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Referenciais paraa Educao Profissional doSenacRio de Janeiro, 2002

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SENAC Servio Nacional de Aprendizagem Comercial Presidente do Conselho Nacional: Antonio Oliveira Santos Diretor-Geral do Departamento Nacional: Sidney Cunha Diretor de Operaes: Eladio Asensi Prado Editora Senac Nacional Conselho Editorial: Eladio Asensi Prado La Viveiros de Castro Luis Carlos Santa Rosa Mrcio Medalha Trigueiros Marlia Pessoa Vera Esprito Editor: Marlia Pessoa ([email protected]) Coordenao de Produo Editorial: Sonia Kritz ([email protected]) Elaborao de Contedo: Maria Helena Barreto Gonalves/DFP Joana Botini/DFP Beatriz Arruda de Arajo Pinheiro (Consultoria) Solange Maria Luan de Oliveira/DI Colaboradores: Elizabeth Real/DFP Izabel Miranda Garcia de Souza/DFP Lourdes Hargreaves/DFP Marcia Capella/DFP Shirley Moraes Pinto Nunes/DFP Sofia Roslindo Pimenta/DI Wania Regina Coutinho Gonsalez/DI

Programao Visual e Diagramao: Christiane Abbade e Rosana Ferreira Reviso: Elisa SankuevitzEste documento foi elaborado por grupo de trabalho constitudo por tcnicos das Diretorias de Formao Profissional e de Informaes do SENAC-DN.

Atendimento ao Cliente: Sidna Angela P. Silva ([email protected])SENAC. DN. Referenciais para a educao profissional do Senac /Maria Helena Barreto Gonalves; Joana Botini; Beatriz Arruda de Arajo Pinheiro et al. Rio de Janeiro : SENAC/DFP/DI, 2004. 80 p. ISBN: 85-7458-111-9 Educao Profissional; Senac; Qualificao Profissional; Mercado de Trabalho; Reforma do Ensino; Currculo; Desenvolvimento de Competncia; Recursos Tecnolgicos; Educao Distncia; Avaliao.Ficha elaborada de acordo com as normas do SICS - Sistema de Informao e Conhecimento do Senac.

Todos os direitos desta edio reservados ao Senac Nacional Av. Ayrton Senna, 5.555 CEP 22.775-004 Rio de Janeiro RJ Telefax: (21) 2136-5545 e-mail: [email protected] home page: www.senac.br Editora Senac Nacional, 2002

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Referenciais paraa Educao Profissional doSenac

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Introduo

A verso preliminar desse documento, intitulada Bases para a Reviso das Aes de Formao Profissional, data de maio/ 1994, quando foi referendada em encontro nacional com representantes de todo o Sistema Senac. 2 As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educao Tecnolgica esto, no momento presente, em fase de aprovao pelo MEC.

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O presente documento contm os referenciais que serviro de base para a elaborao dos projetos pedaggicos das diferentes unidades que integram o Sistema Senac. Os princpios que fundamentam esse conjunto de orientaes expressam a verso atualizada do Projeto Senac de Educao Profissional, publicado pelo Departamento Nacional, em 1995, no documento intitulado Formao Profissional Senac: uma proposta para o setor comrcio e servios.1 As linhas gerais para a elaborao deste documento foram definidas, de forma participativa, por integrantes do Comit Consultivo, constitudo por representantes do Departamento Nacional e dos Departamentos Regionais de Minas Gerais, So Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Gois, Pernambuco e Par. Esse comit foi institudo com o objetivo de operacionalizar o projeto de adaptao das linhas norteadoras da prtica pedaggica do Sistema Senac s tendncias do mundo do trabalho e aos dispositivos da Lei n 9.394/96, que regulamenta a educao profissional no pas. Os referenciais, objeto deste documento, foram traados com base em exigncias e necessidades apontadas por trs diferentes eixos. O primeiro deles, de natureza normativa, se refere nova institucionalidade da educao profissional garantida pela Lei n 9.394/96 Diretrizes e Bases da Educao Nacional e sua regulamentao, atravs do Decreto Federal n 2.208/97. Desse disciplinamento jurdico decorrem as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educao Profissional de Nvel Tcnico, institudas pela Cmara de Educao Bsica do Conselho Nacional de Educao, por meio da Resoluo n 04/99, nos termos do Parecer n 16/99.2 O segundo, de natureza conjuntural, diz respeito nfase na identidade e na utilidade dos cursos oferecidos pelo Sistema frente5

ao mundo do trabalho e ao compromisso da Instituio com a qualificao do trabalhador. Sobre essa questo oportuno frisar que no nos distanciaremos do propsito de ressignificar a noo de educao profissional para bem mais alm da dimenso estritamente instrumental, de enfoque centrado exclusivamente no desenvolvimento de competncias tcnico-operacionais. Nossas aes educativas expressam uma preocupao com uma formao mais abrangente, de natureza sistmica e totalizante do cidado trabalhador. O terceiro eixo, de natureza institucional, est relacionado ao comprometimento e ao empenho do Senac em dar resposta ao que est explicitado em sua misso desenvolver pessoas e organizaes para o mundo do trabalho atravs de aes educacionais e disseminao de conhecimentos em comrcio e servios, contribuindo para o desenvolvimento do Pas. Consideramos, portanto, que as bases conceituais que fundamentam a concepo de educao profissional ora proposta pelo MEC esto, em sua essncia, muito afinadas com os princpios filosficos que norteiam o projeto pedaggico em vigor no Senac desde 1994. A partir de ento, temos buscado formar profissionais que renam em seu perfil, alm dos conhecimentos de natureza tcnica, competncias e valores relacionados dimenso humana, essenciais vida e atuao consciente e participativa na sociedade civil. No entanto, reconhecemos que a implantao do modelo de competncias, nos moldes da legislao em vigor, supe, sem dvida, a reviso conceitual de algumas diretrizes pedaggicas definidas no documento antes mencionado Formao Profissional Senac: uma proposta para o setor comrcio e servios. Essa reviso remete para a necessidade de realizao de um duplo movimento que, a um s tempo, implica continuidade e aprofundamento das concepes defendidas naquela ocasio. Continuidade porque possvel, desejvel e coerente com esse novo modelo reafirmar os principais pressupostos filosfico-pedaggicos apresentados no documento. Reafirmar uma viso crtica da educao, isto , a compreenso de que a prtica educativa, embora seja socialmente determinada, pode contribuir para a transformao das relaes sociais, econmicas e polticas que a condicionam, na medida em que estiver comprometida com a formao de sujeitos capazes de atuar como profissionais competentes e cidados conscientes.

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Continua-se, portanto, a defender uma proposta pedaggica que, fundamentada numa concepo crtica das relaes existentes entre educao, sociedade e trabalho, inspire a implementao de uma prtica educativa transformadora e participativa, centrada na construo do conhecimento e na aprendizagem crtica e ativa de contedos vivos, significativos e atualizados. Nesse sentido, ficam inalterados os pressupostos tericos anteriormente definidos em relao aos conceitos de aprendizagem e de ensino. Isso significa referendar as teorias cognitivas da aprendizagem, entendida como um processo interno do indivduo, embora necessariamente interativo. o aluno que, por meio dos desafios proporcionados pelas trocas com seus colegas, professores e com os materiais didticos, constri seu prprio conhecimento. Significa, ainda, continuar a compreender o ensino como um processo organizado para favorecer essas trocas e propor desafios, buscando criar oportunidades para a sistematizao dos conhecimentos, para a reflexo e o aprofundamento da relao entre teoria e prtica. Permanecem, portanto, atuais as recomendaes de, ao selecionar os contedos de ensino, levar em considerao as seguintes dimenses: as teorias da aprendizagem, a realidade social e o estgio de desenvolvimento cognitivo dos alunos; o carter cientfico e sistemtico das informaes tratadas; o carter histrico dos fenmenos e processos estudados, alm, claro, de privilegiar, nessa escolha, aspectos relevantes para a vida social e para a prtica profissional dos alunos. importante ressaltar, tambm, a pertinncia das recomendaes gerais relativas seleo de mtodos de ensino, circunscritas criao de condies para que os alunos desenvolvam as capacidades de abstrao e reflexo sobre as atividades realizadas. Ainda que esse referencial mais geral seja mantido, a adoo do modelo de competncias implica, sem dvida, um aprofundamento das dimenses mais estritamente pedaggicas, na medida em que a prpria concepo de competncia proposta na legislao e, principalmente, as mudanas introduzidas no plano da organizao curricular colocam novas questes para a prtica docente. Por fim, e considerando que as mudanas no mundo do trabalho ocorrem com extrema velocidade, apontamos para a necessidade de pesquisa constante junto ao mercado para que a oferta de cursos, bem como suas estruturas curriculares, no fique defasada, mas esteja alinhada com a postura estratgica da Insti7

tuio, que tem como foco a proatividade. Assim como nosso projeto pedaggico nunca estar pronto e acabado, tambm as tendncias do mercado de trabalho devem ser alvo de constante questionamento por parte daqueles responsveis pela produo de materiais didticos, documentos tcnicos e pela organizao de cursos. Deve-se, tambm, criar mecanismos para envolver nesse questionamento a comunidade em geral e, principalmente, o cliente do Senac.

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Sumrio

TendnciasdoMundodoTrabalho AEducaoProfissionalnoContextodaEducaoNacionalEducao e Trabalho A Educao Profissional no Brasil A Reforma do Ensino dos Anos 90 Perspectivas

10 16 17 18 23 28 30 32 34 37 38 42 44 46 48 53 54 59 66 74

AOrganizaoCurricularnoModeloBaseadoemCompetnciasPerfil Profissional de Concluso Sistema Modular Desenho Curricular Desafios do Modelo de Competncias

FundamentaoFilosfico-PedaggicaContedos de Ensino: seleo e organizao Globalizao e Integrao: uma opo metodolgica A Pedagogia de Projetos Utilizao de Recursos Tecnolgicos Tecnologia na Educao Educao a Distncia Avaliao

Bibliografia

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Tendncias doMundodoTrabalho

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3 DRUCKER, Peter. O futuro j chegou. Exame, So Paulo, v.43, n. 6, p. 112 126, 22 mar. 2000. 4 Id. Ibid., p. 172 180.

