quadrinhos e multimodalidade - comics and theory of multimodality

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III CIELLI – TEXTO PARA PALESTRA E SIMPÓSIO QUADRINHOS E MULTIMODALIDADE: DA PRODUÇÃO À LEITURA A TEORIA DA MULTIMODALIDADE: DISCUTINDO SUAS POSSIBILIDADES DE APLICAÇÃO NA PRODUÇÃO E LEITURA DE QUADRINHOS * THEORY MULTIMODALITY: DISCUSSING YOUR POSSIBILITIES OF APPLICATION IN PRODUCTION AND READING COMICS. Profa. Dra. Paula Mastroberti Escritora, artista visual Profa. Dra. do Instituto de Artes da UFRGS RESUMO Através deste trabalho, desejo propor uma reflexão teórica sobre os objetos ficcionais gráficos, entre eles as histórias em quadrinhos, desde as intenções e procedimentos de produção até as operações que envolvem a sua leitura, tomando a teoria da multimodalidade, proposta por Gunther Kress, por diretriz e por ponto de partida. Minha abordagem, entretanto, pretende ir além da simples proposição das possibilidades de sua aplicação sobre os fenômenos semióticos que envolvem a sua produção e leitura; é minha intenção, ao mesmo tempo, provocar um debate no que se refere a competência da abordagem multimodal quando na investigação do complexo que envolve objetos culturais como quadrinhos, livros ilustrados e seus agenciamentos. A teoria da multimodalidade, instalada confortavelmente no âmbito da sociossemiótica, corre o risco de limitar a investigação desses objetos culturais aos seus efeitos meramente comunicativos e, com isso, ela menoriza ou oblitera aspectos especialmente relevantes no caso a obra gráfica ficcional, cujo caráter artístico encontrase justamente no seu potencial de transfiguração dos dados comunicativos através de efeitos estéticos e poéticos, expandindo as possibilidades de apreciação e de leitura para além da pura decodificação computativa. Palavraschave Quadrinhos e multimodalidade leitura de quadrinhos quadrinhos e sociossemiótica quadrinhos e produção Abstract Through this work, I propose a theoretical reflection on the fictional graphic objects, including the comics, since the intentions and procedures of its production to operations that involve its reading, taking the theory of multimodality, proposed by Gunther Kress, by guideline and starting point. My * Tema comunicado no Simpósio Quadrinhos e Multimodalidade: da produção à leitura, coordenado pela autora, servindo de base para a palestra proferida em mesa conjunta com Paulo Ramos, intitulada A linguagem dos quadrinhos: convergências entre a palavra e a imagem. Ambos tiveram lugar no III CIELLI III Colóquio Internacional de Estudos Linguísticos e Literários, promovido pelo Programa de Pós Graduação em Letras da Universidade Estadual de Maringá, cidade de Maringá, PR, Brasil, de 27 a 29 de agosto de 2014.

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III  CIELLI  –  TEXTO  PARA  PALESTRA  E  SIMPÓSIO  

QUADRINHOS  E  MULTIMODALIDADE:  DA  PRODUÇÃO  À  LEITURA  

 

A  TEORIA  DA  MULTIMODALIDADE:  DISCUTINDO  SUAS  POSSIBILIDADES  DE  APLICAÇÃO  NA  PRODUÇÃO  E  LEITURA  DE  QUADRINHOS*  

THEORY  MULTIMODALITY:  DISCUSSING  YOUR  POSSIBILITIES  OF  APPLICATION  IN  PRODUCTION  AND  READING  COMICS.  

 Profa.  Dra.  Paula  Mastroberti  

Escritora,  artista  visual  Profa.  Dra.  do  Instituto  de  Artes  da  UFRGS  

 

RESUMO  

Através  deste  trabalho,  desejo  propor  uma  reflexão  teórica  sobre  os  objetos  ficcionais  gráficos,  entre  eles  as  histórias  em  quadrinhos,  desde  as  intenções  e  procedimentos  de  produção  até  as  operações  que  envolvem  a  sua  leitura,  tomando  a  teoria  da  multimodalidade,  proposta  por  Gunther  Kress,  por  diretriz   e   por   ponto   de   partida.   Minha   abordagem,   entretanto,   pretende   ir   além   da   simples  proposição  das  possibilidades  de  sua  aplicação  sobre  os   fenômenos  semióticos  que  envolvem  a  sua  produção   e   leitura;   é  minha   intenção,   ao  mesmo   tempo,   provocar   um   debate   no   que   se   refere   a  competência   da   abordagem  multimodal   quando   na   investigação   do   complexo   que   envolve   objetos  culturais   como   quadrinhos,   livros   ilustrados   e   seus   agenciamentos.   A     teoria   da   multimodalidade,  instalada   confortavelmente   no   âmbito   da   sociossemiótica,   corre   o   risco   de   limitar   a   investigação  desses   objetos   culturais   aos   seus   efeitos   meramente   comunicativos   e,   com   isso,   ela   menoriza   ou  oblitera   aspectos   especialmente   relevantes   no   caso   a   obra   gráfica   ficcional,   cujo   caráter   artístico  encontra-­‐se   justamente   no   seu   potencial   de   transfiguração   dos   dados   comunicativos   através   de  efeitos   estéticos   e   poéticos,   expandindo   as   possibilidades   de   apreciação   e   de   leitura   para   além   da  pura  decodificação  computativa.  

 Palavras-­‐chave  

Quadrinhos   e   multimodalidade   ⎯   leitura   de   quadrinhos   ⎯   quadrinhos   e   sociossemiótica   ⎯  quadrinhos  e  produção  

 

Abstract  

Through   this  work,   I   propose   a   theoretical   reflection   on   the   fictional   graphic   objects,   including   the  comics,  since  the   intentions  and  procedures  of   its  production  to  operations  that   involve   its  reading,  taking  the  theory  of  multimodality,  proposed  by  Gunther  Kress,  by  guideline  and  starting  point.  My  

                                                                                                               *  Tema  comunicado  no  Simpósio  Quadrinhos  e  Multimodalidade:  da  produção  à  leitura,  coordenado  pela  autora,  servindo  de  base  para  a  palestra  proferida  em  mesa  conjunta  com  Paulo  Ramos,  intitulada  A  linguagem  dos  quadrinhos:  convergências  entre  a  palavra  e  a  imagem.  Ambos  tiveram  lugar  no  III  CIELLI  ⎯  III  Colóquio  Internacional  de  Estudos  Linguísticos  e  Literários,  promovido  pelo  Programa  de  Pós-­‐Graduação  em  Letras  da  Universidade  Estadual  de  Maringá,  cidade  de  Maringá,  PR,  Brasil,  de  27  a  29  de  agosto  de  2014.  

