. Einl. von Wolfgang

Bonsiepen. Hamburg: Meiner, 1988, pp. 549-550. 137 PhG, § 89 [J 80].

Filosofia, Reconhecimento e Direito 157

como ―o que é em si e por si‖, um Universal abstrato ou em

geral, mas como ―o que é em si e para si‖, um Universal ativo138

,

que, como tal, ao se autoproduzir sob a forma de um ―a posteriori

objetivo‖, torna o racional efetivo e o efetivo racional139

; faz

emergir um novo plano do Real – o Real mesmo em sua

totalidade – que, como Realidade espiritual, não é mais a priori

ou a posteriori, transcendental ou empírico-formal, transcendente

ou imanente, mas tão só especulativo puro ou manente140

. Por

tudo isso, é inegável que haja experiência nesse plano

Especulativo puro, mas essa é aí Experiência pura; a experiência

real do Espírito consigo mesmo no plano das puras

determinidades de seu Ser-autoconsciente ou de sua divisão

imperiosa em ―diversos eus que em si e para si, e uns para os

outros, são perfeitamente livres‖141

.

Embora muito se tenha comentado sobre a relação entre

especulação e experiência em Hegel, até agora pouco se tem

avançado para além de um ponto de vista exterior à Coisa mesma

e que ainda é predominante nas pesquisas sobre o chamado

Sistema hegeliano; o qual, antes de tudo, constitui-se na

emergência mesma dos Conceitos da Filosofia especulativa pura

e do Elemento especulativo. Comecemos então, em um nível

extremamente introdutório, por considerar o que o próprio Hegel

nos diz a respeito; limitar-nos-emos às duas indicações que aqui

consideramos fundamentais – apresentadas respectivamente nas

Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie142

e no

Vorrede às Grundlinien der Philosophie des Rechts, repetida na

Einführung da Enzyklopädie der philosophischen Wissenschaften

im Grundrisse143

. Quando apresenta o Sistema do Idealismo

transcendental schellinguiano, Hegel o felicita por fazer emergir

mais uma vez a forma especulativa do pensamento – por captar a

unidade das determinações diferenciadas de infinito e finito,

causa e efeito, positivo e negativo, em cuja diferença o Ser-

138 E., §§ 20-24. 139 GPhR, J, p. 33; E, § 6. 140 Para a origem do conceito de Manência, veja-se, mais acima, nota 3. 141 E, § 436, Ad. 142 VGPh, III, J, p. 656 (ed. esp., p. 493). 143 Respectivamente: GphR, J, p. 33; E., § 6, A.

Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 158

consciente reflexivo ou natural inclinado ao metafísico

permanece144

. Infelizmente, para Hegel, Schelling não é

conseqüente – pois, em se fixando no ponto da indiferença do

subjetivo e do objetivo, se limita a pressupor o Conceito da razão

de um modo absoluto, sem demonstrar que isso é o verdadeiro e,

portanto, sem fundar a Identidade absoluta aí pressuposta no Eu

mesmo145

. Ora, Hegel nos diz que ―o especulativo é: ter a

oposição diante de si e dissolvê-la‖146

; isso implica numa

atividade permanente do Especulativo no sentido de dissolver

tudo que a ele se opõe (o que é reconhecido por Schelling), mas

como tudo o que se lhe opõe são as determinações dele próprio –

como tais, produzidas por ele mesmo –, essas tem que ser da

mesma forma por ele assumidas como tais (algo não reconhecido

pela filosofia schellinguiana); a qual, ainda para Hegel, coincide

com a filosofia de Platão e a de Plotino na medida em que se

limita a formular o princípio absoluto, sem nenhuma mediação

ou desenvolvimento147

. Desse modo, se levarmos em conta o que

se afirma na Doutrina da Essência148

, que no Absoluto mesmo

não há devir; pois ele é a Identidade absoluta – entendida como

identidade do interior e do exterior, ato de assumir as diferenças,

as determinações variadas e seu movimento ao mesmo tempo em

que as fazem desaparecer; a rigor, não poderemos considerar

especulação e experiência como dimensões separadas, mas tão

somente enquanto uma única e mesma realidade: a Realidade

espiritual.

Essa, como foi discutida mais acima, consiste na

efetividade mesma do Lógico puro; de onde apresentar-se como

Lógico-real. Por isso, como desenvolvimento especulativo do

próprio Especulativo puro, a Realidade espiritual embora se

mostre no tempo – de um lado como Espírito-que-aparece ou

Ser-consciente, de outro como Saber em devir ou Experiência do

Ser-consciente – é nela mesma sem devir; razão pela qual, a um

144 VGPh, III, J, p. 656 (ed. esp., pp. 493-494). 145 VGPh, III, J, p. 659 (ed. esp., p. 495 ss.). 146 VGPh, III, J, p. 656 (ed. esp., pp. 493): ―Das spekulative ist: den Gegensatz

vor sich zu haben und ihn aufzulösen‖. 147 VGPh, III, J, p. 667 (ed. esp., p. 498. 148 WL, I, 2, 1813, p. 217.

Filosofia, Reconhecimento e Direito 159

tempo, em suas puras determinadades conceituais, nem passa

nem aparece – mas, no âmbito de suas puras determinadades

conceituais, apenas se desenvolve. De onde, a partir de tal

realidade, não mais haver como tais aquelas determinações

diferenciadas próprias do Ser-consciente reflexivo ou natural

circunscrito a figuras espácio-temporais; ou mesmo a oposição

entre a priori e a posteriori (ainda que esse último seja

considerado segundo seu resultado próprio ou enquanto

dissolvido pelo primeiro), como ocorre na chamada Filosofia

transcendental absoluta. Eis aí, pois, o que Hegel exige de

Schelling quando da formulação da Identidade absoluta como

Indiferença por esse, o desenvolvimento da própria noção de

Experiência imediata149

; de modo a que, mais propriamente, o

que é aí concebido como Transcendental absoluto se conceba a

si mesmo como Especulativo puro e, assim, se realize como tal;

não apenas como figura espácio-temporal ou uma sorte qualquer

de ―a posteriori reflexivo‖, esse mero derivado da reflexão

exterior, mas como configuração lógico-real do que é, a um

tempo e desde sempre, racional e efetivo em si e para si. Se,

como quer Schelling, o princípio absoluto absolutamente idêntico

é não-objetivo; se o acesso ao mesmo, que é não-objetivo, é

inconcebível e inexprimível conceitualmente, só pode ser via

Intuição intelectual – que, para além da oposição entre Noumeno

e Fenômeno, consiste na Experiência imediata logo acima

aludida; ―de que modo é possível tornar a fazer objetiva esta

intuição, isto é, como é possível pôr fora de dúvida que não

descansa em um engano subjetivo, desde o momento em que não

existe uma objetividade geral daquela intuição, reconhecida por

todos os homens?‖150

. Esse, o problema que desde seus inícios

Hegel se propôs e que, não obstante, permaneceu sem solução;

de onde o seu repensar – na unidade da Especulação e da

Experiência – para além do limite fenômeno-lógico, no âmbito

do Lógico puro e seu desenvolvimento real ou efetivo.

