III CIELLI – TEXTO PARA PALESTRA E SIMPÓSIO
QUADRINHOS E MULTIMODALIDADE: DA PRODUÇÃO À LEITURA
A TEORIA DA MULTIMODALIDADE: DISCUTINDO SUAS POSSIBILIDADES DE APLICAÇÃO NA PRODUÇÃO E LEITURA DE QUADRINHOS*
THEORY MULTIMODALITY: DISCUSSING YOUR POSSIBILITIES OF APPLICATION IN PRODUCTION AND READING COMICS.
Profa. Dra. Paula Mastroberti
Escritora, artista visual Profa. Dra. do Instituto de Artes da UFRGS
RESUMO
Através deste trabalho, desejo propor uma reflexão teórica sobre os objetos ficcionais gráficos, entre eles as histórias em quadrinhos, desde as intenções e procedimentos de produção até as operações que envolvem a sua leitura, tomando a teoria da multimodalidade, proposta por Gunther Kress, por diretriz e por ponto de partida. Minha abordagem, entretanto, pretende ir além da simples proposição das possibilidades de sua aplicação sobre os fenômenos semióticos que envolvem a sua produção e leitura; é minha intenção, ao mesmo tempo, provocar um debate no que se refere a competência da abordagem multimodal quando na investigação do complexo que envolve objetos culturais como quadrinhos, livros ilustrados e seus agenciamentos. A teoria da multimodalidade, instalada confortavelmente no âmbito da sociossemiótica, corre o risco de limitar a investigação desses objetos culturais aos seus efeitos meramente comunicativos e, com isso, ela menoriza ou oblitera aspectos especialmente relevantes no caso a obra gráfica ficcional, cujo caráter artístico encontra-‐se justamente no seu potencial de transfiguração dos dados comunicativos através de efeitos estéticos e poéticos, expandindo as possibilidades de apreciação e de leitura para além da pura decodificação computativa.
Palavras-‐chave
Quadrinhos e multimodalidade ⎯ leitura de quadrinhos ⎯ quadrinhos e sociossemiótica ⎯ quadrinhos e produção
Abstract
Through this work, I propose a theoretical reflection on the fictional graphic objects, including the comics, since the intentions and procedures of its production to operations that involve its reading, taking the theory of multimodality, proposed by Gunther Kress, by guideline and starting point. My
* Tema comunicado no Simpósio Quadrinhos e Multimodalidade: da produção à leitura, coordenado pela autora, servindo de base para a palestra proferida em mesa conjunta com Paulo Ramos, intitulada A linguagem dos quadrinhos: convergências entre a palavra e a imagem. Ambos tiveram lugar no III CIELLI ⎯ III Colóquio Internacional de Estudos Linguísticos e Literários, promovido pelo Programa de Pós-‐Graduação em Letras da Universidade Estadual de Maringá, cidade de Maringá, PR, Brasil, de 27 a 29 de agosto de 2014.
approach seeks to go beyond the simple proposition of possible applications of semiotic phenomena that involve the production and reading; I intend to provoke a debate regarding the competence of the multimodal approach when the research involves complex cultural objects such as comics, illustrated books and other assemblages. The theory of multimodality, comfortably installed under the social-‐semiothics, runs the risk of limiting the investigation over these cultural objects with in purely communicative purposes. It minorizes and obliterates relevant aspects especially in case of the fictional graphic work, whose artistic potential lives on a transfiguration of communicative data through aesthetic and poetic effects, expanding the possibilities for enjoyment and reading beyond the pure computative decoding.
Keywords
Comics and multimodality theory; comics and reading; comics and social-‐semiothics; comics and production.
Ao longo da minha vida como acadêmica, desde os tempos do mestrado em
Letras, tenho procurado de alguma forma conciliar teoricamente a artista visual com
a escritora. No que concerne a minha prática profissional criativa, escrever e ilustrar,
grafar palavras e imagens não geram propriamente um conflito; trata-‐se mais de
optar por um modo ou outro de dizer as coisas, usando critérios pessoais,
predominantemente intuitivos; esses procedimentos se antecipam às teorias
estudadas – primeiro eu faço, depois explico. Isso não quer dizer que eu separe a
acadêmica da artista-‐escrivã. Mesmo antes de sistematizar minhas pesquisas e
publicá-‐las visando incrementar meu Currículo Lattes, eu já tinha por hábito anotar
reflexões sobre meus processos, elaborar diretrizes para cada obra. Às vezes são os
recursos e técnicas os grandes estímulos para a produção; às vezes quero executar
uma ideia ou conceito e vejo-‐me obrigada a testar o melhor recurso para exprimi-‐
los.