As tecnologias da informao, em especial as redes virtuais de comunicao, tm ajudado a construir uma nova ordem econmica, na qual o conhecimento assume papel primordial. Esse novo momento redimensiona a demanda de trabalho e afeta diretamente os trabalhadores, pela intensa concorrncia que se efetiva por formas de racionalizao na produo e na gesto. Segundo Peter Drucker3, o impacto dessa nova economia que apenas comea a ser sentido est sendo gerado pela emergncia explosiva da Internet como importante canal de distribuio de bens, servios e, surpreendentemente, empregos na rea administrativa e gerencial. Na opinio do economista Gary Becker, uma das caractersticas da atual fase a crescente importncia que vem sendo atribuda s idias, hoje mais valorizadas do que os ativos fsicos. Nesse sentido, o diferencial de uma empresa no mais o seu avano tecnolgico rapidamente copiado pela concorrncia , mas a qualidade dos servios oferecidos. E o sucesso das pessoas que prestam servios cada vez mais depende da educao. Observa-se que a baixa escolaridade constitui fator restritivo ao ingresso no mercado de trabalho. Segundo o DIEESE (Departamento Intersindical de Estudos Econmicos), o prprio mercado revela s pessoas que, na atual estrutura econmica, as chances de se conseguir trabalho variam de acordo com a escolaridade. Nos ltimos anos tem-se verificado aumento na taxa de crescimento do emprego com maior exigncia de escolaridade, at mesmo em atividades simples. Um frentista, por exemplo, tem que, no mnimo, saber operar a mquina de carto de crdito e as bombas automticas, alm de servir aos clientes com qualidade. Ao contrrio de muitos pases, o Brasil s recentemente comeou a adotar medidas visando resolver antigos problemas educacionais, especialmente o alto nvel de repetncia e a evaso escolar no ensino fundamental. As providncias tomadas resultaram em significativo aumento de matrculas no ensino mdio. Segundo Andr Lahz, nos ltimos cinco anos houve um crescimento de 57% nas matrculas, o equivalente a um acrscimo de quase 3 milhes de novos alunos4. Isso mostra que o ensino mdio e o tcnico so os grandes desafios para a educao nos prximos anos. A exigncia do mercado por trabalhadores qualificados (com nveis mediano e alto de instruo), aliada escassez do emprego formal, vem acarretando significativas mudanas no mercado de trabalho, tais como: Mudana no perfil etrio da populao atualmente empre11

gada. Ao contrrio do que ocorria em momentos anteriores, a preferncia atual manifesta atravs da oferta de trabalho por trabalhadores mais velhos (e mais qualificados), em detrimento dos mais jovens, que adiam a entrada no mercado em busca de mais qualificao (Guimares e Campos, 1999). Tendncia reduo da oferta de emprego nos setores primrio e secundrio da produo. O setor tercirio, mais especificamente o setor de servios, analisado separadamente do comrcio5, tem sido o responsvel pela absoro de mo-de-obra concentrada nos segmentos de limpeza, hospedagem e alimentao. Aumento do grau de informalidade do mercado de trabalho brasileiro, observando-se um crescimento significativo dos empregos no segmento no-organizado, em detrimento daqueles oferecidos pelo setor formal da economia. Segundo o IBGE, o setor informal empregava, em 1997, 12 milhes de brasileiros, o que corresponde a 25% dos trabalhadores urbanos, concentrados, prioritariamente, nas atividades de comrcio, servios de reparao, pessoais, domiciliares e de diverso6. nfase na laborabilidade, em detrimento da empregabilidade na formao dos indivduos. Ou seja, valoriza-se mais o desenvolvimento e o aprimoramento de competncias e habilidades para o desempenho e a atuao profissional no mundo do trabalho, em detrimento da formao para ocupao de postos especficos no mercado de trabalho. Esses fatores considerados globalmente repercutem na estrutura das ocupaes alguns postos de trabalho deixam de existir, enquanto outros so criados e tambm sobre a qualificao dos trabalhadores. Matoso (1995) reflete sobre a insegurana gerada no mercado de trabalho, em funo dos elevados ndices de desemprego e das desigualdades dos indivduos frente situao de excluso temporria ou permanente do mercado, e aponta outros tipos de insegurana, decorrentes dos seguintes fatores: Enxugamento de pessoal, utilizao de trabalhadores eventuais e terceirizao de algumas etapas do trabalho; Variaes e falta de estabilidade dos rendimentos, uma vez que a flexibilizao das relaes de trabalho ocasiona disparidades salariais, muitas vezes no interior de uma mesma empresa; Relaes contratuais de trabalho, referentes s novas formas de negociao individual em detrimento da negociao coletiva, que forava o empresariado a assumir compromisso mais geral com os trabalhadores, de acordo com padres socialmente aceitveis de condies de trabalho. Decorre da o enfraquecimento12

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Ver artigo, TRABALHANDO contra o desemprego. In: Gazeta Mercantil, 28 maio 1999, referente s pesquisas realizadas pelo Seade/ Dieese. 6 Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 09 jun. 1999. Caderno de Economia. p.13.

SETOR de servios garante crescimento econmico. Gazeta Mercantil, 03 abr. 2000 Especial 80 anos, p. 54. 8 CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. 2. ed. So Paulo: Paz e Terra, 1999. v. 1, p. 226. 9 Id. Ibid., p.226.

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dos canais de negociao dos trabalhadores, afetando a sua participao no movimento sindical. Alguns autores consideram esse momento da economia como conseqncia da era ps-industrial, em virtude da reduo de postos de trabalho na indstria. Porm, no se pode simplesmente afirmar que os empregos do setor industrial vm caindo, sem levar em conta que muitos trabalhos da indstria, por reestruturaes organizacionais, so categorizados agora no setor de servios. Diferentemente daquilo que ocorre em outros lugares, os servios que crescem na regio metropolitana (que concentra a maior porcentagem da PEA Populao Economicamente Ativa) so aqueles originrios de demandas das indstrias, tais como consultoria, publicidade, direito, design e informtica. A rea de informtica ilustra bem o quadro de mudanas que redesenha a atividade econmica. Segundo Jos Anbal, secretrio de Cincia e Tecnologia de So Paulo, o estado deve receber 75% dos investimentos de empresas de informtica projetados no Brasil 7 Para Castells, o que mais distintivo em termos histricos entre as estruturas econmicas da primeira e da segunda metade do sculo XX a revoluo nas tecnologias da informao e sua difuso em todas as esferas de atividade social e econmica, incluindo sua contribuio no fornecimento da infra-estrutura para a formao de uma economia global.8 Por essa razo, aquele autor prefere chamar o perodo em foco de informacional. Ao alterar a nfase analtica do ps-industrialismo para o informacionalismo, Castells afirma que um fato bvio que a maior parte dos empregos nas economias avanadas localiza-se no setor de servios e que esse setor responsvel pela maior contribuio para o PNB [Produto Nacional Bruto]9. Mas ao afirmar isso, ele no quer dizer que as indstrias estejam desaparecendo ou que a estrutura e a dinmica da atividade industrial sejam indiferentes sade de uma economia de servios. Nas ltimas dcadas ocorreu no Brasil uma expanso dos empregos em servios, e tal fato possibilitou a absoro de trabalhadores oriundos do setor industrial. Contudo, o setor de servios tambm tem sido afetado pela reestruturao produtiva, o que acarreta uma reduo no ritmo do seu crescimento e uma ampliao dos ndices de desemprego. Os exemplos dessa afirmao se referem ao setor bancrio e privatizao do servio pblico. Castells tambm confirma que, se por um lado temos um aumento na demanda por profissionais superqualificados, por outro, a sociedade abre espao para a participao (via setor de servi13

os) de pessoas com baixo nvel de qualificao. Segundo o autor, o prognstico mais comum, original da teoria ps-industrial, prev apenas a expanso das profisses ricas em informao, como os cargos de administradores, profissionais especializados e tcnicos, no considerando o crescimento das profisses em servios mais simples e no-qualificados. A anlise feita por Castells esclarece e fundamenta o levantamento feito na pesquisa Banco de dados: trabalho e emprego atravs dos classificados10, onde fica evidenciado que algumas ocupaes para cargos administrativos e gerenciais exigem um altssimo grau de escolaridade, enquanto que a demanda por outras ocupaes exige uma srie de competncias gerais, apesar de um baixo nvel de escolaridade. Essas ltimas ocupaes, por mais que conservem o mesmo rtulo de um tempo atrs, sofreram mudana radical na natureza do trabalho exercido por seus ocupantes, apesar de a necessidade por qualificao mais ampla, em alguns casos, no estar refletida na exigncia do nvel de escolaridade, mas no domnio de determinadas competncias. O termo competncia tem sido aplicado educao profissional a partir das transformaes ocorridas no mundo do trabalho. No entanto, no existe consenso sobre essa noo, e ela tem sido utilizada em contextos diferenciados e com significados distintos. O modelo da competncia sugere que a qualificao de um indivduo est posta menos no seu conjunto de conhecimentos e habilidades, mas principalmente em sua capacidade de agir, intervir, decidir em situaes nem sempre previstas ou previsveis.11 Essa capacidade implicaria a mobilizao de competncias adquiridas ou construdas mediante aprendizagem, no decurso da vida ativa, tanto em situaes de trabalho como fora deste. O modelo da competncia confere grande importncia aos atributos pessoais do trabalhador. Dentre as qualidades pessoais atualmente demandadas, podem ser mencionadas12: esprito de equipe a necessidade do trabalho em equipe e a identificao com os objetivos da empresa constituem a base do esprito de equipe; responsabilidade refere-se ao esforo de fazer cumprir o compromisso assumido com a empresa; autonomia refere-se capacidade do trabalhador de se antecipar aos comandos das chefias e agregar voluntariamente vrias tarefas e intensificar seu prprio ritmo de trabalho; iniciativa definida como a disposio para assumir e14

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Esta pesquisa est sendo desenvolvida no Centro de Anlises, Estudos e Pesquisas (CAEP) Diretoria de Informaes, Senac-DN, e visa acompanhar mensalmente a demanda por ocupaes do setor tercirio, evidenciadas nos classificados de 18 capitais dos estados brasileiros Dados de 1999. (Foram registradas 93.581 solicitaes por profissionais). 11 Apud MANFREDI, Silvia Maria. Trabalho, qualificao e competncia profissional: das dimenses conceituais e polticas. Educao e sociedade, v.19, n.64, set. 1998, p.27. 12 Extrado de ARAJO, Ronaldo Marcos de Lima, As novas qualidades pessoais requeridas pelo capital. Trabalho & Educao, Belo Horizonte, n.5, jan./jun. 1999. p. 21 30. O trabalho resulta de um estudo de caso de carter exploratrio sobre o conjunto de atributos pessoais` hoje demandados aos trabalhadores pelas empresas que introduziram novas tecnologias organizacionais associadas ao paradigma da produo flexvel integrada. O contedo desses atributos foi definido a partir das falas dos trabalhadores, supervisores e gerentes da filial de uma multinacional e dos documentos fornecidos pela empresa. O autor adverte, nesse sentido, que dados os limites colocados para o estudo de caso no possvel generalizar, transpondo os resultados encontrados nesta pesquisa para todas as situaes fabris.