A Experiência imediata de Schelling, como Intuição

intelectual, é já Experiência pura ou, igualmente, Intuição pura;

149 VGPh, III, J, p. 660 (ed. esp., p. 495). 150 VGPh, III, J, p. 660 (ed. esp., p. 495).

Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 160

como experiência pura do não-objetivo, essa experiência só pode

ser experiência de si mesma – bem entendido, experiência pura

de si mesma da Razão absoluta; a qual, por assim dizer, se intui

como Subjetividade absoluta ou como Espírito, de onde a

referida Intuição pura apresentar-se agora como Intuição

espiritual ou, ainda, como Experiência ativa151

. Desse modo,

como foi dito mais acima, o racional e o efetivo – o lógico e o

real –, mostram-se como um e apenas um e mesmo plano onde se

concentra todo o desenvolvimento especulativo do Especulativo

puro; do Um que é sem devir – e que é, portanto, além do ser e

da essência – mas que, ao fazer principiar o Real em suas puras

determinações conceituais, descobre-se, pois, a si mesmo nesse

real assim efetivo configurando-se como Realidade espiritual.

Tal é o que, como dito acima, Hegel sumarizou na segunda

indicação aludida – com a qual se sintetiza a relação entre

especulação e experiência segundo a qual o Ser-autoconsciente

do Espírito conhece a si mesmo no âmbito de suas puras

determinidades, cito: ―o que é racional é efetivo e o que é efetivo

é racional‖152

; onde por ‗efetivo‘ não devemos entender apenas o

Institucional – como a ―primazia da subjetividade de alto grau do

Estado face à liberdade subjetiva do indivíduo‖ ou como a

justificação da segunda tão só enquanto ela está inteiramente

integrada na ordem das instituições em sua contingência histórica

ou em sua positividade representada –, como querem autores do

porte de um Habermas e um Henrich entre outros153

; mas sim, e

sobretudo, o elemento ativo – atuante ou efetuante – do Racional

mesmo, que não seja senão o desenvolvimento lógico-real

daquilo que o próprio Habermas – no caso, a concepção kantiana

da Razão prática – designou como ―cognição sem

representação‖154

. Não simplesmente o produto da atividade

humana em contraposição à potencialidade aparente da matéria-

prima que se esconde por detrás do movimento das forças

151 PhG, §§ 801-802 (J 611-614); E., § 449 Ad. 152 GphR, J, p. 33; E., § 6, A. 153 Ver, J. HABERMAS, O discurso filosófico da modernidade, trad. Ana

Maria Bernardo [et al.]. Lisboa: Dom Quixote, 1998, p. 48 ss. 154 Veja-se, J. HABERMAS, A Ética da Discussão e a Questão da Verdade,

op. cit., p. 64.

Filosofia, Reconhecimento e Direito 161

naturais – pois, a simples atividade humana como tal não é ainda

por si mesma efetiva; mas tão somente o atuar da Razão sobre si

mesma produzindo-se a si mesma enquanto Efetividade do

Espírito, o que tende sim a conformar o que há de ativo na

atividade humana, mas isso apenas quando do reconhecimento de

si mesmo de cada Ser-consciente como Ser-autoconsciente do

Espírito que nele atua, o que implica a distinção dos dois planos

onde a Experiência imediata pode ser desenvolvida: o Fenômeno

e a Efetividade, o Reflexivo e o a Especulativo puro.

Talvez, por isso, Hegel visse por bem explicitar a

referida indicação – por seu ―caráter chocante‖ a muitos; razão

pela qual deve ser considerada como a expressão mais acabada

com a qual o filósofo de Berlim pretendeu dar conta do caráter

efetivo da vida do Espírito enquanto atuação do Lógico puro.

Com ela, Hegel pretendera esclarecer o caput do § 6 da

Enzyklopädie, onde distingue rigorosamente o Fenômeno – o que

é transitório e insignificante – e a Efetividade; essa, único e

idêntico conteúdo de toda forma de conscientizar-se, é o

conteúdo originariamente produzido – e produzindo-se – no

âmbito do espírito vivo, com o qual a experiência não só

concorda, mas constitui o elo fundamental – mediante o

desenvolvimento do conhecimento de sua concordância com a

Efetividade – da própria reconciliação da Razão autoconsciente

com a Razão essente, a Efetividade mesma. De acordo com

Hegel, quem separa a Efetividade (esse conteúdo da filosofia do

qual a experiência é o Ser-consciente mais próximo) e a Idéia (a

substância uma e universal) termina reduzindo a primeira à mera

realidade sensível e contingente, e a segunda a simples quimeras;

não percebendo que só no racional a efetividade é verdadeira e

que só a Efetividade verdadeira, desenvolvida, é Ser como

Sujeito, como Espírito. De onde, enfim, podermos distinguir a

experiência ligada ao mero fenômeno e a experiência como Ser-

consciente da Efetividade do Espírito; ou, o que é o mesmo,

respectivamente, a experiência da efetividade separada da Idéia e

a experiência da Identidade da Efetividade e da Idéia; em suma, a

experiência sensível ou formal e a Experiência pura, real e ativa.

Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 162

2.Nota sobre a Concepção especulativa do Direito e sua

atualidade

Se, como foi dito mais acima, por ‗efetivo‘ não devemos

entender apenas o Institucional enquanto limitado espácio-

temporalmente ou em sua contingência natural e histórica e sim,

sobretudo, o elemento ativo – atuante ou efetuante – do Racional

mesmo; o Institucional não poderá ser mais que o resultado da

atuação e da efetuação do Especulativo puro ele mesmo e, desse

modo, algo efetivamente livre, portanto capaz de informar o

conteúdo próprio das diversas representações institucionais que

tornam possível o convívio humano nos limites do espaço-tempo

e a relação dos homens com a natureza em seus distintos níveis e

modos. Disso também resulta que a mediação institucional e o

reconhecimento intersubjetivo não sejam meros produtos da

atividade humana socialmente organizada ou lingüisticamente

mediada em contraposição à simples atividade humana

individual como tal, consciente ou autoconsciente; pois, em

qualquer um desses casos já se está pressupondo a mediação

institucional e o reconhecimento intersubjetivo enquanto

condições da figuração fenomenológica e da expansão espácio-

temporal de algo como indivíduos, linguagem e sociedade –

tornados possíveis tão só enquanto representações institucionais

tanto nos limites subjetivos do mundo da vida quanto nos limites

objetivos do mundo ―para nós‖. De fato, a tarefa da mediação

institucional e do reconhecimento intersubjetivo não é senão a

mediação dessas duas esferas finitas – respectivamente, daquilo

que nelas há de idêntico e de diferente – em dotando-as dos

mesmos mecanismos, procedimentos e meios mais adequados ao

pleno cumprimento de seus fins.

Pois bem, se a tarefa da mediação institucional e do

reconhecimento intersubjetivo se põe real e não apenas

formalmente enquanto mediação dessas duas esferas finitas – a

saber, o mundo da vida de cada um e seu alargamento em um

mundo como ―sistema de referências possíveis‖, de um lado, e,

de outro, o mundo como realidade representada ou ―para nós‖;

então se colocam de imediato as seguintes questões em torno dos

limites e do alcance dessa mediação. (1) Se mediação

Filosofia, Reconhecimento e Direito 163

institucional e reconhecimento intersubjetivo não são produtos

da atividade humana socialmente organizada ou lingüisticamente

mediada, mas seus pressupostos – em que consistem tais

pressupostos: são eles (a) concomitantes às esferas mediadas e

nelas se mostram sob o modo de sua forma imanente; (b)

anteriores lógica e ontologicamente a elas e se põem como seu

princípio a priori e objetivo sob a forma de uma estrutura

intersubjetiva absoluta; ou (c) se constituem a posteriori como

uma espécie de ideal a ser perseguido a partir da perspectiva

aberta pelo mundo da vida de cada um e de seu alargamento em

um mundo como ―sistema de referências possíveis‖? Poderiam

eles (d) consistirem numa atividade espiritual determinada em si

e para si – livre de determinações causais; cujo desenvolvimento

necessário se diferencia em múltiplos eus livres, positivo-

racionais ou lógico-reais que, em seu aparecer consciente, tomam

consciência do mundo como realidade representada ―por nós‖ e

―para nós‖ na medida mesma em que o instituem e o mostram

como representação institucional e nele a si mesmos enquanto

seres representados institucionalmente e assim reconhecidos

como livres e iguais; mundo esse – natural e cultural ou

individual e social – possível apenas enquanto circunscrito

espácio-temporal e lingüisticamente a instituições histórica e

comunitariamente legitimadas? (2) Se, a despeito das anteriores,

essa última opção pode ser afirmada, caberia ainda interrogar

pela medida mesma pela qual a mediação institucional e o

reconhecimento intersubjetivo se põem enquanto condições da

figuração fenomenológica e da expansão espácio-temporal de

algo como indivíduos, linguagem e sociedade; bem como da

possibilidade desses enquanto representações institucionais tanto

nos limites subjetivos do mundo da vida quanto nos limites

objetivos do mundo ―para nós‖?

Para explicitar melhor esse ponto, um excurso pela

origem do conceito de Instituição aqui posto em cena e seu

desdobramento na noção de representação institucional se faz

necessário. A rigor, o conceito de Instituição aqui em jogo,

embora tenha sua origem nos diversos modos pelos quais Hegel

termina por lidar com esse conceito e sua efetividade, não pode

ser dito ou tomado como algo desenvolvido pela filosofia

Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 164

hegeliana ou que essa dele tenha se tornado consciente; exemplo

disso, conforme nos relata Riedel, é o fato de Hegel se limitar ao

uso corriqueiro da palavra ‗instituição‘ tal como ela ocorre na

língua155

. De acordo com Riedel, podemos aí distinguir duas

acepções do termo ‗instituição‘: (a) uma, a mais restrita, que tem

a ver com as determinações do direito romano – no caso,

segundo seu contexto originalmente jurídico, "a pátria potestade

romana, o matrimônio romano", enquanto fundamentos dos

conceitos do direito privado romano; essa acepção, para Riedel,

nasce deste contexto de exemplos que compreende o âmbito do

"direito abstrato" e, assim, no processo sistemático da formação

conceitual da filosofia do direito, efetiva-se nas determinações de

propriedade e contrato como instituições fundamentais156

. A

outra acepção, a mais ampla (b), apresenta-se para Riedel no

contexto lingüístico da Eticidade e da sua relação com o "direito

do Estado"; onde, talvez por seu significado mais vasto, Hegel

não usa mais a expressão latinizante [Institutas], mas a substitui

com o equivalente alemão "Einrichtung" (ordenamento ou

Instituição), cujas referências são justamente os "conteúdos

consolidados" do Ético e as "potências éticas" que escapam às

preferências e opiniões subjetivas de cada um e se constituem

como "leis e Instituições (Einrichtungen) que são em si e para

si"157

. Riedel parece compreender a passagem da primeira

acepção à segunda ou a mediação entre elas a partir da Idéia

mesma da Liberdade, que, segundo ele, para Hegel, é "real"

apenas após a crítica ao direito historicamente delimitado das

instituições ou dos elementos operativos do Direito privado (na

Moralidade) e após a sua suprassunção no Conceito e no ser-aí

155 Ver, M. RIEDEL, Dialética nas instituições. Sobre a estrutura histórica e

sistemática da Filosofia do Direito de Hegel. Tradução portuguesa de

Selvino José Assmann da versão italiana: Dialettica nelle istituzioni. Sulla

struttura storica e sistematica della Filosofia del Diritto di Hegel. In:

CHIEREGHIN, Franco (org.) Filosofia e società in Hegel. Trento, Quaderni

di Verifiche 2, 1977, pp. 35-60. Versão eletrônica, URL =

<http://www.cfh.ufsc.br/~wfil/riedel.htm>, disponível desde agosto de

2001, acessada em março de 2006, seção I. 156 Ibid. 157 Ibid.