A linguagem dos quadrinhos, eu a enxergo da mesma forma que enxergo um
texto ilustrado ou um livro de figuras: como uma partitura sinfônica a conjurar, no
mínimo, duas linhas melódicas discursivas, gerando um efeito potencialmente único
sobre o leitor. Por isso, estou de acordo com a ideia de que quadrinhos não pode ser
literatura (RAMOS, 2010), se entendermos a literatura como um sistema poético
estritamente verbal. Da mesma forma, quadrinhos não pode ser categorizado como
pura poética gráfico-‐visual, porque requer um texto para sua composição ou a ela
subjacente: ainda que sem palavras, a arte sequencial lida e apoia-‐se sobre um
roteiro e suas rubricas, tal como o cinema ou o teatro. Esse roteiro pode ser em
poesia ou em prosa, porém oferece-‐se num tempo espacializado, não
exclusivamente em páginas de jornal ou de brochura, mas também midiatizado em
quadros postos numa parede, como fez o pintor inglês William Hogarth, ou
animados numa das tantas webcomics que circulam na Internet. Como observa
Sophia Van der Linden (LINDEN, 2011), e conforme eu mesma defendi em minha
tese de doutorado (MASTROBERTI, 2012), os quadrinhos, como os livros de figuras e
os livros ilustrados, são objetos culturais específicos, e requerem uma abordagem
interdisciplinar tanto pela análise teórica quanto pela mediação pedagógica.
Tanto quanto o livro ilustrado ou o livro de figuras, as histórias em
quadrinhos sofrem ainda, apesar de todos os nossos esforços de educadores e de
pesquisadores, de um mal institucional: a falta de um local teórico para articulação
de reflexões menos compartimentadas, menos caolhas, sobre objetos híbridos.
Como Doutora em Letras e Professora de Artes Visuais, cuja função exerço a partir
do campo da Licenciatura, tenho tomado para mim a responsabilidade de
aprofundar meus conhecimentos tendo por objetivo contribuir para com a
compreensão dos fenômenos que envolvem a produção e a leitura daquilo que eu
denomino de objetos poéticos gráficos: livros literários ilustrados, artes sequenciais,
desenhos animados e jogos eletrônicos. Também a artista gráfica e escritora com
quase 20 anos de carreira aí se insere como uma persona absolutamente necessária
para a desconstrução da superfície já pronta e acabada desses objetos: a prática
artístico-‐criativa produz um conhecimento que nenhuma teoria – quase sempre
gerada à partir da obra terminada – consegue alcançar.
Desconfio de todo autor que propõe um sistema epistemológico único e
fechado para dar conta das pluralidades discursivas. Porém, acredito na semiótica
como o lugar de encontro de todas as linguagens – ou modos, como preferirá
Gunther Kress (KRESS, 2010). A semiótica, fundamentada na filosofia, e tal como a
conceberam de John Locke a Charles Sanders Peirce, é – ou deveria ser –
transdisciplinar, interligando ciências exatas e humanas. A Semiótica é, no meu
entender, o estudo que se refere ao modo como significamos, articulamos e
registramos o que conhecemos, entendendo que toda forma de conhecimento
necessariamente passa pelo signo. É a base sobre a qual se apoia toda
epistemologia, como sugerem Michel Foucault (FOUCAULT, 2007), Jacques Derrida
(DERRIDA, 2008) ou Gilles Deleuze e Felix Guattari (DELEUZE; GUATTARI, 2007). É o
signo, antes de todo e de qualquer código linguístico, que nos [re]une em nossa
humanidade dispersa conforme a alegoria babélica; estudar os signos é estudar a
própria [cons]ciência; ela percorre do corpo biológico ao corpo coletivo, sem se
deter nas fronteiras – ideológicas, culturais, sociais – que o próprio conhecimento
estabelece para organizar-‐se e difundir-‐se.
