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FACULDADES INTEGRADAS DE ARIQUEMES
JOICE DE MORAES SANT’ ANA
A HERMENÊUTICA NA INTERPRETAÇÃO DA LINGUAGEM POÉTICA DO SALMO 23
ARIQUEMES 2010
Joice de Moraes Sant’ Ana
A HERMENÊUTICA NA INTERPRETAÇÃO DA LINGUAGEM POÉTICA DO SALMO 23
Ariquemes 2010
Artigo Científico apresentado ao curso de Letras/Inglês das Faculdades Integradas de Ariquemes – Fiar como requisito parcial à obtenção do título de Licenciado em Letras/Inglês. Profª. Orientadora: Nuria Sagué Lopez
Joice de Moraes Sant’ Ana
A HERMENÊUTICA NA INTERPRETAÇÃO DA LINGUAGEM
POÉTICA DO SALMO 23
Aprovado em ____de ____________ de _______.
__________________________________________ Profª. Orientadora: Nuria Sagué Lopez
Faculdades Integradas de Ariquemes - FIAR
__________________________________________ Prof. : Mirian Carla Longo Pimenta
Faculdades Integradas de Ariquemes – FIAR
__________________________________________ Prof. : Irineo Marcon
Faculdades Integradas de Ariquemes - FIAR
Ariquemes 2010
Artigo apresentado como requisito parcial para obtenção do título Licenciatura em Letras/Inglês das Faculdades Integradas de Ariquemes – FIAR, sob apreciação da seguinte Banca Examinadora.
A HERMENÊUTICA NA INTERPRETAÇÃO DA LINGUAGEM POÉTICA DO SALMO 231
Nuria Sagué Lopez
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Joice de Moraes Sant’ Ana
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RESUMO
O objetivo consiste em demonstrar como as regras da Hermenêutica, ciência da interpretação, aplicam-se na análise e compreensão de textos, sendo o Salmo 23, escolhido como objeto para fundamentar sua aplicabilidade. A Hermenêutica orienta os passos a serem seguidos durante a interpretação, para aproximar o leitor à intenção autoral. Inclui-se nesses procedimentos a observância da linguagem utilizada, o contexto histórico-socio-cultural e principalmente, o conhecimento da vida do autor, a fim de conjecuturar os possíveis motivos que o levaram a escrever determinado assunto. Este salmo é um poema de origem hebraica e sua estrutura, não possui relação com a dos poemas ocidentais, não é construído com rimas fonéticas, mas por rimas de pensamento. A linguagem utilizada apresenta-se de forma poética, trazendo o encantamento àquele que o lê e busca compreender o que está escrito entre suas linhas, o texto não escrito, notado através de uma análise sobre a cultura da época em que seu autor, Davi, estava inserido. A construção desta pesquisa ocorreu com base em autores previamente selecionados, tendo como principais no assunto da Hermenêutica, Stein (2004), Nunes (2007), Pires (2005) e Bentho (2003), tendo sido utilizado deste último, fundamentos sobre as análises do livro dos Salmos. Quanto ao respaldo para a interpretação analítica do salmo 23, este foi encontrado em Allen (1981). O procedimento adotado na elaboração deste estudo, encontra apoio em Gil (1991), o qual caracteriza como Pesquisa Bibliográfica, aquela que é desenvolvida a partir de materiais já elaborados e publicados.
PALAVRAS-CHAVE: Hermenêutica, interpretação, Salmo 23, linguagem, Davi.
ABSTRACT
The purpose of this is to demonstrate how the rules of hermeneutics, the science of interpretation, apply the analysis and understanding of texts, and Psalm 23, chosen as the base for its applicability. The Hermeneutics directs the steps to be followed for the interpretation, to bring the reader closer to the authorial intention. Included in these procedures observance of language, the historical and socio-cultural and foremost, knowledge of the author's life in order to conjecuturar the possible reasons that led him to write a given subject. This psalm is a poem of Hebrew origin and its structure has no relation to the poems of the West, is not built with phonetic rhymes, but rhymes thought. The language used is presented in a poetic way, bringing delight to the one who reads and tries to understand what is written between its lines, the text written notice through an analysis of the culture of the time in which its author, David was inserted. The construction of this survey was based on previously selected authors, the main issue in the Hermeneutics, Stein (2004), Nunes (2007), Pires (2005) and Bentham (2003), the latter having been used, the fundamentals of the analysis Book of Psalms. As for the analytical support for the interpretation of Psalm 23, this was found in Allen (1981). The procedure adopted in preparing this study finds support in Gil (1991), which is characterized as a Bibliographic Search, that which is developed from materials already produced and published. KEY WORDS: Hermeneutics, interpretation, language, David, Psalm 23.
1 Artigo Científico apresentado ao curso de Letras/Inglês como requisito parcial para a obtenção do título de Licenciatura
2 Docente do curso de Letras das Faculdades Integradas de Ariquemes – FIAR.
3 Discente do curso de Letras/Inglês das Faculdades Integradas de Ariquemes – FIAR.
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INTRODUÇÃO
A Hermenêutica é considerada a ciência da interpretação, inerente a tudo
que exige compreensão e/ou extração do entendimento. Seus princípios podem e
são empregados nas circunstâncias que conclusões sobre qualquer assunto ou
objeto são necessárias, pois para que ocorra a menor das interpretações, uma
análise é indispensável, e nesta, insere-se o princípio hermenêutico.
Sua utilização não se restringe àqueles considerados cultos ou
conhecedores de sua existência, mas ainda que de forma inconsciente, todos
apropriam-se dela, ao menos em parte, mesmo na compreensão de uma simples
palavra inserida em um contexto.
Tudo o que se pode compreender é linguagem, e esta pode ocorrer como
denotativa, conototativa, cognitiva, corporal, dentre as mais variadas formas de
expressão. Todavia, para ser compreendida, precisa ser superada, porque
compreendê-la, implica em transpor seus enigmas, entender suas entrelinhas,
interpretar o pensamento do autor, contexto histórico-socio-cultural do seu
surgimento, dentre os mais diversos aspectos que implicam em uma interpretação.
A interpretação da linguagem poética insere-se nesses parâmetros
analíticos, uma vez que compreender sua conotação, é questionar-se do porquê da
utilização de tal palavra ou expressão na representatividade do pensamento. Estes
questionamentos giram em torno de fundamentos pré-estabelecidos na
Hermenêutica, a qual terá sua metodologia aplicada de forma objetiva na análise da
poesia milenar, encontrada no salmo 23. O mesmo é parte integrante do conjunto
dos salmos de origem judaica, porém de status universal por estar inserido na Bíblia,
o maior best seller do mundo de todas as épocas.
Através desse recurso, foi possível a análise, ainda que superficial, do
contexto em que ocorreu a composição do tão conhecido poema, a fim de
compreender a subjetividade presente na linguagem utilizada.
A construção desta pesquisa ocorreu com base em autores previamente
selecionados, tendo como principais no assunto da Hermenêutica, Stein (2004),
Nunes (2007), Pires (2005) e Bentho (2003), tendo sido utilizado deste último,
fundamentos sobre as análises do livro dos Salmos. Quanto ao respaldo para a
interpretação analítica do salmo 23, este foi encontrado em Allen (1981).
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Este estudo, segundo os procedimentos técnicos adotados, para Gil (1991,
p. 65), caracterizou-se uma Pesquisa Bibliográfica, pois: “A pesquisa bibliografia é
desenvolvida a partir de material já elaborado, constituído principalmente de livros e
artigos científicos.” Enfim, todo o material bibliográfico e tido por relevante, foi
utilizado como fonte de pesquisa.
1 HERMENÊUTICA
No ato que envolve a busca pela compreensão e interpretação de qualquer
objeto sob análise, na forma objetiva ou subjetiva, verbal e não verbal, encontra-se
intrínseca a este processo, a Hermenêutica. Oliveira (2001), permite o entendimento
que o primeiro a empregar esta palavra, como um termo técnico relacionado à
interpretação, foi Platão, o filósofo da Grécia antiga.
A Hermenêutica é considerada, desde longos séculos, a ciência da
interpretação, com aplicação dos seus princípios especialmente na jurisprudência,
na teologia, na filosofia e na compreensão de textos literários.
A Hermenêutica, [...] é uma ciência que se ocupa do estudo da compreensão, sendo essencialmente a ciência da compreensão de textos. Mas não se aplica somente a estes, pois transcende as formas lingüísticas de interpretação. Os seus princípios se aplicam não somente a textos literários, teológicos, bíblicos, filosóficos, lingüísticos ou jurídicos, mas também a obras de arte e ao viver cotidiano (BENTHO, 2003, p. 57).
