estratégias expansivas: publicações de artistas e seus espaços moventes

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Livro de MIchel Zózimo, contemplado com a Bolsa Funarte de Estímulo à Produção Crítica em Artes Visuais. Tem entrevistas com Regina Melim, Cristina Freire, Amir Brito, Cristiano Lenhardt, Paulo Silveira e Maria Ivone dos Santos.

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ESTRATÉGIAS EXPANSIVAS: publicações de artistas e seus espaços moventes

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Michel Zózimo da Rocha

ESTRATÉGIAS EXPANSIVAS: publicações de artistas e seus espaços moventes

1ª edição

Porto AlegreEdição do Autor

2011

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Permite-se a reprodução parcial ou total desde que seja citada a fonteDISTRIBUIÇÃO GRATUITA, PROIBIDA A VENDA1ª edição: 2011

Capa [Michel Zózimo da Rocha - interferência gráfica sobre ilustração do livro as maravilhas do Fundo do mar]Projeto Gráfico [Marina Bortoluz Polidoro e Michel Zózimo da Rocha] Fotografia de Originais [Denise Helfenstein] Tratamento de Imagens [Denise Helfenstein e Juliano Lopes]Revisão [Fernanda Bulegon Gassen]

R672e Rocha, Michel Zózimo da Estratégias expansivas: publicações de artistas e seus espaços moventes / Michel Zózimo da Rocha. --- Porto Alegre : M. Z. da Rocha, 2011. 180 p. : il.

ISBN 978-85-911696-0-3 1. Arte contemporânea. 2. Publicação de artista. 3. Espaços moventes. 4. Publicação : Circulação. I. Título. CDU 7.039 Catalogação na fonte – Mara R. B. Machado – Bibliotecária, CRB 10/1885

Este projeto foi contemplado pelaFundação Nacional de Artes – Funarte

No edital Bolsa de Estímulo à Produção Crítica em Artes VisuaisPorto Alegre. RS. Brasil. 2011

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Assim que for editado, lhe envio.Malevitch

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apresentação

emblemas

Jornal

cédula

valor

Formato-livro

espaços moventes

imagens

Feriado, de Fabio morais

entrevistas

regina melim [loJa]

cristina Freire [museu]

amir brito [biblioteca]

cristiano lenhardt [relaciÓn ornamental]

paulo silveira [publicação]

maria ivone dos santos [trÂnsito]

agradecimentos

[9]

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APRESENTAÇÃO

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A década de sessenta abriga inúmeras alterações no campo da arte, em relação ao espaço expositivo, ao modo constitutivo do trabalho artístico, ao modelo de apreensão espa-cial, ao caráter material, ao tempo de duração dos projetos artísticos [e consecutivamente a possibilidade de novas edições desses projetos].

Tais alterações contaminam as linguagens artísticas, ampliando os parâmetros de abordagem da arte e as suas derivações formais e conceituais. Aqui, podemos cogitar que as relações entre forma e conteúdo, emergidas das práticas artísticas dos anos sessenta, carregam questionamentos que vão além dos fatores constitutivos da arte, deslocando as suas fronteiras para campos extra-artísticos.

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Desse modo, a permeabilidade da arte em diferentes camadas do tecido social dialoga com as alterações físicas e inventivas das produções de endereçamento conceitual, dos projetos ambientais, das ações performáticas e dos eventos banais e cotidianos de diferentes frentes artísticas.

Assim, o modo de apresentação, os lugares e a noção de público [que tais produções encerram] podem se articular como motes de investigação da arte atual. Ao longo das déca-das de sessenta e setenta, podemos observar a presença de um estratagema que aproxima os contornos dessas produções, o qual está ligado aos seus veículos de documentação, dis-seminação de ideias, subversões independentes, partilha de imagens ou de prolongamentos da experiência artística – a publicação de artista.

Nessa instância, a crescente proliferação dos meios de impressão, o uso da fotografia, a manipulação dos processos de edição gráfica e o elogio ao texto [como prática reflexiva ou poética] articulam-se como alguns vetores das publicações de artista. Em um âmbito geral, essas produções se configuram em meio impresso, com tiragens limitadas ou ilimitadas, justa-pondo, através das artes gráficas, imagem e [ou] texto. Trata-se de um importante veículo de difusão e de dispersão utilizado por distintos projetos artísticos que podem empregar ou abrir mão das estruturas convencionais de edição, de publicação, de distribuição e de circulação.