Toda a nossa cultura é multimodal, plurissemiótica, complexa, híbrida –
escolham apenas o termo mais convergente com sua base conceitual. Os signos não
se apresentam puros, em nenhuma circunstância, e dependem do modo como os
percebemos, como os lemos e os articulamos aos demais signos já experenciados
por/em nossos corpos perceptuais. O casaco verde-‐água comprado recentemente
poderá ser classificado como azul celeste pela vendedora da loja. O conto Água viva,
de Clarice Lispector, é interpretado como um romance pelo leitor da edição de 88
páginas. O pequeno texto Discurso do urso, excertado da antologia História de
cronópios e de famas de Julio Cortázar, vira livro infantil ilustrado por Emilio
Urberuaga. Os signos transitam de uma mídia para outra, transmutam-‐se em
inúmeras interfaces, dispersam-‐se, reúnem-‐se, reciclam-‐se produzindo novos
significados. Estudos da Comunicação pouco aferidos por outras áreas como os que
envolvem ecologia midiática, desenvolvido por Neil Postman (1968), ou
ecossemiótica, por Winfried Nöth e Kalevi Kull (1998) deveriam ser revisitados. De
fato, vivemos imersos num oceano sígnico: precisamos de signos não exatamente
para viver, mas para saber que estamos vivos.
Não é difícil abordar objetos complexos como livros ilustrados ou álbuns de
quadrinhos se tivermos em vista esses parâmetros epistemológicos que
transcendem nossas disciplinas e áreas de estudo. E cabe esclarecer que não
considero a Linguística um território situado ao lado da Semiótica, mas interior à ela.
Isso porque, ao se deter na escrita e na fonética, a Linguística não dá conta da figura
para além da imagem (figura, em seu sentido original, tropo puramente plástico-‐
visual, forma significativa e não representativa, enquanto que imago é a imitação, a
representação, o simulacro que substitui ou faz sua aparição conforme
interpretações das formas). Ambos os conceitos, imagem e figura, se entrechocam
conforme falamos se em nome da Artes ou se da Letras. Na Semiótica, entretanto,
esses conflitos são resolvidos pela abordagem sígnica, assumindo, principalmente na
episteme peirceneana, valores próprios, discriminados pela lógica triádica.
Quando propusemos, eu e o Prof. Rodrigo Borges de Faveri, um simpósio que
trabalhasse com a temática dos quadrinhos sob a perspectiva da teoria da
multimodalidade, imaginei, como acadêmica da área de Artes Visuais, encontrar um
ponto de acordo com a área de Letras e da Educação. Nessa ocasião , eu estava
aprofundando minhas leituras sobre a teoria de Gunther Kress, sugerida por minhas
colegas de pesquisa em Letras, a Profa. Ana Paula Klauck (IFSUL) e Profa. Ana Claudia
Munari (UNISC). Semiólogo envolvido com a educação, Kress tem desenvolvido e
aprimorado, desde os anos 1970, uma teoria que procura dar conta dos fenômenos
que envolvem a complexidade sígnica dos objetos culturais em suas relações sociais.
Entretanto, a multimodalidade, apresentada como uma boa saída teórica para
resolver conflitos de ordem terminológica e filosófica entre as Letras e as Artes, não
me satisfez completamente. Para começar, ao substituir o termo linguagem por
modo, ele sugere, ao mesmo tempo em que admite o signo linguístico como uma
partícula complexa (multimodal), que qualquer coisa para além da língua oral ou
escrita não seja linguagem. O local de onde fala Kress é o do letramento [literacy],
cujo sentido é ainda hoje confundido com aculturamento. Mesmo admitindo que o
letramento não dá conta de todo fenômeno comunicativo sociocultural, a teoria da
multimodalidade parte do ponto de vista do verbo como código primeiro de
comunicação – e, embora queira rompê-‐lo, não pode superar sua episteme-‐base (é
uma teoria que se desenvolve a partir da história da escrita). A multimodalidade, ao
propor-‐se como paliativo para os problemas atuais da sociocomunicação e da
leitura, implica a necessária existência de um discurso monomodal, algo tão
inadmissível quanto a de uma sociedade monocultural. O princípio teórico de Kress é
o mesmo que norteia a dicotomia já em desuso “verbal/não-‐verbal”. Opõe o verbo a
todos os demais códigos ou sistemas semióticos, dos pictóricos aos gustativos, cuja
retórica (para usar seus termos) ele não domina plenamente. Ainda que conteste a
supremacia da palavra, a multimodalidade nela se fundamenta para analisar e incluir
as demais linguagens e discursos, algo que não corresponde aos demais valores
documentais recentemente restaurados pela filosofia e pela própria história
contemporânea.