13 PAIVA, Vanilda. Desmitificao das profisses: quando as competncias moldam as formas de insero no mundo do trabalho. Contemporaneidade e Educao. Rio de Janeiro, v. 2, n. 1, maio 1997. p. 131 132. (grifo nosso).

desenvolver um trabalho de forma espontnea e rpida; capacidade de comunicao requerida por exigncia da responsabilizao grupal pela produo, de maneira a facilitar a troca de idias e opinies sobre um assunto at que se alcance o consenso ; flexibilidade constitui-se em uma reatualizao de valores, sob a tica empresarial; a capacidade do trabalhador de mudar hbitos arraigados; cooperao definida como uma disposio de trabalhar eficazmente com outras pessoas em um grupo; prontido de oferecer espontaneamente ajuda aos outros, sem tirar proveito da situao. A identificao com os objetivos da empresa reflete uma atitude de cooperao em torno dos seus objetivos; interesse e ateno so definidos como a vontade de dirigir os sentidos para situaes de aprendizagem ou trabalho durante certo perodo. Referem-se, ainda, valorizao da aprendizagem no trabalho pelo operrio. Considerando que a educao profissional entendida pelo Senac extrapola a simples correlao com o mercado de trabalho, uma vez que busca a formao do cidado, torna-se necessrio refletir sobre as conseqncias para o futuro trabalhador da adoo do modelo de educao profissional baseado em competncias. Nesse sentido, assim se manifesta Paiva13: no se trata apenas de qualificar para o trabalho em si, mas de formar para a vida na qual tambm se insere o trabalho nem sempre como foco fundamental da existncia, com uma flexibilidade e um alcance suficientes para que se possa enfrentar o emprego, o desemprego e o auto-emprego de modo a permitir rpidas reconverses e reprofissionalizaes ao longo da vida. Compreendido na perspectiva apontada por Paiva, o modelo das competncias, no mbito das instituies que atuam no campo da educao profissional, favorece uma articulao do mundo do trabalho com as diversas questes presentes na sociedade a questo do meio ambiente, por exemplo , de maneira a promover a construo da cidadania. O ganho e tambm o desafio educar o trabalhador, no sentido de atuar de modo participativo e ativo dentro e fora do mundo do trabalho, como profissional e, tambm, na condio de cidado consciente de seus direitos e responsabilidades e dos valores humanos que devem reger a vida em sociedade.

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AEducao Profissional noContexto daEducao Nacional

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EducaoetrabalhoA naturalidade com que hoje lidamos com a idia de que a insero no universo do trabalho pressupe a passagem por um processo de formao escolar mais dissimula do que explicita a compreenso da relao educao e trabalho. Essa compreenso, entretanto, fundamental, quando se trata de definir os princpios norteadores da prxis de uma instituio de Educao Profissional, consubstanciados nos seus projetos pedaggicos. Constituda no curso de um processo histrico, essa relao um fenmeno recente, consolidando-se com a Revoluo Industrial do sculo XVIII, a partir da Enciclopdia de Diderot e DAlembert, onde, informa Machado, aparece pela primeira vez descrito o quadro de ocupaes da poca e o que se deveria estudar para exerc-las.14 O tardio estabelecimento da vinculao entre educao e trabalho perfeitamente compreensvel, considerando-se as relaes sociais prprias das sociedades antiga e medieval. A esse respeito, assim se expressa Frigotto: nessas sociedades, essa relao era demarcada por um apartheid entre aqueles que eram cidados e os que eram escravos. O poder era supostamente predestinado e o cultivo do conhecimento era privilgio das classes dominantes.15 Por outro lado, fcil entender que o vnculo entre trabalho produtivo e educao seja contemporneo da fase inicial do capitalismo, modelo de produo onde a liberdade de mercado assume valor quase absoluto, baseado em valores, idias, teorias, smbolos e instituies, entre as quais se destaca a escola, como espao de produo e reproduo de conhecimentos, atitudes, ideologias e teorias que justificam o novo modo de produo (Frigotto, 1999). Sobre o fato de que a relao educao e trabalho tenha coincidido com o desenvolvimento capitalista, pode-se tambm argumentar que as prprias caractersticas do modo capitalista de produo seriam favorveis ao surgimento da necessidade de formao do trabalhador. Isso aconteceria porque esse modelo produtivo, alm de requerer adestramento mnimo da linha de produo, precisa contar com um quadro de gerncia e de superviso bem preparado. No causa estranheza, portanto, o fato de que a educao profissional tenha ficado, durante sculos, a cargo das universidades, responsveis pela preparao das classes dirigentes, dos17

14 MACHADO, Nilson Jos. Disciplinas e competncias na educao profissional. So Paulo, 2000. p. 13. Mimeogr. 15 FRIGOTTO, Gaudncio. Modelos ou modos de produo: dos conflitos s solues. Tecnologia Educacional, v. 29, n. 147. out./nov./dez. 1999. p. 8.

profissionais liberais, dos funcionrios das mdias gerncias e dos representantes da burocracia. Em contrapartida, da classe trabalhadora de linha de produo exigia-se o aprimoramento do fazer, das tarefas especficas que lhe eram atribudas, cuja aprendizagem se dava pela experincia, pela repetio, pela demonstrao. Essa situao estendeu-se at meados do sculo XX, quando as prprias empresas encarregavam-se de preparar o trabalhador nos chamados treinamentos em servio. Nesse contexto, a preocupao predominante era com o mximo de eficincia e rendimento do trabalho, o que levou Frederick Taylor (1856-1915) a realizar estudos sobre o tempo e at os gestos necessrios execuo de cada tarefa prpria da finalizao de determinado produto. Introduzidos pela primeira vez nas fbricas de automveis Ford, os estudos de Taylor ficaram conhecidos como taylorismo ou mtodo taylorista de produo. Na rotina desse trabalho extremamente especializado, acentuava-se a distncia entre o trabalho manual e o intelectual, entre o fazer e o pensar. Retirava-se do trabalhador qualquer possibilidade de intervir no processo de produo e sentir satisfao com sua atividade.

AEducaoProfissionalnoBrasilNo Brasil diferentemente da Europa at mesmo a formao profissional das elites foi um fenmeno tardio. Somente a partir de 1930 foi institudo o ensino universitrio no pas, com a criao das universidades de So Paulo, do Rio de Janeiro e de Minas Gerais. O acesso a essas escolas ficava restrito s classes economicamente favorecidas, que almejavam os ttulos de doutores e bacharis. Para a grande massa dos trabalhadores, a educao permaneceu restrita a decises de carter assistencialista, ou circunstanciais, uma vez que no havia qualquer poltica educacional definida. Pas de economia baseada na monocultura, mantida pela exportao de produtos agrcolas para as metrpoles, o Brasil tinha um sistema de produo inicialmente dependente de mo-deobra escrava e, posteriormente, dos colonos imigrantes, circunstncias que dispensavam qualificao profissional. A maneira discricionria com que foi tratada a questo da educao profissional no pas encontra-se muito bem docu18

So citadas, entre outras, a criao do Colgio das Fbricas, a construo de dez Casas de Educandos e Artfices, dos Asilos da Infncia dos Meninos Desvalidos, dos Liceus de Artes e Ofcios. 17 CONSELHO NACIONAL DE EDUCAO (Brasil). Cmara de Educao Bsica. Parecer n 16/99, aprovado em 05 de outubro de 1999. Documenta, Braslia, n. 457, p 3-73, out. 1999. 18 No perodo, so instaladas 19 Escolas de Aprendizes e Artfices, que se voltavam para o ensino industrial e eram custeadas pelo Estado. 19 CONSELHO NACIONAL DE EDUCAO (Brasil), op. cit. p. 35. 20 Id. Ibid., p. 36.

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mentada no Parecer n. 16/99 do Conselho Nacional de Educao (CNE). No curso de extensa anlise, o documento do CNE refere-se a um conjunto de medidas governamentais para o ensino profissional 16, enfatizando justamente o carter assistencial das polticas para essa modalidade de ensino, cujos propsitos, explicitados nos textos das leis de sua criao, eram amparar crianas rfs e abandonadas, a diminuio da criminalidade e da vagabundagem, o favorecimento dos rfos e desvalidos da sorte17. O esforo pblico no sentido de preparar operrios para o exerccio profissional s se torna efetivo no perodo de 1906 a 1910.18 quando o ensino profissional passa a ser uma atribuio do Ministrio de Indstria e Comrcio, consolidando-se uma poltica de incentivo ao desenvolvimento do ensino industrial, comercial e agrcola. Na dcada de 1920, uma srie de debates sobre a expanso do ensino profissional, promovida pela Cmara dos Deputados, daria uma nova tnica questo ao propor a extenso do ensino profissional a ricos e pobres, e no apenas aos desafortunados.19 Foi, contudo, somente na Constituio de 1937 que se tratou pela primeira vez das escolas vocacionais e pr-vocacionais como dever de Estado, que deveria ser cumprido com a colaborao das indstrias e dos sindicatos econmicos (classes produtoras), aos quais caberia criar na esfera de sua especialidade escolas de aprendizes, destinadas aos filhos de seus operrios e associados20. A dcada de 1930 pode, realmente, ser tomada como um marco referencial na histria da poltica da educao nacional. Nessa poca, iniciava-se o processo de industrializao do pas. Com a queda da bolsa de Nova Iorque e a conseqente crise do caf, era necessrio o esforo de produzir mais bens de consumo, que eram at ento importados. Essa fase, denominada substituio das importaes, levou criao de um maior nmero de escolas superiores para a formao dos recursos humanos necessrios s novas exigncias do processo produtivo. A determinao constitucional de encarar o ensino vocacional e pr-vocacional como dever de Estado (cumprido por empresas e sindicatos) teria favorecido a criao das Leis Orgnicas da Educao Nacional: do Ensino Secundrio (1942 ), do Ensino Comercial (1943); do Ensino Primrio, Normal e Agrcola (1946). Paralelamente, foram criados o Senai (1942) e o Senac (1946), visando formao de profissionais para a indstria e o comrcio. Embora tenham representado um esforo de sistematizao19

da poltica educacional brasileira, os textos das Leis Orgnicas da Educao Nacional mantm o carter dualista da educao ao afirmar como objetivo do Ensino Secundrio e Normal: formar as elites condutoras do pas21, cabendo ao Ensino Profissional oferecer formao adequada aos filhos dos operrios, aos desvalidos da sorte e aos menos afortunados, aqueles que necessitam ingressar precocemente na fora de trabalho22. Nesse contexto, a linha de ao de instituies como Senac e Senai baseou-se, durante muito tempo, no treinamento das tcnicas para preenchimento de postos de trabalho bem definidos, com nfase na preparao para o fazer, sem preocupao especial com o questionar, propor, criar, avaliar. Mesmo assim, as dcadas de 1930 e 1940 so um perodo representativo para o desenvolvimento da educao nacional: quando ela ganha organicidade e oferece condies de expanso de sua oferta. As medidas desse perodo, contudo, no implicaram uma ruptura com a antiga forma dualista de conceber a educao, mantendo o carter assistencialista da educao profissional. Segundo Bonamino, foi somente a partir do fim do Estado Novo, em 1945, com a entrada das massas no cenrio poltico, que se tornou possvel a quebra dessa estrutura dual. Uma srie de leis, decretos e portarias, de 1950 at 1960, constituiu, na perspectiva da autora, um avano na tentativa de unificao desses dois segmentos do sistema educacional. Essa unificao, entretanto, s se concretizaria no incio dos anos 60, com a flexibilizao e equiparao legal entre os diferentes ramos do ensino profissional, e entre este e o ensino secundrio, para fins de ingresso nos cursos superiores, embora, na prtica, continuassem a existir dois tipos de ensino com pblicos diferenciados. 23 Das anlises de Bonamino, pode-se deduzir que a mais estreita relao entre educao e trabalho experimentada, no sistema educacional brasileiro, justamente a partir da poltica instituda no perodo ps-64. Isso teria acontecido porque ao adotar um modelo de desenvolvimento baseado na associao com o capital internacional o pas, a essa poca, embora possusse um sistema industrial diversificado, equiparvel s economias centrais, ainda apresentava certa ineficincia na utilizao dos recursos disponveis e enfrentava obstculos para a adoo de inovaes tecnolgicas.24 Por essa razo, difundiu-se, no pas, a necessidade de vincular a educao aos planejamentos econmicos globais, como forma20