Sua origem, relacionada aos gregos, ocorre quando ansiaram pela
compreensão dos seus poetas, estabelecendo parâmetros que os ajudaram a
alcançar a interpretação aproximada dos seus pensadores.
A história da formação da hermenêutica, enquanto arte e técnica de interpretação correta de textos, começa com o esforço dos gregos para preservar e compreender os seus poetas e desenvolve-se na tradição judaico-cristã de exegese das Sagradas Escrituras. A partir do Renascimento fixam-se três tipos básicos de técnicas de interpretação: hermenêutica teológica (sacra), filosófico-filológica (profana) e jurídica (juris). (SCHLEIERMACHER, 2006, p. 7).
Sua etimologia, em concordância com Proença (2009), está ligada a
Hermes, conhecido na mitologia greco-romana como o mensageiro dos deuses,
deus da ciência, da interpretação e da eloquência, filho de Zeus e Maia.
A palavra hermenêutica deriva de Hermes, aquele a quem os deuses confiaram a transmissão de suas mensagens aos mortais. A partir mesmo
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de sua etimologia, a hermenêutica aparece como uma atividade de mediação, tradutora de uma linguagem incompreensível a seus destinatários. Entendida como arte da interpretação, ela é conhecida desde a época clássica ateniense, quando seus pensadores buscam aprender o significado da epopéia homérica, [...] (LIMA, 2002, p. 65).
Hermes, conforme esclarecimentos de Pires (2005), possuía a função de
transmitir, as palavras dos deuses aos humanos a uma linguagem acessível, de
forma que pudessem compreendê-las. Suas sandálias aladas permitiam-lhe uma
enorme capacidade de voar para lugares distantes, levando consigo a mensagem e
trazendo a possibilidade da compreensão.
Os caminhos longínquos percorridos por Hermes, representam a distância
cronológica do receptor ao emissor, estabelecida na linguagem, que necessita ser
suplantada no processo de decodificação da mensagem.
A hermenêutica possui o objetivo de indicar os procedimentos, através dos
seus princípios, para chegar-se à interpretação mais próxima da intenção do autor
quanto ao seu pensamento. Pires (2005, p. 33), sobre a sua aplicação, diz que:
“Tanto o conceito grego como o de épocas posteriores se referem a determinações
do significado das palavras mediante as quais se expressa um pensamento”.
Se observados seus princípios e fundamentos, a Hermenêutica torna
possível a leitura do texto não escrito, do texto explícito somente entre as linhas,
permitindo a possibilidade de outra visão sobre a primeira interpretação.
1.1 APLICABILIDADE E PRINCÍPIOS DA HERMENÊUTICA
Durante a leitura de um texto, mesmo que de forma superficial ou
possivelmente equivocada, o leitor inicia o processo de interpretação do que está
sendo lido. Stein (2004. p. 49), afirma que: “Há uma compreensão que se antecipa a
qualquer tipo de explicação”. No entanto, existem textos que necessitam de análises
mais específicas e sistematizadas, pois contêm singularidades que obrigam o leitor a
detalhá-los com a finalidade de entendê-los. “Qualquer leitura verdadeira, porém, é
crítica e comporta um confronto inevitável entre sistemas: aquele do texto e aquele
do leitor; confronto a partir do qual se constitui substancialmente o ato crítico”.
(SEGRE, apud SALOMÃO 1993, p. 47).
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A aplicabilidade da Hermenêutica ocorre quando se atenta para a
interpretação de algo, quando se busca informações a respeito daquilo que está sob
análise e percorre-se caminhos pré-estabelecidos.
Quando lemos um livro e procuramos entendê-lo estamos fazendo hermenêutica, quando observamos um quadro e procuramos analisá-lo, estamos fazendo hermenêutica, quando ouvimos uma música e procuramos entender o que o compositor queria dizer com esta ou aquela frase, estamos fazendo hermenêutica, ou seja, em qualquer atividade de nossas vidas que consiste na observação, na reflexão e análise do que se observa, isso é hermenêutica (PROENÇA, 2009, p. 38-9).
Pires (op. cit.), lista alguns critérios que o leitor deve utilizar na extração do
entendimento de um texto. Devem-se aplicar questionamentos sobre o objeto
literário, que abordem o aspecto linguístico e gramatical, o contexto histórico e vida,
envolvendo a cultura e sociedade do autor, onde suas crenças e profissão
necessitam ser observadas, pois podem contribuir no esclarecimento de sua
mensagem.
O sentido do texto vem definido pela intenção do autor. O leitor, para entender o texto, deve encontrar-se com a intenção do autor. Para compreender o texto devo compreender aquilo que quis dizer o autor, porque a chave da interpretação está na intenção do autor. Se aceitamos esta proposição, pode-se enunciar como primeiro princípio hermenêutico a intencionalidade do autor (PIRES, op. cit., p. 76).
Conhecer o autor, um dos princípios hermenêuticos fundamentais, é
essencial para o que se propõe à interpretação, porque a partir do que se sabe
sobre quem escreveu determinado texto, é possível conjecturar o objetivo e as
razões que o levaram ao registro do seu pensamento.
Deve-se ir além, procurando conhecer a pessoa do autor, isto é, seu caráter e temperamento, sua disposição e habitual modo de pensar. Deve esforçar-se por penetrar no círculo íntimo da sua vida, a fim de poder entender, tanto quanto possível, os motivos dominantes nela e assim obter na visão interior dos seus pensamentos, sua vontade e ações. É desejável que o intérprete conheça alguma coisa a respeito da profissão do autor, pois esta pode exercer poderosa influência sobre as atividades e linguagem do mesmo (OLIVEIRA, 2001, p. 121).
Quanto à compreensão, através da linguagem, Hermann (2002, p. 62)
também contribui ao dizer que “A linguagem é o recurso pelo qual se efetiva o
entendimento a respeito de algo”. Entretanto, este instrumento utilizado como
representação do pensamento, apresenta dificuldades na compreensão e
interpretação, por estar condicionado a inúmeros processos relacionados à distância
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do meio histórico-cultural, aspecto geográfico, gênero do texto, gramática e
linguística. A todos estes fatores, a Hermenêutica aponta a observação como
necessária para a correta compreensão da intenção autoral.
A composição de palavras, deve comunicar pensamentos. Com a linguagem, vem a ordem, a organização e os princípios que tornam possível a comunicação. Apesar das línguas diferirem, todas seguem uma ordem como meios de expressão e de comunicação. O autor utiliza-se da linguagem, vocabulário e o gênero literário próprios à sua época (OLIVEIRA, op. cit., p. 35).
Quando o autor registra essa linguagem ao expressar seus sentimentos,
refletir o pensamento, facilita a compreensão de outros aspectos influentes na
interpretação do discurso tácitos na linguagem, que, uma vez escrita, pode
permanecer por séculos, capacitando maiores estudos sobre o texto e sua história.
A apreensão do pensamento do outro, logo, a compreensão correta do discurso alheio, se realiza através da compreensão da linguagem em que ele expressou o seu pensamento. Não há outra via de acesso ao que o outro quis dizer senão o seu discurso, ou seja, o seu uso de uma linguagem para expressar alguma coisa ao ouvinte (STEIN, op. cit., p. 19).
Entende-se por meio dos autores citados, que a decodificação da linguagem
é deveras importante para a compreensão do texto, essencialmente quando esta
tem sua origem recuada no tempo. Diante deste fato, insere-se no processo de
interpretação, o termo Reconstrução, o qual se fundamenta nas bases
hermenêuticas de reconstruir o texto em uma linguagem acessível à atualidade,
devendo facilitar a interpretação do que não está visível, mas subentendido no texto.
A reconstrução consiste em nos aproximarmos de um texto com a pressuposição de que existe uma história dos conceitos que nos dá possibilidade de converter o texto num texto atual. Isto quer dizer, reconstruir através de processos interpretativos o texto e dar-lhe uma forma contemporânea [...] A tradição hermenêutica começou a colocar a questão do ler entre as linhas, a descobrir atrás do texto, o texto não escrito, [...], através dos processos históricos e culturais (IBIDEM, op. cit., p. 55).
Se reconstruir um texto é contemporizar sua linguagem, a Bíblia é um livro,
que para sua interpretação, necessita aplicar-se este método, pois em sua versão
original, possui uma das linguagens com maior recuo no tempo em aspecto
gramatical e linguístico. Foi escrita por aproximadamente 40 autores distintos, num
período de 1500 anos (DAVIS, 2006).
