Execrando suspeitos para atrair audiência: o uso de
concessões públicas de TV para a prática de violações do
direito constitucional à imagem
Túlio Vianna
Doutor em Direito pela UFPR e Mestre emDireito pela UFMG
Professor Adjunto de Direito Penal daUFMG
Jamilla Sarkis
Bacharelanda em Direito pela UFMG
Pesquisadora do Grupo de Pesquisa “Aregulação penal dos corpos” da UFMG
SUMÁRIO
1. O datenismo; 2. As entrelinhas do discurso sensacionalista; 3. Violações de
direitos em concessões públicas de TV; 4. Conclusão; 5. Bibliografia
1
Como citar este artigo:
VIANNA, Túlio. SARKIS, Jamilla. Execrando suspeitos para atrair audiência:
o uso de concessões públicas de TV para a prática de violações do direito
constitucional à imagem. In: CLÈVE, Clèmerson Merlin; FREIRE, Alexandre
(Coords.). Direitos fundamentais e jurisdição constitucional: análise, crítica
e contribuições. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. p.785-800.
ISBN: 9788520354490.
1. O datenismo
“Datena: Ô, Juneca, você que matou o rapaz?
Juneca: Que foi, foi, né?! Mas o cara tentou estrupar (sic) uma menina inocente e isto
não é admissível, não!
Datena: E então, você, o que é que é?! Você é juiz? Para matar alguém, pra executar
alguém. Você é juiz?
Juneca: Eu? Juiz?
Datena: É, porque você matou o cara. Você culpou o cara e matou o cara. Então você é
juiz? Você é juiz pra matar?
Juneca: O juiz é Deus, não sou eu, não!
Datena: Mas você matou o cara friamente, na maior boa. Você já matou alguém?
Juneca: Na maior boa, não!
Datena: Você já matou alguém?
Juneca: Não.
Datena: Você está rindo. Você matou um cara e está rindo, velho.
Juneca: Eu estou rindo?
Datena: Você não está rindo aí?
Juneca: Lógico que não!
Datena: Mas como não? Você está rindo, está todo mundo vendo que você está rindo.
O que você acha de ter matado o cara?
Juneca: Eu? O cara era estrupador (sic), tentou violentar a menina. Foi o certo a se
fazer!”
Datena: Cara, mas tem prova que ele tentou estuprar a menina?
Juneca: Tem!
2
Datena: Tem prova? Oh, Marcelo, tem prova que ele tentou estuprar a menina,
Marcelo?
Marcelo: Não, esta história é a defesa dele, Datena. Esta história é a defesa dele.
Datena: Mas ele não estuprou ninguém?
Marcelo: Não estuprou ninguém! Quem contratou ele que falou...
Datena: Vem cá, oh, Juneca, você recebeu pra matar a menina (sic)?
Juneca: Não, não recebi pra matar ninguém, não que este negócio de receber pra
matar é coisa de pé-de-pato e a gente não é isso, não!
Datena: Você matou então pra fazer favor pra alguém?
Juneca: Não! Pelo certo! O justo e o correto!
Datena: Cara, mas você não é juiz. Você gostaria que um cara te desse um tiro na cara
agora, por exemplo? Se a polícia não te prendesse...
Juneca: Se eu fizesse alguma fita dessa eu merecia. Era mais do que merecido!
Datena: Cara, mas não está provado que o cara violentou a menina. Não existe nada
disso! Você matou a menina (sic) sem saber se ele estuprou, se ele não estuprou. Você
matou de bobeira a menina (sic), velho. Eu não vou ficar escrachando você aqui,
porque na verdade eu acho você um bosta. Eu acho! Mas não vou ficar escrachando
você aqui, porque você é matador, velho! E fica rindo na cara dos outros. Fica rindo na
cara dos outros, depois de matar uma pessoa e se achar o bam-bam-bam. É por isso
que este país aqui está no que está. Não quer mais falar com este cara, não! Tira este
cara daí! Pô, o cara pensa que é o quê? Mata os outros e fica rindo da cara de todo
mundo... tem que aguentar...” 1
Quem assiste diariamente ao programa Brasil Urgente, apresentado por José
Luiz Datena, deve ter se surpreendido com o diálogo acima transcrito. Datena que em
seu programa julga e condena suspeitos da prática de crimes, neste dia resolveu
condenar veementemente um suspeito que teria julgado e condenado um homem a
morte por uma suposta tentativa de estupro.
1 Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=8EQwyW_NVsA> Acesso em: 30 de setembro de2013.
3
A crítica de Datena a Juneca poderia ser perfeitamente devolvida ao próprio
apresentador, com pouquíssimas modificações: “Você é juiz, Datena? Para condenar
suspeitos na TV? Você é juiz?” ou “Cara, mas tem prova de autoria destes crimes que
você exibe em seu programa?” ou “Vem cá, oh, Datena, você recebeu pra condenar
estes suspeitos no programa?” ou “ Você expõe estas pessoas no programa a pedido do
seu chefe?” ou “Cara, mas você não é juiz. Você gostaria que um cara te execrasse em
um programa de TV pela suspeita da prática de um crime?” ou, finalmente, “Cara, mas
não está provado que nenhum de seus personagens praticou qualquer crime. Não existe
nada disso! Você execra suspeitos na TV sem saber se eles praticaram o crime ou se eles
não praticaram. Você execra pessoas na TV de bobeira, velho! Fica rindo na cara dos
outros, depois de escrachar pessoas sem provas na TV e se acha o bam-bam-bam. É por
isso que este país está no que está.”