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É interessante observar que nem todas as publicações de artista possuem o formato-livro. O meio impresso [através de fotocópias, laser, offset, serigrafia, entre outros métodos de impressão] se presta simultaneamente às dimensões in-terdisciplinares de uma publicação e às suas características distributivas.

Tais elementos, em primeira instância, são inerentes aos significados que o termo publicação pode encerrar, articulando-se como ‘um enunciado impresso emitido para um grupo de indivíduos’. Conforme já mencionado, o termo publicação de artista não faz referência somente ao formato-livro, mas sim ao suporte impresso e ao seu caráter múltiplo e distributivo, pres-supondo uma edição, uma tiragem e uma provável circulação.

Nesse caso, livretos, jornais, revistas, objetos múltiplos, postais, selos, cartas, folhetos, adesivos, cédulas, cartazes, jogos, mapas, apostilas, entre outros meios, articulam-se como veículos rizomáticos que dialogam com as sinalizações: editar, publicar, disseminar e circular.

Indo além dos circuitos institucionais, tais publicações podem ser abordadas como espécies de estratégias expansivas, as quais os artistas empregam em suas poéticas. A noção de unicidade, valoração e maleabilidade da obra são atualizadas por produções de tiragens múltiplas, possibilitando, ao trabalho artístico, uma porosidade em relação ao seu caráter institucional e geográfico.

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No Brasil, podemos observar que as produções, de forte endereçamento conceitual, possuem sua gênese nos anos sessenta, ganhando novo fôlego nesta última década. Através desse tipo de publicação, os papéis ocupados pelo artista são alterados em relação aos seus modos de execução, de distribuição, de apresentação, de reflexão e, até mesmo, de autoria, já que algumas publicações nascem de projetos co-laborativos. Esse tipo de produção é caracterizado por ter uma tiragem impressa, um valor relativamente baixo e por transitar em espaços distintos.

Nessa circunstância, cria-se um entrave material, pois apesar de sua ampla distribuição, certos trabalhos ganham um caráter de raridade, ao serem descartados por seus leitores ou desaparecerem com a fugacidade do tempo. Em contrapartida, podemos nos perguntar: haveria a necessidade de conservação dessas publicações? Ou, em um espaço expositivo, qual seria o estatuto de uma obra múltipla que só é ativada pela leitura e manuseio? A última questão não somente interroga esse tipo de trabalho artístico, como também coloca em xeque o modo como os lugares apresentam tais produções.

O panorama internacional se mostra atento para esse tipo de poética, com pesquisas que os fomentam e abrigam, aqui exemplificados pelo CNEAI [1] ou pela mostra DO IT [2]. No cenário brasileiro, o MAC da USP [3] e a Coleção Especial de Livros de Artistas da Biblioteca da Escola de Belas Artes da

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UFMG [4] se articulam como os principais núcleos institucionais de conservação e pesquisa.

Nesse sentido, o presente estudo reflete sobre esse escopo da produção artística brasileira atual, levantando suas origens e apontando os seus vetores de atuação. Ao desen-volver este projeto, foi realizada uma pesquisa de levantamento bibliográfico, mapeamento de lugares, de produções atuais, de trabalhos que podem ser considerados emblemáticos e conver-sas com artistas, pesquisadores, críticos e curadores brasileiros.

Tal estudo pode ser apreendido como material reflexivo e de aporte para outras pesquisas que desejem implementar novas questões. Se antes esse tipo de produção era abordado como periférica ou marginal, atualmente a sua abordagem cerca noções de local/global, de inserção e de gestão institucional.

Os blocos textuais deste livro partiram de trabalhos de arte para discutir as questões de circulação e de edição. Enquanto que a noção de circulação foi abordada como um princípio de fluxo, a ideia de edição articulou-se com as etapas de seleção de material a ser publicado e com a possibilidade de desdobramento de um trabalho artístico. O processo de construção textual transitou das publicações vanguardistas aos livros de artista editados, dos jornais às cédulas, dos espaços moventes aos mecanismos alternativos de mercado.