Falar em multimodal, para mim, é como renomear a rosa. Entretanto, o
perfume exalado é o mesmo, e não há o que discutir, desde que entremos em
consenso teórico. Categórica e estruturalista (mesmo em sua revisão de 2009), a
teoria de Kress facilita o dissecamento dos signos, ainda que em nível superficial.
Imbuída de um viés sociológico, ela também possibilita uma interação menos árdua
entre a Semiótica e a Educação. Aparentemente, é em nome da pragmaticidade que
Kress abdica da abordagem peirceneana, embora não justifique essa decisão da
mesma forma como fez em relação a de Saussure. Mesmo assim, a intenção
pragmática mostra-‐se ainda fundamentada num pensamento estruturalista,
claramente superada quando pensamos na pedagogia mais recente, sustentada por
nomes como María Acaso (ACASO, 2012).
Como meu maior interesse é propor uma reflexão ampla à ponto de abraçar
os objetos ficcionais gráficos em sua relação com a sociocultura – neste momento,
falarei das histórias em quadrinhos – tomarei a multimodalidade por diretriz,
embora ela não se aprofunde nos fenômenos de produção e de percepção visual,
sonora e háptica, como deveria, tampouco dirija-‐se ao objeto em sua função
estética, limitando-‐se à comunicacional. Ou seja: a multimodalidade,
confortavelmente instalada no âmbito da sociosemiótica, ao abordar os objetos
culturais como mídia comunicativa, pode desestabilizar-‐se se redirecionada para
uma abordagem dos mesmos objetos em seu potencial artístico. Temos aí um belo
problema para discutir com relação aos álbuns de quadrinhos e aos livros ilustrados.
Ambos os objetos tem sua história ligada à da imprensa, que por sua vez foi
absorvida pelos estudos da Comunicação, em especial do Jornalismo. Até a pouco
tempo, nem a Letras dedicava uma mínima parte do seu repertório curricular à
história do livro ou da imprensa, tampouco as Artes Visuais que, durante décadas,
circunscreveu sua atuação, por motivos que aqui não cabe discriminar, aos limites da
chamada “grande arte”: aquela produzida para galerias e museus. Tanto quanto o
livro ilustrado, os quadrinhos nascem a partir do desenvolvimento tecnológico da
indústria gráfica, sendo praticamente coevos; muitos ilustradores chargistas
publicados em jornal eram, e são ainda, convidados à ilustrar livros infantis. Falando
do ponto de vista teórico multimodal, podemos dizer que os quadrinhos e os livros
ilustrados partem de uma mesma retórica composta de verbo e imagens [sic],
modalizada pelo design conforme um ou outro interesse. Livros ilustrados eram,
devido ao seu alto custo, direcionados à uma elite burguesa que entendia o livro
como o símbolo da alta cultura e, portanto, como instrumento pedagógico
fundamental; as histórias em quadrinhos, tal como as charges, atraíam às classes
menos favorecidas como leituras acessíveis, veiculadas em jornais e períodicos, para
o entretenimento de um público de todas as idades. Talvez por isso, os quadrinhos
não seriam levados à sério como objeto pedagógico, tal como a literatura ilustrada
infantil. Entretanto, assim como esta, os quadrinhos também não eram
reconhecidos em seu valor estético, numa época em que se discutia o efeito aurático
da obra de arte, valorizada justamente por sua irreprodutibilidade.