Infelizmente Datena não é um caso isolado na TV aberta brasileira. Quem
ligar a televisão no Brasil, de segunda a sexta-feira, por volta das 17h, encontrará em
pelo menos três emissoras abertas uma programação muito semelhante: telejornais
sensacionalistas que exploram o fenômeno da criminalidade.
Sob o manto do combate à criminalidade os programas policiais de TV
reproduzem discursos que vão muito além da mera informação ou opinião sobre os
crimes ocorridos, mas que são concebidos para condenar sumariamente e execrar a
imagem dos suspeitos em rede nacional de televisão.
O datenismo se tornou um estilo onipresente na TV aberta brasileira.
Linguagem coloquial, transmissão ao vivo, plano sequência, músicas tensas, cenários
simples, apresentadores populares e o uso desmesurado da imagem são apenas alguns
dos elementos que, em conjunto, trazem aos programas sensacionalistas o tom de
veracidade e autenticidade necessários para atrair a curiosidade e cativar os
telespectadores.
A figura central do datenismo, como não poderia deixar de ser, é o
apresentador: Datena ou qualquer outro que lhe fizer as vezes. Amparados na
credibilidade que um programa de TV traz consigo, representam não só a voz da
verdade fática típica do jornalismo que pretende informar, mas também de uma verdade
moral que julga de um lugar privilegiado acima do bem, do mal e até mesmo das leis e
da constitução da república.
4
O jornalismo que deveria ter por objeto a informação, narrando da forma
mais objetiva possível fatos ocorridos, converte-se em sensacionalismo que tem por
principal finalidade produzir sensações fortes nos telespectadores para garantir sua
audiência. Programas que deveriam estimular uma análise racional dos fatos
corrompem-se em sua própria caricatura ao estimular reações passionais aos fatos.
Na precisa definição de Rosa Nívea Pedroso2, o sensacionalismo é um
gênero de jornalismo, definido como um modo de produção discursivo da informação
de atualidade, processado por critérios de intensificação e exagero gráfico, temático,
linguístico e semântico, contendo em si valores e elementos desproporcionais,
destacados, acrescentados ou subtraídos no contexto de representação ou reprodução de
realidade social.
Algumas das principais regras definidoras da prática ou do modo
sensacionalista de produção do discurso de informação no jornalismo diário são
“intensificação, exagero e heterogeneidade gráfica; ambivalência lingüístico-semântica,
que produz o efeito de informar através da não-identificação imediata da mensagem;
valorização da emoção em detrimento da informação; exploração do extraordinário e do
vulgar, de forma espetacular e desproporcional; adequação discursiva ao status
semiótico das classes subalternas; destaque de elementos insignificantes, ambíguos,
supérfluos ou sugestivos; subtração de elementos importantes e acréscimo ou invenção
de palavras ou fatos; valorização de conteúdos ou temáticas isoladas, com pouca
possibilidade de desdobramento nas edições subseqüentes e sem contextualização
político-econômico-social-cultural; discursividade repetitiva, fechada ou centrada em si
mesma, ambígua, motivada, autoritária, despolitizadora, fragmentária, unidirecional,
vertical, ambivalente, dissimulada, indefinida, substitutiva, deslizante, avaliativa;
exposição do oculto, mas próximo; produção discursiva sempre trágica, erótica,
violenta, redemo-la, insólita, grotesca ou fantástica”3.
Ciro Marcondes Filho4 descreve a prática sensacionalista como nutriente
psíquico, desviante ideológico e descarga de pulsões instintivas; e caracteriza o
sensacionalismo como “o grau mais radical da mercantilização da informação: tudo o
que se vende é aparência e, na verdade, vende-se aquilo que a informação interna não
2 PEDROSO, Rosa Nívea. A Produção do Discurso de Informação num Jornal Sensacionalista. Rio deJaneiro, UFRJ/Escola de Comunicação, 1983.
3 PEDROSO, 1983, op. cit.4 MARCONDES FILHO, Ciro. O Capilal da Notícia. São Paulo, Ática, 1986.
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irá desenvolver melhor do que a manchete, caracterizada por apelos às carências
psíquicas das pessoas e explora-as de forma sádica, caluniadora e ridicularizadora”.
Ao longo de sua história, as emissoras de televisão passaram a perceber que,
para alimentar o interesse coletivo pela temática da violência, a simples veiculação da
notícia ou informação não seria suficiente. Por isso, começaram a investir todos os seus
“recursos criativos” na construção de imagens capazes de consolidar as representações
da violência no imaginário da população. E, para cristalizar o temor ao crime, nada mais
conveniente às emissoras do que criar uma representação asquerosa da figura dos seus
agentes propagadores.
A imagem é o principal recurso utilizado pelo jornalismo sensacionalista.
Para Pierre Bourdieu5, isto se dá em função de seu poder de produzir o que os críticos
literários chamam o efeito do real, uma vez que ela pode fazer ver e fazer crer no que
faz ver. E é nisso que consiste o poder central do telejornalismo: o fato de serem
capazes de associar imagens e discursos, de selecionar ações humanas, grupos sociais e
instituições e conjugá-los a partir do uso de rotulações e categorias que, por definição,
jamais serão neutras6.
Nilo Batista destaca que “quando o jornalismo deixa de ser uma narrativa
com pretensão de fidedignidade sobre a investigação de um crime ou sobre um processo
em curso, e assume uma função investigatória ou promove uma reconstrução
dramatizada do caso – de alcance e repercussão fantasticamente superiores à
reconstrução processual -, passou a atuar politicamente.”7.