Na sequência, a segunda parte do livro foi composta por entrevistas com pesquisadores, artistas e teóricos que alimentam

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Notas

[1] CNEAI - [Centro Nacional de Edição e Arte Impressa] É um centro nacional de arte contemporânea, localizado em Chatou/França. Criado em 1997, o CNEAI promove publicações de artistas, encontros de editores independentes, além de possuir um acervo de publicações em meio impresso.CNEAI pode ser acessado: http://www.cneai.com/

[2] DO IT - Projeto coordenado por Hans Ulrich-Obrist, desde 1993, é compreendido por instruções que seus artistas integrantes, entre os quais alguns brasileiros, apresentam na forma de documentos impressos ou proposições publicadas na internet. DO IT pode ser acessada em: http://www.e-flux.com/projects/do_it/homepage/do_it_home.html

[3] MAC-USP – Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, criado em 1963. Pode ser acessado em: http://www.mac.usp.br/mac/index.htm

[4] Coleção Especial de Livros de Artistas da Escola de Belas Artes da UFMG – Iniciada em 2010, está formando a primeira coleção especial de livros de artista em uma biblioteca universitária. Outras informações em: http://seminariolivrodeartista.wordpress.com/colecao-especial/

as reflexões sobre procedimentos operatórios e lugares de uma publicação de artista.

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EMBLEMAS

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Notas

[1]. MALIÉVITCH, Kazímir. Dos Novos Sistemas da Arte. São Paulo: Hedra, 2007. [p.54]

[2]. Ibid., [p.40]

[3]. Ibid., [p. 19]

[4]. TOMKINS, Calvin. Duchamp - uma biografia. São Paulo: Cosac Naify, 2005. [p.219]

[5]. Ibid., [p.220]

[6]. Cf: Klaxon - Mensário de Arte Moderna. Volume I. São Paulo: 1922. [p. 02]Disponível em: http://www.brasiliana.usp.br/bbd/handle/1918/01005510#page/1/mode/1upVer também: LARA, Cecília de. Klaxon e Terra Roxa e Outras Terras. São Paulo: Ieb-USP, 1972.

[7]. FREIRE, Cristina; LONGONI, Ana, (Orgs.). Conceitualismos do Sul/Sur. São Paulo: Annablume, 2009. [p.18]

[8]. DIAS-PINO, Wlademir; SÁ, Álvaro de. POEMA PROCESSO: PROPOSIÇÃO. In: TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda Européia e Modernismo Brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1976. [p. 422]

[9] BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Vol. 1. São Paulo: Brasiliense, 1994. [p.171]

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Em 1919, o artista russo Malevitch1 publicou o livro dos novos sistemas da arte, através do qual observamos como a expressão ‘sistema’ foi empregada em relação à arte moderna, articulando-se estreitamente com a pintura e com seus modos de representação. Por meio de tal publicação, Malevitch esboça uma espécie de tratado sobre o Suprematismo, onde também apresenta uma postura crítica em referência a sociedade da época. Sobre tais aspectos, Malevitch escreve:

1 Em virtude das traduções encontramos diferentes grafias para o nome do pintor russo Малевич – Malevitch, Malevich, Maliévitch.

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A natureza será vencida, pois minhas pernas não são nada em com-paração com as rodas criadas por mim. O trem transportará a mim e a minha bagagem ao redor da Terra com a rapidez de um relâmpago. Comunicarme-ei com as cidades fácil e confortavelmente. [1]

Analisando essa afirmação, podemos retomar o contexto do século XX, onde a sociedade absorvia as transformações tecnológicas do período. A produção em série, as linhas de montagem industrial e os maquinários povoavam o imaginário das vanguardas modernas. As mídias de massa, como a foto-grafia e o cinema, influenciavam os modelos de representação e os modos de produção de imagens. Em outra passagem, Malevitch escreve:

A intuição impulsiona a vontade para o princípio criativo. Mas, para chegarmos até ele, é necessário se desfazer do objeto, é preciso criar novos signos e deixar que a nova arte, a fotografia e o cinema se encarreguem do objeto. [2]

Ao prospectar tal pensamento, Malevitch deflagra o desinteresse pela ordem figurativa, a qual poderia encontrar um melhor fim na fotografia ou no cinema. Em última instância, caberia, então, aos outros processos artísticos, buscar novos paradigmas estéticos. Devemos destacar a intensa produção intelectual de Malevitch e o seu envolvimento com outras frentes de vanguarda, as quais possuíam posturas díspares diante dos novos aparatos técnicos.