Desprezados em seu valor educativo, artístico e literário, a ficção gráfica
obteve reconhecimento acadêmico, tal como o livro ilustrado, apenas recentemente,
nas últimas décadas do século XX. Liberta das amarras preconceituosas que a
cercavam – as acusações iam desde a amoralidade presente nas suas narrativas até a
responsabilidade por desvios na conduta e na mente dos jovens e crianças, causando
delinquências, atrasos cognitivos, etc (VERGUEIRO; RAMOS, 2009) –, esses objetos
culturais foram absorvidos tanto pela “alta cultura” (como observado nos
movimentos da pop-‐art e da própria literatura, que já incorporava, desde James
Joyce, a onopatopeia na poesia ou na prosa, ou o discurso dialógico dos roteiros,
como em Ernest Hemingway) quanto pela cultura alternativa, produzida por e para
adultos. Aliás, embora eu desconheça estudos sobre sua recepção, é perfeitamente
observável que a faixa etária do público consumidor de quadrinhos há muito deixou
de ser majoritariamente infantil e juvenil. O fenômeno repercute no mercado
editorial, que têm investido em publicações especiais e narrativas mais complexas,
proibitivas aos menores. A única exceção é o mangá, quadrinho japonês, que
consegue, devido a características que lhe são peculiares (demarcação por sexo,
temática e estilo), abranger diferentes idades e gêneros. No Brasil, até mesmo
Maurício de Souza, criador da Turma da Mônica para o público infantil, expandiu
seus produtos em direção aos adolescentes com Turma da Mônica Jovem e em
direção aos adultos com a Série Graphic MSP, recriando os mesmos personagens em
configurações e narrativas de maior densidade.
A inserção dos quadrinhos no espaço da universidade tem não poucas
causas. Cito algumas, sem pretensão de esgotamento: uma nova geração de
admiradores acadêmicos, estudantes e professores; a já mencionada liberação
política e social, graças a desmistificação dos prejuízos causados por sua leitura; a
crescente qualidade narrativa e estética de algumas publicações, principalmente das
surgidas após a crise da indústria dos quadrinhos no pós-‐guerra, divulgadas através
de estratégias alternativas; decorrente disso, a valorização da produção autoral,
fenômeno que respingou inclusive no mercado editorial, que passou a investir nas
chamadas graphic novels. É preciso dizer que alguns quadrinhos produzidos muito
antes dessa tomada de consciência já apresentavam qualidades suficientes para sua
valorização como arte, embora tenham obtido um reconhecimento tardio; também
é preciso ressaltar que tal reconhecimento e tomada de consciência não ocorreu da
mesma forma nem com a mesma rapidez no mundo inteiro.
A localidade acadêmica para os estudos de histórias em quadrinhos também
não é a mesma, mas varia de instituição para instituição. Enquanto que, no Brasil,
observo que a maior parte da formação profissional e da pesquisa parte da
Comunicação e, mais recentemente, da Letras, na Europa, a análise crítica e teórica
surge predominantemente a partir do olhar das Artes Visuais ou de sua subárea,
aqui praticamente inexistente como percurso acadêmico: as Artes Gráficas. A base
teórica de apoio para estudos sobre quadrinhos e ilustração certamente repercute
nos seus modos de seleção e produção editorial. Enquanto que o mercado e as
instituições político-‐pedagógicas nacionais prosseguem pensando os quadrinhos da
mesma forma como se pensa o livro literário ilustrado infantil e juvenil – para o bem
e para o mal de ambos – na Europa a apreciação das artes gráficas sequenciais é
atravessada por um pensamento que visa consagrá-‐la para além do álbum impresso,
mas inclui a exibição de originais e de propostas mais ousadas em galerias de arte,
museus e bienais, tal como ocorre na França, na Bélgica ou na Alemanha.
Notem que digo tudo isso sem fugir da teoria de Kress, preocupada
justamente em diagnosticar os efeitos e as repercussões dos objetos multimodais na
sociocultura. O modo como uma comunidade se apropria e lê o objeto multimodal
transforma esse objeto em sua significação social. No caso brasileiro, é notável a
preferência por roteiros versados a partir de textos já consagrados por sua
literariedade, em preterimento da satisfação estética visual; o resultado é que a
maior parte das adaptações literárias produzidas aqui são de uma pobreza gráfica
alarmante. Algumas causas para isso podem ser sugeridas: em primeiro lugar, o
mercado editorial não especializado e acostumado à produção de livros, não
respeita o tempo necessário para a elaboração de histórias em quadrinhos, mais
demorado e complexo; além disso, o valor capital de um trabalho do autor
quadrinista se calcula de forma diferente do valor de um trabalho de um ilustrador
de livros; contudo, muitas editoras insistem em tratar a ambos dentro dos mesmos
parâmetros contratuais. Outra causa possível para a pobreza estética de algumas
publicações seria a raiz publicitária de alguns artistas quadrinistas; embora muitos
sejam realmente talentosos, sua formação criativa visual se fundamenta tendo em
vista convenções já consagradas pelo mercado e voltadas fundamentalmente para a
comunicação, carecendo de bagagem teórica, reflexão e prática artística
importantes para a renovação estética.