Segundo Davis (op. cit.), o Velho Testamento em sua versão original, foi
escrito em hebraico, com exceção de algumas passagens nos livros de Daniel e
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Esdras escritas em aramaico. Já o Novo Testamento, foi escrito em grego, não o
clássico de Homero, mas o popular conhecido como koinê, o qual era falado por
quase todo o mundo na parte oriental do I império Romano, inclusive pelos
apóstolos para a pregação do evangelho e que se refletiu nas páginas do Novo
Testamento.
Devido à antiguidade de seus textos, Proença (op. cit.), produz a ideia de
que uma tradução perfeita da Bíblia para uma língua moderna é impossível, pois
ficaria com sentido vago, caso fosse interpretada à risca muitas de suas palavras e
expressões, dado à intensidade do significado dos vocábulos gregos e hebraicos.
Para tornar acessível a qualquer leitor, o tradutor, através de um trabalho
minucioso, complexo e particularmente subjetivo, traduz o discurso apresentado nas
palavras próprias dessa língua, para uma linguagem atual, composta por vocábulos
que exprimam ao máximo a mensagem original do autor.
O tradutor tem um papel semelhante do deus Hermes, de mediar mundos diferentes. A tradução da Bíblia de textos clássicos antigos ilustra os problemas que ocorrem nesse processo, uma vez que são textos muito distantes no tempo, no espaço e divergentes na língua. Isso exige que o horizonte do tradutor se encontre com o horizonte de compreensão do texto (HERMANN, op. cit., p. 24).
Outra regra hermenêutica para Gadamer4
É preciso estar consciente de que já a unidade vocabular se define, a partir da unidade da frase e de que esta unidade se define, por sua vez, uma vez mais a partir de contextos textuais maiores. É assim que as coisas se passam em meio à leitura. [...], se destacamos uma única parte de um texto de seu contexto, ele emudece (IBIDEM, op. cit., p. 123).
(2007), é a contextualização das
partes com o todo, sem a qual se torna impossível a compreensão correta do
discurso, a intenção do autor precisa ser analisada das partes ao todo e do todo às
partes.
Gadamer (op. cit.), conclui que a contextualização cai seguramente no
âmbito da hermenêutica. Ele a categoriza como imprescindível para a correta
compreensão de um texto e discorre sobre o que é texto e como deve ocorrer sua
interpretação.
4 Hans-Georg Gadamer (1900 – 2002), estudou filosofia, pós-doutorou-se junto a Martin Heidegger em 1928. Desde então foi professor-adjunto de filosofia e
depois titular em Marburgo e em Leipzig. Foi também professor em Frankfurt e em Heidelberg. Aposentou-se em 1968, sendo presidente da academia de
ciências de Heidelberg e continuando suas atividades docentes nos Estados Unidos e na Itália.
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Só denominamos textos aquilo que pode ser lido e relido. Um texto é a unidade de um tecido e se apresenta com um todo em sua textura – e não nos sinais escritos, nem tampouco nas unidades gramaticais de formação frasal. Todas essas coisas ainda não formam nenhum texto, a não ser que se trate de toda uma “composição escrita”, como denominamos de maneira perspicaz. No fundo só compreendemos quando compreendemos o todo. Quem só compreende parcialmente pode ter compreendido de maneira totalmente falsa – [...] (IBIDEM, op. cit., p. 122).
Ao Gadamer (op. cit.) afirmar que se corre o risco de interpretar de maneira
equivocada um texto, caso não seja dada a atenção necessária ao todo, inclui-se
neste procedimento o termo Desconstrução. Segre (apud Salomão, op. cit., p. 34),
contribui sobre o processo de análise textual dizendo que: “[...] a estrutura da obra
não pode ser compreendida plenamente se se prescinde do contexto”.
Se para entender o todo, deve-se entender as partes, então o todo é
desconstruído para ser compreendido o que está entre as linhas, implícito no
contexto.
Uma desconstrução consiste exatamente em voltar o olhar para os elementos que permitiram o aparecimento de determinados fenômenos históricos, situações concretas na cultura humana, desmontando-os, lendo-os a contrapelo. Eles devem ser vistos nos seus detalhes, nos seus elementos componentes (STEIN, op. cit., p. 54 - 5).
Na desconstrução para Nunes (op. cit.), a Hermenêutica está mais presente
do que se percebe, ele a insere em fatos do quotidiano, tornando-a mais
compreensível, e claros, seus objetivos e princípios.
Também quando interpretamos uma obra de arte, uma peça judicial, um texto histórico, já temos uma prévia compreensão do sentido daquilo que nos propomos a entender. Daí o postulado da hermenêutica, enquanto técnica ou arte de exegese5
Porém, a interpretação sobre um mesmo objeto, certamente não será única
a partir de diferentes receptores da mensagem, pois Nunes (2007), traz o
entendimento de que, os resultados das análises interpretativas estarão sujeitos às
prévias concepções, que seus analistas têm sobre o assunto. É o fator da
: o princípio da contextualidade, ou seja, a correlação no texto entre o sentido das partes e o sentido do todo, pois que o entendimento deste precede o das partes, que por sua vez compreendidas interferem na compreensão do todo. A interpretação é circular, implicando num movimento de vaivém das partes ao todo, previamente conhecido e do todo às partes. Os conceitos elaborados no curso da interpretação retificam, ampliam ou corrigem, em benefício do correto entendimento do sentido, a compreensão preliminar da qual se partiu (NUNES, op. cit., p. 57).
5 Exegese é a aplicação das regras e princípios estabelecidos pela Hermenêutica (APOLINÁRIO, 1990, p. 25).
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temporalidade, um dos fundamentos hermenêuticos, que se refere ao conhecimento
de quem se propôs à interpretação.
A visão interpretativa apóia-se em um dado que já compreendemos, concebe-o previamente como algo, isso ou aquilo, dentro do mundo, no contexto onde nos situamos. [...] Ao interpretar, articulamos discursivamente o que compreendemos, e o que compreendemos neste momento, compreendemo-lo temporalmente, [...] (IBIDEM, op. cit., p. 80 - 1).
Quando Nunes (op. cit.), fala da temporalidade, menciona que hoje se
possui um entendimento, amanhã este poderá ser redefinido. A interpretação não
depende somente do pré-conhecimento que o leitor possui sobre o objeto, mas do
que virá a adquirir através da hermenêutica do autor, do conhecimento sobre o
contexto cultural, direta e indiretamente de sua contemporaneidade. Também
contará com o estudo da linguagem utilizada na composição da obra, analisando-se
o teor explícito para obter-se o implícito da mensagem, e se esta é de caráter
universal ou não.
A dificuldade advém do fato de que o contexto a que se refere o remetente é ignorado ou não inteiramente conhecido pelo destinatário; fato previsto pelo remetente, sem dúvida, o qual procura englobar na mensagem o máximo possível de referências ao contexto, introjetando-o na mensagem. À falta dos meios de expressão paralinguísticos (entonação, gestualidade), somam-se outras dificuldades provenientes da diferença de códigos do remetente e do destinatário, já que o código linguístico – principalmente com o aumento da distância temporal – é só parcialmente comum às duas partes; mas os códigos em jogo são todos os códigos culturais, e aqui as falhas de informação do destinatário podem ser graves (SALOMÃO, op. cit., p. 45).
Textos bíblicos fazem parte das literaturas que requerem mais estudos sobre
a vida do autor, devido à distância na linha do tempo; e seus escritores terem sido
de diferentes épocas e grau de cultura. Cabe ao leitor procurar entender:
Quais tipos de pessoas eram aquelas que encontramos na Bíblia? O esforço para nos colocarmos no lugar delas e vermos através de seus olhos, não é fácil, mas é necessário, para que tenhamos afinidades com suas pressuposições indiscutíveis, suas ações e palavras, seus amores e ódios, seus motivos e aspirações. Neste ponto, descrições confiáveis da vida nos tempos bíblicos podem ser muito úteis (GUERRA, on-line, 2010)
Mediante o entendimento sobre a função da hermenêutica na interpretação
textual, aplicando-a nos textos bíblicos e levando-se em conta a complexidade que o
processo requer, percebe-se o valor intenso de uma metodologia sistematizada, que
possua técnicas pré-determinadas e estabelecida. Se esta for corretamente
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empregada na preservação da intencionalidade autoral, evitando que seja
deturpada, concomitante aos procedimentos necessários para a compreensão da
sua mensagem, o sucesso da análise será satisfatório, ainda que não seja possível
a sua plenitude.