 

 

approach  seeks  to  go  beyond  the  simple  proposition  of  possible  applications  of  semiotic  phenomena  that   involve  the  production  and  reading;   I   intend  to  provoke  a  debate  regarding  the  competence  of  the   multimodal   approach   when   the   research   involves   complex   cultural   objects   such   as   comics,  illustrated   books   and   other   assemblages.   The   theory   of  multimodality,   comfortably   installed   under  the   social-­‐semiothics,   runs   the   risk   of   limiting   the   investigation   over   these   cultural   objects   with   in  purely  communicative  purposes.  It  minorizes  and  obliterates  relevant  aspects  especially  in  case  of  the  fictional   graphic   work,   whose   artistic   potential   lives   on   a   transfiguration   of   communicative   data  through  aesthetic  and  poetic  effects,  expanding   the  possibilities   for  enjoyment  and  reading  beyond  the  pure  computative  decoding.  

Keywords  

Comics   and   multimodality   theory;   comics   and   reading;   comics   and   social-­‐semiothics;   comics   and  production.  

Ao  longo  da  minha  vida  como  acadêmica,  desde  os  tempos  do  mestrado  em  

Letras,  tenho  procurado  de  alguma  forma  conciliar  teoricamente  a  artista  visual  com  

a  escritora.  No  que  concerne  a  minha  prática  profissional  criativa,  escrever  e  ilustrar,  

grafar   palavras   e   imagens   não   geram   propriamente   um   conflito;   trata-­‐se  mais   de  

optar   por   um   modo   ou   outro   de   dizer   as   coisas,   usando   critérios   pessoais,  

predominantemente   intuitivos;   esses   procedimentos   se   antecipam   às   teorias  

estudadas  –  primeiro  eu   faço,  depois  explico.   Isso  não  quer  dizer  que  eu   separe  a  

acadêmica   da   artista-­‐escrivã.   Mesmo   antes   de   sistematizar   minhas   pesquisas   e  

publicá-­‐las  visando  incrementar  meu  Currículo  Lattes,  eu  já  tinha  por  hábito  anotar  

reflexões  sobre  meus  processos,  elaborar  diretrizes  para  cada  obra.  Às  vezes  são  os  

recursos  e  técnicas  os  grandes  estímulos  para  a  produção;  às  vezes  quero  executar  

uma   ideia  ou  conceito  e  vejo-­‐me  obrigada  a   testar  o  melhor   recurso  para  exprimi-­‐

los.    

 A  linguagem  dos  quadrinhos,  eu  a  enxergo  da  mesma  forma  que  enxergo  um  

texto   ilustrado  ou  um  livro  de  figuras:  como  uma  partitura  sinfônica  a  conjurar,  no  

mínimo,  duas  linhas  melódicas  discursivas,  gerando  um  efeito  potencialmente  único  

sobre  o  leitor.  Por  isso,  estou  de  acordo  com  a  ideia  de  que  quadrinhos  não  pode  ser  

literatura   (RAMOS,   2010),   se   entendermos   a   literatura   como   um   sistema   poético  

estritamente  verbal.  Da  mesma  forma,  quadrinhos  não  pode  ser  categorizado  como  

pura  poética  gráfico-­‐visual,  porque   requer  um   texto  para   sua  composição  ou  a  ela  

subjacente:   ainda   que   sem   palavras,   a   arte   sequencial   lida   e   apoia-­‐se   sobre   um  

roteiro   e   suas   rubricas,   tal   como   o   cinema   ou   o   teatro.   Esse   roteiro   pode   ser   em  

poesia   ou   em   prosa,   porém   oferece-­‐se   num   tempo   espacializado,   não  

exclusivamente  em  páginas  de  jornal  ou  de  brochura,  mas  também  midiatizado  em  

 

 

quadros   postos   numa   parede,   como   fez   o   pintor   inglês   William   Hogarth,   ou  

animados   numa   das   tantas   webcomics   que   circulam   na   Internet.   Como   observa  

Sophia   Van   der   Linden   (LINDEN,   2011),   e   conforme   eu  mesma   defendi   em  minha  

tese  de  doutorado  (MASTROBERTI,  2012),  os  quadrinhos,  como  os  livros  de  figuras  e  

os   livros   ilustrados,   são   objetos   culturais   específicos,   e   requerem  uma   abordagem  

interdisciplinar  tanto  pela  análise  teórica  quanto  pela  mediação  pedagógica.  

Tanto   quanto   o   livro   ilustrado   ou   o   livro   de   figuras,   as   histórias   em  

quadrinhos   sofrem  ainda,   apesar  de   todos  os  nossos   esforços  de  educadores   e  de  

pesquisadores,  de  um  mal  institucional:  a  falta  de  um  local  teórico  para  articulação  

de   reflexões   menos   compartimentadas,   menos   caolhas,   sobre   objetos   híbridos.  

Como  Doutora  em  Letras  e  Professora  de  Artes  Visuais,  cuja  função  exerço  a  partir  

do   campo   da   Licenciatura,   tenho   tomado   para   mim   a   responsabilidade   de  

aprofundar   meus   conhecimentos   tendo   por   objetivo   contribuir   para   com   a  

compreensão  dos   fenômenos  que  envolvem  a  produção  e  a   leitura  daquilo  que  eu  

denomino  de  objetos  poéticos  gráficos:  livros  literários  ilustrados,  artes  sequenciais,  

desenhos   animados   e   jogos   eletrônicos.   Também   a   artista   gráfica   e   escritora   com  

quase  20  anos  de  carreira  aí  se  insere  como  uma  persona  absolutamente  necessária  

para   a   desconstrução   da   superfície   já   pronta   e   acabada   desses   objetos:   a   prática  

artístico-­‐criativa   produz   um   conhecimento   que   nenhuma   teoria   –   quase   sempre  

gerada  à  partir  da  obra  terminada  –  consegue  alcançar.  