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The Blind ManNúmero 1Marcel Duchamp e Henri-Pierre RochéNY, 1917

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Do mesmo modo, não apenas o conteúdo do livro de Kazimir Malevitch interessa para esta pesquisa, mas também a sua elaboração no formato de uma publicação, com “tiragem de mil exemplares em forma de uma série de litografias em brochura”. [3]

Assim, Malevitch adota a postura de um artista que reflete criticamente sobre a sua produção, articulando-a com seus pares, buscando, no meio impresso, a socialização desses pensamentos. Enquanto que a fotografia poderia influenciar o rompimento dos cânones tradicionais de representação, como o fez no Suprematismo, para o Dadaísmo, a mesma era meio livre de experimentações em colagens, cartazes ou revistas [boletim dada, 391, o homem cego, entre outras].

o homem cego é o nome de uma publicação que convidava artistas e escritores para publicar seus trabalhos ou textos reflexivos, não havendo um tema específico. A primeira edição foi publicada em Nova Iorque, em 1917, por Marcel Duchamp e Henri-Pierre Roché. Tal publicação, não possui um caráter coletivo de manifesto ou um ar uniformizado ao longo de suas páginas. Conforme podemos observar, há um futuro incerto, anunciado em sua capa – “O segundo número de o homem cego aparecerá, tão logo você tenha enviado material suficiente para isso”. A capa do primeiro volume apresenta o desenho de um homem cego, portando uma bengala e sendo guiado por um cachorro, em um espaço de arte, talvez, uma

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referência ao ‘puramente visual’, tão criticado por Duchamp. A publicação o homem cego era vendida, por 10 centavos, pelos artistas em galerias e em outros espaços comerciais, tendo sido realizada apenas uma tiragem de seus dois primeiros números. O destino de o homem cego foi decidido em uma partida de xadrez, conforme Calvin Tomkins conta:

Picabia considerava the blind man uma rival de sua 391, e, certa noite, no apartamento de Arensberg, ele desafiou Roché para uma partida de xadrez que decidiria o destino das duas revistas; a vitória de Picabia condenou the blind man, que parou de ser publicada depois de segundo número. [4]

O resultado da partida de xadrez e os motivos que levaram ao fim de o homem cego foram divulgados em julho de 1917, através de outra publicação chamada rongwrong de Duchamp e Roché. A revista rongwrong teve uma tiragem única, sendo composta por oito páginas em impressão p&b. A imagem de sua capa chama a atenção por apresentar dois cachorros cheirando as partes traseiras um do outro. Inúmeras revistas de artistas foram publicadas entre as primeiras décadas do século XX, sendo as mesmas carregadas de humor, insultos e provocações. Tomkins ressalta que: “O custo de impressão dessas pequenas e efêmeras revistas era desprezível nesses dias, o que explica haver tantas”. [5]

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Klaxon - Mensário de Arte ModernaNúmero 1São Paulo, 1922

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No Brasil, a revista Klaxon - mensário de arte moderna [1922-1923] é uma publicação que exemplifica uma das frentes de propagação do projeto modernista, sob a participação dos autores: Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Oswald de Andrade, Guilherme de Almeida, Sérgio Milliet, Rubens Borba de Moraes, Luis Aranha, Menotti del Picchia, Di Cavalcanti, Anita Malfatti, Sérgio Buarque de Holanda, Tarsila do Amaral, Graça Aranha, entre outros.

As ideias geradas na Semana de Arte Moderna de 1922 foram também disseminadas através da publicação Klaxon. Abor-dando o modernismo brasileiro, a Klaxon é uma das principais referências na área de projetos colaborativos, onde os seus autores e idealizadores participavam de todas as etapas de produção. Divulgando os ideais modernistas, a Klaxon apresentou uma nova abordagem da arte que se configurava nas primeiras décadas do século XX. O projeto gráfico da revista Klaxon chama a atenção por ter uma estética singular em relação aos seus pares que surgiram nas décadas de 1920 e 1930.

De modo semelhante, os seus conteúdos voltavam-se para assuntos atuais da época, tais como a produção emergente de crítica, tanto em artes plásticas como nas artes visuais. Nas primeiras páginas do volume I de Klaxon [15 de maio de 1922], podemos observar a abordagem da publicação em relação ao cinema: “A cinematographia é a criação artística mais repre-sentativa da nossa época. É preciso observar-lhe a lição”. [6]

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Ao total, a Klaxon teve nove edições, as quais possuem artigos e resenhas críticas sobre cinema assinados por Mário de Andrade. A ideia de ruptura com o passado e a sua configura-ção que se fazia ao ar do tempo tornam a Klaxon uma revista pioneira no território brasileiro, abrindo caminhos para outras publicações que surgiram nas décadas subsequentes: estética, a revista, terra roxa e outras terras, Festa, verde, revista de antropoFagia. É interessante observar que tais publicações herdaram certas características das vanguardas européias do século XX, entre elas - o coletivismo como bandeira de protesto e ruptura com o passado, o experimentalismo como base de criação intelectual e invenção gráfica e a produção de manifestos como emblemas de movimentos.