Todo jornalismo atua politicamente em maior ou menor grau. No jornalismo
sensacionalista, porém, o discurso se torna quase que exclusivamente panfletário e a
notícia em si é converte-se em mero pano de fundo para a pregação de uma ideologia
política criminal punitivista e moralista à custa da honra e da imagem dos suspeitos.
Neste âmbito, observa-se que os telejornais não só exibem indecorosamente
a imagem de suspeitos como também os execram. Os apresentadores não se limitam a
5 BOURDIEU, Pierre. Sobre a Televisão. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.6 NATALINO, Marco Antônio Carvalho. O discurso do telejornalismo de referência: criminalidade
violenta e controle punitivo. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Universidade Federal do RioGrande do Sul, Porto Alegre, 2006.
7 BATISTA, Nilo. Mídia e sistema penal no capitalismo tardio. Revista Brasileira de Ciências Criminais, "Revista Especial", 8º Seminário Internacional, nº 42. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, cit., p. 05-06.
6
narrar os fatos e apontar a suspeita de autoria, mas afirmam a culpa do suspeito e ainda
fazem conjecturas sobre sua personalidade e vida pregressa, chegando não raras vezes a
injuriá-los perante as câmeras.
2. As entrelinhas do discurso sensacionalista
No programa Cidade Alerta exibido em 22 de agosto de 20138, o
apresentador Marcelo Rezende inicia uma reportagem olhando para a imagem do
acusado, exibida em um monitor no estúdio e dizendo: “Quem olha para este homem
diz assim: toca violão. Quem olha para este homem diz assim: não, este deve ser o
assassino (...). Quem olha para este homem deve dizer: joga futebol. Mas não é nada
disso [pausa], não. Este homem é um pedófilo!”.
“Este homem é um pedófilo!”, eis o veredicto do apresentador! Não há
espaço para a dúvida quanto à autoria. O discurso é incisivo e tem por fim não só
reforçar a certeza quanto à culpa do acusado, mas também criar o medo no telespectador
estimulando-lhe a ideia de que o crime está presente no seu dia a dia e de que o
criminoso pode ser qualquer pessoa. Um discurso eminentemente político que tem por
fim criar o medo e gerar insegurança na população.
Ao analisar a figura do acusado, o apresentador procura convencer o público
de que um sujeito aparentemente normal, como qualquer outro rapaz de vinte e poucos
anos, esconde um lado perverso: é um pedófilo, um criminoso. Alimenta-se, assim, o
sentimento de medo, fazendo com que o espectador se sinta impotente diante da
violência, jogado à própria sorte e com a certeza de poder ser, a qualquer momento, uma
nova vítima.
Logo depois, Rezende começa a narrar os fatos ou, mais precisamente, a sua
versão dos fatos. O acusado de pedofilia, que outrora parecia tocar violão e jogar
futebol, é um jovem de 24 anos que foi preso no Rio de Janeiro após marcar encontros
com uma menina de 10 anos em uma rede social e ter sido descoberto pela mãe da
vítima. Neste ponto, o apresentador declara: “É por isso que eu digo: quando uma
8 Disponível em: < http://noticias.r7.com/cidade-alerta/video/pedofilo-e-preso-no-rj-por-aliciar-jovem-em-rede-social-521698ff0cf2c9f75e6eac65/> Acesso em: 30 de setembro de 2013.
7
criança dessa idade...computador....[risos]...fique em cima!”. Aqui, o apresentador faz o
papel de alertar a sociedade, de proteger o telespectador dos perigos do mundo real,
cultivando o medo da criminalidade, mesmo em situações comuns do cotidiano como
navegar na Internet.
É interessante notar que não há a sobriedade transmitida pelos outros
telejornais, onde os apresentadores assentam atrás de uma bancada e narram a notícia
em tom impessoal. Rezende, ao contrário, parece ter com o telespectador apenas uma
conversa informal, um encontro entre amigos. Ao gesticular e usar expressões
coloquiais, ele “conta um caso” que poderia ter acontecido em qualquer um dos milhões
de lares brasileiros, sendo que a partir da exibição do programa, as pessoas passarão a
agir com maior cautela. Daí o nome do programa “Cidade Alerta”.
Rezende prossegue: “Aí vocês dizem: nossa, este cara, solteiro...Não! Pai
de duas crianças, uma menina de dois e um menino de 10 meses de idade.”. Não
satisfeito, ele continua: “E aí, vem o maior absurdo. Um absurdo que só é capaz num
país chamado Brasil ou daí para pior. E não é por minha culpa ou sua, não! É por
culpa de juízes que podem e devem pegar a lei e interpretar do jeito que eles
interpretam, correto? Em muitas situações, não. Pois esse homem [aponta para a
imagem do acusado], dois filhos, um menorzinho com dez meses, atraiu uma menina de
dez anos, marcou encontro. Como é que ele achou que uma menina de dez anos ia
encontrá-lo no metrô? Pois ele marcou! Ele vai responder o processo [nesse momento,
Rezende pede para sua produção colocar em tela cheia a imagem do criminoso]...Ele
vai responder ao processo em liberdade!”.
Na tela, enquanto a imagem do suspeito continua a ser exibida, Rezende
destaca: “É bom mostrar mesmo este rosto, para que todo mundo possa ver e dizer:
olha aí, esse é o cara! Vai que já tenha atentado em cima de outras crianças? Põe no
ar!”. Este é o ponto mais emblemático da sequência. Além de execrar publicamente a
imagem do suspeito, Rezende levanta suspeitas sobre seu passado, insinuando que ele
possivelmente já praticou outros crimes.