21 22 23

Id. Ibid., p. 36. Id. Ibid., p. 36. BONAMINO, Alicia. Polticas educacionais brasileiras. Rio de Janeiro, 1999. p. 5. Mimeogr. 24 Id. Ibid. p. 6.

de contribuir para o seu desenvolvimento econmico. E, para atingir essa meta, seria necessrio adequar a educao s necessidades de qualificao de mo-de-obra demandada pelo mercado de trabalho. Nesse contexto, foram realizadas a Reforma do Ensino Superior (Lei n 5.540/68) e, posteriormente, a Reforma do Ensino de 1 e 2 Graus (Lei n 5.692/71). As Leis ns 5.540/68 e 5.692/71, promulgadas num cenrio marcado por presses das camadas mdias por educao, representariam uma estratgia governamental no sentido de conter a forte demanda por ensino superior. Nesse sentido, a Lei n 5.692/ 71, em nome da necessidade de formao de tcnicos de nvel mdio, atribui ao ensino de 2 grau um carter de profissionalizao compulsria. Contudo, o objetivo de profissionalizao universal e compulsria atribudo ao ensino de 2 grau no apenas deixou de atender aos propsitos estratgicos da Lei n 5.692/71 como tambm acentuou a crise de identidade caracterstica desse nvel de ensino. As resistncias medida foram generalizadas. Houve resistncia por parte dos alunos, por no aceitarem de bom grado o acrscimo de disciplinas profissionalizantes em detrimento de outras que, segundo supunham, fossem necessitar no exame vestibular; resistiram os proprietrios de escolas privadas, pelo acrscimo de custos que isso representava; e os empresrios mostraram-se avessos a receber estagirios em nome da preservao da rotina de produo. J os professores, especialmente das escolas tcnicas federais, temiam pela desvalorizao do ensino tcnico que ofereciam, em funo de outras ofertas descomprometidas com a qualidade que sempre caracterizou essas escolas (Cunha, 1998). Essas circunstncias teriam contribudo para a desorganizao das escolas pblicas de 2 grau, tornando seus currculos um amontoado de disciplinas sem unidade. Desse modo, o ensino de 2 grau j no garantia uma base slida de conhecimentos gerais, o que, alm de comprometer o to criticado carter propedutico desse nvel de ensino, no lhe outorgava o status de nvel adequado profissionalizao. O fracasso da profissionalizao universal e compulsria do ensino de 2 grau culminou com a promulgao, em 1982, da Lei n 7.044, que extinguiu a obrigatoriedade da habilitao profissional nesse nvel de ensino. Convm ainda salientar que as reformas educacionais dos anos 70 tiveram inspirao na teoria do capital humano, que creditava educao o poder quase mgico de favorecer o desenvolvimen21

to das naes e a ascenso social dos indivduos. Essa teoria, surgida nos Estados Unidos e Inglaterra, nos anos 60, e no Brasil, nos anos 70, foi estruturada no mbito das teorias do desenvolvimento ou ideologia desenvolvimentista do ps-guerra, como parte da estratgia de hegemonia americana. Sistematicamente criticada por educadores e economistas,25 a teoria do capital humano influenciou a prpria prtica educativa. Esta, guisa de obter resultados mais imediatistas, passou a pautar-se por uma pedagogia fundamentada nos princpios da racionalidade e da eficincia que regem a lgica do mercado, dando ao trabalho escolar um carter acentuadamente tecnicista, que se materializava em propostas fechadas, restritas a uma aprendizagem para o saber fazer. Estimulados pelos ares dos movimentos que engendraram a abertura poltica, os anos 80 foram marcados por um conjunto de medidas educacionais, no estruturais, mas levadas a termo em experincias localizadas em diferentes regies do pas26. Aglutinadas em torno da defesa do ensino pblico de boa qualidade e da democratizao da educao, essas experincias voltavamse para a educao de crianas e jovens das camadas populares, com nfase na participao dos prprios interessados e das direes das escolas. Paralelamente onda de democratizao da educao, que se alastrava pelo Terceiro Mundo, a partir do incio da dcada de 1980, dava-se o acirramento de uma crise mundial e de seus impactos sobre o contedo, a diviso, a quantidade do trabalho e a qualificao do trabalhador. Esse estado de crise se manifestaria na coexistncia de uma economia ainda assentada na perspectiva do fordismo com a preponderncia das grandes fbricas, tecnologia pesada de base fixa, decomposio das tarefas, nfase na gerncia do trabalho, treinamento para o posto, ganhos de produtividade e estabilidade no emprego e a internacionalizao produtiva e financeira da economia capitalista, que se desenvolveu concomitantemente a uma radical revoluo tecnolgica. A reorganizao econmico-poltica internacional, associada ao uso intensivo de alta tecnologia nas empresas, comea a demandar uma elevada qualificao dos trabalhadores estveis, de quem se passa a exigir alto grau de abstrao, a capacidade de resolver problemas e de trabalhar em equipe. O fato de o capital depender de trabalhadores com essas competncias justifica-se em funo das novas caractersticas do pro22

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Para Frigotto, a debilidade terica e poltico-prtica da teoria do capital humano est em no compreender que as relaes econmicas so relaes de fora e de poder, e no uma equao matemtica como querem os neoclssicos e neoconservadores. Por essa razo, essa teoria no se sustenta em termos de conseguir aquilo que se propunha para as naes e os indivduos. Para ilustrar sua argumentao, o autor recorre matria do Jornal do Brasil, de 3/10/1993, onde Celso Furtado, analisando a relao crescimento econmico e renda, assim se pronuncia: durante 50 anos o Brasil cresceu mais do que qualquer pas do mundo, alcanou taxas de crescimento mais altas, 7% ao ano a cada 10 anos o PIB dobrava. Mas o pas fez isso acumulando misria. 26 Boa Esperana (ES), Blumenau e Lages (SC) e Piracicaba (SP) so exemplos de municpios onde foram realizadas experincias desse tipo.

cesso produtivo. Altamente informatizados e conectados por sistemas integrados, os processos de produo, em geral, passam a ser projetados com modelos de representao do real, e no com o real. Essa nova situao exige dos trabalhadores a capacidade de leitura de cdigos e lgicas complexas, a capacidade de anlise para gerir a variabilidade e os imprevistos, alm do desenvolvimento da competncia para o trabalho em equipe, uma vez que os problemas, devido conectividade que caracteriza os processos de trabalho, j no atingem apenas um setor, mas todo o conjunto. Esse processo, embora se d em grau e velocidade diferenciados, uma tendncia do sistema sociopoltico-econmico, criando um cenrio extremamente frtil para se pensar em reformas educacionais. E elas no se fizeram esperar.

AReformadoEnsinodosAnos90OContextoNa tentativa de dar conta das mudanas nas ltimas dcadas, vrios so os ajustes educacionais realizados em escala mundial. Em que pesem as diferenas nacionais, as tentativas buscadas tm em comum a afirmao de uma escolaridade bsica mais prolongada e a proposta de uma educao profissional mais abrangente e, portanto, para alm do adestramento nas tcnicas de trabalho. Uma outra tendncia generalizada nas polticas de educao profissional refere-se opo por uma organizao curricular com foco no desenvolvimento de competncias profissionais.27 A atual Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional confirma essas tendncias, na medida em que afirma o propsito de estender ao poder pblico a obrigatoriedade de oferta de ensino mdio como direito de cidadania. E nos seus artigos 39 a 42 concebe a educao profissional como integrada s diferentes formas de educao, ao trabalho, cincia e tecnologia, de modo a conduzir ao permanente desenvolvimento para a vida produtiva.28 Tambm no quesito organizao curricular, a atual legislao confirma os parmetros que passam a orientar as ofertas educacionais na nova ordem da economia mundial. Considerando o contexto poltico de elaborao da Lei n 9.394/96, no se pode deixar de pontuar que o incio de sua gestao, nos anos 80, coincide com uma avassaladora ascenso do neoliberalismo, promovida, em parte, pelo desmantelamento23

27 Essa uma tendncia mundial, que tem origem nos pases industrializados, tendo surgido no contexto das mudanas tcnicas e organizacionais, caractersticas das dcadas de 70 e 80. Para Leonard Mertens, o modelo curricular centrado no desenvolvimento de competncias tem como caractersticas principais tanto a sua orientao para a prtica quanto a possibilidade quase natural e contnua de insero da pessoa na vida produtiva, o que tornaria compreensvel que tivesse ganho fora justamente naqueles pases industrializados ( Frana e Inglaterra , por exemplo), onde era mais evidente a falta de articulao entre o sistema educativo e o processo produtivo. 28 BRASIL. Leis, Decretos. Da educao profissional [arts. 39 e 42]. In: _______. Lei n.9394/96 de 20 dezembro de 1996. Documenta, Braslia, n. 423, p. 569-586. p. 577.

da quase totalidade dos regimes socialistas e, por outra, pelo desmonte do estado de bem-estar social. Era ento considerada como imperativa a necessidade de reformas institucionais baseadas em polticas de menor regulamentao do mercado e, conseqentemente, de reduo das obrigaes estatais, para melhor alinhamento ao processo de globalizao. O campo da educao no ficou indiferente ao confronto entre o pblico e o privado, ganhando adeptos de todos os matizes ideolgicos em defesa de uma abertura no que tange ao papel do Estado, tido mesmo, entre muitos, como vilo, em face da precariedade de resultados de nosso sistema educacional (Costa, 1995). Para melhor entendimento dessa questo no se pode negligenciar o fato de que as reformas educacionais nos pases perifricos, da Amrica Latina e Caribe, foram realizadas sob orientao de organismos internacionais interessados nos rumos da economia desses pases. No caso brasileiro, sob recomendao do Banco Mundial o poder pblico deve priorizar investimentos no ensino fundamental29, que poder ser complementado por qualificao profissional de curta durao e baixo custo. No que concerne s aes de educao profissional, considerada processo prolongado e caro, a recomendao de que sejam repassadas, progressivamente, para a esfera privada (Kuenzer, 1999). Nos termos da legislao em vigor, j se faz sentir essa tendncia. As disposies legais atribuem s agncias de educao profissional autonomia para organizar os currculos de suas ofertas de cursos tcnicos, desde que tomem como referncia as Diretrizes Curriculares Nacionais, considerando seus respectivos projetos pedaggicos e as peculiaridades regionais. Ao poder pblico fica reservada a avaliao da qualidade de resultados, o que reflete, no mbito educacional, a mxima do Estado mnimo que caracteriza o pensamento liberal. Paralelamente, o fascnio pela possibilidade de melhor qualificao do trabalho e do trabalhador, embutida no conjunto das transformaes econmicas e tecnolgicas da contemporaneidade, favoreceu a revitalizao da perspectiva economicista de educao. Sob a constante afirmao de que vivemos hoje uma sociedade do conhecimento, reafirma-se, mais uma vez, o papel redentor da educao, numa verso atualizada da teoria do capital humano. Numa primeira leitura da atual legislao da educao nacional, a proposio de que os currculos devam pautar-se pelos perfis profissionais de concluso, favorecendo a delimitao mais clara24