2 O LIVRO DOS SALMOS E A SUA LINGUAGEM
O livro dos Salmos é considerado como “Uma coleção de poemas religiosos
empregados especialmente no culto público em honra do Deus de Israel” (DAVIS,
op. cit., p. 1087). Encontra-se inserido no Velho Testamento e faz parte do conjunto
de livros que compõe a Bíblia Sagrada, é de origem hebraica, contendo cento e
cinquenta capítulos, divididos em salmo, que foram escritos por autores israelitas
distintos como Moisés, apenas um único salmo, o de número 90; sacerdote Asafe;
os filhos de Coré6
Ao Saltério dos Salmos é atribuído um imenso valor, não somente pelo povo
no qual tem sua origem, mas por todos seus leitores ou simplesmente admiradores
da poesia hebraica. LaRondelle (1983, p. 7), afirma: “O Livro de Salmos cumpre um
papel único na Bíblia. Da mesma maneira que o coração tem uma função especial
no corpo humano, assim os salmos funcionam nas Escrituras como a batida do
coração da religião de Israel”.
; e Davi, sendo-lhe conferida a autoria de mais de setenta salmos.
A Septuaginta7
A linguagem utilizada por seus autores, configura-se em uma linguagem
poética, pois possui sentido conotativo na maior parte de sua composição, tornando-
se facilmente identificável esta característica. Bentho (op. cit.), confere à linguagem
figurada, o entendimento de que, não lhe cabe a aplicação do literal, pois se
aplicado, torna impossível ou absurda a interpretação do texto.
, segundo Apolinário (op. cit.), chamou o livro dos salmos, ao
traduzir do hebraico para o grego, de psallo, que significa tocar instrumentos de
corda. Também lhe inferiu a definição de louvores, já que eram cantados na
exaltação do Deus da nação israelita.
6 Coré, israelita da tribo de Levi, iniciou contenda com Arão, irmão de Moisés, logo que saíram do Egito, pois não aceitava que este exercesse o cargo de
sacerdote do templo, visto que pertenciam à mesma família (tribo). Devido à demonstração de inveja, e não ter dado ouvidos a Moisés para se arrepender
desse sentimento, a terra se abriu e o engoliu. No entanto, seus filhos, foram poupados (Números 26: 10-1). Posterior a este fato, seus filhos, por
pertencerem à tribo levita, e a esta o dever de todo e qualquer serviço relacionado ao templo, fizeram parte da guarda do templo e do coro musical (I
CRÔNICAS 9: 17 e 19; SALMOS 84:10).
7 Septuaginta – Tradução do Velho Testamento para o Grego, feita em Alexandria no Século III a.C. por um grupo de 70 judeus (APOLINÁRIO, 1990, p. 27).
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No sentido literário, um poeta é alguém que exprime suas idéias mediante imagens verbais, metáforas e outros artifícios literários. Livros poéticos são aqueles nos quais o seu conteúdo é escrito numa linguagem caracterizada pela emoção, ritmo e linguagem metafórica. Poesia é um discurso emotivo marcado pela emoção, rima, ritmo e pelo uso da linguagem figurada. Difere-se da prosa, pois enquanto esta é essencialmente descritiva e dissertativa, a poesia, apesar de usar a descrição e a dissertação em alguns casos, concentra-se peculiarmente no uso da linguagem figurada (IBIDEM, op. cit., p. 262).
Através da linguagem, torna-se possível conhecer diversos aspectos da
cultura, história e forma de organização de um povo, pois ao registrar o pensamento
através da escrita, permanecem as marcas de todo o contexto que envolve e
influencia o autor, logo, a linguagem utilizada, transmite os sinais de seu tempo.
Segundo Silva (1979, p. 81), “A linguagem é o elemento mais eficaz da comunicação
social. Através dela são transmitidos todos os padrões culturais da sociedade, é
iniciado o processo de socialização e a sociedade perpetua-se através dos tempos”.
No Salmo 23, é possível identificar fatores pertinentes à religiosidade,
aspecto cultural, social, econômico e até geográfico do povo do qual fazia parte seu
autor. Bentho (op. cit., p. 286), o classifica como: “Écloga ou égloga: poesia pastoril.
Diálogo poético em cenário rural, entre pastores ou camponeses, [...] pois embora
não haja um diálogo, o cenário é pastoril e campestre”.
Ao conhecer o autor deste salmo, percebe-se por que é classificado como
égloga. Nota-se, de forma intrínseca e subjetiva nesse poema, comparações
perfeitas com o ambiente, quotidiano e atributos de um pastor de ovelhas, que
somente um íntimo conhecedor desse labor poderia descrever. Logo, percebe-se
que seu autor, ou era um pastor ou conhecia muito bem esse ofício, definindo a
existência de uma das formas de economia e subsistência dessa nação.
2.1 A ESTRUTURA DO POEMA HEBRAICO E A PRESENÇA DAS FIGURAS DE LINGUAGEM
A poesia hebraica não segue o mesmo padrão comum às outras poesias.
Sua estrutura não se baseia em métrica ou rimas sonoras, mas em torno de um
pensamento. O livro dos Salmos é a fonte mais rica do paralelismo da poesia
hebraica, embora a presença poética ocorra em todo o contexto da Bíblia.
A poesia hebraica não possui rima. A extensão dos seus versos, não é levada em conta. Pelo fato da poesia hebraica estar construída em torno de um padrão de pensamento básico, o escritor tem grande liberdade na
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estruturação de cada verso. Muito do estilo da poesia hebraica, advém do paralelismo literário. No sentido em que é usada aqui, a palavra paralelo se refere à relação de sentido vista em cada dois versos ou linhas da poesia (OLIVEIRA, op. cit., p. 57).
O verso: “O justo florescerá como a palmeira, crescerá como o cedro do
Líbano” (SALMOS 92:12), apresenta uma formação de ideias que Bentho (op. cit.),
chama de ritmo de sentido, pois nota-se que o salmista utiliza palavras de
significados semelhantes “florescerá/crescerá” e “palmeiras/cedro”, ou seja, o
pensamento da primeira parte do verso rima com o da segunda, denominando-se
esse estilo de paralelismo completivo.
Ainda segundo Bentho (op. cit.), os poemas hebraicos são compostos por
estrofes de dois até seis versos, sendo respectivamente chamados de dístico ou
bicola, trístico ou tricola, quarteto, quintilha e sextilha. A forma como se distingue os
versos poéticos do livro dos salmos é baseada na estrutura do pensamento neles
apresentado, uma vez que seus poemas não estão dispostos como na literatura
comum, separados por estrofes e sim por versículos, como são denominados os
curtos parágrafos da Bíblia.
Para exemplificar essas formações estróficas, Bentho (op., cit., p. 268-9),
cita alguns trechos bíblicos, e os classifica como: Dístico ou bicola: “Ensina-nos a contar os nossos dias, / de tal maneira que alcancemos corações sábios (SALMOS, 90:12)”. Trístico ou tricola: “Levantam os rios, o Senhor; / Levantam os rios o seu bramido ; /Levantam os rios as suas ondas” (IBIDEM 93:3). Quarteto: A lei do Senhor é perfeita, / e refrigera a alma; / O testemunho do Senhor é fiel / e dá sabedoria aos símplices (IBIDEM 19:7). Quintilha: Mas eu, / sou como a oliveira verde, / na casa de Deus; / confio na misericórdia de Deus / para sempre, eternamente (IBIDEM 52:8). Sextilha: [...] Eis que os meus servos comerão, / mas vós padecereis fome; / Eis que os meus servos beberão, / mas vós tereis sede; / Eis que os meus servos se alegrarão, / mas vós vos envergonhareis (Isaías 65:13).
Quanto à estrutura rimática, Bentho (op. cit.), explica como pode ser
conceituada. As rimas podem ser alternadas ou cruzadas, ABAB; emparelhadas,
AABB; e interpoladas ou opostas, ABBA; ressaltando que apenas rimas de
pensamento e nunca fonética. Cita como exemplo de rima alternada, ABAB, o
seguinte versículo: “A lei do Senhor é perfeita – A / e restaura a alma – B / O
testemunho do Senhor é fiel – A / e dá sabedoria aos símplices – B” (SALMOS 19:7).
Percebe-se que o poeta fala alternadamente, duas vezes da lei do Senhor,
15
“lei/testemunho” e dos benefícios que ela pode trazer, “restaura a alma/dá sabedoria
aos símplices”.
O modelo a seguir, apresenta uma estrutura emparelhada, AABB,
percebendo-se as rimas de pensamento iniciadas numa linha e concluídas na
próxima, onde o poeta faz uma comparação através da distância entre o Céu e a
Terra para exemplificar a grandeza da misericórdia do Ser a quem se refere.
Continua o discurso, porém utilizando-se da lonjura entre o Oriente e o Ocidente
para dizer a que distância dos humanos se encontram suas transgressões,
afastadas por esse Ser. “Pois quanto o céu está elevado acima da terra, - A / assim
é grande a sua misericórdia para com os que o temem, - A / Quanto está longe o
Oriente do Ocidente, - B / assim afasta de nós as nossas transgressões – B”
(SALMOS 103: 11-13).