A reportagem continua com um video da afiliada da Rede Record no Rio de
Janeiro. Com a legenda “CUIDADO: PEDÓFILO ATACA PELA INTERNET”, são
exibidos diversos trechos da conversa entre o acusado e a vítima, que o havia
adicionado em uma rede social sob o pseudônimo de “Pollo Vagalume”. Enquanto isso,
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uma testemunha, a madrinha da menina, conta como o crime teria ocorrido: “ela
começa falando que tem dezessete anos, se passa por irmã. Só que aí ele fala horrores
sobre sexo e depois ela fala que só tem onze anos”. A reportagem não esclarece,
todavia, se as conversas com conteúdo sexual foram mantidas entre o acusado e a menor
mesmo depois de ela ter revelado sua verdadeira idade. Esta dúvida se mantém a partir
da delcaração do delegado responsável pelo caso, segundo o qual “ele [o acusado] diz,
afirmou em depoimento que, a partir do momento em que soube que a menina tinha
onze anos, não manteve nenhum tipo de conversa com conotação sexual e que não a
convidou para ir a qualquer lugar”. Ao ser ouvido, o suspeito confirmou o que foi dito
pelo delegado, e destacou que admite “sim que estava conversando com ela, mas nada
de negócio de sexual (sic)”.
Não obstante os argumentos usados pelo acusado em sua defesa serem
bastante razoáveis, em nenhum momento Rezende dá destaque a eles. Toda a
reportagem é construída para formar a convicção de que o suspeito é de fato culpado
pelo grave crime a ele imputado. Não há espaço para questionamentos ou dúvidas sobre
sua culpabilidade pelos telespectadores.
Depois disso, o delegado volta à cena, aconselhando os pais a conversarem
com seus filhos e a monitorarem o conteúdo acessado por eles na Internet. A madrinha
da vítima, então, termina o tape com a seguinte frase: “eu nunca achei que isso ia
acontecer na minha família. Pra mim, ia acontecer com um vizinho, mas nunca
comigo.”. Rezende assume novamente o controle e chama, ao vivo, o repórter Luiz
Bacci para trazer informações atualizadas sobre o caso: “e esse aí, com essa conversa,
que marca um encontro. Podia até encontrar a menina de dez anos...é normal, né, (sic)
um homem dessa idade, pela internet, ficar dois meses conversando com uma menina
de dez anos de idade. Eles iam se encontram para conversar [em tom jocoso] sobre
física nuclear. Porque uma menina de dez anos quer estudar física. Ah, vai se lascar!
(sic)”.
Bacci informa ao âncora que o acusado continua em liberdade e que a
polícia havia apreendido “o computador do pedófilo” e estava “analisando outras
conversas que ele teria tido com outros menores de idade pela rede social”. O repórter
também registra que “a polícia suspeita que o mesmo tipo de conversa, adicionando
9
essas pessoas e tentando levá-las para um parque de diversões, por exemplo, teriam
acontecido ainda esta semana”.
Marcelo Rezende, então, continua a discutir o caso, dizendo: “eu vou dizer
uma coisa também, filho, e você há de concordar. Eu, se sou o delegado, mesmo que
não tenha o flagrante, eu ia segurar esse cara [o suspeito] na delegacia até, até ele
cansar. E aí, podia depois depois me representar em corregedoria, podia fazer o que
quisesse, mas ele ia ficar lá preso. Ia pedir “ah, vamos pedir o exame do
computador”...cada hora eu arrumava uma novela. Ele ia ter que arrumar um
advogado para tirá-lo lá de dentro. Mas não, não tem o flagrante, deixa ele ir embora.
O que é o flagrante? É ele pegar a garota e estraçalhar?Não estou dizendo que ele
fosse fazê-lo...”.
Paradoxalmente o discurso até então moralista da lei e da ordem cede
espaço a uma apologia do descumprimento da lei e a uma glorificação do crime de
abuso de autoridade. O apresentador que encarnava até então a figura do paladino da
moral e dos bons costumes assume publicamente que descumpriria a lei para satisfazer
seu sentimento pessoal de vingança.
Para finalizar, Rezende pede a opinião de um comentarista do programa, que
é apresentado como “especialista em Direito Penal”: Percival de Souza. Pinçados a
dedos pela produção do programa, os “especialistas” cumprem o papel de ratificar as
opiniões do apresentador por meio do argumento de autoridade. Como bem afirma Nilo
Batista, “a regra de ouro deste circo, embora nem sempre percebida claramente, é que a
fala do especialista esteja concorde com o discurso criminológico da mída”9.
Percival, então, faz as seguintes constatações: “Você [Marcelo Rezende] não
está errado, não. Até porque, ele [o acusado] mostra sua periculosidade altíssima, e eu
vou me arriscar a imaginar o que ele faria, sim, Marcelo, se desse certo esse
encontro...”.
Rezende, então, completa: “Eu vou te dizer: a gente não pode fazer um jogo
de adivinhação, correto? (...) Mas, caramba, a circunstância é: um sujeito, né (sic), pai
de duas crianças. O que é que ele fica, dois meses, conversando com uma criança de
dez, que ele não sabe nem quem é. E quando a mãe entrou, manteve a conversa e
9 BATISTA, 2003, cit., p. 09
10
marcou um encontro com a criança de dez. Me desculpe, me desculpe! Se isso aí não é
claro, o que é claro? O sambódromo no dia de carnaval?”.
Ao proferir este discurso, o jornalista sacrifica não apenas o direito à
imagem e à honra do acusado, mas também questiona sua natureza, criminosa por
essência. Sem ter presenciado o caso, sem ter acesso ao inquérito policial, sem ter
ouvido o depoimento do suspeito, da vítima ou das testemunhas, Marcelo Rezende já
deu o veredito. O réu é culpado.