Filosofia, Reconhecimento e Direito 165

da Eticidade; a qual, não obstante sua consideração ―como o

‗bem vivente, que tem na sua autoconsciência a sua realidade, e

como tal encontra no ser ético o seu fundamento em si e para si e

o fim motor‘ (§142), tem necessidade da configuração histórica‖

e de uma expressão lingüística que ―nada mais é que um

‗desenvolvimento das relações que são necessárias [enquanto

elementos constitutivos] no Estado para efeito da Idéia da

Liberdade, e, portanto, reais em toda a sua amplidão‘"158

. O que,

embora extremamente alvissareiro, ao limitar-se à esfera do

Espírito objetivo deixa como que na sombra o modo como aí –

no Espírito objetivo – as Instituições vieram a instituírem-se a si

mesmas, ainda que nos limites das acepções aludidas; bem como

a mediação entre as mesmas e a distinção da última e de seu

aparecer fenomênico ou espácio-temporal.

Desse modo, há que se reconhecer que no

desenvolvimento hegeliano do conceito de Instituições falta

justamente a perspectiva da autonomia das mesmas enquanto tais

primeiramente levada a cabo por Arnold Gehlen; cujo ponto de

partida, como Apel já reconhecera159

, é justamente a tematização

hegeliana. Segundo Gehlen, citado por Apel, uma Instituição é

―toda cristalização e autonomização de nosso trato

comportamental com o mundo exterior e com os outros,

adequadas para atribuir a nosso comportamento uma consistência

externa capaz de estabelecer compromissos‖ que, de um simples

meio ou instrumento para elaboração de algo, ―acaba por se

transformar em um fim de si mesma‖160

. De modo mais estrito,

retomando Ilse Schwidetzki, no verbete Antropologia da

Enciclopédia Fischer, Gehlen afirma que as Instituições são

modelos de comportamento que (1) se fixam como tais de modo

a aliviar o indivíduo da sobrecarga das decisões e a orientá-lo

através das impressões e estímulos que inundam seu ser aberto ao

158 Ibid. 159 Veja-se, A. GEHLEN, Urmensch und Spätkultur, Bonn, 1956, p. 9; pp. 21 e

233. Apud, K. O. APEL, Transformação da Filosofia I: Filosofia analítica,

semiótica, hermenêutica, trad. Paulo Astor Soethe, São Paulo: Loyola,

2000, p. 243. 160 Veja-se, A. GEHLEN, Urmensch und Spätkultur, Bonn, 1956, p. 9; p. 68.

Apud, K. O. APEL, Transformação da Filosofia I, op. cit., p. 233.

Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 166

mundo; (2) se constituem como a lei de nossa vida de modo a

estreitar possibilidades e a constituir-se em um ponto de apoio

mútuo para a realização das mesmas, bem como de modo a

desencarregar o indivíduo para sua maior liberdade de

movimentação dentro de uma estrutura limitada; (3) se

determinam como o ethos da reciprocidade, que não é senão ―a

obrigatoriedade do convívio ordenado e as idéias orientadoras

pelas quais os homens estabelecem mais ou menos seu ambiente

e a si mesmos dentro deste obedecem à sua própria lei‖161

. Pois

bem, abstração feita dos limites ontológicos e epistemológicos da

postura de Gehlen, há que se reconhecer o grande mérito de seu

alargamento do conceito de Instituições para além de sua mera

aplicação nos limites do Direito stricto sensu e de seu esforço

para desenvolver a reciprocidade do comportamento como

fundamento da atitude humana; isso, de certo modo, a partir da

problemática moderna do Direito natural como Direito filosófico

ideal e de sua relação com o Direito positivo como tal enquanto

Ciência do Estado162

– em sentido diverso do de Hegel –

entendendo-se de ora avante como Instituições toda e qualquer

atividade passível de se tornar auto-referente e que, desse modo,

possa tornar-se autoconsciente; o que se funda na própria

retomada do problema da conexão entre as Instituições e a

constituição biológica do homem no sentido de que só as

Instituições são capazes de tornar possível ―a segurança e a

regulamentação recíproca do comportamento – que os resíduos

inseguros dos instintos não podem dar –, de maneira que se vive

dentro de estruturas estáveis, tal como o animal dentro de seu

ambiente‖163

. Para além das reflexões de Gehlen – e de sua

interpretação apeliana, que para salvar a Linguagem do âmbito

das instituições instituídas a toma como uma metainstituição164

–,

mas em se retomando a perspectiva hegeliana, agora assumindo

também o ponto de vista da autonomia das Instituições; isso

161 Veja-se, A. GEHLEN, Moral e hipermoral, trad. Margit Martincic, Rio de

Janeiro: Tempo brasileiro, 1984, p. 97 ss. 162 Veja-se, A. GEHLEN, Moral e hipermoral, op. cit., p. 49 ss.; p. 104 ss. 163 Veja-se, A. GEHLEN, Moral e hipermoral, op. cit., p. 97. 164 Veja-se, K. O. APEL, Transformação da Filosofia I, op. cit., p. 257 ss.

Voltaremos a esse ponto mais adiante.

Filosofia, Reconhecimento e Direito 167

implica no reconhecimento que as Instituições consistem no

resultado efetivo da atividade do Espírito livre e são, por

conseguinte, positividades racionais a um tempo lógicas e reais

nas quais o Espírito se cinde em múltiplos eus autoconscientes –

por isso mesmo noumenais e atemporais efetivamente existentes

– e se mantém a si mesmo sob a forma de uma comunidade ideal

que, como tal, prescinde de suas figurações espácio-temporais.

Ora, abstraindo-se aqui do ―nível mais realista‖165

de

Gehlen e do caráter meramente empírico-formal de suas

considerações, as quais, embora tenham como ponto de partida a

conexão entre as Instituições e a constituição biológica do

homem166

, na medida em que reduzem o Institucional ao

meramente cultural e tomam esse último como condição da

própria constituição natural do homem, terminam mais por opor

essas duas esferas que por dar conta de sua mediação real. Pois

bem, se as Instituições – mesmo que reduzidas ao cultural –

constituem-se como autônomas, ainda que essa autonomia se

limite ao ―nosso trato comportamental com o mundo exterior e

com os outros‖; o fato de se transformarem em um fim de si

mesmas implica que (1) a posição desse fim – das próprias

Instituições enquanto pressupostas geneticamente ou de seu

Conceito – e (2) sua realização como tal – a efetivação do seu

próprio Conceito anteriormente posto – não se constituam senão

como aquela estrutura intersubjetiva absoluta de um lado

pressuposta por Gehlen no plano de sua hipótese de trabalho do

homem enquanto ―ser atuante‖167

e, de outro lado, posta por V.