O conjunto das publicações que surgiram nas primeiras décadas do século XX representa os fundamentos das vanguar-das na forma de manifestos impressos. Conforme Cristina Freire:

As publicações de artistas estão intimamente ligadas à história das vanguardas. A difusão de manifestos, por exemplo, foi um dos usos dessas publicações no início do século XX. Muitas vezes desconsidera-das, as revistas foram o lugar de exibição de muitos trabalhos seminais para a arte contemporânea. Tanto revistas como livros pertencem a essa categoria de trabalhos de artistas capaz de articular no mesmo plano da página, documento histórico e obra, texto e imagem, arquivo e exposição. [7]

Em âmbito nacional, as características vanguardistas e os manifestos reverberaram nas décadas de 1960 e 1970, através

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da poesia de vanguarda brasileira. Em um manifesto, chamado poema-processo proposição, publicado no jornal o sol, em nove de novembro de 1967, Wlademir Dias-Pino e Álvaro de Sá explicitam a arquitetura processual do poema como objeto de consumo, o qual se dá nos trânsitos da linguagem – entre a efetiva participação dos leitores-consumidores e o processo de instauração da informação.

Ao longo do poema-processo proposição, os poetas visuais Wlademir Dias-Pino e Álvaro de Sá apontam diferen-ças entre “poemas reprodutíveis” e “poemas tridimensionais”. Segundo os poetas, enquanto que os “poemas tridimensionais” encontravam a exposição como condição de existência, os “poemas reprodutíveis” eram próprios para serem impressos em revistas, folhas soltas ou livros. Portanto, a condição física dos “poemas reprodutíveis” tem a folha de papel como suporte e a impressão em série como prolongamento do tempo e meio expansivo da experiência artística.

Ainda em poema-processo proposição, Wlademir Dias-Pino diz que os “impressos pretendem uma duração maior que os objetos-poemas”, pois os poemas reprodutíveis, conservados em revistas, livros ou caixas-bibliotecas têm “uma maior facilidade de exportação”. No contexto de uma publicação e em termos de expansão territorial, podemos pensar no termo ‘exportação’, como uma saída, um escape além das fronteiras dos processos intermediários e limítrofes de um circuito expositivo tradicional.

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POEMA PROCESSOPROPOSIÇÃO [8]

QUANTIDADE + QUALIDADESÓ O CONSUMO É LÓGICA

CONSUMO IMEDIATO COMO ANTINOBREZAFIM DA CIVILIZAÇÃO ARTESANAL

(INDIVIDUALISTA)SÓ O REPRODUTÍVEL ATENDE, NO

MOMENTO EXATO, ÀS NECESSIDADESDE COMUNICAÇÃO E INFORMAÇÃO DAS MASSAS

A MANIFESTAÇÃO SERIAL E INDUSTRIALDA CIVILIZAÇÃO TÉCNICA DE HOJE

(…)

Apesar do hiato temporal de quatro décadas que separa a Semana de Arte Moderna dos manifestos da poesia vanguar-dista, podemos observar, tanto no poema de Wlademir Dias-Pino quanto nas edições da revista Klaxon, uma confluência com o pensamento de Walter Benjamin - presente no ensaio a obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Benjamin iniciou a

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escrita da primeira versão do referido texto na década de 1930, entretanto o seu argumento permanece atual para pensarmos os processos de reprodução de imagem dentro do sistema artístico.

Fascinado pelos poderes reprodutíveis da fotografia, Walter Benjamin escreve: “A obra de arte reproduzida é cada vez mais a reprodução de uma obra de arte criada para ser reproduzida”. [9] A afirmação de Benjamin, transposta para uma publicação, remonta o seu sentido indicial, ou seja, defende a ideia de que o original é criado unicamente em função de suas cópias. Deslocando o foco de atenção dos artifícios fotográficos para os processos de cópias a partir de um original, podemos associar o pensamento de Benjamin aos princípios seriais de uma publicação. De acordo com os processos reprodutíveis, em uma publicação haveria um original [escrito à mão, batido à máquina, ou um arquivo virtual], uma matriz que serve de base para as suas cópias, todavia, este original não deveria subestimar os seus duplos.