A estrofe abaixo, tem em sua composição, palavras poéticas com função de
completar o sentido de forma oposta, ABBA, porque a primeira linha conclui-se na
última e a segunda, finaliza-se na terceira. “Não deis aos cães as coisas santas – A /
nem deiteis aos porcos as vossas pérolas – B / para que não as pisem com os pés, -
B / e, voltando-se, vos despedacem – A” (MATEUS 7:6).
Embora as rimas dos poemas hebraicos ocorram de maneira distinta em
relação às ocidentais, tornam-se similares quanto ao uso das figuras de linguagem,
utilizadas para compor a poesia que se extrai na análise dos seus poemas.
Bentho (op. cit.) contribui com exemplos que demonstram algumas
utilizações de linguagem figurada, sendo: Anáfora: “Até quando te esquecerás de
mim, Senhor? / Até quando esconderás de mim o teu rosto? / [...] Até quando se
exaltará sobre mim o inimigo?” (SALMO 13:1, 2). Anáfora, segundo Móisés (2004, p.
23), é uma figura de linguagem que: “[...] consiste na repetição de uma ou mais
palavras no princípio de sucessivos segmentos métricos [...]”. É o que ocorre com a
repetição da expressão “Até quando” ao iniciar cada verso.
Prosopopeia é uma figura de linguagem que: “[...] consiste em atribuir vida,
ou qualidades humanas, a seres inanimados, irracionais, ausentes, mortos ou
abstratos” (IBIDEM, op. cit., p. 374). Para exemplificar a presença desta na Bíblia,
Bentho (op. cit.), cita: “[...] a justiça e a paz se beijaram. [...] a justiça olhará desde os
céus” (SALMO 85: 10-1). O ato de beijar ou de olhar, não é próprio da justiça ou da
paz, logo, tem-se um exemplo de prosopopeia.
16
Estas são mínimas demonstrações das figuras de linguagem, encontradas
nos poemas hebraicos, sendo inviável a disposição de todas as classificações, dada
à quantidade existente. Percebe-se que a poesia hebraica está inserida em todo o
contexto bíblico; onde são empregadas palavras com sentido conotativo, figurado e
que não permita a aplicação do literal para a compreensão do contexto, consideram-
se textos com estilo poético.
3 CONHECENDO DAVI, O AUTOR DA PÉROLA DOS SALMOS
Um dos princípios hermenêuticos é conhecer o autor do objeto que está sob
análise, portanto compreender o Salmo 23 implica em penetrar na mente de seu
autor, a fim de compreender as razões que o levaram a utilizar como fundo poético,
o cenário campestre com estilo pastoril.
O nome da personagem Davi, segundo o relato bíblico, surge a partir do
capítulo 16 de I Samuel, quando o profeta Samuel ordenado por Deus, vai até a
casa de Jessé, na cidade de Belém, ungir o novo rei de Israel, conforme cultura
dessa nação. De acordo com Chevalier; Gheerbrant (1982, p. 106), “Os reis de Israel
eram ungidos, e o azeite lhes conferia autoridade, poder e glória da parte de Deus
[...]”.
Ao passar os filhos de Jessé sob os olhos de Samuel, este pergunta ao
patriarca se havia mais algum, pois segundo o relato, Deus não havia mencionado o
nome do novo rei, apenas que seria da casa de Jessé. O pai então responde: “Ainda
falta o menor, e eis que apascenta as ovelhas” (I SAMUEL 16:11). Aqui, encontra-se
o ofício de Davi, pastor de ovelhas.
De acordo com Davis (op. cit.), Davi viveu aproximadamente entre os anos
1016 a 976 a.C. na cidade de Belém de Judá. Apascentar ovelhas naquela época,
exigia extrema dedicação. Os rebanhos, diversas vezes tinham de ser levados para
lugares distantes das tendas, e seus guardadores permaneciam ausentes longos
dias. Dadas às condições climáticas e geográficas do local, água e pasto não eram
abundantes, e com essa distância, o risco do rebanho ser atacado por animais
ferozes ou ladrões, era iminente, exigindo extremo zelo do pastor pela vida das
ovelhas.
A vida de Davi, segundo a narrativa do livro de I Samuel, não se deteve
apenas aos campos com os rebanhos. Sua vida de guerreiro inicia-se no confronto
17
com o gigante Golias, do qual saiu vitorioso, trazendo paz à nação israelita, como
consta no capítulo 17 de I Samuel.
Essa vitória fez com que Davi caísse nas graças do então rei de Israel, Saul,
pois embora tivesse sido ungido rei pelo profeta, ainda não era tempo de assumir o
trono, tendo mantido em silêncio esse fato. O rei Saul, segundo Davis (2006), fora
acometido por um espírito mau, e esse tormento, era aliviado pelo som da harpa que
Davi tocava com maestria, pois possuía excelente gosto pela música e poesia.
Por causa do seu talento para a música, Davi passa a frequentar o palácio a
pedido do próprio rei, mas quando o rei demonstrava melhoras, Davi retornava à
casa do seu pai para cuidar do rebanho de ovelhas.
Com essa frequência ao palácio, Davi aprende o funcionamento do reino e
também sobre guerras. Entretanto, devido à notoriedade do valente guerreiro, pela
simpatia e o livramento da nação das mãos do gigante filisteu8
Após sua morte, Davi é aclamado rei sobre a tribo de Judá, segundo Davis
(op. cit.), com 30 anos de idade, porém por dois anos, as demais onze tribos que
compunham o reino de Israel, foram governadas por Isbosete, o outro filho de Saul,
que se achou no direito de reinar por ser filho do rei morto. Depois de subir ao trono,
Davi praticou atos que segundo as leis desse povo, eram considerados crimes.
Dentre esses, o adultério com Bate-Seba
, o ciúme e a inveja
foram despertados no rei Saul, passando a perseguir Davi para matá-lo até o dia em
que, juntamente com seu filho Jonatas, Saul morre em batalha.
9
Davi casa-se com Bate-Seba e o filho desse adultério morre poucos dias
após o nascimento, começando então a cobrança dos seus maus atos, conforme
Davis (op. cit.,). Mais tarde, seu filho, Absalão, se revolta contra o governo do pai, e
procura matá-lo. Como vingança do incesto cometido por Amnon contra Tamar,
e a indução da morte do seu esposo,
Urias, para que não soubessem do adultério, pois Bate-Seba havia engravidado do
rei. Devido a essas loucuras cometidas, como assim eram considerados tais atos,
Deus o penalizou, segundo o relato bíblico de II Samuel 12:10, dizendo que a
espada nunca sairia de sua casa, simbolizando a ausência de paz em sua família e,
afetando também o reino, com graves consequências.
8 Os filisteus eram um povo que tinha suas origens no Egito, e inúmeras vezes lutaram contra a nação israelita, até que no reinado de Davi foram
conquistados e após esse fato, pouco se fala sobre eles na Bíblia, pois isso parece ter dado origem à sua decadência. Há indícios que houve fusão com
outras nações, inclusive com o próprio povo judeu, perdendo-se na história (DAVIS, 2005).
9 Bate-Seba, segundo a Bíblia, casou-se com o rei Davi, porém o filho do adultério não sobreviveu muitos dias após o nascimento, no entanto, dessa união
nasceu o homem considerado por este livro, o mais sábio de toda a Terra, Salomão, herdeiro do trono de Davi, demonstrando o amor e o perdão de Deus
por ele, confirmando o trono à sua posteridade (Davis, 2005).
18
também filhos de Davi, com esposas diferentes, Absalão mata Amnon, filho mais
velho, trazendo grande sofrimento ao rei.
Enquanto Davi fugia da ira de Absalão que reinava sobre parte do povo, a
fim de evitar um confronto com o próprio filho e por estar em desvantagem em
estrutura e quantidade de soldados, Joabe, general do seu exército, o mata,
causando a Davi uma dor imensa, pois amava Absalão.
Após a morte desse filho, Davi unifica novamente o reino que havia se
dividido, elabora a planta do primeiro Templo de Jerusalém, mas não o constrói,
sendo deixado para Salomão a missão de edificá-lo. Morre aos 71 anos de idade,
tendo reinado por 40 anos e meio sobre Israel (DAVIS, 2006).
Embora o rei tenha cometido delitos horrendos enquanto soberano em
Israel, observa-se em sua trajetória, registrada nos livros de I e II Samuel até o
capítulo 02 do livro de I Reis, que com exceção desses erros, obedeceu às leis de
sua cultura religiosa. Esta redenção e obediência às leis é comprovada em sua
história e no Novo Testamento, séculos posteriores, quando é citado pelo apóstolo
Paulo no livro de Atos 13:22, como o homem segundo o coração de Deus, ou seja,
um homem que agradava a Deus.