Hösle como a priori e objetiva; a qual, no entanto – para além da

Intersubjetividade e da Linguagem, que se apresentam a rigor

apenas enquanto instituições instituídas –, aqui se determina

como o Espírito intersubjetivo ele mesmo tanto em seu Conceito

quanto em sua efetividade. Isso porque, de um lado, se tem que

haver alguma conexão entre as instituições [tomadas enquanto

simples determinações culturais] e a constituição biológica do

homem, de duas uma: ou ambas as esferas são concebidas desde

165 Veja-se, K. O. APEL, Transformação da Filosofia I, op. cit., p. 243. 166 Veja-se, A. GEHLEN, Moral e hipermoral, op. cit., p. 97. 167 Veja-se, K. O. APEL, Transformação da Filosofia I, op. cit., p. 235.

Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 168

o início como opostas, situação em que sua conexão seria

meramente exterior ou empírico-formal, ou essa conexão se

funda em algo comum a ambas, que justamente por isso as

institui; de outro lado, em se partindo da segunda opção, isso que

institui a um tempo tanto a natureza quanto a cultura e faz delas

mesmas instituições – no caso, instituições instituídas –, se for

concebido como sendo algo a priori oposto ao a posteriori, algo

como um reino ideal de categorias e significados que se

manifesta na natureza e na cultura ou uma metainstituição,

respectivamente, a Intersubjetividade absoluta em Hösle e a

Linguagem enquanto medium intranscendível em Apel, as quais,

a rigor, como dito acima, se apresentam apenas enquanto

instituições instituídas – ou seu fenômeno, as representações

institucionais –, de fato, se confundirá com aquilo que ele próprio

institui e, assim, entrará em contradição consigo mesmo. Essa

confusão [das Instituições como Atos instituintes (o Conceito) e

das instituições como instituídas (a Efetividade)] não só

prescinde da distinção entre o a priori e o a posteriori ou do

Transcendental e o Empírico ou entre o pressuposto e o posto –

pois se mantém independente dela; como também e, sobretudo, a

instaura como um ponto de vista meramente limitante ou

circunscrito aos limites espácio-temporais.

De fato, se nos ativermos aos pontos de vista limitantes

fundamentais de toda a História da Filosofia – que como tais

sintetizam pelo menos o pensamento moderno e o

contemporâneo – segundo os quais (1) ―o homem é a medida de

todas as coisas‖, (2) ―o mundo é minha representação‖, (3)

―somente onde há linguagem, há mundo‖ e (4) ―os limites da

linguagem significam os limites de meu mundo‖168

; de modo

algum poderemos aceder ao plano Especulativo puro e à sua

168 Veja-se, respectivamente, (1) PROTAGORAS, apud D. LAERTIOS, Vidas

e doutrinas dos filósofos ilustres, trad. Mário da Gama Kuri, Brasília: UnB,

1988, p. 264 [cap. 8, 51]; (2) A. SCHOPENHAUER, O mundo como

vontade e como representação, op. cit., § 1, p. 9; (3) M. HEIDEGGER,

Erläuterungen zu Hölderlins Dichtung, – vierte, erweiterte Auflage –

Frankfurt a.M.: Vittorio Klostermann, 1971, p. 38; (4) L.

WITTGENSTEIN, Tractatus Logicu-philosophicus, trad. Luiz H. Lopes

dos Santos, São Paulo: Edusp, 1994, p. 244 (245) [P 5.6].

Filosofia, Reconhecimento e Direito 169

efetividade lógico-real – ao plano da liberdade efetiva, livre de

determinações causais –, que permanecerá para sempre um

postulado e, no melhor dos casos, objeto da crença subjetiva ou

de demonstrações meramente formais e abstratas. Pois bem, se

levarmos a sério o que esses enunciados enunciam, não

poderemos objetar seriamente contra o fato da Intersubjetividade

e da Linguagem, bem como aquilo que nelas têm lugar – as

representações, as categorias e os significados –, constituírem-se

apenas enquanto algo limítrofe entre o Ilimitado ou o Infinito e o

Limitado ou o Finito; no caso o mundo – tanto como

representado ou para nós quanto como sistema de referências

possíveis – e, dentro dele, a natureza e a cultura; isso quer dizer

que se a Linguagem é realmente um medium intranscendível, ela

só o poderá ser para aqueles que a pressupõem como medida

absoluta ou em si mesma como algo para nós, mas indiferente em

relação a si mesma como espírito vivo. Nesse caso, ainda que se

tome a Linguagem como metainstituição, ela só se apresentará

como uma instituição instituída entre outras no âmbito de uma

esfera determinada – no melhor dos casos, a esfera limitante – ela

mesma subordinada ao Ato que institui, ou limita e delimita; o

qual, ainda que se exprima linguisticamente, não é ou se torna

como tal subordinado ou dependente com relação à sua

expressão na Linguagem – ou, o que não é o mesmo, em

linguagem169

–, mas mantém a si mesmo livre das determinações

que – respectivamente – aí têm lugar ou ele mesmo produz.

Enfim, se a Linguagem é um medium, ela não poderá ser nem

superior nem inferior a isso que ela media; porém, justamente

por constituir-se em um médium, portanto como algo

intermediário entre dois extremos, ela será ao mesmo tempo

superior a um extremo e inferior ao outro – de onde, a um tempo,

seu duplo caráter de instituição instituída e de Instituição

instituinte ou, respectivamente, fato resultante de um processo de

instituição ou de um Instituir a ela superior e ato instituidor de

instituições derivadas.