Desconfio   de   todo   autor   que   propõe   um   sistema   epistemológico   único   e  

fechado  para   dar   conta   das   pluralidades   discursivas.   Porém,   acredito   na   semiótica  

como   o   lugar   de   encontro   de   todas   as   linguagens   –   ou  modos,   como   preferirá  

Gunther  Kress   (KRESS,  2010).  A  semiótica,   fundamentada  na   filosofia,  e   tal  como  a  

conceberam   de   John   Locke   a   Charles   Sanders   Peirce,   é   –   ou   deveria   ser   –  

transdisciplinar,   interligando   ciências   exatas   e   humanas.   A   Semiótica   é,   no   meu  

entender,   o   estudo   que   se   refere   ao   modo   como   significamos,   articulamos   e  

registramos   o   que   conhecemos,   entendendo   que   toda   forma   de   conhecimento  

necessariamente   passa   pelo   signo.   É   a   base   sobre   a   qual   se   apoia   toda  

epistemologia,   como   sugerem  Michel   Foucault   (FOUCAULT,  2007),   Jacques  Derrida  

(DERRIDA,  2008)  ou  Gilles  Deleuze  e  Felix  Guattari  (DELEUZE;  GUATTARI,  2007).  É  o  

 

 

signo,   antes   de   todo   e   de   qualquer   código   linguístico,   que   nos   [re]une   em   nossa  

humanidade   dispersa   conforme   a   alegoria   babélica;   estudar   os   signos   é   estudar   a  

própria   [cons]ciência;   ela   percorre   do   corpo   biológico   ao   corpo   coletivo,   sem   se  

deter   nas   fronteiras   –   ideológicas,   culturais,   sociais   –   que  o  próprio   conhecimento  

estabelece  para  organizar-­‐se  e  difundir-­‐se.  

Toda   a   nossa   cultura   é   multimodal,   plurissemiótica,   complexa,   híbrida   –  

escolham  apenas  o  termo  mais  convergente  com  sua  base  conceitual.  Os  signos  não  

se   apresentam  puros,   em  nenhuma   circunstância,   e   dependem  do  modo   como  os  

percebemos,   como  os   lemos   e   os   articulamos   aos   demais   signos   já   experenciados  

por/em   nossos   corpos   perceptuais.   O   casaco   verde-­‐água   comprado   recentemente  

poderá  ser  classificado  como  azul  celeste  pela  vendedora  da  loja.  O  conto  Água  viva,  

de  Clarice  Lispector,  é   interpretado  como  um  romance  pelo   leitor  da  edição  de  88  

páginas.     O   pequeno   texto   Discurso   do   urso,   excertado   da   antologia   História   de  

cronópios   e   de   famas   de   Julio   Cortázar,   vira   livro   infantil   ilustrado   por   Emilio  

Urberuaga.   Os   signos   transitam   de   uma   mídia   para   outra,   transmutam-­‐se   em  

inúmeras   interfaces,   dispersam-­‐se,   reúnem-­‐se,   reciclam-­‐se   produzindo   novos  

significados.  Estudos  da  Comunicação  pouco  aferidos  por  outras  áreas  como  os  que  

envolvem   ecologia   midiática,   desenvolvido   por   Neil   Postman   (1968),   ou    

ecossemiótica,  por  Winfried  Nöth  e  Kalevi  Kull   (1998)  deveriam  ser   revisitados.  De  

fato,   vivemos   imersos   num  oceano   sígnico:   precisamos   de   signos   não   exatamente  

para  viver,  mas  para  saber  que  estamos  vivos.  

Não  é  difícil  abordar  objetos  complexos  como  livros   ilustrados  ou  álbuns  de  

quadrinhos   se   tivermos   em   vista   esses   parâmetros   epistemológicos   que  

transcendem   nossas   disciplinas   e   áreas   de   estudo.   E   cabe   esclarecer   que   não  

considero  a  Linguística  um  território  situado  ao  lado  da  Semiótica,  mas  interior  à  ela.  

Isso  porque,  ao  se  deter  na  escrita  e  na  fonética,  a  Linguística  não  dá  conta  da  figura  

para   além   da   imagem   (figura,   em   seu   sentido   original,   tropo   puramente   plástico-­‐

visual,  forma  significativa  e  não  representativa,  enquanto  que  imago  é  a  imitação,  a  

representação,   o   simulacro   que   substitui   ou   faz   sua   aparição   conforme  

interpretações  das  formas).  Ambos  os  conceitos,   imagem  e  figura,  se  entrechocam  

conforme  falamos  se  em  nome  da  Artes  ou  se  da  Letras.  Na  Semiótica,  entretanto,  

 

 

esses  conflitos  são  resolvidos  pela  abordagem  sígnica,  assumindo,  principalmente  na  

episteme  peirceneana,  valores  próprios,  discriminados  pela  lógica  triádica.  

Quando  propusemos,  eu  e  o  Prof.  Rodrigo  Borges  de  Faveri,  um  simpósio  que  

trabalhasse   com   a   temática   dos   quadrinhos   sob   a   perspectiva   da   teoria   da  

multimodalidade,  imaginei,  como  acadêmica  da  área  de  Artes  Visuais,  encontrar  um  

ponto   de   acordo   com   a   área   de   Letras   e   da   Educação.   Nessa   ocasião   ,   eu   estava  

aprofundando  minhas  leituras  sobre  a  teoria  de  Gunther  Kress,  sugerida  por  minhas  

colegas  de  pesquisa  em  Letras,  a  Profa.  Ana  Paula  Klauck  (IFSUL)  e  Profa.  Ana  Claudia  

Munari   (UNISC).   Semiólogo   envolvido   com   a   educação,   Kress   tem   desenvolvido   e  

aprimorado,  desde  os  anos  1970,  uma  teoria  que  procura  dar  conta  dos  fenômenos  

que  envolvem  a  complexidade  sígnica  dos  objetos  culturais  em  suas  relações  sociais.  