As semelhanças entre os programas de Datena e Marcelo Rezende são
claras: ambos exibidos na mesma faixa de horário, durante os mesmos dias da semana,
em emissoras do mesmo porte e apresentados por comunicadores com o mesmo perfil
combativo, ácido, crítico e justiceiro.
Rezende e Datena são um show a parte de seus próprios programas. A eles é
dada, diariamente, permissão para emitirem opiniões e serem “a voz do povo”, dando
vazão às suas visões pessoais e ao senso comum. Na precisa definição de Nilo Batista,
“na televisão, os âncoras são narradores participantes dos assuntos criminais,
verdadeiros atores - e atrizes – que se valem teatralmente da própria máscara para um
jogo sutil de esgares e trejeitos indutores de aprovação ou reproche aos fatos e
personagens noticiados.”10.
Para que estes apresentadores sejam reconhecidos pelo povo como seus
legítimos representantes, tanto o Cidade Alerta quanto o Brasil Urgente contam com
uma poderosa ferramenta: a interatividade. Nos websites das duas emissoras existem
portais referentes aos programas, nos quais o público pode deixar críticas, sugestões e –
o principal – denúncias. Os telespectadores também podem se comunicar com os
âncoras via telefone ou correspondência, com a chance de serem os escolhidos pela
produção para fazer uma participação ao vivo.
A transmissão ao vivo, aliás, é um dos principais elementos utilizados por
estes programas para atrair o público, tendo em vista que corrobora com a ideia de
autencididade. Yvana Fechine11 aponta que “ao acompanhar, ao mesmo tempo, o “se
fazendo” da transmissão e do próprio acontecimento transmitido, o espectador é
10 BATISTA, 2003, cit., p. 14.11 FECHINE, Yvana. Tendências, usos e efeitos da transmissão direta no telejornal. In: DUARTE, Elizabeth
Bastos; CASTRO, Maria Lília Dias de (Org.). Televisão: entre o mercado e a academia. Porto Alegre:Sulina, 2006., cit., p. 145.
11
confrontado com a promessa de que aquilo que ele vê é mais “verdadeiro” ou mais
autêntico, justamente por ser menos manipulável a posteriori. Essa imprevisibilidade da
transmissão, é o que pressupõe um menor controle sobre o que é levado ao ar e,
consequentemente, produz uma maior impressão de “transparência”. Toda entrada “ao
vivo” (...) parece estar sempre atrelada à tentativa de demonstrar ao telespectador que a
TV pode mostrar a realidade sem filtros (sem manipulação pela edição do que vai ser
exibido).”.
Essa autenticidade também se dá a partir do uso do plano sequência,
caracterizado por cenas gravadas ininterruptamente, com raros cortes de edição, que têm
como função dar maior dinamismo e agilidade às reportagens.
Outro recurso utilizado por estes programas, como bem aborda Alexandre
Campello12, são as vinhetas, o cenário e a trilha sonora, que fazem parte das estratégias
de endereçamento dos jornais. A vinheta funciona como um prelúdio, indicando o que o
telespectador vai encontrar.
Os cenários são sóbrios e simples, predominando em ambos os casos as
cores preto e branco, com detalhes em azul e vermelho (qualquer referência ao sangue,
aqui, não seria mera coincidência), sendo que o foco é sempre a figura dos
apresentadores, usualmente vestidos com roupas sociais, o que traz ao programa popular
um tom de formalidade necessário para a construção da credibilidade perante o público.
Já a trilha sonora é inquietante, transmitindo sempre um ar de suspense e drama.
Também é comum a utilização de sons de tiros, sirenes, vozes ofegantes, gritos e
choros.
Um dos aspectos marcantes deste tipo de formato televisivo é o uso
corriqueiro de expressões coloquiais, que aproximam o relato do universo de linguagem
do público-alvo do telejornal policial, de forma que os repórteres se valem
preponderantemente, da função fática13. Nesse sentido, Guilherme Rezende14 coloca que
12 CAMPELLO, Alexandre de Assis. Novo olhar sobre os telejornais policiais: a interação pelo formato.Dissertação (Mestrado em Comunicação Social) - Universidade Federal de Minas Gerais, BeloHorizonte, 2008, p. 106.
13 “A função fática tem por finalidade o afirmar, o manter ou o cortar a comunicação. Ela é importantequando o conteúdo da comunicação tem menos importância que o fato de estar ali e afirmar suaadesão ao grupo. A função fática é tautológica (diz que o que é, é).” (CASTRO, Rita de Cássia MarquesLima de. O poder da comunicação e a intertextualidade. Dissertação (Mestrado em Administração) –Fundação Getúlio Vargas, São Paulo, 2002.
14 REZENDE, Guilherme Jorge de. Telejornalismo no Brasil: um perfil editorial. São Paulo: Summus,2000.
12
“ao cumprir a função fática, o discurso da TV se estabelece como um contato
permanente entre o emissor e o receptor, por meio de um espetáculo contínuo levado
diretamente ao telespectador no aconchego do meio familiar”.
Há, ainda, um recurso fundamental utilizado pelos programas policias: a
imagem. Trata-se de um tipo de linguagem materializada de forma específica, que não
apenas comunica, mas também constitui um discurso. Na visão de Roland Barthes15, a
imagem é, por si só, polissêmica. Ao analisar esta assertiva, Kleber Mendonça16 coloca
que, mais do que polissêmica, a imagem é caracterizada por sua incompletude, diante da
qual o sujeito é chamado a dar sentidos.