Assim, a distinção entre os exemplares de uma publi-cação não ocorre a partir da análise de autenticidade entre matriz e cópia. Nesse contexto, os atributos de unicidade, exclusividade e raridade devem ser substituídos pelas dimensões de multiplicidade e massificação. Diante dessas alterações, não são apenas os processos de reprodução da imagem que devem ser refletidos, mas também os seus modos de percepção e de instauração no mundo. Aqui há uma dimensão política que

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perpassa a obra de arte, abrangendo desde a sua produção até a sua existência comum. Imaginar a arte acessível para uma multidão, alterando significantemente os atributos que lhe são inerentes, poderia configurar distorções entre ‘valor de culto’ e ‘valor de exposição’, as quais foram analisadas por Benjamin.

Nesse contexto, vale observar que as produções abor-dadas neste bloco de texto articularam-se como emblemas que sinalizam certas características das publicações nascidas no interior da arte. A publicação de Malevitch, a revista de Duchamp e Roché, a revista Klaxon e a proposição de Wlademir Dias-Pino e Álvaro de Sá se refletem como pontos de contato com um pensamento que deseja o compartilhamento do comum. Não obstante, a perspectiva de expor o pensamento e a ação em arte é efetivada através do meio impresso sem fazer distinção entre público e privado, circunstância particular e expressão coletiva.

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Notas

[1]. TEJO, Cristiana. Paulo Bruscky: arte em todos os sentidos. Recife: Zoludesign, 2009. [p.11].

[2]. FREIRE, Cristina. Paulo Bruscky: arte, arquivo e utopia. São Paulo: Companhia Editora de Pernambuco, 2006. [p. 46].

[3]. BRITTO, Ludmila da Silva Ribeiro de. A Poética Multimídia de Paulo Bruscky. Salvador: UFBA, 2009. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, Escola de Belas Artes, Universidade Federal da Bahia, 2009. [p. 73]

[4]. FREIRE, Cristina. Paulo Bruscky: arte, arquivo e utopia. São Paulo: Companhia Editora de Pernambuco, 2006. [p. 49].

[5]. SANTAELLA, Lucia. O Pluralismo Pós-utópico da Arte. In: Revista Ars, São Paulo, vol. 07, n. 14, p. 148-149, 2010.

[6]. SCOVINO, Felipe. Driblando o Sistema: um panorama do discurso das artes visuais brasileiras durante a ditadura. In: Anais do 18º Encontro Nacional da ANPAP. Salvador: UFBA, 2009, [p. 1856].

[7]. MEIRELES, Cildo Apud HERKENHOFF, Paulo (Org). Cildo Meireles: Geografia do Brasil. São Paulo: Cosac & Naify, 2001. [p. 60]

[8]. Cf. COHEN, Ana Paula. Editorial museumuseu. In: Jornal museumuseu. Ano 01 n. 01, outubro de 2006, 27ª Bienal de São Paulo.

[9]. Ibid.

[10]. Cf. SANTOS, Maria Ivone dos. Editorial Jornal Perdidos no Espaço do Centro de Porto Alegre. In: Jornal Perdidos no Espaço do Centro de Porto Alegre. Porto Alegre, n. 02, maio/junho de 2006.

[11]. SILVEIRA, Paulo. As Existências da Narrativa no Livro de Artista. Porto Alegre: UFRGS, 2008. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, Instituto de Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2008. [p. 49].

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O pernambucano Paulo Bruscky pode ser considerado um dos artistas brasileiros que representa o recorte de uma geração setentista, através de incursões conceituais que tentaram aproximar proposições artísticas da vida. Ações, performances, intervenções em espaços públicos e privados, colagens, obje-tos, instalações, fotografias, cartazes, postais, cartas, carimbos, livros de artista, vídeos, entre outras linguagens, caracterizam a poética de Bruscky.

Aqui podemos ressaltar duas importantes características que perpassam a produção de Paulo Bruscky, a palavra como atitude poética e os meios e as tecnologias comunicacionais como seus dissipadores. Das palavras que se tornam poesia viva,

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performance realizada originalmente em 1977, às palavras que comunicam projetos absurdos, como em composição aurorial, anúncio publicado nos classificados do Jornal do brasil, em 1976.