Entretanto,   a   multimodalidade,   apresentada   como   uma   boa   saída   teórica   para  

resolver  conflitos  de  ordem  terminológica  e  filosófica  entre  as  Letras  e  as  Artes,  não  

me   satisfez   completamente.   Para   começar,   ao   substituir   o   termo   linguagem   por  

modo,   ele   sugere,  ao  mesmo   tempo  em  que  admite  o   signo   linguístico   como  uma  

partícula   complexa   (multimodal),   que   qualquer   coisa   para   além   da   língua   oral   ou  

escrita  não  seja   linguagem.  O  local  de  onde  fala  Kress  é  o  do   letramento   [literacy],  

cujo  sentido  é  ainda  hoje  confundido  com  aculturamento.  Mesmo  admitindo  que  o  

letramento  não  dá  conta  de  todo  fenômeno  comunicativo  sociocultural,  a  teoria  da  

multimodalidade   parte   do   ponto   de   vista   do   verbo   como   código   primeiro   de  

comunicação  –  e,  embora  queira  rompê-­‐lo,  não  pode  superar  sua  episteme-­‐base  (é  

uma  teoria  que  se  desenvolve  a  partir  da  história  da  escrita).  A  multimodalidade,  ao  

propor-­‐se   como   paliativo   para   os   problemas   atuais   da   sociocomunicação   e   da  

leitura,   implica   a   necessária   existência   de   um   discurso   monomodal,   algo   tão  

inadmissível  quanto  a  de  uma  sociedade  monocultural.  O  princípio  teórico  de  Kress  é  

o  mesmo  que  norteia  a  dicotomia  já  em  desuso  “verbal/não-­‐verbal”.  Opõe  o  verbo  a  

todos  os  demais  códigos  ou  sistemas  semióticos,  dos  pictóricos  aos  gustativos,  cuja  

retórica  (para  usar  seus  termos)  ele  não  domina  plenamente.  Ainda  que  conteste  a  

supremacia  da  palavra,  a  multimodalidade  nela  se  fundamenta  para  analisar  e  incluir  

as   demais   linguagens   e   discursos,   algo   que   não   corresponde   aos   demais   valores  

 

 

documentais   recentemente   restaurados   pela   filosofia   e   pela   própria   história  

contemporânea.  

Falar   em   multimodal,   para   mim,   é   como   renomear   a   rosa.   Entretanto,   o  

perfume   exalado   é   o   mesmo,   e   não   há   o   que   discutir,   desde   que   entremos   em  

consenso   teórico.   Categórica   e   estruturalista   (mesmo   em   sua   revisão   de   2009),   a  

teoria   de   Kress   facilita   o   dissecamento   dos   signos,   ainda   que   em   nível   superficial.  

Imbuída  de  um  viés  sociológico,  ela  também  possibilita  uma  interação  menos  árdua  

entre  a  Semiótica  e  a  Educação.  Aparentemente,  é  em  nome  da  pragmaticidade  que  

Kress   abdica   da   abordagem   peirceneana,   embora   não   justifique   essa   decisão   da  

mesma   forma   como   fez   em   relação   a   de   Saussure.   Mesmo   assim,   a   intenção  

pragmática   mostra-­‐se   ainda   fundamentada   num   pensamento   estruturalista,  

claramente  superada  quando  pensamos  na  pedagogia  mais  recente,  sustentada  por  

nomes  como  María  Acaso  (ACASO,  2012).  

Como  meu  maior  interesse  é  propor  uma  reflexão  ampla  à  ponto  de  abraçar  

os  objetos  ficcionais  gráficos  em  sua  relação  com  a  sociocultura  –  neste  momento,  

falarei   das   histórias   em   quadrinhos   –   tomarei   a   multimodalidade   por   diretriz,  

embora   ela   não   se   aprofunde  nos   fenômenos  de  produção  e   de  percepção   visual,  

sonora   e   háptica,   como   deveria,   tampouco   dirija-­‐se   ao   objeto   em   sua   função  

estética,   limitando-­‐se   à   comunicacional.   Ou   seja:   a   multimodalidade,  

confortavelmente   instalada   no   âmbito   da   sociosemiótica,   ao   abordar   os   objetos  

culturais   como   mídia   comunicativa,   pode   desestabilizar-­‐se   se   redirecionada   para  

uma  abordagem  dos  mesmos  objetos  em  seu  potencial  artístico.  Temos  aí  um  belo  

problema  para  discutir  com  relação  aos  álbuns  de  quadrinhos  e  aos  livros  ilustrados.  

Ambos  os  objetos  tem  sua  história  ligada  à  da  imprensa,  que  por  sua  vez  foi  

absorvida  pelos   estudos  da  Comunicação,   em  especial   do   Jornalismo.  Até   a  pouco  

tempo,   nem   a   Letras   dedicava   uma   mínima   parte   do   seu   repertório   curricular   à  

história  do   livro  ou  da   imprensa,   tampouco  as  Artes  Visuais  que,  durante  décadas,  

circunscreveu  sua  atuação,  por  motivos  que  aqui  não  cabe  discriminar,  aos  limites  da  

chamada   “grande  arte”:   aquela  produzida  para  galerias  e  museus.   Tanto  quanto  o  

livro   ilustrado,   os   quadrinhos   nascem   a   partir   do   desenvolvimento   tecnológico   da  

indústria   gráfica,   sendo   praticamente   coevos;   muitos   ilustradores   chargistas  

 

 

publicados  em  jornal  eram,  e  são  ainda,  convidados  à  ilustrar  livros  infantis.  Falando  

do  ponto  de  vista  teórico  multimodal,  podemos  dizer  que  os  quadrinhos  e  os  livros  

ilustrados   partem   de   uma   mesma   retórica   composta   de   verbo   e   imagens   [sic],  

modalizada   pelo   design   conforme   um   ou   outro   interesse.   Livros   ilustrados   eram,  

devido   ao   seu   alto   custo,   direcionados   à   uma   elite   burguesa   que   entendia   o   livro  

como   o   símbolo   da   alta   cultura   e,   portanto,   como   instrumento   pedagógico  

fundamental;   as   histórias   em   quadrinhos,   tal   como   as   charges,   atraíam   às   classes  

menos  favorecidas  como  leituras  acessíveis,  veiculadas  em  jornais  e  períodicos,  para  

o  entretenimento  de  um  público  de  todas  as  idades.  Talvez  por  isso,  os  quadrinhos  

não  seriam  levados  à  sério  como  objeto  pedagógico,  tal  como  a   literatura   ilustrada  

infantil.   Entretanto,   assim   como   esta,   os   quadrinhos   também   não   eram  

reconhecidos  em  seu  valor  estético,  numa  época  em  que  se  discutia  o  efeito  aurático  

da  obra  de  arte,  valorizada  justamente  por  sua  irreprodutibilidade.  