Da mesma forma, agora para o caso da

Intersubjetividade, em levando a sério o que os enunciados acima

169 Sobre esse ponto difícil e ambíguo, veja-se, PhG, §§ 508 ss.; 520 ss.

Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 170

aludidos enunciam; ainda que a tomemos, juntamente com as

categorias e os significados, no âmbito de um reino ideal

ontologicamente real; isso não quer dizer que essas

determinações – como tais – constituam-se para além do limite

mesmo entre o Ilimitado ou o Infinito e o Limitado ou o Finito. A

posição de uma Razão objetiva – concebida como

Intersubjetividade ou identificada à Comunidade ideal dos

sujeitos constituintes de uma estrutura intersubjetiva absoluta –

que, como tal, se funda em um medium da idealidade; ao

implicar que, nesse medium, entre Subjetividade e

Intersubjetividade não possa haver diferença real ou sacrifício da

primeira em relação à segunda, mas apenas a prioridade desta em

relação àquela170

; não só dissolve o problema da mediação

institucional e do reconhecimento intersubjetivo em seu caráter

propriamente real, mas antes, dissolve também os próprios

sujeitos reais (mas não meramente naturais) em destituindo-os de

sua realidade constitutiva, a saber, de sua diferença como opostos

reais no interior mesmo da Estrutura intersubjetiva absoluta; por

fim, reduzindo-os, como seres ideais, àquilo que Schelling

denominara Indiferença absoluta171

, como tal, distinta e oposta à

oposição real. Neste sentido, ainda que o medium da idealidade

possa mediar as diferenças reais entre os sujeitos, o que se põe

com a distinção da esfera da Idealität e a da Realität como o

único modo de tornar possível a ação moral172

, surge um novo

dualismo – entre a esfera ideal que media e a esfera real na qual

estão os elementos mediados – que por seu turno não pode ter

lugar numa filosofia que se afirma enquanto monista; o que,

justamente por isso, torna o Idealismo objetivo da

Intersubjetividade tão somente uma posição que, embora afirme

uma realidade objetiva para além da consciência finita, ao

afirmar essa realidade objetiva apenas enquanto ideal, em

contrapondo-a à natureza como realidade objetiva real e à razão

finita como realidade subjetiva real, as quais se conformam em

170 Veja-se V. HÖSLE, Die Krise, op. cit., p. 230. 171 Veja-se, F. J. W. SCHELLING, Obras escolhidas, op. cit., pp. 48-49 ss.;

103-104 ss. 172 Veja-se V. HÖSLE, Die Krise, op. cit., pp. 221-222.

Filosofia, Reconhecimento e Direito 171

um mundo como totalidade finita necessária, põe-se meramente

como um dever-ser lógico-ideal e não já como ser efetivo lógico-

real. Enfim, se o mundo (no qual vivemos e no qual o Absoluto

se realiza) se apresenta em sua totalidade como necessário,

desdobrando-se sempre em graus superiores173

; o Absoluto que

nele se realiza não será mais que um Absoluto relativo174

, ele

mesmo oposto ao mundo e, portanto, carente de mediação.

Aqui se impõe o problema mais difícil de como se

mediam o Absoluto em sua absolutidade ou em sua liberdade

absoluta e o Relativo em sua relatividade ou em sua necessidade

e contingência relativas. Por exemplo, mesmo que o Absoluto se

realize no mundo contingente em que vivemos e que, exatamente

por isso, esse mundo se mostre como necessário – de modo

algum o Absoluto mesmo se tornará contingente ao passo que o

mundo deixará de sê-lo; afirmar isso ou aquilo não implicará

somente no necessitarismo do mundo, mas também no

relativismo mesmo do Absoluto. Se o Absoluto é absoluto e se o

mundo é necessário, então o mundo tem que estar no interior do

Absoluto não só a título ideal, no sentido de um princípio a priori

objetivo, mas também a título real – fazendo valer aí as

diferenças reais entre natureza, espírito subjetivo, espírito

intersubjetivo e espírito objetivo –, no sentido de um

autodesenvolvimento interior do próprio Absoluto, do lógico-real

ou do Especulativo puro, a um tempo: Sujeito-Objeto ou Ser-

autoconsciente e Sujeito-Sujeito ou Comunidade ideal do

Espírito; por isso, em sendo assim, o Absoluto tem que se

apresentar como unidade absoluta da Idéia e do Espírito – mais

precisamente, da Idéia absoluta e do Espírito absoluto – ou como

a perfeição absoluta do que é livre e do que aparece livremente,

para além de toda a imperfeição circunscrita no dever-ser e na

aparência. Esses, dever-ser e aparência, embora possam se

mostrar como necessários, só o são em função da necessidade da

contingência ou do aparecer; nos quais as determinações lógico-

reais do Absoluto se refletem ou se dão a conhecer enquanto

representações institucionais que, como tais, nos permitem

173 Veja-se V. HÖSLE, Die Krise, op. cit., p. 232. 174 Veja-se V. HÖSLE, Die Krise, op. cit., pp. 218-219.

Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 172

distinguir algo como o Finito e o Infinito, o Limitado e o

Ilimitado, o fenomenal e o noumenal e assim por diante, ao

infinito; mas isso, sem que os reflexos ou as aparências do

desenvolvimento lógico-real do Absoluto interfiram nesse

desenvolvimento. Eis aí o ponto exato em que não só tocamos o

limite do Limitado ou Finito, chamado Real, e o Ilimitado ou

Infinito, por seu turno designado Ideal – em constatando, ao

mesmo tempo, a identidade formal entre o Real e o Ideal,

enquanto os opostos que nele se opõem, e a oposição pura dos

mesmos enquanto apenas nesse limite estão postos; mas também

o ponto em que o suprassumimos juntamente com a identidade

formal e a oposição pura – em ultrapassando-o, assumindo-o,

retomando-o e desenvolvendo-o tal como o medium

propriamente dito ou a identidade real dos opostos nele postos,

inclusive a identidade formal e a oposição pura – no interior do

próprio Absoluto. O que, já em seus Jenaer Schriften, Hegel ele

mesmo já se pusera como tarefa explicitar; isso, no sentido da

afirmação da Identidade absoluta que suprassume ou põe os

opostos como reais no interior do próprio Absoluto175

, tal como

aqui reivindicada.

Pois bem, se o Absoluto é realmente absoluto e se em seu

interior o Ideal e o Real estão postos como opostos reais numa

Identidade absoluta ela mesma real, onde a oposição real é

suprassumida de modo que, segundo sua mediação, os opostos

estão postos como reais no Absoluto mesmo e o Absoluto neles;

então, não há um terceiro ao lado de Sujeito e Objeto que deles

seja distinto a título de um ideal em oposição a um real ou que,

como elemento mediador das relações entre os indivíduos, se

constitua como algo para além dos próprios indivíduos e deles

também seja distinto a título de medium ideal oposto aos

extremos reais por ele mediados. A necessidade de um mediador

que se distinga dos elementos mediados não só destrói a

autonomia desses enquanto opostos reais, mas também, a um

tempo, destrói a própria unidade perfeita resultante do processo

175 Veja-se, G. W. F. HEGEL, Differenz des Fichteschen und Schellingschen

Systems der Philosophie, in: Werke, 2. Jenaer Schriften (1801-1807), op.

cit., p. 96 ss.