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O ensino fundamental, na avaliao do Banco Mundial, seria o padro mnimo exigido para participao na vida social e produtiva, nos atuais nveis de desenvolvimento tecnolgico. Pesquisa encomendada por esse organismo conclui ser esse o nvel de ensino de maior retorno econmico.

de itinerrios profissionais, parece estar acenando para a superao da dualidade at ento caracterstica da educao no pas. No entanto, existem interpretaes menos otimistas referentes questo antes mencionada. Na percepo de Accia Kuenzer, por exemplo, os instrumentos legais que regulamentam a educao nacional, ao tratarem em separado os ensinos bsico e mdio e o ensino profissional, instituram dois sistemas paralelos de educao no pas. Desse modo, diz a autora, restabelecem-se as duas trajetrias sem equivalncia, negando-se a construo da integrao entre educao geral e educao para o trabalho, que vinha historicamente se processando nas instituies responsveis pela educao profissional, certamente mais orgnica nova realidade da vida social e produtiva.30

AsDisposiesLegaisA reforma da educao processada no Brasil a partir da Lei n 9.394/96 por meio dos dispositivos regulamentadores (Decreto n 2.208/97, Parecer n 16/99 e Resoluo n 04/99, da Cmara de Educao Bsica do Conselho Nacional de Educao) determina que so dois os nveis da educao nacional: a Educao Bsica, que corresponde s oito sries do Ensino Fundamental mais as trs sries do Ensino Mdio, e a Educao Superior. No que diz respeito Educao Profissional, tratada em captulo especial, no corpo da Lei, so trs os nveis de ensino: o Bsico, o Tcnico e o Tecnolgico. Os objetivos desses trs nveis ficaram assim definidos: o nvel bsico destina-se qualificao, requalificao e reprofissionalizao de trabalhadores, independentemente de escolaridade prvia. A escolaridade prvia necessria preparao e ao desenvolvimento de competncias referentes a algumas ocupaes de nvel bsico ser determinada pelas agncias educacionais, nos planos de curso das respectivas reas, observadas as exigncias requeridas pelo mercado de trabalho. O nvel tcnico destina-se a proporcionar habilitao profissional de Tcnico de Nvel Mdio a alunos matriculados ou egressos do ensino mdio, podendo ser oferecido de forma concomitante ou seqencial a este. Abrange, tambm, as respectivas especializaes e qualificaes tcnicas. O nvel tecnolgico corresponde a cursos de nvel superior, destinados formao essencialmente vinculada aplicao tcnico-cientfica do conhecimento. Sua especificidade consiste25

30 KUENZER, Accia. Educao Profissional: categorias para uma nova pedagogia do trabalho. Boletim Tcnico do Senac, Rio de Janeiro, v. 25, n. 2, maio/ago. 1999. p. 23.

no carter acentuadamente tcnico da formao oferecida, distinguindo-se do bacharelado, que possui carter mais acadmico. Alm desses trs nveis, a Educao Profissional compreende ainda os chamados cursos complementares: de especializao, aperfeioamento, atualizao. Para melhor compreenso do esprito da lei, remetemo-nos anlise da professora Marise Ramos, para quem a reforma da Educao Profissional assenta-se sobre trs lgicas fundamentais: a. a articulao da educao profissional com a educao bsica; b. formao realizada por reas profissionais mais amplas, transcendendo a estrita especializao; c. flexibilizao da oferta de cursos e dos itinerrios de formao profissional.31 A organizao curricular da educao profissional tem como princpio orientador a formao baseada em competncia, entendida, conforme os dispositivos que a regulamentam, como: capacidade de articular, mobilizar e colocar em ao valores, conhecimentos e habilidades necessrios para o desempenho eficiente e eficaz de atividades requeridas pela natureza do trabalho.32 Nos termos da legislao vigente, a estruturao curricular, alm de flexvel, marcada pela prtica pedaggica interdisciplinar e contextualizada, supe que a identidade dos cursos, antes conferida por matrias predefinidas, agora pauta-se pelos perfis profissionais de concluso, delineados em conformidade com as tendncias econmico-tecnolgicas do contexto produtivo.33 O foco da estrutura curricular no desenvolvimento de competncias, conforme proposto, cria perspectivas favorveis superao de uma pedagogia centrada na transmisso de contedos, quase sempre dissociados da prtica concreta de sujeitos que vivem uma sociedade complexa e altamente dinmica. Esse novo enfoque tambm estimulante por exigir dos profissionais de educao uma nova postura um maior envolvimento da comunidade escolar, e desta com os demais atores da educao profissional; a troca de saberes, assim como a permanente ateno s tendncias do mundo do trabalho. Impe, ainda, a necessidade de apropriao de metodologias que favoream a aprendizagem significativa, tanto sob a tica do trabalho quanto da prpria vida. Por outro lado, no se pode deixar de observar que a idia de currculos baseados em competncias, se no devidamente apropriada, poder levar a um pragmatismo estreito, regulado26

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RAMOS, Marise. Indicaes para adequao do projeto pedaggico do Senac atual legislao brasileira de Educao Profissional. Rio de Janeiro, 2000. p. 1. Mimeogr. 32 CONSELHO NACIONAL DE EDUCAO (Brasil). op. cit. 33 RAMOS, Marise. op. cit. p. 1

exclusivamente pela lgica de mercado. Isso resultaria em fragmentao do processo educativo e na volta a um tecnicismo j suficientemente condenado por no assegurar uma formao abrangente, com vistas no apenas ao saber fazer, mas ao saber ser, conforme proposto nos textos da atual legislao. Para efeito de entender os mecanismos de implementao do modelo curricular proposto, importante destacar a recomendao de que os cursos sejam organizados em mdulos, que podero ter terminalidade para efeito de qualificao profissional tcnica, dando direito, nesse caso, a certificado de qualificao profissional. Nos casos de mdulos sem terminalidade, devero ser emitidas declaraes de estudos. Os mdulos podero ser cursados em diferentes instituies credenciadas, desde que o prazo entre a concluso do primeiro e do ltimo mdulos no ultrapasse cinco anos. Para atendimento a esse dispositivo legal, todo conhecimento, mediante avaliao, pode ser aproveitado, inclusive aqueles adquiridos no trabalho, o que estabelece a prtica do aproveitamento de estudos, que no deve ultrapassar o prazo de cinco anos intermdulos. Quanto certificao, a lei estabelece que dever ser oferecida mediante avaliao de competncias, sob as seguintes chancelas: Declarao de Estudos para aqueles que conclurem mdulos sem terminalidade; Certificado de Qualificao Bsica, para o nvel bsico da Educao Profissional; Certificado de Qualificao Profissional Tcnica para quem concluir mdulos com terminalidade ou os correspondentes aos de auxiliares tcnicos existentes no mercado; Diploma de Tcnico, para aqueles que tenham concludo o nvel mdio de ensino. No que diz respeito aos valores, o Parecer n 16/99 do CNE afirma a Educao Profissional como uma prtica centrada nos princpios da igualdade de condies para o acesso e a permanncia na escola, da liberdade de aprender e ensinar, da valorizao dos profissionais de educao e dos demais princpios consagrados pelo artigo 3 da LDB para a educao em geral. Mas, considerando as especificidades e a identidade da educao profissional, o mesmo parecer destaca tambm os valores estticos, polticos e ticos como norteadores desse tipo de educao. Ressalta, entretanto, que esses valores s se faro concretizar mediante uma pedagogia centrada na atividade do aluno, na sua aprendizagem para um fazer com arte o fazer bem-feito o que supe o desenvolvimento de criatividade, iniciativa, liberdade de expresso; na elaborao de currculos e adoo de pr27

ticas didticas que possam assegurar a todos a constituio de competncias laborais relevantes para o exerccio da subsistncia com dignidade, auto-respeito e reconhecimento social como seres produtivos; no reconhecimento e na valorizao do ethos de cada profisso, baseados na solidariedade e na responsabilidade, para o exerccio da vida produtiva e da cidadania. As bases filosficas que orientam a implementao da educao profissional, conforme formuladas no Parecer n 16/99 do Conselho Nacional de Educao, no so conflitantes com os princpios constantes no documento Bases para a Reviso das Aes de Formao Profissional,de 1994, conforme est explicitado na introduo desse documento. Os aspectos inovadores a serem considerados, na atual legislao da educao nacional, dizem respeito, fundamentalmente, s bases propostas para a organizao curricular, em especial dos cursos de nvel tcnico, onde, inclusive, se torna concreta a lgica inerente reforma propugnada pelos organismos oficiais. Torna-se tambm necessrio que as unidades do sistema Senac, nos seus projetos pedaggicos, definam procedimentos visando tornar efetiva a prtica de aproveitamento de estudos, conforme prev a atual legislao. Outro aspecto relevante do processo de adaptao institucional aos preceitos legais a implantao de processo de avaliao baseado em critrios que dem conta de julgar competncias profissionais, seja para efeito de certificao de concluso de cursos e/ou mdulos, seja para creditar conhecimentos, habilidades e/ou valores adquiridos fora de ambientes formais de aprendizagem.

PerspectivasSe por um lado as exigncias de elevao do nvel de escolaridade, de uma melhor qualificao do trabalhador, criam perspectivas otimistas quanto a sua valorizao social, por outro lado convivemos com a falta de emprego ou com sua precarizao. Esta se manifesta nos servios prestados por conta prpria ou mesmo na proliferao de atividades alternativas. Com perplexidade, acompanhamos o desmoronamento de conquistas trabalhistas to duramente adquiridas, e sofremos com a crescente eliminao de postos de trabalho, especialmente na indstria, devido automao do processo produtivo.

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No atual estgio da economia capitalista, extremamente difcil antecipar o futuro. Cabe-nos, entretanto, estar atentos s tendncias para bem delimitar o espao da educao profissional. claro que ela no garantia de emprego, mas tem importante papel social a cumprir, no que concerne a fornecer uma educao que assegure condies de laboralidade do trabalhador. No cenrio atual precisamos, sim, preparar e bem para o domnio dos fundamentos tecnolgicos e das habilidades tcnicas necessrias ao fazer das profisses. Mas precisamos ir alm, cuidando do desenvolvimento de competncias genricas, que assegurem a compreenso desse fazer, a autonomia, a crtica, a criatividade, elementos fundamentais ao exerccio da cidadania, da participao poltica e, portanto, da interveno nos destinos da sociedade futura.