Nos casos analisados a imagem não serve apenas para ilustrar e comprovar
o que está sendo dito pela reportagem, como nos telejornais convencionais, mas também
tem como objetivo reafirmar o status de veracidade e realidade responsáveis por criar
no telespectador, ao mesmo tempo, os efeitos de fascinação, medo e insegurança,
fazendo com que este deixe de ser um mero receptor de informações para poder assumir
o papel de testemunha, convertendo-se em um verdadeiro participante da história.
O uso da imagem como estratégia discursiva tem como pretensão não
apenas denunciar os crimes ou torná-los conhecidos pelo grande público, mas também
busca promover o papel simbólico dos programas como a instância social capaz de
controlar, fiscalizar e “promover o bom funcionamento da Justiça, tão falha e
incompetente”17.
Tudo nestes programas é pensado para convencer o telespectador da culpa
dos suspeitos ali exibidos, sem qualquer responsabilidade quanto ao dano que se possa
provocar aos seus direito à honra e à imagem. Tudo é construído como se quem
estivesse sendo exibido ali fosse uma mera personagem de uma história elaborada para
entreter o telespectador.
O sensacionalismo procura fundir informação e entretenimento em um
único programa18, à custa da imagem de seus protagonistas que são execrados diante das
câmeras. E diante da impossibilidade de oferecer informações exatas e suficientemente
15 BARTHES, Roland. A Câmara clara: nota sobre fotografia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.16 MENDONÇA, Kleber. A punição pela audiência: um estudo do Linha Direta. Rio de Janeiro: Quartet,
2002.17 MENDONÇA, 2002, cit. p. 46.18 VIANNA, Túlio. Um Outro Direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014. p.95-97
13
dramáticas para manter a atenção do público, estes programas não hesitam em sacrificar
os fatos para provocar fortes sensações em seu público.
No jornalismo sensacionalista o que importa é a audiência. Não há qualquer
compromisso com a veracidade dos fatos narrados; tudo é produzido para se conquistar
telespectadores a qualquer preço. E quem paga este preço invariavelmente é um
suspeito pobre e sem condições de pagar um advogado para lutar por seus direitos.
O direito de captar audiência é colocado à frente dos direitos à honra e à
imagem, em inequívoco detrimento dos direitos individuais em benefício do lucro de
empresas privadas. E o pior: todas estas violações de direitos individuais são praticadas
em concessões públicas de TV em nítido descumprimento de sua função social.
3. Violações de direitos em concessões públicas de TV
A Constituição da República de 1988 tutela a imagem em dois incisos do
art. 5º. No inciso V, o legislador assegurou a todos o direito de resposta, proporcional ao
agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem. Já no inciso X, foi
definida a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das
pessoas, sendo assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral
decorrente de sua violação.
O Código Civil brasileiro, por sua vez, dispõe, em seu art. 20, que “salvo se
autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem
pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a
exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu
requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa
fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.”.
Especificamente em matéria criminal, a Lei de Execução Penal prevê em
seu art. 41, inciso VIII que a proteção contra qualquer forma de sensacionalismo é um
dos direitos do preso.
14
Mesmo com todas estas garantias legais os programas sensacionalistas de
TV continuam sendo exibidos sem que as Corregedorias de Polícias punam os policiais
que expõem suspeitos ao sensacionalismo da imprensa. Os Ministérios Públicos
também não têm atuado com efetividade no combate à exposição de suspeitos em
programas sensacionalistas de TV. Tudo se dá como se a liberdade de imprensa
constitucionalmente assegurada fosse uma carta branca concedida a jornalistas para
achincalhar a imagem de cidadãos que são presumidos inocentes até o trânsito em
julgado de sentença penal condenatória.
A liberdade de imprensa, porém, como qualquer outro direito constitucional,
não é absoluta. Nas palavras de Luís Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho19: “a
liberdade de expressão também se limita pela proteção assegurada constitucionalmente
aos direitos da personalidade, como honra, imagem, intimidade”.
No conflito entre dois direitos de natureza constitucional como são a
liberdade de imprensa e o direito à imagem, não se pode de maneira simplista afirmar
que a liberdade de imprensa deve sempre preponderar, por ser de interesse público, ao
passo que o direito à imagem tem caráter individual.
O Brasil é um Estado Democrático de Direito e não uma ditadura da
maioria. Em estados democráticos de direito, os direitos individuais devem ser
respeitados mesmo contra a vontade da maioria. Se a maioria branca da população de
um país decidir escravizar os negros, isso evidentemente não é democrático. Se a
maioria heterossexual da população de um país decidir impor restrições à prática de
relações homossexuais, isso evidentemente não é democrático. E se a maioria da
população que se auto-denomina de “cidadãos-de-bem” quiser se regojizar assistindo à
execração pública na TV de uma minoria de suspeitos da prática de crimes, isso também
não é nada democrático.
A imprensa é livre para informar sobre fatos criminosos e mesmo para
opinar sobre sua autoria. O sensacionalismo, porém, como se viu anteriormente, não se
limita a narrar fatos e opinar sobre eles. O sensacionalismo transforma suspeitos em
personagens e crimes do cotidiano em novelas.
19 CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de. Direito de informação e liberdade de expressão.São Paulo: Renovar, 1999, p. 49.
15
Não se trata de um mero exercício do direito de informar, mas da
espetacularização programada para atrair audiência, sem qualquer respeito à imagem
dos envolvidos. Um tratamento vexatório que, em regra, é reservado aos réus pobres,
não assistidos por advogados na fase policial, e que se vêem abandonados à própria
sorte perante não só os órgãos repressores do estado, mas também ao afã da mídia de
atrair audiência com base na demolição de reputações.