Filosofia, Reconhecimento e Direito 173

de mediação e a mediação mesma como resultado do

reconhecimento recíproco dos opostos como tais entre si em sua

automediação ou em sua mediação recíproca; o que implica no

fato de, se os opostos reais mediam-se a si mesmos, eles não só

mantêm a sua realidade a um tempo real e ideal, bem como a sua

liberdade em relação às determinações causais e à sua limitação

espácio-temporal, como também, sobretudo, se reconhecem a si

mesmos – cada um por seu turno a si mesmo e ao outro ao

mesmo tempo – como desenvolvimento lógico-real do próprio

Absoluto no qual ambos têm e mantêm sua realidade efetiva

(Wirklichkeit) para além de sua realidade aparente (Realität).

Neste sentido, se a mediação dos opostos reais se processa

mediante o reconhecimento recíproco puro entre si dos próprios

opostos reais no Absoluto, então essa mediação – enquanto

medium absoluto– não será senão o Ato mesmo pelo qual o

reconhecimento recíproco puro se institui como tal,

estabelecendo-se, por fim, como Ato de instituir ou como a

própria Instituição em ato; a mediação institucional que, como

tal, identifica-se com o reconhecimento recíproco na medida em

que, como uma e a mesma Coisa ou, o que é o mesmo, enquanto

momentos lógico-reais – a forma e o conteúdo de uma única e

mesma atividade – da atividade do Especulativo puro. Essa

atividade, enfim, como positividade racional, institui os

indivíduos como tais no ato mesmo de seu reconhecimento

recíproco, concebendo-se assim como Universalidade ativa – ao

mesmo tempo: Universal, Particular e Singular; com isso, ela não

só os permitem conceberem a si mesmos como livres, mas

também os determina – assim como à linguagem, à sociedade,

etc. – enquanto representações institucionais que, como tais, os

limitam subjetivamente no âmbito do mundo da vida e

objetivamente no plano do mundo ―para nós‖; de onde sua

figuração fenomênica e sua expansão espácio-temporal.

Independente do estado de consciência do indivíduo

que as representa em relação a elas mesmas, ‗mundo da vida‘ e

‗mundo representado‘ ou ‗mundo para nós‘ são casos típicos de

representações institucionais: a primeira, embora existente desde

os gregos, só se torna consciente para o indivíduo – mas não

Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 174

enquanto representação institucional – a partir de Husserl176

; a

segunda, por sua vez, mas nos mesmos termos da primeira, ainda

que atuante desde Bacon e Descartes, só se torna plenamente

consciente em Hegel e Schopenhauer. Enquanto representações

inconscientes, o ‗mundo da vida‘ e o ‗mundo representado‘ ou o

‗mundo para nós‘ mostraram-se respectivamente como o

fundamento e o modelo das duas concepções de universalidade a

que até hoje o homem acedeu; as quais, apesar de permanecerem

atualmente opostas e em crise, fundaram por seu turno – cada

uma em seu tempo – a forma do pensamento político-jurídico à

qual o Direito deveria se esforçar por desenvolver: a saber, nas

palavras de Lima Vaz, a universalidade nomotética e a

universalidade hipotética177

. Ora, se o mundo da vida antigo e

medieval se identificara como o Cosmos natural, apresentado sob

a forma de uma ordem supostamente manifesta e na qual o

nómos ou a lei da cidade se apresenta como ―o modo de vida do

homem que reflete a ordem cósmica contemplada pela razão‖178

;

e se o mundo ―para nós‖ dos modernos e contemporâneos se

identifica com uma construção do sujeito –transcendental,

fenomenológico, etc. – que, como tal, pouco a pouco vai

liquidando definitivamente o Cosmos natural do homem antigo,

mas em seu lugar põe apenas os fenômenos naturais e suas leis

formais ―cujo fundamento permanece oculto e requer uma

explicação a título de hipótese inicial não verificada

empiricamente e que deve ser confirmada dedutivamente pelas

suas conseqüências‖179

; então, a universalidade nomotética e a

universalidade hipotética – na medida em que permanecem

opostas e em crise – não podem ser senão suprassumidas em um

176 Veja-se, E. HUSSERL, A crise da humanidade européia e a filosofia,

Introdução e tradução de Urbano Zilles, Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996, p.

76 ss. 177 Veja-se, a respeito, LIMA VAZ, H. Cláudio. ―Ética e Direito‖, in: LIMA

VAZ, H. Cláudio. Escritos de filosofia II: Ética e Cultura, São Paulo:

Loyola, 1988, pp. 135-180. 178 Veja-se, a respeito, LIMA VAZ, H. Cláudio. ―Ética e Direito‖, in: op. cit.,

p. 146. 179 Veja-se, a respeito, LIMA VAZ, H. Cláudio. ―Ética e Direito‖, in: op. cit.,

pp. 146-147.

Filosofia, Reconhecimento e Direito 175

plano mais elevado que o Cosmos natural antigo e medieval e o

mundo representado moderno e contemporâneo. Contudo, para

isso, não basta aceder à consciência do mundo enquanto ―minha

representação‖ ou enquanto ―sistema de referências possíveis‖

dadas na e a partir da linguagem, etc.; há que se determinarem os

limites do mundo enquanto representação institucional,

delimitando-se aí, clara e rigorosamente, o Cosmos natural, a

Totalidade dos objetos representados e o Sistema de referências

possíveis – em sua necessidade intrínseca – enquanto momentos

da própria atividade do Espírito como Universalidade ativa que

compreende em si mesma a universalidade nomotética e a

universalidade hipotética.