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AOrganizao Curricular noModelo Baseadoem Competncias

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Em face das transformaes do mundo contemporneo e dos processos de reestruturao produtiva, a qualificao para o trabalho deixa de ser compreendida como fruto da aquisio de modos de fazer, passando a ser vista como resultado da articulao de vrios elementos, subjetivos e objetivos, tais como: natureza das relaes sociais vividas pelos indivduos, escolaridade, acesso informao, a saberes, a manifestaes cientficas e culturais, alm da durao e da profundidade das experincias vivenciadas, tanto na vida social, quanto no mundo do trabalho. A formao dos trabalhadores passa, ento, a ter como objetivo o desenvolvimento de competncias. Nessa perspectiva, a formao assume como finalidade capacitar indivduos para que tenham condies de disponibilizar durante seu desempenho profissional os atributos adquiridos na vida social, escolar, pessoal e laboral, preparando-os para lidar com a incerteza, com a flexibilidade e a rapidez na resoluo de problemas (Kuenzer, 1998). O desenvolvimento de competncias, como padro de articulao entre conhecimento e inteligncia pessoal, ganha espao nas instituies educacionais por exigncia das Diretrizes e Bases da Educao Nacional e se torna o eixo do processo de ensino e de aprendizagem. Mas, como trabalhar currculos por competncias? Inicialmente, precisamos entender, luz da LDB, o que ser competente. A lei focaliza a dimenso da competncia quando diz que no se limita ao conhecer, vai mais alm, porque envolve o agir numa determinada situao. As competncias so, assim, as capacidades ou os saberes em uso, que envolvem conhecimentos, habilidades e valores. No que tange educao profissional, a LDB explicita que algum competente quando constitui, articula, mobiliza valores, conhecimentos e habilidades para a resoluo de problemas no s rotineiros, mas tambm inusitados em seu campo de atuao. Assim, o indivduo competente seria aquele que age com eficcia diante do inesperado, superando a experincia acumulada e partindo para uma atuao transformadora e criadora. O planejamento curricular baseado no modelo de competncias deve ser um espelho do projeto pedaggico da escola, fruto de um esforo sistematizado, com a efetiva participao de todos os docentes, e deve incidir, mais particularmente, sobre alguns componentes pedaggicos, tais como: a identificao e a definio dos blocos de competncias, associados ao itinerrio profissional, e a seleo de situaes de aprendizagem (projetos, situaes-problema), previstas nos mdulos, e/ou nas etapas de formao, que tm as disciplinas como suporte.31

PerfilProfissionaldeConclusoO planejamento deve ter como ponto de partida a definio do perfil de concluso da habilitao ou da qualificao prefigurada. Os perfis so definidos a partir da anlise das ocupaes que compem as reas profissionais (ou de grupos de ocupaes afins a um processo ou atividade produtiva) e das competncias gerais dos profissionais da rea. Deve atender s demandas do cidado, do mercado e da sociedade, alm de levar em conta as condies locais e regionais e a vocao e a capacidade de atendimento da instituio. Na definio do perfil, deve-se considerar tambm que o profissional, alm do domnio operacional de um determinado fazer e do saber tecnolgico, precisa ter uma compreenso global do processo de trabalho, ser capaz de transitar com desenvoltura em uma rea profissional, atendendo a vrias demandas dessa rea. Nessa perspectiva, ele no fica restrito a uma qualificao/habilitao vinculada especificamente a um posto de trabalho. Na definio do perfil profissional de concluso dos cursos de nvel tcnico, deve-se, por exigncia legal, considerar tanto as competncias profissionais gerais estabelecidas nas Diretrizes Curriculares por rea profissional, anexas Resoluo n 04/99 da Cmara de Educao Bsica do Conselho Nacional de Educao, como as competncias especficas da habilitao profissional. Enquanto as competncias especficas definem a identidade do curso, as competncias gerais garantem a polivalncia34 do profissional. Deve-se ainda buscar responder s seguintes questes: O que esse profissional precisa saber (que conhecimentos so fundamentais)? O que ele precisa saber fazer (que habilidades so necessrias para o desempenho de sua prtica de trabalho)? O que ele precisa saber ser (que valores, atitudes, ele deve desenvolver)? O que ele precisa saber para agir (que atributos so indispensveis tomada de decises)? A conceituao formulada por Manfredi aprofunda a compreenso a respeito desses saberes e pode ser tomada como uma referncia na anlise do perfil profissional. Segundo a autora, o saber fazer recobre dimenses prticas, tcnicas e cientficas adquiridas formalmente (curso/treinamento) e/ou por meio da experincia profissional; o saber ser inclui traos de personalidade e carter, que ditam os comportamentos nas relaes sociais de trabalho, como capacidade de iniciativa, comunicao, disponibilidade para a32

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De acordo com o Parecer CNE/CEB n. 16/99, polivalncia atributo de um profissional possuidor de competncias que lhe permitam superar os limites de uma ocupao ou campo circunscrito de trabalho, para transitar para outros campos ou ocupaes da mesma rea profissional ou reas afins. Supe que tenha adquirido competncias transferveis, ancoradas em bases cientficas ou tecnolgicas, e que tenha uma perspectiva evolutiva de sua formao, seja pela ampliao, seja pelo enriquecimento e transformao de seu trabalho. Permite ao profissional transcender a fragmentao das tarefas e compreender o processo global de produo, possibilitando-lhe, inclusive, influir em sua transformao

MANFREDI, Silvia Maria. Reestruturao produtiva, trabalho e qualificao no Brasil. In: Educao e trabalho no capitalismo contemporneo. So Paulo: Atlas, 1996. p. 164-165. 36 CONSELHO NACIONAL DE EDUCAO (Brasil). op. cit.

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inovao e mudana, assimilao de novos valores de qualidade, produtividade e competitividade; o saber agir subjacente exigncia de interveno ou deciso diante de eventos (saber trabalhar em equipe, ser capaz de resolver problemas e realizar trabalhos novos, diversificados). 35 A educao profissional deve, ento, propiciar ao trabalhador o fomento da criatividade, da iniciativa, da autonomia e da liberdade de expresso, abrindo espaos para incorporao de atributos como o respeito pela vida, a postura tica nas relaes humanas e a valorizao da convivncia em sociedade e nas relaes profissionais, contribuindo para a percepo de seu trabalho como uma forma concreta de cidadania. 36 Para dar conta da gama de atributos necessrios ao perfil desse trabalhador que se pretende formar, o Senac dever estruturar e grupar em quatro tipos as competncias profissionais: Competncias bsicas constituem o foco da educao bsica (Resoluo CNE/CEB n 03/98), como a capacidade de expresso, de compreenso do que se l, de interpretao de representaes e de realizao de operaes lgico-matemticas. Competncias interprofissionais necessrias a qualquer trabalhador. Esto relacionadas com as questes e desafios do mundo do trabalho, a pesquisa de dados, a utilizao dos recursos tecnolgicos, a preservao do meio ambiente, a tica das relaes humanas, a sade e a segurana no trabalho, o direito individual e o dever para com o coletivo. Competncias gerais so aquelas comuns a uma rea profissional. Para os cursos tcnicos, elas esto definidas na Resoluo CNE/CEB n 04/99. Competncias especficas relativas preparao para o exerccio de atividades profissionais prprias a um segmento profissional. So definidas pela instituio formadora (no caso do Senac, pelas unidades operativas), de acordo com a identidade da qualificao ou habilitao e com base nos Referenciais Curriculares por rea profissional, publicados pelo MEC. Os cursos de qualificao bsica oferecidos pelo Sistema Senac sero estruturados pelas respectivas unidades operativas, com base nos Referenciais definidos nos Documentos Norteadores das reas.

SistemaModularA nova legislao para a educao profissional prev que os currculos dos cursos devem ser construdos pela prpria escola,33

em torno de competncias gerais por rea, acrescidas de competncias especficas para cada habilitao. Essa estrutura implica uma permanente atualizao do currculo de acordo com as transformaes que vo se processando no mercado de trabalho. Esse modelo supe, tambm, a adoo de um novo paradigma pedaggico, no qual a ateno se desloca do ensino para o processo de aprendizagem. A prtica pedaggica orientadora desse paradigma dever se pautar na valorizao das experincias pessoais do aluno, sejam elas acadmicas ou de vida. Nesse sentido, a responsabilidade das instituies de educao profissional se amplia, porque esse modelo exige novas formas de organizao curricular, novos contedos e metodologias que coloquem o aluno como sujeito ativo do processo de aprendizagem. A nfase na competncia implica, portanto, rupturas na dinmica interna dos espaos das instituies educacionais. No se desenvolvem competncias profissionais a partir da mera aplicao instrumental dos contedos (bases tecnolgicas) ou sem incluir o exerccio de atividades concretas de trabalho. Ao mesmo tempo, no podemos prescindir dos contedos como meios para atingir as competncias pretendidas. Os contedos precisam ser significativos e atualizados, vistos como recursos e no finalidade da educao, assimilados pelos alunos de forma crtica e dinmica e mobilizados para a soluo de situaes concretas de trabalho. A modularizao uma das formas de flexibilizar e organizar um currculo centrado na aprendizagem do aluno e na ampliao de competncias. Os mdulos podem ser entendidos como um conjunto de conhecimentos profissionais que, estruturados pedagogicamente, respondem a uma etapa do processo de formao. Eles representam uma fase significativa do processo de aprendizagem e/ou constituem unidades bsicas para a avaliao. A estruturao modular deve garantir a relao entre os conhecimentos tericos e prticos necessrios ao desempenho competente da ocupao. O contorno adquirido por um mdulo (composto ou no por um conjunto de disciplinas afins) depende tambm do tipo de sistematizao das aes didtico-pedaggicas, articuladas para propiciar o enfrentamento de situaes-problema e o desenvolvimento de projetos coerentemente planejados. O movimento de adequao estrutural do currculo por competncias e a concepo dos mdulos devem perseguir trs princpios: flexibilidade, interdisciplinaridade e contextualizao. A flexibilidade deve se refletir na construo dos currculos em di-ferentes perspectivas: na oferta dos cursos, na organizao34

SANTOM, Jurjo Torres. Globalizao e interdisciplinaridade: o currculo integrado / Trad. Cludia Schilling. Porto Alegre: Artes Mdicas, 1998, p.14.