Desprezados   em   seu   valor   educativo,   artístico   e   literário,   a   ficção   gráfica  

obteve  reconhecimento  acadêmico,  tal  como  o  livro  ilustrado,  apenas  recentemente,  

nas   últimas   décadas   do   século   XX.   Liberta   das   amarras   preconceituosas   que   a  

cercavam  –  as  acusações  iam  desde  a  amoralidade  presente  nas  suas  narrativas  até  a  

responsabilidade  por  desvios  na  conduta  e  na  mente  dos  jovens  e  crianças,  causando  

delinquências,   atrasos   cognitivos,   etc   (VERGUEIRO;  RAMOS,  2009)   –,   esses  objetos  

culturais   foram   absorvidos   tanto   pela   “alta   cultura”   (como   observado   nos  

movimentos   da   pop-­‐art   e   da   própria   literatura,   que   já   incorporava,   desde   James  

Joyce,   a   onopatopeia   na   poesia   ou   na   prosa,   ou   o   discurso   dialógico   dos   roteiros,  

como  em  Ernest  Hemingway)  quanto  pela  cultura  alternativa,  produzida  por  e  para  

adultos.  Aliás,  embora  eu  desconheça  estudos  sobre  sua  recepção,  é  perfeitamente  

observável  que  a  faixa  etária  do  público  consumidor  de  quadrinhos  há  muito  deixou  

de   ser   majoritariamente   infantil   e   juvenil.   O   fenômeno   repercute   no   mercado  

editorial,  que  têm   investido  em  publicações  especiais  e  narrativas  mais  complexas,  

proibitivas   aos   menores.   A   única   exceção   é   o   mangá,   quadrinho   japonês,   que  

consegue,   devido   a   características   que   lhe   são   peculiares   (demarcação   por   sexo,  

temática   e   estilo),   abranger   diferentes   idades   e   gêneros.   No   Brasil,   até   mesmo  

Maurício   de   Souza,   criador   da   Turma   da  Mônica   para   o   público   infantil,   expandiu  

 

 

seus   produtos   em   direção   aos   adolescentes   com   Turma   da   Mônica   Jovem   e   em  

direção  aos  adultos  com  a  Série  Graphic  MSP,  recriando  os  mesmos  personagens  em  

configurações  e  narrativas  de  maior  densidade.  

A   inserção   dos   quadrinhos   no   espaço   da   universidade   tem   não   poucas  

causas.   Cito   algumas,   sem   pretensão   de   esgotamento:   uma   nova   geração   de  

admiradores   acadêmicos,   estudantes   e   professores;   a   já   mencionada   liberação  

política   e   social,   graças   a  desmistificação  dos  prejuízos   causados  por   sua   leitura;   a  

crescente  qualidade  narrativa  e  estética  de  algumas  publicações,  principalmente  das  

surgidas  após  a  crise  da  indústria  dos  quadrinhos  no  pós-­‐guerra,  divulgadas  através  

de   estratégias   alternativas;   decorrente   disso,   a   valorização   da   produção   autoral,  

fenômeno  que   respingou   inclusive  no  mercado  editorial,  que  passou  a   investir  nas  

chamadas  graphic  novels.   É  preciso  dizer  que  alguns  quadrinhos  produzidos  muito  

antes  dessa  tomada  de  consciência  já  apresentavam  qualidades  suficientes  para  sua  

valorização  como  arte,  embora  tenham  obtido  um  reconhecimento  tardio;  também  

é  preciso  ressaltar  que  tal  reconhecimento  e  tomada  de  consciência  não  ocorreu  da  

mesma  forma  nem  com  a  mesma  rapidez  no  mundo  inteiro.  

A  localidade  acadêmica  para  os  estudos  de  histórias  em  quadrinhos  também  

não  é  a  mesma,  mas  varia  de   instituição  para   instituição.  Enquanto  que,  no  Brasil,  

observo   que   a   maior   parte   da   formação   profissional   e   da   pesquisa   parte   da  

Comunicação  e,  mais  recentemente,  da  Letras,  na  Europa,  a  análise  crítica  e  teórica  

surge   predominantemente   a   partir   do   olhar   das   Artes   Visuais   ou   de   sua   subárea,  

aqui  praticamente   inexistente  como  percurso  acadêmico:  as  Artes  Gráficas.  A  base  

teórica  de  apoio  para  estudos  sobre  quadrinhos  e   ilustração  certamente   repercute  

nos   seus   modos   de   seleção   e   produção   editorial.   Enquanto   que   o   mercado   e   as  

instituições  político-­‐pedagógicas  nacionais  prosseguem  pensando  os  quadrinhos  da  

mesma  forma  como  se  pensa  o  livro  literário  ilustrado  infantil  e  juvenil  –  para  o  bem  

e   para   o  mal   de   ambos   –   na   Europa   a   apreciação   das   artes   gráficas   sequenciais   é  

atravessada  por  um  pensamento  que  visa  consagrá-­‐la  para  além  do  álbum  impresso,  

mas  inclui  a  exibição  de  originais  e  de  propostas  mais  ousadas  em  galerias  de  arte,  

museus  e  bienais,  tal  como  ocorre  na  França,  na  Bélgica  ou  na  Alemanha.  

 

 

Notem   que   digo   tudo   isso   sem   fugir   da   teoria   de   Kress,   preocupada  

justamente  em  diagnosticar  os  efeitos  e  as  repercussões  dos  objetos  multimodais  na  

sociocultura.  O  modo  como  uma  comunidade  se  apropria  e   lê  o  objeto  multimodal  

transforma   esse   objeto   em   sua   significação   social.   No   caso   brasileiro,   é   notável   a  

preferência   por   roteiros   versados   a   partir   de   textos   já   consagrados   por   sua  

literariedade,   em   preterimento   da   satisfação   estética   visual;   o   resultado   é   que   a  

maior   parte   das   adaptações   literárias   produzidas   aqui   são  de  uma  pobreza   gráfica  

alarmante.   Algumas   causas   para   isso   podem   ser   sugeridas:   em   primeiro   lugar,   o  

mercado   editorial   não   especializado   e   acostumado   à   produção   de   livros,   não  

respeita   o   tempo   necessário   para   a   elaboração   de   histórias   em   quadrinhos,   mais  

demorado   e   complexo;   além   disso,   o   valor   capital   de   um   trabalho   do   autor  

quadrinista  se  calcula  de  forma  diferente  do  valor  de  um  trabalho  de  um  ilustrador  

de  livros;  contudo,  muitas  editoras  insistem  em  tratar  a  ambos  dentro  dos  mesmos  

parâmetros   contratuais.   Outra   causa   possível   para   a   pobreza   estética   de   algumas  

publicações   seria   a   raiz   publicitária  de   alguns   artistas  quadrinistas;   embora  muitos  

sejam  realmente   talentosos,   sua   formação  criativa  visual   se   fundamenta   tendo  em  

vista  convenções  já  consagradas  pelo  mercado  e  voltadas  fundamentalmente  para  a  

comunicação,   carecendo   de   bagagem   teórica,   reflexão   e   prática   artística  

importantes  para  a  renovação  estética.  