Alguns autores, cujo trabalho ou postura profissional não se adequa aos
padrões vigentes, têm preferido, nos últimos tempos, se abster de trabalhar para o
mercado oficial, optando pela publicação independente via crowdfunding (um
sistema de arrecadação de fundos direcionado ao leitor que investe na publicação
por via de sites especializados) ou a inscrição de projetos em prêmios e editais. Ao
lado disso, algumas editoras preferem manter uma imagem diferenciada,
especializando-‐se e investindo em obras de difícil penetração junto ao grande
público; suas edições, contudo, provavelmente permanecerão desconhecidas pelo
espaço escolar, em geral mais atento à produção de adaptações literárias,
consideradas úteis apêndices paradidáticos para posterior aproximação do cânone.
Os programas de leitura e de qualificação do acervo bibliotecário escolar,
embora tenham implementado políticas para aquisição de histórias em quadrinhos,
ainda o faz sob o prisma do literário. Assim, obras cujo roteiro não tenha por base a
literatura ou cujo sentido é dado principalmente através da figuração artística, são
raramente selecionadas. Ao lado disso, boa parte da melhor produção em
quadrinhos, por tradição da própria retórica, não poupa moral e eticamente o leitor,
trabalhando com irreverência temas de difícil aceitação pela pedagogia tradicional.
Dado este panorama cuja complexidade foi aqui apenas esboçado, resta saber então
como contribuir para com uma apreciação estética crítica e reflexiva da linguagem
dos quadrinhos, tomando como ponto de partida seu caráter multimodal.
Quadrinhos sob a ótica da multimodalidade
O objeto “história em quadrinhos” (entendido em sua unidade ontológica de
álbum ou obra e não como um processo discursivo) cumpre, em tese, todos os
requisitos para ser analisado pelo ponto de vista da teoria da multimodalidade. Já no
início de sua principal publicação, cuja última revisão foi em 2009, Gunther Kress
esclarece que o signo, enquanto partícula modal, é nada mais do que um recurso à
serviço do design, compreendido ali como um feito individual pensado em sua
comunicação com o coletivo. O designer imaginado por Kress vale-‐se dos recursos
semióticos pré-‐existentes, os reproduz, rearranja ou recompõe, alterando seus
significados, seus valores representativos e comunicacionais conforme a estrutura
multimodal por ele projetada, visando catalisar o interesse do coletivo. Kress
salienta que toda produção multimodal deve ser contextualizada como um resultado
não só da cultura em geral, mas dos meios tecnológicos e materiais para transmiti-‐la
ou veiculá-‐la; até aí nenhuma novidade, em se tratando de uma teoria pós-‐McLuhan
e pós-‐Postman. Também William J. T. Mitchell (MITCHELL; HANSEN, 2010) reitera, a
partir dos estudos culturais midiáticos, a importância do medium para produção e
veiculação de signos, assim como contesta a ideia de mídias puras (só visuais, só
auditivas, etc). O conceito de cultura proposto por Kress é igualmente amplo e inclui
desde as ferramentas e recursos usados para produzi-‐la até as práticas de interação
cultural, incluindo seus usos e empoderamentos. A própria cultura constitui o
recurso semiótico fundamental para geração de novos significados culturais.
Dito isso, eu poderia pensar nos quadrinhos como um recurso existente na
nossa cultura que pode, dadas suas características, ser compreendido facilmente por
qualquer um. Normalmente é assim que ele é abordado pela área da Educação e
mesmo na Comunicação: como um facilitador comunicacional, principalmente no
que se refere a veiculação de informações para crianças e adolescentes. Assim,
quando um designer (entendido como agente de produção, conforme Kress,
podendo ser compreendido como o artista, o autor ou o editor) serve-‐se dos
recursos retóricos dos quadrinhos para veiculação de um dado informativo, parte do
antigo princípio de que se trata de uma linguagem de entretenimento, lúdica,
própria para revestir e atenuar o caráter pedagógico. Infelizmente, esse mesmo
procedimento é aplicado à literatura enquanto objeto paradidático: é quando o
recurso semiótico “quadrinhos” apenas comunica ou informa o texto literário, sem
modalizá-‐lo verbal e pictograficamente.