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de contedos por mdulos, disciplinas, atividades nucleadoras, projetos. A flexibilidade curricular permite que os alunos construam itinerrios diversificados, segundo seus interesses e possibilidades, no s para fases circunscritas de formao como tambm com vistas educao continuada, simultnea ou alternadamente a fases do exerccio profissional. A organizao curricular flexvel traz em sua raiz a interdisciplinaridade, proposta que pretende romper com a fragmentao do conhecimento e a segmentao presentes na organizao linear-disciplinar adotada anteriormente. Nesse antigo modelo, os contedos culturais que formavam o currculo escolar com excessiva freqncia eram descontextualizados, distantes do mundo experiencial de alunos e alunas. As disciplinas escolares eram trabalhadas de forma isolada e, assim, no propiciavam a construo e a compreenso de nexos que permitissem sua estruturao com base na realidade. 37 No paradigma interdisciplinar, as disciplinas devem ser compostas de forma integrada e estar voltadas para a participao ativa do aluno no seu processo de aprendizagem. Os conhecimentos transformam-se em insumos, e o desafio maior para o professor reside na sistematizao da atuao do aluno. A interdisciplinaridade, portanto, deve ir alm da justaposio de disciplinas, abrindo-se a possibilidade de relacion-las em atividades ou projetos de estudos, pesquisa e ao, para dar conta do desenvolvimento de competncias afins. A legislao permite, na organizao curricular, o uso de disciplinas ou de agrupamentos de competncias correlatas, desde que tal organizao seja consistente, para garantir a aquisio das competncias profissionais exigidas, e mostre-se didaticamente oportuna. A interdisciplinaridade favorece a reviso e a atualizao permanentes do currculo, facilita o planejamento integrado e valoriza os aspectos qualitativos sobre os quantitativos no processo de aprendizagem dos alunos. A contextualizao, por sua vez, garante estratgias favorveis construo de significaes. Um plano de curso elaborado em consonncia com o contexto, com a realidade do aluno e do mundo do trabalho possibilita, sem dvida, a realizao de aprendizagens que faam sentido para o aluno. Essa contextualizao dever ocorrer, tambm, no prprio processo de aprendizagem, integrando a teoria vivncia do aluno e sua prtica profissional. No desenho dos itinerrios profissionais seqncia de m35

dulos ordenada pedagogicamente, cujo fim capacitar para o desempenho de uma ocupao importante definir mdulos em que se desenvolvam os seguintes tipos de competncias: profissionais gerais; profissionais especficas de uma ocupao, assim como as relacionadas aos processos de trabalho e aquelas trazidas da educao bsica. De acordo com a legislao vigente, os mdulos que compem os diferentes itinerrios profissionais podem ter as seguintes caractersticas: Mdulos com terminalidade preparam o aluno para exercer algum tipo de atividade profissional, para ocupar uma funo reconhecidamente existente no mercado de trabalho. A identidade desses mdulos deve ser definida claramente, visando possibilidade de incluir no processo de aprendizagem situaes concretas de trabalho relativas ocupao escolhida. Ao completar o mdulo da qualificao, o aluno ter direito certificao e estar apto a ingressar no mercado de trabalho. O conjunto de certificados de competncia equivalente a todos os mdulos que integram uma habilitao profissional dar direito ao diploma de tcnico, desde que o aluno tenha concludo o ensino mdio; Mdulos sem terminalidade desenvolvem competncias de carter geral, que fundamentam o processo de trabalho e permitem a navegabilidade na rea profissional. Essas competncias devem enfatizar, ainda, a formao e a consolidao das competncias da educao bsica e aquelas relacionadas formao da cidadania. Constituem, tambm, uma preparao para o mundo do trabalho, transcendendo a formao estrita a uma ocupao. A durao dos mdulos depender da natureza das competncias que se pretendem desenvolver, e eles devem permitir a construo de itinerrios diversificados, tanto na formao inicial como nos processos de educao continuada. Os tempos de aula, antes rgidos e exclusivos, devem ser planejados em conjunto com os professores de um mesmo mdulo e distribudos, na concepo de Marize Ramos38, da seguinte forma: Tempo de investigao corresponde ao momento em que os alunos enfrentam os problemas sem companhia do(s) professor(es). Nessa etapa, os alunos atuam mais ativamente no seu processo de aprendizagem e devem exercer intensamente sua autonomia, envolvendo-se com a investigao, o levantamento de dados e a formulao de propostas. Tempo de orientao constitui a fase em que os alunos esto com o(s) professor(es) em atividades de orientao. Nesse momento,36

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RAMOS, Marise. op. cit., p. 8-9.

estabelece-se a relao dialgica entre o sujeito que ensina e o sujeito que aprende, sendo o aluno um propositor e o professor, o mediador do processo, segundo as necessidades por eles identificadas. Tempo de sistematizao a etapa em que alunos e professores esto juntos para realizar atividades de sistematizao dos contedos. Apesar da necessidade da manuteno da relao dialgica, nesse momento o professor se torna protagonista, selecionando e aprofundando os contedos a serem trabalhados sistematicamente, inclusive por meio da exposio didtica. Para elaborar um sistema modular por competncias preciso aprofundar as escolhas metodolgicas. Estas devem se pautar pela identificao de aes ou processos de trabalho do sujeito que aprende e devem incluir projetos, provocados por desafios e/ou problemas, que coloquem o aluno diante de situaes simuladas ou, sempre que possvel, e preferencialmente, reais. A escolha tambm deve permitir aes resolutivas por parte do aluno, como as de pesquisa e estudo de contedos que podem estar reunidos em disciplinas ou trabalhados em seminrios, ciclos de debates, atividades experimentais, laboratoriais e de campo. Uma outra questo relevante na organizao dos mdulos o tipo de vnculo estabelecido entre os projetos de trabalho e os contedos de ensino. necessrio que os projetos remetam para a aprendizagem de contedos relevantes, quer estejam ou no estruturados em disciplinas. Assim, na organizao dos mdulos, o que importa no o tipo de opo por uma ou outra forma didtica de sistematizao dos recortes de conhecimento. O importante que os projetos garantam a aprendizagem de contedos que tenham sido objeto de reflexo sobre seu significado para o desempenho profissional do indivduo.

DesenhoCurricularNa definio do desenho curricular de um curso, fundamental observar as aes propostas pela Coordenao Geral de Educao Profissional da Secretaria de Educao Mdia e Tecnolgica da Educao (CGEP/SEMTEC/MEC), transcritas a seguir. Definio de terminalidades por conjunto de competncias articuladas (associadas s ocupaes, aos contextos e/ou s funes e subfunes da rea profissional). Desenho dos mdulos do currculo, considerando o conjunto de competncias articuladas. Definio dos itinerrios profissionais; critrios de acesso aos37

mdulos e ao curso; sadas intermedirias e finais; certificados e diplomas. Definio e planejamento dos projetos integradores para o desenvolvimento dos mdulos; formulao de problemas desafiadores. Planejamento dos insumos requeridos em cada projeto; definio do professor, coordenador de cada projeto. Definio de estgio supervisionado, quando necessrio. Definio de estratgias e recursos de aprendizagem. Definio do processo de avaliao da aprendizagem e dos critrios de aproveitamento de estudos; instrumentos de acompanhamento e avaliao. Organizao de tempo, horrios, ambientes de aprendizagem, espaos e pessoas envolvidas. Cabe incluir uma outra ao intermediria ao desenho dos mdulos e definio dos itinerrios profissionais: a seleo de contedos de ensino39 como um elemento importante para o desenvolvimento das competncias. Como j mencionado, os contedos devem ser significativos, atualizados e construdos dinmica e criticamente. Alm dessa seleo, o desenho dos mdulos envolve a organizao dos contedos, que pode ser feita de dois modos: por disciplinas ou por unidades temticas e/ou blocos temticos que renam conhecimentos de diferentes reas, articulados por competncias afins. Para a organizao curricular, suficiente identificar apenas as diversas competncias exigidas para o profissional que se pretende formar. J para a organizao do plano de aula organizao especfica da aprendizagem , conveniente esmiuar as competncias em seus principais elementos (conhecimentos, habilidades, valores e atitudes), bem como fazer um planejamento detalhado para a realizao do trabalho interdisciplinar.

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DesafiosdoModelodeCompetncias importante considerar que o modelo de competncias exige a criao de condies para que os indivduos articulem saberes para enfrentar os problemas e as situaes inusitadas encontradas em seu trabalho, atuando, a partir de uma viso de conjunto, de modo inovador e responsvel. Essa articulao de saberes supe a realizao de operaes mentais que vo das mais simples e concretas (comparao, classificao e seriao, por exemplo) at aquelas mais complexas e38

Os contedos de ensino da Educao Profissional so as bases tecnolgicas necessrias ao desenvolvimento das competncias profissionais. Por bases tecnolgicas entende-se o conjunto de conceitos e princpios resultantes da aplicao de conhecimentos aos processos de trabalho da rea. Elas se constroem a partir das bases cientficas (conceitos e princpios das cincias da natureza, da matemtica, das cincias humanas) e instrumentais (correspondem ao repertrio dos indivduos, ou seja, linguagem e aos cdigos que permitem comunicao e leitura do mundo) trazidas da Educao Bsica.

abstratas, que compreendem anlises, snteses, analogias, associaes, generalizaes. E no processo de desenvolvimento dessas formas superiores de raciocnio, dessas operaes mentais de nvel superior, o sujeito vai ampliando sua autonomia e seu senso crtico. Nesse sentido, formar para o desenvolvimento de competncias significa, tambm, educar para a autonomia, para a capacidade de iniciativa e de auto-avaliao, para a responsabilidade, para a ampliao da capacidade de trabalho, de concepo e realizao de tarefas e projetos. Esse modo de conceber e realizar a formao pode trazer novas possibilidades para o trabalhador. Atuar criticamente, tomar decises, ser autnomo, criativo e responsvel so aprendizagens que extrapolam o espao de trabalho e podem ser ampliadas para todas as esferas sociais em que o sujeito atua como cidado. Assim, possvel afirmar que, ao romper com as delimitaes impostas pelo mero fazer, estamos formando no s um trabalhador de um novo tipo, mas tambm tornando possvel a formao de um cidado mais atuante (Desaulniers, 1997). Essas novas potencialidades e possibilidades que o modelo de competncias traz para a ampliao da cidadania e da capacidade de trabalho do sujeito esto, evidentemente, na dependncia de uma srie de cuidados relativos prtica pedaggica. Em primeiro lugar, fundamental entender que os contedos de ensino so meios e no finalidade da aprendizagem. Deve-se tambm evitar limitar o saber ao desempenho especfico de tarefas, aplicao instrumental dos contedos, empobrecendo a formao e reduzindo-a a um mero saber fazer. necessrio ainda adotar metodologias que permitam a simulao ou realizao de situaes concretas de trabalho, propiciando a integrao dos conhecimentos e o desenvolvimento de nveis de raciocnio mais complexos. Assim, importante ter em mente o fato de que a organizao de um currculo por competncias no garante, em princpio, a mudana de paradigma educacional. Esta depende, antes de mais nada, dos objetivos que se pretende atingir e do modo como se compreende e implementa a proposta educativa. A integrao do conhecimento o grande desafio presente no modelo de competncias. Para garantir essa integrao, importante no s adotar metodologias que a privilegiem, como tambm cuidar da definio dos contedos e de sua organizao nos diferentes mdulos de ensino. Ao estabelecer os mdulos, preciso, por exemplo, garantir que as competncias gerais e as de cunho especfico sejam desenvolvidas simultaneamente. No39