Alguns   autores,   cujo   trabalho   ou   postura   profissional   não   se   adequa   aos  

padrões  vigentes,  têm  preferido,  nos  últimos  tempos,  se  abster  de  trabalhar  para  o  

mercado   oficial,   optando   pela   publicação   independente   via   crowdfunding   (um  

sistema  de  arrecadação  de   fundos  direcionado  ao   leitor  que   investe  na  publicação  

por  via  de  sites  especializados)  ou  a   inscrição  de  projetos  em  prêmios  e  editais.  Ao  

lado   disso,   algumas   editoras   preferem   manter   uma   imagem   diferenciada,  

especializando-­‐se   e   investindo   em   obras   de   difícil   penetração   junto   ao   grande  

público;   suas   edições,   contudo,   provavelmente   permanecerão   desconhecidas   pelo  

espaço   escolar,   em   geral   mais   atento   à   produção   de   adaptações   literárias,  

consideradas  úteis  apêndices  paradidáticos  para  posterior  aproximação  do  cânone.  

Os   programas   de   leitura   e   de   qualificação   do   acervo   bibliotecário   escolar,  

embora  tenham  implementado  políticas  para  aquisição  de  histórias  em  quadrinhos,  

 

 

ainda  o  faz  sob  o  prisma  do  literário.  Assim,  obras  cujo  roteiro  não  tenha  por  base  a  

literatura  ou  cujo  sentido  é  dado  principalmente    através  da  figuração  artística,  são  

raramente   selecionadas.   Ao   lado   disso,   boa   parte   da   melhor   produção   em  

quadrinhos,  por  tradição  da  própria  retórica,  não  poupa  moral  e  eticamente  o  leitor,  

trabalhando  com  irreverência  temas  de  difícil  aceitação  pela  pedagogia  tradicional.  

Dado  este  panorama  cuja  complexidade  foi  aqui  apenas  esboçado,  resta  saber  então  

como  contribuir  para  com  uma  apreciação  estética  crítica  e   reflexiva  da   linguagem  

dos  quadrinhos,  tomando  como  ponto  de  partida  seu  caráter  multimodal.  

 

Quadrinhos  sob  a  ótica  da  multimodalidade  

O  objeto  “história  em  quadrinhos”  (entendido  em  sua  unidade  ontológica  de  

álbum   ou   obra   e   não   como   um   processo   discursivo)   cumpre,   em   tese,   todos   os  

requisitos  para  ser  analisado  pelo  ponto  de  vista  da  teoria  da  multimodalidade.  Já  no  

início   de   sua   principal   publicação,   cuja   última   revisão   foi   em   2009,   Gunther   Kress  

esclarece  que  o  signo,  enquanto  partícula  modal,  é  nada  mais  do  que  um  recurso  à  

serviço   do   design,   compreendido   ali   como   um   feito   individual   pensado   em   sua  

comunicação   com  o   coletivo.  O  designer   imaginado  por  Kress   vale-­‐se  dos   recursos  

semióticos   pré-­‐existentes,   os   reproduz,   rearranja   ou   recompõe,   alterando   seus  

significados,   seus   valores   representativos   e   comunicacionais   conforme   a   estrutura  

multimodal     por   ele   projetada,   visando   catalisar   o   interesse   do   coletivo.   Kress  

salienta  que  toda  produção  multimodal  deve  ser  contextualizada  como  um  resultado  

não  só  da  cultura  em  geral,  mas  dos  meios  tecnológicos  e  materiais  para  transmiti-­‐la  

ou  veiculá-­‐la;  até  aí  nenhuma  novidade,  em  se  tratando  de  uma  teoria  pós-­‐McLuhan  

e  pós-­‐Postman.  Também  William  J.  T.  Mitchell  (MITCHELL;  HANSEN,  2010)  reitera,  a  

partir   dos  estudos   culturais  midiáticos,   a   importância  do  medium   para  produção  e  

veiculação   de   signos,   assim   como   contesta   a   ideia   de  mídias   puras   (só   visuais,   só  

auditivas,  etc).  O  conceito  de  cultura  proposto  por  Kress  é  igualmente  amplo  e  inclui  

desde  as  ferramentas  e  recursos  usados  para  produzi-­‐la  até  as  práticas  de  interação  

cultural,   incluindo   seus   usos   e   empoderamentos.   A   própria   cultura   constitui   o  

recurso  semiótico  fundamental  para  geração  de  novos  significados  culturais.  

 

 

Dito   isso,  eu  poderia  pensar  nos  quadrinhos  como  um  recurso  existente  na  

nossa  cultura  que  pode,  dadas  suas  características,  ser  compreendido  facilmente  por  

qualquer   um.  Normalmente   é   assim   que   ele   é   abordado   pela   área   da   Educação   e  

mesmo   na   Comunicação:   como   um   facilitador   comunicacional,   principalmente   no  

que   se   refere   a   veiculação   de   informações   para   crianças   e   adolescentes.   Assim,  

quando   um   designer   (entendido   como   agente   de   produção,   conforme   Kress,  

podendo   ser   compreendido   como   o   artista,   o   autor   ou   o   editor)   serve-­‐se   dos  

recursos  retóricos  dos  quadrinhos  para  veiculação  de  um  dado  informativo,  parte  do  

antigo   princípio   de   que   se   trata   de   uma   linguagem   de   entretenimento,   lúdica,  

própria   para   revestir   e   atenuar   o   caráter   pedagógico.   Infelizmente,   esse   mesmo  

procedimento   é   aplicado   à   literatura   enquanto   objeto   paradidático:   é   quando   o  

recurso  semiótico  “quadrinhos”  apenas  comunica  ou   informa  o  texto   literário,  sem  

modalizá-­‐lo  verbal  e  pictograficamente.  