O vir-a-ser-consciente de representações como ‗mundo

da vida‘ e ‗mundo representado‘ ou ‗mundo para nós‘ enquanto

representações pelos indivíduos que as representam ainda não é

algo comum mesmo nos dias de hoje; contudo, em se abstraindo

do mero senso comum, pode-se afirmar que o homem médio

contemporâneo vive naturalmente segundo representações, já

desligado quase que completamente do Cosmos natural antigo e

medieval. Essas representações – sejam elas expressões da

linguagem ou figurações espácio-temporais –, na medida em que

instituem uma determinada ordem natural, social, etc., que se

impõe como comum a certo número de sujeitos, justamente por

isso, instituem também os próprios sujeitos enquanto os põem

como tais nessa ordem comum; de onde a ordem aqui em questão

não ser nem anterior nem posterior a tais sujeitos, mas

concomitante com eles e, como eles, o resultado de uma e mesma

representação institucional. Isso significa que o mero ser-aí ou a

simples presença do que quer que seja só se constitui como

alguma coisa – seja um objeto, seja um sujeito, etc. – na medida

em que essa presença se tornar claramente delimitada e fixada

em seus limites constitutivos; portanto, distinta de outras

presenças mediante as quais e em relação às quais ela se limita e

se diferencia ao mesmo tempo em que reconhece isso nas outras

presenças e é reconhecida como tal pelas mesmas nesses limites

que são os seus. Tal é o que, doravante, enquanto

desenvolvimento interior da Efetividade do Espírito em seu

desdobramento intersubjetivo e em seu atuar instituinte, poderá

Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 176

designar-se rigorosamente mediação institucional e

reconhecimento intersubjetivo.

4. A guisa de conclusão: O Eu plural e a ordem normativo-

institucional

Apesar da multiplicidade das concepções e propostas

ético-políticas existentes nos dias de hoje, as quais disputam seu

lugar e seu direito à cidadania nos limites do pensamento pós-

metafísico, bem como dos esforços de cada uma para ir além do

hiato entre a autonomia individual e a necessidade de uma

comunidade ética universal; salta aos olhos a ignorância e

mesmo a desconsideração da verdadeira causa de fragmentação

do Espírito em nossa Época. Na verdade, a fragmentação do

Espírito e a afirmação de um pensamento pós-metafísico

parecem constituir os dois lados de uma mesma moeda e, por

isso, se mostram solidárias no que diz respeito à causa e à

conseqüência que lhes são comuns; respectivamente, a

hipertrofia das faculdades cognitivas humanas cada uma

exclusiva por si e a dissolução da Cidade subjetiva na qual cada

indivíduo é para si uma totalidade absoluta. Essa, como Espírito

livre, media-se negativamente consigo mesma no âmbito da

mediação institucional com o seu oposto – concebido como a

totalidade das totalidades absolutas que são cada espírito livre –

sob o horizonte da Cidade objetiva na qual e a partir da qual

todos os indivíduos são reconhecidos e se reconhecem

reciprocamente como membros da Comunidade ideal do

Espírito; a qual, ao mantê-los em sua integridade constitutiva

como pessoa, não dissolve a diferença existente entre os mesmos

nem a subordina a uma identidade formal meramente positiva ou

regulativa. Ao contrário, enquanto esfera lógico-real – como a

Idéia da Liberdade em si e para si, em seu Conceito e efetividade

–, apresenta-se a um tempo como normativa e constitutiva,

racional e institucional, como horizonte último de toda mediação

institucional e de todo reconhecimento intersubjetivo.

Por isso, ao determinarmos o lugar e a função de uma

Filosofia do Espírito intersubjetivo ou de uma Filosofia das

Instituições no âmbito da mediação entre o Espírito subjetivo e o

Filosofia, Reconhecimento e Direito 177

Espírito objetivo, concebemo-la como o vir-a-ser do Particular

ou a particularização mesma da Subjetividade absoluta nos

diversos Sujeitos relativos que, cada um a seu modo, se mostram

a um tempo como universais e particulares na relação infinita

consigo mesmo e na relação finita com os outros. Desse modo,

não só assumimos o elemento natural ―sem representação‖ que se

afirma como a realidade interna do Eu em sua expressão

lingüística; mas também o elemento natural representado, que se

afirma tanto no âmbito da natureza – interior e exterior – em

categorias objetivas epistêmica e ontologicamente validadas ou

em figuras fenomênicas a um tempo subjetiva e objetivamente

experimentadas, quanto na esfera exterior do Eu em sua

determinação extrínseca e em sua alteridade intersubjetiva. O

que, no entanto, não deixa de se constituir como simples

aparência contingente ou mero fenômeno – seja como

linguagem, representação, conhecimento a priori, etc., seja como

qualquer atividade levada a cabo no plano da distinção entre real

e ideal – da efetivação do Espírito enquanto Universal ativo; o

qual – Universal – se particulariza na multiplicidade dos espíritos

finitos livres de determinações causais espácio-temporais,

mediante os quais – em sua relação consigo e com os outros,

instituída pelo processo de mediação institucional e

reconhecimento intersubjetivo – concretiza sua própria

universalidade ativa em se singularizando sob a forma de uma

Comunidade ideal do Espírito; essa, ao se compreender como

Idéia da Liberdade, seu Conceito e sua efetividade, põe-se como

Cidade subjetiva que tem por horizonte de sua efetivação seu

retorno a si mesma enquanto Cidade objetiva, reintegrando-se em

si mesma como Espírito absoluto. Daí a necessidade da passagem

à esfera do Espírito objetivo, enquanto nela o Espírito subjetivo –

em sua pluralidade de Eus finitos livres – se suprassume a si

mesmo mediante o Espírito intersubjetivo, e se eleva ao Espírito

absoluto ou à sua comunidade absoluta consigo.

Essa elevação, enfim, ao se pôr como a tarefa e a obra

mesma do Espírito de uma época, na medida em que é

compreendida e expressa filosoficamente em toda a sua

profundidade e extensão, impõe que tal época se autocompreenda

como tal e se mostre assim precisamente determinada;

Agemir Bavaresco e Manuel Moreira da Silva 178

avançando, portanto, para o Ser-autoconsciente do Espírito que

nela se exprime. Entretanto, como a época presente ainda não

atingiu esse estágio, o que permanece na ordem do dia ainda é,

sobretudo, o problema do reconhecimento intersubjetivo; esse

que nos dias atuais, ao exigir para isso não mais uma mediação

indeterminada ou em geral, mas, mais precisamente, uma

mediação institucional determinada, não só exige o pleno

delineamento de seu princípio, mas, mais rigorosamente, que

esse se medeie a si mesmo e a época da qual é o princípio. O que,

embora se objetivando na esfera do Espírito objetivo – no

Direito, pelo Direito e a partir do Direito; ao se apresentar como

princípio dessa esfera, instaura-se como tal em uma esfera

própria – no caso, a esfera das Instituições como Ato de instituir

ou do Espírito intersubjetivo.

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