caso de o mesmo mdulo incluir os dois tipos de competncia, a conquista dessa viso ampliada fica facilitada. J quando as competncias especficas estiverem relacionadas num mdulo isolado, necessrio contextualiz-las no universo mais amplo das competncias gerais que fundamentam a prtica profissional. Assim, caso se decida pela separao entre as competncias profissionais gerais e especficas, convm estar atento para o risco de se restringir o mdulo especfico ao ensino de tarefas, desarticulado de um contexto mais amplo. necessrio considerar tambm, como faz a ANPEd Associao Nacional de Ps-Graduao e Pesquisa em Educao sobre o PNE no seu Plano Nacional de Educao, que a proposta de constituio do Sistema Modular do MEC j traz em si grandes riscos de propiciar uma formao profissional fragmentada. De fato, alunos que cumprem uma trajetria de formao diferenciada, cursando mdulos mal organizados em diferentes instituies, tero certamente dificuldades para integrar os conhecimentos construdos. Assim, possvel considerar como pertinente a advertncia presente no Manifesto, no qual se afirma que: esperar que atravs de contedos dispersos, ministrados em diferentes estabelecimentos, o aluno, individualmente, efetue a desejada integrao (entre contedos gerais e especficos), confiar uma tarefa de alta complexidade pedaggica apenas a uma dinmica espontnea e altamente imprevisvel do aprendiz. conveniente enfatizar tambm que o prprio Sistema Modular, apesar de suas potencialidades, traz o risco de segmentar a educao profissional, aprofundando as diferenas entre os trabalhadores brasileiros. Assim, de um lado seria possvel ter poucos e bons profissionais capazes de atuar com consistncia na rea profissional escolhida, porque contam com uma educao bsica slida e completam os mdulos relativos a todo um percurso (ou vrios percursos) formativos. De outro lado, existiriam trabalhadores com formao profissional reduzida, aligeirada, por possurem nvel de escolaridade mais baixo e cursarem apenas mdulos cujas competncias esto voltadas somente para um posto de trabalho, sem uma viso mais global ou fundamentada de uma rea profissional. exatamente nessa perspectiva que vrios autores, como Kuenzer (1998) e Bello de Souza (2000), chamam a ateno para o modo como o Sistema Modular est sendo inserido e implantado no pas, tornando possvel o aprofundamento da segmentao social e a diferenciao da formao do trabalha40

40 SOUZA, Donaldo Bello de. Educao a distncia e sistema modular: flexibilizao ou engessamento do ensino tcnico-profissional no Brasil?. Revista Tecnologia e Cultura, CEFET/RJ, v. 3, n. 3, dez 1999/ julho 2000. p. 17-18. 41 Id. Ibid., p. 17-18. 42 ROGGERO, Rosemary. Breve Reflexo sobre as relaes entre novas demandas de qualificao e formao profissional no movimento do capitalismo contemporneo. Boletim Tcnico do Senac, Rio de Janeiro, v. 26, n.2, maio/ ago. 2000. p. 62.

dor brasileiro. necessrio, portanto, ter conscincia disso, pois se a modularizao no for feita com a responsabilidade que lhe exigida, poder vir a contribuir sobremaneira para a fragmentao do processo formativo do trabalhador e aprofundar ainda mais as desigualdades sociais no Brasil. Ao contrrio, com propostas srias e cuidadosas, que assegurem ao aluno o desenvolvimento de competncias com base em um conhecimento integrado e articulado, seria possvel tirar partido das possibilidades formativas desse sistema. Segundo Bello de Souza (2000), o sistema modular, apesar das crticas, tem sido apontado como possuidor de algumas potencialidades que o tornam um modelo mais aberto do que os demais, tais como: a valorizao da diferenciao pessoal; o respeito aos ritmos de aprendizagem do aluno; a emergncia do aluno enquanto gestor de seu prprio percurso de formao sistemtica; a facilidade na progresso do aluno.40 Esse sistema ainda viabilizaria uma maior flexibilidade, na medida em que o aluno dispe de mltiplas entradas e sadas do sistema, podendo interromper ou retornar seu itinerrio formativo quantas vezes lhe seja possvel e, ainda, aproveitar suas experincias pregressas na forma de crdito tanto as experincias obtidas nos sistemas formais de ensino, quanto aquelas derivadas da prpria vivncia prtica no mundo do trabalho.41 A compreenso dos riscos e das potencialidades contidas no Sistema Modular se coloca como indispensvel para todos os que esto comprometidos com a construo de um novo caminho para a educao profissional, voltado para a qualificao social dos trabalhadores. Esse caminho, sem dvida, exigir das instituies de educao profissional maior reflexo sobre questes como ndole, carter, solidariedade, responsabilidade e outros atributos da formao da personalidade, alm daqueles j demandados pelos novos paradigmas de organizao do trabalho.42 O sucesso desse trabalho depende ainda e, principalmente, de que todos os profissionais participem, conjuntamente, de sua construo, desde a elaborao do projeto pedaggico da escola at a prtica em sala de aula. Sendo assim, importante que as unidades do Sistema Senac se empenhem na formao e na valorizao do seu corpo tcnico e pedaggico, oferecendo-lhes meios e condies de trabalho para a tarefa que lhes confiada. Somente dessa forma pode-se esperar a emergncia de um profissional capacitado e comprometido com as mudanas ora em curso no Brasil e no mundo.41

Fundamentao FilosficoPedaggica

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Entender competncias como a capacidade de mobilizar saberes (desenvolvidos ao longo da vida social, escolar e laboral) para agir em situaes concretas de trabalho confere ao processo de ensino um compromisso com o desempenho do aluno e com sua atuao, bem como com a transferncia das aprendizagens por ele realizadas. Esse compromisso traz importantes determinaes para a compreenso da natureza do saber a ser trabalhado e da metodologia de ensino a ser adotada. A lgica das competncias supe a adoo de uma pedagogia com caractersticas especficas. Em primeiro lugar, como j foi mencionado, a concepo de competncia envolve a realizao de uma prtica centrada no desempenho, entendido como a expresso concreta dos recursos que o sujeito aciona quando enfrenta determinadas situaes de trabalho. necessrio, ento, considerar as condies sob as quais esse desempenho se apresenta na realidade. Nesse sentido, as propostas de ensino devem favorecer mecanismos de simulao e o contato direto com as condies reais de trabalho. Em segundo lugar, na medida em que uma competncia um ponto de convergncia de vrios elementos que no so exclusivos a ela, a prtica docente no pode restringir a aprendizagem, limitando-a a uma compreenso de conceitos, mas deve incentivar a aplicao dessas noes mais gerais em vrias situaes. Finalmente, a compreenso de que a competncia a ser demonstrada vai alm da mera execuo de uma tarefa faz do trabalho docente uma prtica orientada para o desenvolvimento da autonomia do aluno, para que ele possa fazer uso do que sabe, visando melhorar cada vez mais seu desempenho. 43 Nessa perspectiva, o modelo de competncias traz profundas conseqncias para o trabalho docente e, em especial, para o processo de escolha de contedos e mtodos de ensino. Assim, e com base nesses marcos referenciais mais gerais, sero aprofundadas, no mbito deste documento, as questes relativas a essas duas dimenses da prtica pedaggica, dando destaque exposio da pedagogia de projetos, proposta metodolgica considerada a mais afinada com a implementao do modelo de competncias.43 As caractersticas da pedagogia das competncias so apresentadas e discutidas por Marise Ramos em seu artigo: Aproximao ao modelo das competncias como novo paradigma de organizao da educao profissional. Rio de Janeiro, 1998. Mimeogr.

ContedosdeEnsino:seleoeorganizaoA partir da compreenso de que o ensino deve estar voltado no apenas para a mera instrumentalizao, mas para a interpretao e a transformao da realidade, os contedos passam a ser vistos no como objetos neutros, estticos e estveis, mas como43

realidades social e historicamente construdas e reconstrudas, quotidianamente, por meio dos intercmbios e trocas que ocorrem nos diferentes momentos do processo de ensino-aprendizagem. Contedos, ento, devem ser situados no tempo e no espao e organizados de forma a favorecer uma representao do conhecimento menos fragmentada e mais integrada, articulada aos problemas enfrentados pelos alunos em sua vida social e laboral. Contedos atualizados, que reflitam as transformaes que ocorrem na sociedade, no mundo do trabalho e no campo da cincia. Nesse sentido, impossvel desconsiderar a enorme quantidade de informao produzida pela sociedade atual, o que traz para a seleo de contedos um novo desafio: o que privilegiar, o que considerar atual e relevante? Visto que o modelo de competncias supe que os contedos sejam encarados como um dos recursos a serem mobilizados pelo aluno em situaes concretas de trabalho, durante a seleo de contedos devem ser privilegiados aqueles que possam ser utilizados como instrumentos terico-prticos, capazes de orientar a tomada de decises nos diferentes enfrentamentos da vida profissional. Nesse processo, entretanto, fundamental realizar uma escolha que, por incorporar contedos cientficos, universais e amplos, evite o empobrecimento da formao, ou seja, evite uma formao atrelada ao ensino de tarefas e desempenhos especficos, prescritos e observveis, garantindo, assim, que o ensino no se limite simples aplicao instrumental dos contedos. O modelo de competncias traz uma importante implicao para a compreenso do processo de organizao dos contedos de ensino: a necessidade de propiciar uma perspectiva globalizante do conhecimento. O fato de as competncias mobilizarem mltiplos saberes saberes para a ao faz com que os conhecimentos aprendidos devam ser construdos em estreita relao com os contextos em que so utilizados. Por isso mesmo, tornase impossvel separar os aspectos cognitivos, emocionais e sociais presentes nesse processo. A formao dos alunos deve, ento, ser encarada como um processo global e complexo, no qual conhecer e intervir na realidade no se dissociem. justamente o desenvolvimento dessa viso globalizante que a organizao dos contedos deve favorecer, quer estejam ou no estruturados em disciplinas. Essa viso global pode ser viabilizada, no caso da manuteno das disciplinas 44, pela implementao de uma proposta de currculo interdisciplinar (por oposio a uma proposta de organizao linear-disciplinar). No44

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A opo pela manuteno das disciplinas costuma estar associada defesa da realizao de um processo de ensino-aprendizagem centrado num corpo de conhecimentos cientficos e universais, alm de, indiscutivelmente, envolver uma compreenso mais realista da prpria prtica educativa. Esse um modelo mais tradicional de classificao dos contedos e corresponde organizao do prprio conhecimento cientfico. Alm disso, esse o modelo presente na formao dos docentes. 45 A perspectiva presente nas proposta de currculo integrado a transdisciplinaridade. Esse conceito remete para uma modalidade de relao entre as disciplinas capaz de super-las. o nvel superior da interdisciplinaridade, de coordenao, em que desaparecem os limites entre as diversas disciplinas e se constitui um sistema total que ultrapassa o plano das relaes e interaes. A cooperao de tal ordem que possvel falar do surgimento de uma nova macrodisciplina. (Santom 1998).

caso da supresso das disciplinas,