Lembremos a situação social e política, instauradas no Brasil, na época em que Bruscky realizou tais ações. Naquele período, o país passava por uma distensão lenta, objetivando a re-implantação do sistema democrático. Os termos ‘lento, gradual e seguro’, que, teoricamente, adjetivavam o processo de transição de um regime ditatorial para um panorama democrá-tico, foram propostos durante o mandato do Presidente militar Ernesto Geisel.

Apesar do ano de 1975 ter representado mudanças na paisagem social brasileira, acerca da abertura do regime militar e do retorno de exilados políticos, podemos nos questionar acerca do adjetivo ‘seguro’. A morte por enforcamento do jornalista Vladimir Herzog, ainda em 1975, nas dependências do DOI-CODI, exemplifica a fragilidade de tal adjetivo, demonstrando interesses de acobertamento da real situação implantada após o golpe militar de 1964.

Nesse período, o uso dos serviços dos Correios, através de trocas postais, foi um dos vetores empregados na amplifi-cação e na circulação de mensagens, pelas quais a arte de Bruscky se [des]materializava em comunicação e trânsito, bur-lando o regime ditatorial. Segundo Cristiana Tejo:

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Apesar da repressão, as mensagens de Paulo Bruscky urgem em ganhar o mundo. Uma das frases mais presentes nos telegramartes expressa bem esse sentido de urgência: “Arte do meu tempo. Tenho pressa”. O sistema de circulação dos Correios e os novos meios que surgem (como o fax) são a melhor maneira de furar a censura tanto da Ditadura Militar quanto da distância territorial de seus pares. [1]

Nos anos setenta, a Equipe Bruscky & Santiago, forma-da pela dupla Paulo Bruscky e Daniel Santiago, lançou uma série de anúncios em jornais de média e grande circulação, configurando uma espécie de arte classiFicada. Desse modo, a produção de Bruscky e de Santiago nos interessa pelos jogos criados através do uso de meios impressos pré-existentes.

Através dos anúncios publicados em jornais, a Equipe Bruscky & Santiago articula uma prática pautada por uma es-pécie de contra-informação, cujas bases de desenvolvimento estão centradas na linguagem e na circulação desta, por meio de atentados críticos e poéticos, inserindo-os no sistema mer-cantil. Sobre o uso da publicação jornal, Cristina Freire observa:

Trata-se, no limite, de uma forma de fazer poesia marginal e de vê-la circular em circuitos alternativos. Essa estratégia orienta-se pela ideia de criar um ruído nos mecanismos de controle da informação. A página impressa de um jornal convencional alinhava várias proposições muito caras aos artistas naquele momento, como por exemplo, encontrar outros espaços de exposição para troca de informações artísticas além de galerias e museus, ir ao encontro de um público muito mais amplo e diversificado e, finalmente, eliminar qualquer possibilidade de fazer obra-mercadoria. [2]

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Em 1976, através do anúncio composição aurorial, a dupla de artistas procura patrocinadores para realizar o seguinte projeto: “expor uma aurora tropical artificial colorida provocada pela excitação dos átomos dos componentes atmosféricos a 100 km de altitude”.

Nesse mesmo anúncio, os dois artistas prosseguem: “A exposição não polui o espaço, não altera o tempo, nem influen-cia a astrologia, é um acontecimento de arte contemporânea”. Conforme a pesquisa de Ludmila Britto: “Segundo os artistas, não houve nenhum interessado em patrocinar o projeto, que, apesar de parecer absurdo e ambicioso, é perfeitamente pos-sível”. [3]

Nessa perspectiva, a potência poética dos anúncios que operam seguindo essa lógica pode estar, muito mais, na impre-cisão do pensamento que imagina a ação proposta por Bruscky e Santiago, do que no próprio conteúdo anunciado. Assim, o jornal impresso se porta como meio expansivo de inserções ruidosas, muitas vezes invisíveis. Poderíamos nos perguntar: Quantos leitores perceberam ou viram os anúncios de Bruscky e de Santiago? Ou de outro modo, quantos leitores apreenderam o anúncio como uma proposição artística?

No caso de Bruscky e de Santiago, a transgressão de certos sistemas de informação e de redes comunicacionais, exemplificada pela arte postal ou pelos anúncios em jornais, pode representar a ampliação do lugar social da arte.