Devido a tantas ocasiões de perigo envolvendo a vida do autor do Salmo 23,
não é possível determinar em qual delas ele o tenha escrito, e se foi em uma
dessas. No entanto, nota-se grande demonstração de confiança nesta posição de
ovelha que Davi assume dentro do poema.
Atribui-se a comparação que estabelece entre os cuidados do seu Senhor e
do pastor, à experiência adquirida enquanto guardador do rebanho do seu pai,
quando aprendera intimamente sobre a dependência da ovelha em relação aos
cuidados do pastor.
3.1 O SALMO 23 SOB OS MÉTODOS: HERMENÊUTICO E SEMIÓTICO
Abaixo do título desse salmo, nas traduções bíblicas modernas, encontra-se
mencionado o nome do autor, e refere-se a Davi, o poeta que mais contribuiu na
composição dos salmos. Segundo Bentho (op. cit.), nem sempre é possível
assegurar a autoria de um salmo, pois não havia em alguns textos originais, menção
do nome do seu autor. Todavia, analisando-se a linguagem e o discurso,
comparando-os à vida dos presumíveis autores, é possível determinar, ou ao menos
19
concordar com estudiosos, que este pertence a Davi, devido à sua forte inclinação à
poesia, embora o livro dos salmos seja caracteristicamente poético.
Na análise de textos milenares como o Salmo 23, elaborado por um autor
pertencente a uma região geográfica, contexto cultural tão díspar dos possíveis
leitores, a busca pela decifração da linguagem empregada na composição do texto,
é inevitavelmente necessária. Há diversos textos que para uma análise crítica;
paralela à Hermenêutica, outra ciência deverá ser aplicada, a semiologia10
Percebe-se que, sobretudo em textos onde há o emprego de linguagem
simbólica e que há distanciamento histórico-cultural do emissor ao destinatário, é
fundamental o recurso semiótico, pois através deste, signos que divergem nos
referentes para os destinatários distantes e imediatos à obra, podem tornar-se
compreendidos.
. Salomão
(op. cit., p. 47), diz que: “[...] toda a atividade crítica é uma atividade hermenêutica no
sentido de uma atividade interpretativa global ou semiótica”.
Quando um autor escreve uma obra, ele sabe que há um público
destinatário imediato e às vezes não associa que sua mensagem escrita alcançará
gerações distantes da sua. Para o estudo dos signos, encontra-se o filólogo que
deve contribuir na tradução desses, e dos seus respectivos significados.
De fato um texto possui sempre um destinatário imediato, almejado pelo emitente, e outros destinatários não previstos ou ignorados. O primeiro é o público a que o texto é destinado e que em grande parte compartilha com o emitente premissas culturais comuns. O segundo é aquele que tomará contato com a obra muito tempo depois e sem que ela lhe tenha sido destinada diretamente. A contribuição do filólogo para os estudos semióticos é a de realizar um percurso às avessas para recuperar, no tempo, as bases para uma possível legibilidade do texto (SALOMÃO, 1993, p. 33).
Um texto como o Salmo 23, requer atenção intensificada, pois pertence a
uma geração muito distante da atualidade e é composto por inúmeras figuras de
linguagem poder-se-ia aplicar interpretações incoerentes com a intenção autoral,
caso não se observe os princípios básicos das ciências: hermenêutica e semiologia.
O salmista inicia seu discurso neste poema, utilizando uma figura de
linguagem, a metáfora. Segundo Oliveira (op. cit., p. 43): “Metáfora é a figura em que
se afirma que alguma coisa é o que ela representa ou simboliza, ou com que se
compara”. Nota-se que no verso: “O Senhor é o meu pastor; nada me faltará”
10 “A semiologia é uma ciência que estuda a vida dos signos no seio da vida social” (SAUSSURE, apud STRECK, 2004, p. 146).
20
(SALMO 23:1), Davi remete Àquele a quem chama de Senhor, as atribuições de um
pastor.
O signo pastor possui inúmeros referentes, se comparados a culturas e
sociedades distintas. Na atualidade, a maior parte da cultura ocidental entende por
pastor, um líder espiritual, alguém ligado a uma denominação religiosa, já na cultura
oriental, o termo pastor pode ser perfeitamente empregado àquele que cuida de
rebanhos, pois conforme Davis (op. cit.), ainda se mantém esse costume em boa
parte do oriente. Chevalier; Gheerbrant (op. cit., p. 691), afirma que: “Em uma
civilização de criadores nômades, a imagem do pastor é carregada de simbolismo
religioso”.
Na cultura judaica, segundo Davis (op. cit.), o pastor representava o
guardador do rebanho, no sentido literal, mas também cabia essa imagem aos
líderes do povo, os reis, profetas e sacerdotes, pois como dirigentes, tinham a
função de guiá-los, tal qual a função do pastor com seu rebanho. Comprova-se o
entendimento de Davis (op. cit.,), no verso registrado em II Crônicas 11:2 “[...]
também o Senhor teu Deus te disse: Tu apascentarás o meu povo Israel, e tu serás
chefe sobre o meu povo Israel”. Sobre esses possíveis referentes, aos quais o signo
pastor remete, a semiologia contribui na definição do real valor simbólico intrínseco
no contexto do salmo 23.
O ofício de um pastor de ovelhas, segundo Davis (op. cit.), consistia e
consiste em zelar e prover as necessidades do rebanho, de tal forma que se
estabelece uma relação tão íntima, onde as ovelhas conhecem a voz do seu guia,
não atendendo ao chamado de outro que não seja o seu. O pastor providencia a
cada manhã o pasto e a água para o rebanho, pois as ovelhas por si só, não são
capazes de sobreviverem, e ao findar da tarde, o rebanho é recolhido e
encaminhado a um abrigo seguro, do frio e ataques de animais ferozes.
Analisados os significados do termo pastor e sua importante função na
sociedade israelita, à qual Davi pertencia, percebe-se o motivo que o levou a
imputar, Àquele seu Senhor, os atributos de pastor. Davi utiliza com propriedade a
relação pastor-ovelha ao descrever o relacionamento com Ele, pois na juventude
exercera tal ofício e aprendera da confiança das ovelhas em seu pastor; e na
maturidade, demonstra nesse Senhor, a mesma certeza de proteção e providência
que uma ovelha precisa depositar em seu guia para a sobrevivência. A característica
de pastor, conferida a Deus pelo povo judeu, é também comprovada no texto
21
registrado em S. João 10:11, onde Deus reporta-se a eles dizendo: “Eu sou o bom
Pastor: o bom Pastor dá a sua vida pelas ovelhas”.
No segundo versículo, o salmista diz: “Deitar-me faz em verdes pastos, guia-
me mansamente a águas tranqüilas”. Ainda, na posição de ovelha, descreve como o
pastor guia seu rebanho, levando-o a um local com boas pastagens, pois os
cordeiros sozinhos não conseguem distinguir um bom pasto. Embora utilize o verbo
deitar, sugerindo um repouso, entende-se que esse repouso ocorre depois que a
ovelha sente-se saciada.
Algumas ovelhas preferem escolher pastagens de qualidade inferior. [...] As ovelhas, por dificuldade de faro, são susceptíveis a ingerir tudo o que encontram pela frente, não distinguindo as ervas daninhas, que podem lhes fazer mal ou mesmo levá-las a morte. Se no pasto existirem flores ou sementes coloridas, mas venenosas, que atraiam sua atenção, as ovelhas comerão sem saber que estão se envenenando. Elas têm hábitos repetitivos, pastam nos mesmos lugares até que destruam todo o pasto. Defecam no próprio campo onde comem, liberando vermes e parasitas. Se o pastor não dirigi-las a novos pastos, vão repetindo os velhos hábitos. A ovelha teimosa pastará sempre nos mesmos trilhos. O seu fim será o emagrecimento, doenças e sofrimento (REZENDE, on-line, 2010).
Quanto às águas, estas têm que ser seguras, literalmente tranquilas, pois as
ovelhas sentem medo de correnteza.
As ovelhas em geral, são muito medrosas. Elas têm medo, principalmente, das fortes correntezas, e com razão. Por causa de sua pesada capa de lã, elas dariam péssimas nadadoras. Seria como se um homem vestido com um pesado sobretudo tentasse nadar. A lã absorveria a água, e a arrastaria para o fundo. A ovelha sabe, por instinto, que não poderia nadar numa correnteza forte, e por isso não se aproxima de riachos para se abeberar; somente o faz em águas paradas. [...] ele as guia por montanhas e vales à procura de águas tranqüilas, para ali saciarem a sede. Se não encontra um lago tranqüilo, enquanto as ovelhas estão descansando, o pastor apanha algumas pedras e faz com elas uma espécie de represa no riacho, e, assim, até o menor dos cordeirinhos pode beber sem receio (ALLEN, op. cit., p. 6).