E não bastasse a completa complacência das Corregedorias de Polícia e dos
Ministérios Públicos com estas violações dos direitos à imagem dos presos, tudo isso é
realizado em concessões públicas de TV. O Estado, por meio de suas concessionárias de
serviços públicos, não só tolera, mas concede os meios para que direitos constitucionais
sejam violados.
A Constituição da República de 1988 assegurou à União, no caso específico
dos veículos de telecomunicação, a sua exploração direta ou por delegação à iniciativa
privada, mediante autorização, concessão ou permissão (art. 21, XII, a). As emissoras
de rádio e televisão se enquadram na modalidade de serviços públicos concedidos.
Na definição de Celso Antônio Bandeira de Mello20, a concessão é o
“instituto através do qual o Estado atribui o exercício de um serviço público a alguém
que aceita prestá-lo em nome próprio, por sua conta e risco, nas condições fixadas e
alteráveis unilateralmente pelo Poder Público.”.
Nesse sentido, Luís Roberto Barroso21 destaca que “algumas especificidades
singularizam a radiodifusão, em contraste com outros meios de comunicação e formas
de expressão. A primeira delas é a existência de uma delegação do Poder Público para a
prestação do serviço, mediante contrato ou outro ato negocial.”.
Por tratar-se de um serviço público, existem normas jurídicas e
administrativas que regulam as relações entre as emissoras de rádio e televisão e o
Estado, tanto no que se refere às questões técnicas, quando às normas consensuais,
frutos do acordo pactuado. Tal disciplina não ocorre, entretanto, em relação à imprensa
escrita ou à publicação de livros, atividades nas quais é até mesmo vedada qualquer
forma de intervenção, conforme o § 6.º do art. 221 da Constituição.
20 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, 25ª ed. São Paulo: Malheiros,2008, cit., p. 690.
21 BARROSO, Luís Roberto.Doutrinas Essenciais de Direitos Humanos vol. 2. São Paulo: Revista dosTribunais, 2011, cit., p. 780.
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Um jornal, uma revista ou um site na Internet não dependem de qualquer
concessão pública para existirem. Não há um limite para o número de jornais, revistas
ou sites na Internet que possam ser publicados e qualquer investidor pode montar a sua
empresa de informação livremente.
Situação completamente distinta é a dos canais abertos de rádio e TV que
são escassos. Um investidor que deseje criar uma rede de rádio ou TV aberta depende
de uma concessão pública para explorar o serviço, já que não há números de canais
ilimitados disponíveis. Diante da escassez de canais de rádio e TV, resta ao Estado criar
critérios que tornem o uso destes canais o mais produtivo possível para a população. Já
que estes canais são bens públicos, obviamente, devem atender prioritariamente ao
interesse do povo e somente subsidiariamente ao interesse econômico das
concessionárias.
Por conta disso, o próprio texto constitucional institucionalizou diretrizes
que devem ser seguidas pelas concessionárias da TV aberta brasileira, ao estabelecer eu
seu art. 221, I, que “A produção e a programação das emissoras de rádio e televisão
atenderão aos seguintes princípios: I - preferência a finalidades educativas, artísticas,
culturais e informativas”.
Apesar da clareza das diretrizes constitucionais, as concessões públicas de
TV que deveriam ser utilizadas para produzir programas educativos, artísticos, culturais
e informativos tornaram-se espaços de linchamentos morais. Uma programação
pretensamente informativa, mas que longe de se limitar a narrar fatos, instiga o ódio a
suspeitos de crime, sem lhes garantir qualquer meio de defesa real, em julgamentos
sumários baseados na duvidosa moralidade particular do apresentador. Programas que
não educam para a cidadania, muito pelo contrário: incentivam a cultura do desrespeito
aos direitos constitucionais dos suspeitos, fazendo não raras vezes apologia à violência
policial e ao abuso de autoridade.
O sensacionalismo viola não só os direitos individuais à honra e à imagem
do cidadão acusado da prática de crimes, mas também o interesse público de usufruir de
uma programação educativa, artística, cultural e informativa na TV aberta. Diante do
descumprimento das diretrizes constitucionais para a concessão de canais abertos de TV,
cabe à União o dever de agir para fazer cessar as violações de direito e impor o
cumprimento dos ditames constitucionais.
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A Lei 8.987/95 dispõe sobre o regime de concessão e permissão da
prestação de serviços públicos e encarrega (art. 29, I) o Estado do poder de
“regulamentar o serviço concedido e fiscalizar permanentemente a sua prestação”. O
poder de agir da Administração Pública, então, torna-se um verdadeiro dever de agir, na
medida em que assegura um interesse coletivo, motivo pelo qual Eurico Azevedo e
Maria Lúcia de Alencar22 destacam que “não pode a Administração furtar-se à obrigação
de atuar, no exercício de seus poderes”.
Dentre os poderes-deveres da Administração, a regulamentação é capaz de
organizar, à luz do ordenamento jurídico, as condições de funcionamento e a
abrangência de determinado serviço. Os autores também apontam23 que “as normas
regulamentares do serviço concedido podem ser modificadas sempre, mesmo porque,
tratando-se de um contrato de longa duração, suas características técnicas e as
necessidades dos usuários vão se alterando no curso dos anos, exigindo respectivas
adaptações”.
Cabe à União controlar os canais de televisão de modo a proibir que estes
alavanquem suas audiências às custas da dignidade alheia. Compete privativamente à
União legislar sobre este assunto, vedando a veiculação vexatória da imagem de
suspeitos e impondo limites aos programas de televisão que têm o objetivo de execrá-
los. Uma das maneiras de efetivar e otimizar esta regulamentação seria a aplicação de
medidas coercitivas, como por exemplo multas diárias, nos casos de violação das
diretrizes fixadas.