Há muito que os quadrinhos deixaram de ser a linguagem referencial do
universo infantil ou juvenil, agora preenchido por jogos e animações eletrônicos tão
sofisticados que até mesmo poucos adultos os conseguem compreender. Também
os elementos (submodalidades?) que compõem a própria modalidade pictográfica se
interrelacionam de forma mais complexa e variada do que se imagina. Assim, não é
possível falar, se é que algum dia o foi, em uma unanimidade estilística reconhecível
e aprovada por crianças e jovens, já iniciadas desde a idade mais tenra na variada
estética apresentada pelas TVs à cabo e sobretudo pela Internet, para onde a maior
parte se dirige atualmente em busca de entretenimento. Os quadrinhos tornaram-‐
se, como os livros, uma opção a mais para conhecer e se apropriar de histórias, e
será sempre uma história (narrada e ilustrada ou quadrinizada levando em
consideração o seu ponto de vista estético) que irá atraí-‐los, e não simplesmente o
fato de usar o recurso.
Agora, como saber quando uma história em quadrinhos se cumpre como um
objeto multimodal eficiente? Para essa questão, a multimodalidade não oferece
resposta, porque, como Kress mesmo reconhece, trata-‐se de uma teoria que não
prevê o signo em seus dados estilísticos, ou, como diria Peirce, em seus valores
remáticos, qualissignicos. A falha na comunicação do texto literário ao ser transposto
para o formato quadrinizado deve-‐se, principalmente, a esse engano: o de achar que
simplesmente porque transfigurado para um design que aponta para sua
multimodalidade, o leitor se interessará por seus significados poéticos puramente
verbais.
Um discurso gráfico pobre, aplicado como mero substituto ou apêndice da
literatura, denotará fatalmente o fracasso comunicacional da própria literatura como
objeto multimodal junto ao leitor (lembrando que o corpo-‐texto literário,
substanciado em livro ou veiculado em tablets, é também um objeto multimodal,
cujos signos são da mesma forma projetados por um design). À essa altura, podemos
retornar à teoria de Kress, quando ele aborda as questões de poder, autoridade e
autoria. Também aqui há pouca novidade, se pensarmos em Foucault (FOUCAULT,
2006) e em Nicolas Bourriaud (BOURRIAUD, 2009). Em termos educacionais gerais,
Kress defende o empoderamento do aprendiz sobre as retóricas e recursos modais
existentes na sociocultura. Resta a questão: como jovens e crianças podem se
apoderar da linguagem dos quadrinhos sem uma mediação integral de seus signos?
Sempre há quem pense que desenhar e pintar são recursos desenvolvidos pela
intuição ou dom natural, assim como ler balões e compreender onomatopeias. Para
os que insistem nessa ideia, sugiro que analisem com atenção as publicações em
quadrinhos que andam por aí, incluindo os mangás. Os recursos de estilo na
produção de sinais gráficos, recortes de cenas pelo uso ou não de bordas e calhas, a
montagem e o ritmo dos blocos ao longo das páginas – tudo isso é tão variado e rico,
que pode tornar a leitura difícil para quem não está habituado; também muitos
sinais gráficos criados por desenhistas produzem dados emocionais específicos, que
para serem compreendidos necessitam de um conhecimento anterior. Isso sem
contar na presença de cores ou de texturas em preto e branco, fortes componentes
comunicativos não só de dados emocionais, mas também simbólicos e culturais.
Apoderar-‐se de uma história em quadrinhos, portanto, requer mais do que a leitura
do verbo. Para falar em termos de autoridade e autoria: se autorizamos a inserção
dos quadrinhos no espaço escolar, após décadas de restrições, se o admitimos como
recurso semiótico socialmente reconhecível e aos seus autores como
artistas/designers, isso não quer dizer que estamos empoderando nossos alunos ou
fornecendo recursos para que usufruam plenamente desses objetos, nem
permitindo que eles se comuniquem conosco pela mesma via. Aplicamos quadrinhos
na sala de aula, mas nem sempre permitimos que eles desenvolvam a linguagem de
modo a tornarem-‐se, eles mesmos, autores/artistas/designers. Da mesma forma,
não possibilitamos o desenvolvimento crítico, como deseja Kress, da cultura dos
quadrinhos, mas formamos meros consumidores desses objetos sobre os quais não
lhes outorgarmos o direito de escolha e apropriação. Com isso, desvalorizamos a
linguagem como conhecimento em arte e cultura.