Davi utilizou a linguagem metafórica, pois era comum a utilização desses
recursos literários pelos compositores judaicos, pois utilizando algo conhecido na
cultura deles, podia expressar com maior riqueza o seu sentimento, a sua poesia
ganhava vida e as palavras tornavam-se compreendidas.
O símbolo é uma figura, objeto, número ou emblema, cuja imagem representa, de modo sensível, uma verdade moral, ou religiosa. Através do símbolo, uma certa coisa, objeto ou verdade é substituída por um sinal. No símbolo um conceito abstrato recebe uma correspondência material e concreta pela relação existente ente o conceito e o objeto ou símbolos por ele representado. [...] As realidades sobrenaturais da religião judaica eram expressas através de objetos concretos (BENTHO, op. cit., p. 218-19).
22
No versículo terceiro, o salmista diz: “Refrigera a minha alma, guia-me pelas
veredas da justiça, por amor do seu nome”. O verbo refrigerar, segundo Ferreira
(2001), também possui um sentido de confortar ou acalmar, o que sugere um
possível momento de tristeza vivido pelo autor, que, confia no pastor para trazer-lhe
alívio à alma. Sob os aspectos semióticos, o signo alma na cultura hebraica,
direciona-se à palavra pneuma, sobre a qual Davis (op. cit., p. 56) discorre dizendo
que: “A alma tomada em sentido mais elevado, é o princípio racional que o homem
possui, [...]”.
A partir desta concepção sobre o referente para o signo alma, no contexto
da cultura hebraica, entende-se que o salmista acredita no conforto e calma que os
cuidados do seu pastor podem proporcionar-lhe devido às angústias por ele vividas.
A alma, simbolizava sua mente cansada e preocupada, possivelmente com algum
risco iminente, já que segundo sua biografia registrada na Bíblia, enfrentou inúmeros
desafios de guerra enquanto rei sobre Israel.
Quanto a esse discurso de Davi, Allen, sustenta que:
[...] cada ovelha tinha um lugar determinado na fila, e durante todo o dia ela conservava a mesma posição. Algumas vezes, porém, no decorrer do dia, elas deixavam seu lugar e se aproximavam do pastor. Este colocava a mão no focinho ou na orelha do animal, coçava-o de leve e sussurrava alguma coisa ao seu ouvido. Depois, reconfortada e mais animada, ela voltava ao seu lugar. Davi se lembra de como ele próprio estivera perto de Deus antes, de como Deus o protegera quando saíra para enfrentar o gigante Golias, e de como ele o guiara ao longo de sua caminhada para o sucesso. Depois disso, Davi passara a estar sempre muito ocupado, tornara-se mais capaz de cuidar de si mesmo, e não sentia necessidade de uma dependência direta de Deus. Davi distanciou-se de Deus. Depois pecou e isto o fez infeliz. O peso da culpa tornou-se insuportável (ALLEN, op. cit., p. 8).
Com esse entendimento de Allen, chega-se à conclusão que Davi teria
escrito o referido salmo tempos após o início de seu reinado, quando já estava
absorto nos negócios do reino afastando-se das origens. Até que em certo
momento, lembrou-se da relação que mantivera com seu pastor enquanto guardador
de ovelhas, e sente a necessidade de retomá-la, demonstrando tê-la alcançado, pela
confiança apresentada em suas palavras evidenciando a nova relação pastor-
ovelha.
“Guia-me pelas veredas da justiça, por amor do seu nome”, esta parte do
terceiro verso, sugere que novamente Davi lembra-se da vida de pastor e de como
as ovelhas necessitavam ser guiadas em segurança, por caminhos retos, embora às
vezes tivessem de vencer alguns perigos devido à geografia do local.
23
Ele sabia que as ovelhas não tinham muito senso de direção. Um cão, um gato ou um cavalo, quando se extraviam, sabem perfeitamente achar o caminho de volta. [...] Com a ovelha isto não acontece. A ovelha não possui boa visão. Não enxerga mais que oito ou dez metros à sua frente. As campinas da Palestina eram cortadas por trilhas estreitas, pelas quais os pastores levavam o rebanho para o pasto. Algumas destas trilhas terminavam à beira de precipícios, nos quais a ovelha desavisada poderia cair e morrer. Outras iam dar em becos sem saída. Havia, outras, porém, que levavam a pastos verdejantes e a águas tranqüilas. Algumas vezes, o pastor as guiava através de passagens íngremes e perigosas, mas os caminhos por onde passavam sempre iam dar em um bom lugar (IBIDEM, op. cit., p. 10).
O salmista conclui a petição de ser guiado pelas veredas da justiça, pondo
como garantias o valor do nome desse Ser a quem se sujeita, pois na expressão:
“por amor do seu nome”, acredita na justiça que esse nome representa, conforme os
costumes de sua cultura religiosa.
Em muitos casos, no hebraico, alguns nomes traduziam qualidades essenciais, como no caso em que Deus jura pelo seu grande nome, em Jeremias 44:26, querendo dizer que ele jura pela força de seu nome como garantia do cumprimento de sua Palavra (DAVIS, op. cit., p. 885).
O poeta continua no quarto versículo dizendo: “Ainda que eu andasse pelo
vale da sombra da morte, não temeria mal algum, porque tu estás comigo; a tua vara
e o teu cajado me consolam”. Allen tem sobre este trecho, a seguinte interpretação:
Alguém já falou do vale da sombra da morte, um vale que existe na Palestina, e vai de Jerusalém ao mar Morto. É uma trilha estreita e perigosa que corta as montanhas. Sendo um caminho árduo, é muito fácil uma ovelha precipitar-se ribanceira abaixo e morrer. É uma viagem difícil que ninguém deseja fazer. Contudo as ovelhas não a receiam. Por quê? Porque sabem que o pastor vai com elas (ALLEN, op. cit., p. 12).
Allen, através deste esclarecimento, permite compreender que a confiança
do salmista era tamanha no seu Senhor, que mesmo tendo de atravessar o mais
perigoso vale daquela região, com terrenos acidentados, podendo representar
também os riscos que corria, ainda assim ele não hesitaria em segui-lo, pois como a
ovelha segue seu pastor, ele o seguiria confiantemente por onde fosse.
Quanto à vara e ao cajado, objetos comumente usados pelo pastor para
proteção do rebanho, o salmista faz questão de enfatizá-los, pois conhecia bem
suas utilidades. Novamente Allen contribui sobre o assunto ao descrever o proveito
desses objetos no ofício de guardador de ovelhas, aplicando de forma metafórica às
condições que Davi havia se sujeitado, e para as quais necessitava de ajuda.
24
O pastor sempre carrega consigo um bastão pesado e duro, de cerca de 60 centímetros a um metro de comprimento. Quando Davi escreveu este salmo, provavelmente estava-se lembrando da necessidade que ele próprio tivera de usar aquela vara [...] para proteger seu rebanho. Além da vara, o pastor tem também um cajado, de quase três metros. A ponta deste cajado é recurvada, formando um gancho. Muitas trilhas da Palestina vão margeando barrancos íngremes. Era muito fácil a ovelha, às vezes, desequilibrar-se e escorregar para o abismo, ficando suspensa apenas por uma saliência estreita. O pastor então estendia o cajado; encaixava-o no peito da ovelha, e a içava para cima, de volta ao caminho certo. A ovelha sente-se instintivamente protegida pelo cajado e pela vara que o pastor carrega (IBIDEM, op. cit, p. 13-4).
A ovelha instintivamente grita por socorro quando cai em alguma vala ou
encontra-se em perigo, até que seja encontrada ou suas forças se esvaiam. Desta
forma Davi se subjuga, pois se apega à confiança depositada naquele Senhor tal
qual a ovelha ao cajado.
Ainda, como uma ovelha, Davi se apresenta no verso cinco com a seguinte
expressão: “Preparas uma mesa perante mim na presença dos meus inimigos,
unges a minha cabeça com óleo, o meu cálice transborda”. Sobre este verso, Allen,
exprime o seguinte comentário:
Nas campinas da Terra Santa, havia algumas plantas que, se ingeridas, seriam fatais para as ovelhas. Havia outras ainda que possuíam espinhos, e arranhariam o focinho do animal, provocando ferimentos sérios. Antes de iniciar o período de pastagem, o pastor saía com um enxadão, e destruía aqueles "inimigos" da ovelha. Mais tarde, ele vinha e amontoava a erva já seca, e a queimava. Depois disso, o pasto estava pronto para receber as ovelhas. Ele se tornava, por assim dizer, uma mesa preparada para elas. Os inimigos tinham sido afastados (IBIDEM, op. cit., p. 15).