É bom deixar claro que tal intervenção estatal na programação dos canais
abertos em nada se assemelharia a qualquer tipo de censura. Como bem esclarece
Barroso24, entende-se por censura “a submissão à deliberação de outrem do conteúdo de
uma manifestação do pensamento, como condição prévia de sua veiculação” e, portanto,
não se pode confundir com esta “a existência de mecanismos de controle, que é a
verificação do cumprimento das normas gerais e abstratas preexistentes, constantes da
Constituição e dos atos normativos legitimamente editados, e eventual imposição de
consequências jurídicas pelo seu descumprimento”.
22 AZEVEDO, Eurico de Andrade; ALENCAR, Maria Lúcia Mazzei de. Concessão de serviços públicos:comentários às Leis 8.987 e 9.074 (parte geral), com as modificações introduzidas pela Lei 9.648, de27.5.98. São Paulo: Malheiros, 1998, cit., p. 114.
23 AZEVEDO; ALENCAR, 1998, cit., p. 115.24 BARROSO, 2011, cit., p. 779.
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Definir pautas de programação não se confunde com censura. Fosse assim,
os donos e editores de telejornais seriam os maiores censores do mundo, pois a todo
momento decidem o que vai ao ar e o que será cortado da programação. Qualquer
programação de TV terá sempre o limite máximo de 24 horas diárias nas quais será
impossível incluir tudo o que se almeja. Alguém sempre precisará decidir o que entra e
o que sai. Hoje esta decisão cabe exclusivamente ao arbítrio do dono da emissora e de
seus diretores.
Não é nada democrático, porém, que os donos de empresas privadas
concessionárias de um serviço público decidam de cima para baixo o que a população
deverá assistir. Eles estão explorando um serviço público e quem deve decidir que tipo
de programação é socialmente adequada é o povo, seja por meio de seus representantes
no parlamento ou, mais diretamente, pela Conferência Nacional de Comunicação.
As redes de rádio e TV abertas, ao contrário dos jornais, das revistas e dos
portais de Internet têm natureza pública e, como tais, estão submetidas a diretrizes de
programação a que não estão sujeitos os demais veículos por explorarem um negócio
exclusivamente privado. O interesse econômico de captar audiência a todo custo não
pode se sobrepor às finalidades constitucionais que recomendam uma programação
educativa, artística, cultural e informativa.
4. Conclusão
O sensacionalismo coloca em xeque o caráter público das concessões de TV
brasileiras que vêm sendo paulatinamente apropriadas por empresas privadas que
desrespeitam diariamente os ditames constitucionais quanto à natureza da programação
a ser exibida. Em busca de maior audiência e do lucro a ela condicionado, instaurou-se
um “vale-tudo” nas TVs abertas brasileiras que desrespeitam cotidianamente as leis e a
Constitução da República sem que nenhuma providência seja tomada pelas autoridades.
Ao permitir que as emissoras de televisão, beneficiadas com a concessão
pública de um serviço extremamente lucrativo, execrem suspeitos da prática de crimes
por meio do uso não autorizado de suas imagens, o Estado é omisso ao não estabelecer
19
os mecanismos de controle previstos pela própria Constituição de 1988. A
Administração Pública tem, portanto, o dever de regulamentar os serviços públicos
concedidos à iniciativa privada, como a televisão, de maneira a zelar pelos interesse
público.
O trauma coletivo da censura imposta pela ditadura militar brasileira ainda
assola o imaginário popular que vê qualquer tipo de controle sobre a programação com
maus olhos por confundi-lo com censura. Com isso, estabeleceu-se um “laissez-faire”
nas Tvs abertas brasileiras, em que empresas privadas impõem à população a
programação que bem entender, por mais apelativa que seja.
É preciso resgatar o caráter público das TVs abertas brasileiras,
estabelecendo-se não só sanções nos casos de descumprimento das diretrizes
constitucionais, mas ampliando-se significativamente a participação popular na
definição de critérios mais detalhados de programação a serem regulamentados por lei.
Concessão pública de TV não é um presente que o Estado dá a uma empresa
particular, mas um contrato em que há ônus e bônus. E um destes ônus é respeitar as
diretrizes públicas quanto à programação. Do contrário estar-se-ia descumprindo o
contrato e, portanto, sujeito às sanções administrativas que podem variar desde uma
simples multa diária até a própria caducidade da concessão.
Cabe à administração pública federal fazer cumprir os dispositivos
constitucionais e ao Ministério Público federal fiscalizar o seu fiel cumprimento. A
omissão das autoridades públicas em fazer cumprir as diretrizes constitucionais não
deve ser confundida com respeito à liberdade de imprensa. A menos que se queira
entender por liberdade de imprensa uma liberdade de grandes empresas privadas de
execrarem suspeitos de crimes, pelo simples fato de serem pobres e não terem condições
de recorrerem aos poder judiciário para garantir seu direito à imagem.
Em países democráticos a liberdade de imprensa deve ser entendida como a
liberdade de informar e de opinar; nunca como a liberdade de humilhar, de insultar, de
difamar, de caluniar e de pré-julgar crimes. Enquanto concessões públicas de TV forem
confundidas com salvo-condutos entregues pelo Estado para se execrar pessoas, nossas
Tvs abertas não serão nada democráticas. E o maior termômetro disso será sempre as
20
diferenças entre o tratamento dispensado aos suspeitos pobres e ricos na programação
diárias de nossas televisões.
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serviços públicos: comentários às Leis 8.987 e 9.074 (parte geral), com as modificações
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