Ao definir as funções da retórica e do design para produção de objetos
multimodais, Kress divide essa produção em dois momentos, segundo duas
entidades: o rhetor e o designer, em que o primeiro domina retórica semiótica, para
em seguida autorizar o designer a (re)produzi-‐los de forma correta conforme o
público de interesse de modo a gerar conhecimento. Ou seja, o designer é um pós-‐
produtor, um modelador de signos – articula-‐os segundo um molde, para usar a
terminologia porposta por Gilles Deleuze (DELEUZE, 2008) –, estes que se encontram
disponíveis mediante uma retórica já convencionada em uma dada sociocultura.
Posso traçar um paralelo teórico com a antropologia, sob o nome de Roy Wagner
(WAGNER, 2010), que menciona um sistema parecido em relação fenômenos que
dinamizam a cultura. No caso da história quadrinhos, cuja retórica provém
principalmente da cultura popular e urbana relacionada às tecnologias de
reprodução, é admirável o percurso que a levou à atual consagração, posição que
nem as novas mídias conseguiram usurpar, pois ele consegue reinventar-‐se,
inserindo-‐se em novos suportes e assumindo outras interfaces. Grande parte dos
sites acessados por crianças e jovens referem-‐se aos quadrinhos, jogos e filmes de
animação; comunidades juvenis não param de formar-‐se a partir da leitura de
mangás e animes. Nesses locais, a adaptação literária em quadrinhos raramente faz
parte de seus interesses. Porém, ainda que o professor de língua não se dê conta, à
revelia dessas adaptações pobres e convencionais normalmente aplicadas nas
escolas, a literatura continua, mais do que se imagina, presente nos quadrinhos, mas
não do modo como esperamos. Seus elementos, personagens, tropos, situações
narrativas, temas, abundam nas histórias gráficas, porém travestidos em recriações,
translações, transcriados em outras ambiências, outras roupagens.
Tais fenômenos, que o termo modal não abrange por ser muito vago e não
esclarecer o signo em seu aspecto sensível, poderiam ser melhor observados e
compreendidos se aplicássemos, à título de complementação, a terminologia
deleuziana que diferencia, dentro da modalidade, o modelar do modular. Para o
filósofo, em suma, a arte desenvolve um conhecimento analógico que lida com o
signo em modulação estética; na arte, o signo não de molda em forma definitiva,
fechada, impedindo sua apropriação ou reformulação, mas se modula, permitindo
que ele permaneça aberto à dinamização e à transformação contínua pelos
processos inventivos.
O obediente designer de Kress transforma-‐se, nos locais onde a escola não
alcança, num verdadeiro semionauta da literatura e da arte. Ali, ele subverte a
retórica convencional, reinventa a cultura e não mais a modela para meramente
reproduzir significados convencionais, mas modula. Com isso, ele desperta o
interesse do público, não por causa de um design premeditado validado sobre uma
retórica já existente e aprovada, mas porque, ao reconfigurar os signos já
conhecidos, descobre e permite que seu público igualmente descubra, para além de
toda a premeditação e planejamento, significados inesperados.
A arte, ao lidar com o estranhamento e o imprevisto, escapa à teoria
multimodal, tal como formulada. Esta, fundamentada na comunicação social, lida
dentro dos limites do signo já existente, de uma retórica já conhecida. Resta saber se
o que queremos da Educação é a transmissão de uma retórica estável, ou estimular
a produção criativa e ressignificativa de signos. Como os demais campos da arte,
tanto as artes visuais como a literatura merecem uma abordagem mais ampla, tanto
do ponto de vista teórico como pedagógico. Ao reunir ambas as linguagens num
discurso integrado, os quadrinhos tem potencial significativo para ir além da simples
comunicação, configurando-‐se como arte. Nem arte literária, nem arte visual, mas
arte sequencial. Para abordá-‐la, é preciso que os campos das artes visuais e das
letras se misturem, troquem suas sabedorias, estabeleçam novos parâmetros e
sistemas não totalizantes e centralizados numa única teoria, mas constelares e
rizomáticos, tão complexos quanto o seu objeto.
REFERÊNCIAS
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