Fazendo um paralelo aos riscos aos quais Davi era exposto, nota-se que os
inimigos retratados através da alimentação das ovelhas, representavam os mais
diversos que o rei tinha de enfrentar, e sentar-se a uma mesa farta diante dos
mesmos, poderia também simbolizar vitória sobre eles.
Quanto ao óleo ou azeite, na cultura judaica, tinha muita representação.
Conforme explicação de Davis (op. cit.), era usado em rituais de consagração
envolvendo reis, sacerdotes e profetas; recepção de hóspedes, para lavar e ungir as
mãos e os pés; ungiam-se os convidados de honra em banquetes e festas, pelo
próprio anfitrião. Usava-se também como remédio, e para as ovelhas possuía uma
rica importância; seus ferimentos eram tratados com azeite, porque devido à densa
lã, somente o azeite alcançava com facilidade sua pele, trazendo alívio às suas
dores.
25
Quando as ovelhas estão pastando, às vezes elas cortam o focinho contra alguma pedra aguda escondida na relva. Além disso, pode haver espinheiros, e elas sofrerem arranhões e ferimentos. Outras vezes, a subida era íngreme, e o sol estava muito quente, inclemente mesmo. No fim do dia, o rebanho estava muito cansado, sem forças. Ao chegarem ao aprisco, o pastor se punha à entrada e examinava cada ovelha que passava. Se ela tivesse algum ferimento, ele lhe aplicava um óleo balsâmico que ajudava a cicatrizá-lo, e evitava a infecção. A ovelha ficava boa logo (ALLEN, op. cit., p. 16).
Davi conclui o verso dizendo: “[...] meu cálice transborda”, Allen dá o
significado do que possivelmente se tratava dentro dessa cultura e ofício de
pastores, o cálice a que ele se referia.
Outra peça dos apetrechos do pastor era um vaso de barro que estaria cheio de água. Era um tipo de jarro que conservava a água sempre fresca, pelo processo da evaporação. À medida que cada ovelha se aproximava, ele mergulhava na água uma grande caneca cheia até a borda, e a estendia para o animal. A ovelha sedenta e cansada sorvia com prazer o líquido restaurador (IBIDEM, op. cit., p. 16).
O último versículo do salmo 23, Allen (op. cit.), discorre que Davi, após anos
de aprendizagem com duras e vastas experiências, não pretende se desviar do
caminho preparado por seu Senhor. Acredita que os cuidados dispensados à sua
proteção, permanecerão enquanto viver. “Certamente que a bondade e a
misericórdia me seguirão todos os dias da minha vida, e habitarei na casa do Senhor
por longos dias” (SALMOS 23:6).
A bondade e a misericórdia que Davi menciona, são os cuidados de Deus,
dos quais não deseja se afastar. Afirma que habitará em sua casa por longos dias,
ou seja, não se apartará do pastor, tal qual uma ovelha pode fazer por rebeldia ou
por vacilo, ocasionando riscos de ser tragada por um animal ou morrer de sede,
fome ou frio.
Embora não se saiba ao certo em que circunstâncias Davi escreveu o Salmo
23, Allen (op. cit.), permite acreditar que tenha sido em sua velhice, demonstrando
certeza nos cuidados que teve e terá do seu pastor pelo resto de seus dias.
Como ovelha, após peregrinar por muitos dias com seu pastor atrás de
verdes pastagens, atravessando perigos e vales, Davi aprende a conhecê-Lo a
ponto de dizer: “Certamente que a bondade e a misericórdia me seguirão todos os
dias da minha vida, e habitarei na casa do Senhor por longos dias” (SALMOS 23:6).
Ainda que não tenha sido em sua velhice a composição deste cântico
israelita de louvor, que se tornou universal, Davi transparece cônscio, plenamente,
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de cada palavra empregada na composição das metáforas presentes no poema,
encaixando-as com sabedoria na descrição de sua relação com o Pastor.
Mesmo que Moisés tenha exercido a função de pastor (EXÔDO 2:16-21), a
ele confere-se somente a composição de um único salmo. Somente Davi, dentre
todos os demais autores dos salmos, poderia comparar-se à ovelha com tamanha
propriedade, pois sabia bem o comportamento desse animal e o quanto dependia
dos cuidados do pastor para sua sobrevivência, porque em sua juventude havia
apascentado o rebanho do seu pai, livrando-o dos perigos que os cercava.
Agora, na maturidade, compara-se à ovelha, ao meditar nos livramentos que
obtivera em momentos de turbulência, enquanto rei da nação israelita, e atribui
esses livramentos ao verdadeiro Pastor de Israel, conforme assim denominavam
Jeová.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No decorrer deste estudo, notou-se o quanto a Hermenêutica está presente
no quotidiano, ainda que de forma inconsciente, sendo utilizada na interpretação de
tudo que é necessário chegar-se a uma compreensão. Diante dos conceitos e
aplicações dadas a esta ciência, pelos autores consultados na elaboração deste,
percebe-se inegavelmente sua contribuição na análise literária, pois seus recursos e
métodos são-lhes empregados para o entendimento dessas obras, quando analisá-
se o contexto histórico, sócio, político e cultural, em que ocorreu sua composição.
A vida do autor e tudo o quanto a si se refere, é primordial para a
compreensão da linguagem e o estilo escolhido para sua composição. Todos esses
passos empregados no exame dos textos são fundamentos hermenêuticos, que
entrelaçados à semiologia, abrem leques de hipóteses sobre o objetivo da obra e,
em que, esta consiste.
Quanto ao salmo 23, embora pequeno em sua estrutura, a grandeza
implícita ao simbolismo empregado através das figuras de linguagem, é extensa e
encantadora, pois conhecendo o autor e suas crenças, a exaltação que atribui
Àquele que chama por Senhor, a confiança depositada neste Ser, demonstra um elo
de intensa intimidade. É mais que uma simples amizade ou submissão, chega dar a
ideia de literalidade dos fatos, pois acredita estar sob os cuidados de um Ser, de
forma que este se torna o responsável pela sobrevivência e manutenção da sua
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vida, tal qual a ovelha estabelece sua dependência do pastor. Simplesmente é algo
que vai além da compreensão, sendo particular a Davi.
Ao examinar cada versículo, repletos de simbologia, aplicando-se o contexto
histórico do povo hebreu à sua interpretação, é utilizada a semiótica, pois ao
constituir referentes aos signos presentes no poema, depara-se com a encantadora
poesia do pastor, originada a partir da religiosidade israelita, à qual não cabe aqui
discussão. Sabe-se, pois, que deste povo desabrochou a religião cristã.
A poesia hebraica apresentada no livro que, teoricamente, registra a origem
dessa nação, tornou-se ao longo de sua existência um bem universal. Possui um
caráter unicamente religioso, capaz de transmitir, mesmo através da linguagem
poética, a cultura e comportamento social de um povo, que sobreviveu a dispersões,
como a História registra, e ainda hoje é vista como nação, com seus valores e
costumes tradicionais, onde a maioria deles é conhecida através dela, a Bíblia.
AGRADECIMENTOS
Agradeço de forma incomensurável ao Deus criador e mantenedor de todas
as coisas, a quem dedico toda a sabedoria; honra e glória que a vida possa me
proporcionar; e por ter-me carregado em seus braços, tal qual o pastor com uma
ovelha cansada, quando pensei que não iria conseguir.
Dignos de demonstração do meu reconhecimento são os professores Adair
Aquino e Nuria Sagué Lopez, porque durante o árduo período destinado à
tecelagem deste, sempre dispostos com suas ciências e orientações, contribuíram
inigualavelmente na beleza e harmonia; e no atendimento às exigências da banca
examinadora.
De maneira ampla, mas não menos prestigiosa, deixo aqui o meu Muito
Obrigado a todos os amigos e pessoas que auxiliaram de algum jeito, na construção
e término deste artigo. Também, ao pastor da Igreja Adventista local, Vagner Lopes,
por fornecer riquíssimos materiais bibliográficos, sem os quais, esta construção seria
imensamente mais laboriosa ou quase impossível.
E, não podendo deixar de citar, ofereço o agradecimento ao meu esposo,
que juntamente às orações de minha mãe, ainda que indiretamente, com seu
carinho e desvelo, cooperou grandemente na realização deste sonho.
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