Há   muito   que   os   quadrinhos   deixaram   de   ser   a   linguagem   referencial   do  

universo  infantil  ou  juvenil,  agora  preenchido  por  jogos  e  animações  eletrônicos  tão  

sofisticados  que  até  mesmo  poucos  adultos  os   conseguem  compreender.   Também  

os  elementos  (submodalidades?)  que  compõem  a  própria  modalidade  pictográfica  se  

interrelacionam  de  forma  mais  complexa  e  variada  do  que  se  imagina.  Assim,  não  é  

possível  falar,  se  é  que  algum  dia  o  foi,  em  uma  unanimidade  estilística  reconhecível  

e  aprovada  por  crianças  e   jovens,   já   iniciadas  desde  a   idade  mais   tenra  na  variada  

estética  apresentada  pelas  TVs  à  cabo  e  sobretudo  pela  Internet,  para  onde  a  maior  

parte  se  dirige  atualmente  em  busca  de  entretenimento.  Os  quadrinhos   tornaram-­‐

se,   como  os   livros,  uma  opção  a  mais  para   conhecer  e   se  apropriar  de  histórias,   e  

será   sempre   uma   história   (narrada   e   ilustrada   ou   quadrinizada   levando   em  

consideração  o  seu  ponto  de  vista  estético)  que  irá  atraí-­‐los,  e  não  simplesmente  o  

fato  de  usar  o  recurso.    

Agora,  como  saber  quando  uma  história  em  quadrinhos  se  cumpre  como  um  

objeto   multimodal   eficiente?   Para   essa   questão,   a   multimodalidade   não   oferece  

resposta,   porque,   como   Kress  mesmo   reconhece,   trata-­‐se   de   uma   teoria   que   não  

prevê   o   signo   em   seus   dados   estilísticos,   ou,   como   diria   Peirce,   em   seus   valores  

remáticos,  qualissignicos.  A  falha  na  comunicação  do  texto  literário  ao  ser  transposto  

 

 

para  o  formato  quadrinizado  deve-­‐se,  principalmente,  a  esse  engano:  o  de  achar  que  

simplesmente   porque   transfigurado   para   um   design   que   aponta   para   sua  

multimodalidade,   o   leitor   se   interessará   por   seus   significados   poéticos   puramente  

verbais.  

Um  discurso   gráfico   pobre,   aplicado   como  mero   substituto   ou   apêndice   da  

literatura,  denotará  fatalmente  o  fracasso  comunicacional  da  própria  literatura  como  

objeto   multimodal   junto   ao   leitor   (lembrando   que   o   corpo-­‐texto   literário,  

substanciado   em   livro   ou   veiculado   em   tablets,   é   também  um  objeto  multimodal,  

cujos  signos  são  da  mesma  forma  projetados  por  um  design).  À  essa  altura,  podemos  

retornar  à   teoria  de  Kress,  quando  ele  aborda  as  questões  de  poder,  autoridade  e  

autoria.   Também  aqui  há  pouca  novidade,   se  pensarmos  em  Foucault   (FOUCAULT,  

2006)  e  em  Nicolas  Bourriaud  (BOURRIAUD,  2009).  Em  termos  educacionais  gerais,  

Kress  defende  o  empoderamento  do  aprendiz  sobre  as  retóricas  e  recursos  modais  

existentes   na   sociocultura.   Resta   a   questão:   como   jovens   e   crianças   podem   se  

apoderar  da  linguagem  dos  quadrinhos  sem  uma  mediação  integral  de  seus  signos?  

Sempre   há   quem   pense   que   desenhar   e   pintar   são   recursos   desenvolvidos   pela  

intuição  ou  dom  natural,  assim  como  ler  balões  e  compreender  onomatopeias.  Para  

os   que   insistem   nessa   ideia,   sugiro   que   analisem   com   atenção   as   publicações   em  

quadrinhos   que   andam   por   aí,   incluindo   os   mangás.   Os   recursos   de   estilo   na  

produção  de  sinais  gráficos,  recortes  de  cenas  pelo  uso  ou  não  de  bordas  e  calhas,  a  

montagem  e  o  ritmo  dos  blocos  ao  longo  das  páginas  –  tudo  isso  é  tão  variado  e  rico,  

que   pode   tornar   a   leitura   difícil   para   quem   não   está   habituado;   também   muitos  

sinais  gráficos  criados  por  desenhistas  produzem  dados  emocionais  específicos,  que  

para   serem   compreendidos   necessitam   de   um   conhecimento   anterior.   Isso   sem  

contar  na  presença  de  cores  ou  de  texturas  em  preto  e  branco,  fortes  componentes  

comunicativos   não   só   de   dados   emocionais,   mas   também   simbólicos   e   culturais.  

Apoderar-­‐se  de  uma  história  em  quadrinhos,  portanto,  requer  mais  do  que  a  leitura  

do  verbo.  Para  falar  em  termos  de  autoridade  e  autoria:  se  autorizamos  a   inserção  

dos  quadrinhos  no  espaço  escolar,  após  décadas  de  restrições,  se  o  admitimos  como  

recurso   semiótico   socialmente   reconhecível   e   aos   seus   autores   como  

artistas/designers,  isso  não  quer  dizer  que  estamos  empoderando  nossos  alunos  ou  

 

 

fornecendo   recursos   para   que   usufruam   plenamente   desses   objetos,   nem  

permitindo  que  eles  se  comuniquem  conosco  pela  mesma  via.  Aplicamos  quadrinhos  

na  sala  de  aula,  mas  nem  sempre  permitimos  que  eles  desenvolvam  a  linguagem  de  

modo   a   tornarem-­‐se,   eles   mesmos,   autores/artistas/designers.   Da   mesma   forma,  

não   possibilitamos   o   desenvolvimento   crítico,   como   deseja   Kress,   da   cultura   dos  

quadrinhos,  mas  formamos  meros  consumidores  desses  objetos  sobre  os  quais  não  

lhes   outorgarmos   o   direito   de   escolha   e   apropriação.   Com   isso,   desvalorizamos   a  

linguagem  como  conhecimento  em  arte  e  cultura.  

Ao   definir   as   funções   da   retórica   e   do   design   para   produção   de   objetos  

multimodais,   Kress   divide   essa   produção   em   dois   momentos,   segundo   duas  

entidades:  o  rhetor  e  o  designer,  em  que  o  primeiro  domina  retórica  semiótica,  para  

em   seguida   autorizar   o   designer   a   (re)produzi-­‐los   de   forma   correta   conforme   o  

público  de  interesse  de  modo  a  gerar  conhecimento.  Ou  seja,  o  designer  é  um  pós-­‐

produtor,   um  modelador   de   signos   –   articula-­‐os   segundo   um  molde,   para   usar   a  

terminologia  porposta  por  Gilles  Deleuze  (DELEUZE,  2008)  –,  estes  que  se  encontram  

disponíveis   mediante   uma   retórica   já   convencionada   em   uma   dada   sociocultura.  

Posso   traçar  um  paralelo   teórico   com  a  antropologia,   sob  o  nome  de  Roy  Wagner  

(WAGNER,   2010),   que  menciona   um   sistema   parecido   em   relação   fenômenos   que  

dinamizam   a   cultura.   No   caso   da   história   quadrinhos,   cuja   retórica   provém  

principalmente   da   cultura   popular   e   urbana   relacionada   às   tecnologias   de  

reprodução,   é   admirável   o  percurso  que  a   levou  à   atual   consagração,   posição  que  

nem   as   novas   mídias   conseguiram   usurpar,   pois   ele   consegue   reinventar-­‐se,  

inserindo-­‐se   em   novos   suportes   e   assumindo   outras   interfaces.   Grande   parte   dos  

sites  acessados  por  crianças  e   jovens  referem-­‐se  aos  quadrinhos,   jogos  e   filmes  de  

animação;   comunidades   juvenis   não   param   de   formar-­‐se   a   partir   da   leitura   de  

mangás  e  animes.  Nesses  locais,  a  adaptação  literária  em  quadrinhos  raramente  faz  

parte  de  seus  interesses.  Porém,  ainda  que  o  professor  de  língua  não  se  dê  conta,  à  

revelia   dessas   adaptações   pobres   e   convencionais   normalmente   aplicadas   nas  

escolas,  a  literatura  continua,  mais  do  que  se  imagina,  presente  nos  quadrinhos,  mas  

não   do   modo   como   esperamos.   Seus   elementos,   personagens,   tropos,   situações  

 

 

narrativas,  temas,  abundam  nas  histórias  gráficas,  porém  travestidos  em  recriações,  

translações,  transcriados  em  outras  ambiências,  outras  roupagens.  

Tais  fenômenos,  que  o  termo  modal  não  abrange  por  ser  muito  vago  e  não  

esclarecer   o   signo   em   seu   aspecto   sensível,   poderiam   ser   melhor   observados   e  

compreendidos   se   aplicássemos,   à   título   de   complementação,   a   terminologia  

deleuziana   que   diferencia,   dentro   da  modalidade,   o  modelar   do  modular.   Para   o  

filósofo,   em   suma,   a   arte   desenvolve   um   conhecimento   analógico   que   lida   com   o  

signo   em  modulação   estética;   na   arte,   o   signo   não  de  molda   em   forma  definitiva,  

fechada,   impedindo   sua   apropriação  ou   reformulação,  mas   se  modula,   permitindo  

que   ele   permaneça   aberto   à   dinamização   e   à   transformação   contínua   pelos  

processos  inventivos.    

O  obediente  designer  de  Kress   transforma-­‐se,  nos   locais  onde  a  escola  não  

alcança,   num   verdadeiro   semionauta   da   literatura   e   da   arte.   Ali,   ele   subverte   a  

retórica   convencional,   reinventa   a   cultura   e   não   mais   a  modela   para   meramente  

reproduzir   significados   convencionais,   mas   modula.   Com   isso,   ele   desperta   o  

interesse  do  público,  não  por  causa  de  um  design  premeditado  validado  sobre  uma  

retórica   já   existente   e   aprovada,   mas   porque,   ao   reconfigurar   os   signos   já  

conhecidos,  descobre  e  permite  que  seu  público  igualmente  descubra,  para  além  de  

toda  a  premeditação  e  planejamento,  significados  inesperados.  

A   arte,   ao   lidar   com   o   estranhamento   e   o   imprevisto,   escapa   à   teoria  

multimodal,   tal   como   formulada.   Esta,   fundamentada   na   comunicação   social,   lida  

dentro  dos  limites  do  signo  já  existente,  de  uma  retórica  já  conhecida.  Resta  saber  se  

o  que  queremos  da  Educação  é  a  transmissão  de  uma  retórica  estável,  ou  estimular  

a   produção   criativa   e   ressignificativa   de   signos.   Como   os   demais   campos   da   arte,  

tanto  as  artes  visuais  como  a  literatura  merecem  uma  abordagem  mais  ampla,  tanto  

do   ponto   de   vista   teórico   como   pedagógico.   Ao   reunir   ambas   as   linguagens   num  

discurso  integrado,  os  quadrinhos  tem  potencial  significativo  para  ir  além  da  simples  

comunicação,   configurando-­‐se   como  arte.  Nem  arte   literária,  nem  arte   visual,  mas  

arte   sequencial.   Para   abordá-­‐la,   é   preciso   que   os   campos   das   artes   visuais   e   das  

letras   se   misturem,   troquem   suas   sabedorias,   estabeleçam   novos   parâmetros   e  

 

 

sistemas   não   totalizantes   e   centralizados   numa   única   teoria,   mas   constelares   e  

rizomáticos,  tão  complexos  quanto  o  seu  objeto.  

 

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DELEUZE,   Gilles.   Pintura:   el   concepto   de   diagrama.   Buenos   Aires:   Cactus,   2008,   1a  reimpressão.  

DERRIDA,  Jacques.  Gramatologia.  São  Paulo:  Perspectiva,  2008.  

FOUCAULT,  Michel.  As  palavras  e  as  coisas.  São  paulo:  Martins  Fontes,  2007.  

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LINDEN,  Sophie  Van  der.  Para  ler  o  livro  ilustrado.  São  Paulo:  Cosacnaify,  2011.  

MASTROBERTI,  Paula.  Poéticas  verbais  e  visuais  em  Peter  Pan  e  Wendy:  um  encontro  empírico  entre  livro  e  leitor  na  cultura  das  mídias.  Tese  de  doutorado.  Faculdade  de  Letras  da  Pontifícia  Universidade  católica  do  Rio  Grande  do  Sul,  Porto  Alegre,  2012.  Disponível  em:  http://tede.pucrs.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=4008.  Data  de  acesso:  abril  de  2012.  

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WAGNER,  Roy.  A  invenção  da  cultura.  São  Paulo:  Cosacnaify,  2010.  

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