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O jornal, como veículo midiático, seria um meio de contato com um público mais amplo, apesar desse público, possivelmente, desconhecer a fabulação de tais anúncios. Ao anunciar a produção ou a procura de bens, de serviços e de estranhos projetos de máquinas e aparelhos fantásticos [máquina de Filmar sonhos, borrachas para apagar palavras, eletroenceFalÓgraFo musicado] deflagra-se a impossibilidade classificatória típica do meio impresso e a sua dinâmica de leitura. Conforme Cristina Freire:

No caso da arte classificada, este lapso, entre a leitura automática e cega dos classificados e a pausa poética irreverente forçada pelos anúncios non-sense, revela uma estratégia de guerrilha urbana em favor da poesia, sufocada pelo hábito e pela mediocridade vigente. [4]

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De certa forma, a subversão do modus operandi de um jornal, através da publicação de enunciados absurdos, configura-se pelo uso de espaços discursivos pré-existentes. O desejo de Paulo Bruscky de ampliar as fronteiras entre arte e vida, ao ponto de fazê-las sumir ou de torná-las invisíveis, reflete uma lógica de pensamento em detrimento de um fazer manual. Investigando o emprego dos canais de comunicação, através de produções artísticas, Lúcia Santaella constata que:

[...] o jornal como meio de registro, comentário e avaliação dos fatos cotidianos é um produtor de cultura, mas, ao mesmo tempo, é também um divulgador das formas e gêneros de cultura que são produzidos fora dele, tais como teatro, dança, cinema, televisão, arte, livros, etc. [5]

A prática de utilizar o jornal impresso como meio de divulgação de projetos artísticos, burlando os seus limites e as suas estruturas convencionais, também pode ser observada em exposição de 0 a 24 horas, série de Antônio Manuel, a qual fora publicada, na forma de suplemento, nas páginas do periódico carioca o Jornal. Conforme o seu título, a exposição durou o tempo de exibição do jornal nas bancas. As seis páginas que foram ocupadas por Antônio Manuel abarcaram projetos [urnas quentes, o bode, margianos, clandestinas, éden e o galo] censurados pelo MAM-RJ, em 1973. Em uma entrevista concedida a Felipe Scovino, Antônio Manuel diz:

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Exposição de 0 a 24 horas teve uma tiragem de 100 mil exemplares, com distribuição nacional e foi encartado no caderno cultural de O Jornal. Foi a maneira que encontrei para que o trabalho circulasse e expusesse o estado de bode em que vivíamos na política e na arte. [6]

A dinâmica de circulação de um trabalho artístico, através de redes impressas, abrangendo vasta distribuição de informações, pode ser verificada igualmente na poética de Cildo Meireles. Em 1970, Cildo Meireles publicou dois anúncios na seção de classificados do Jornal do brasil, denominando-as inserções em Jornais: classiFicados. Na área ‘Diversos’, foi publicado, com o endereço para possíveis contatos em anexo, o seguinte anúncio: “ÁREAS – Extensas, Selvagens, Longínquas”. De quais áreas selvagens, Cildo Meireles estaria falando? Nas extensões territoriais da Amazônia? Não está claro se o anúncio oferece as terras para venda ou se as busca como lugar de posse.

Tal anúncio parece estar codificado, ou, de outro modo, o texto estaria resumido [comprimido], conforme o padrão dos anúncios que possuem um espaço reduzido de informação. Sobre esta série, Cildo Meireles comenta:

O que me interessava estava muito além do jornal. Era exatamente a questão dos mecanismos de controle de informação no interior de cada sistema. A sua aparente liberdade poderia se afunilar drasticamente em meios como o rádio, a televisão e o jornal, que são facilmente controláveis. [7]

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Ao apresentar as intenções que permeavam o projeto inserções em Jornais: classiFicados, Cildo Meireles prospecta uma clara oposição frente aos circuitos mecânicos de circulação de informação, furando o suposto controle que há nestes mecanis-mos. Se pensarmos que um jornal de média circulação possui uma tiragem de dezenas de milhares de exemplares, veremos a dimensão que uma interferência artística pode tomar. Portanto, a efetividade do trabalho só existe em função da circulação que lhe é inerente e da leitura que deve ser praticada.

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Distintamente da inscrição de anúncios ou textos e ima-gens em espaços do meio impresso, podemos observar o uso integral do jornal ou de seu modelo, como espaço formativo, através de publicações recentes, tais como o jornal museumuseu, de Mabe Bethônico, publicado em outubro de 2006, na 27ª Bienal de São Paulo, e do Jornal perdidos no espaço do cen-tro de porto alegre, do grupo perdidos no espaço, publicado em maio de 2006.

No editorial do jornal museumuseu a curadora Ana Paula Cohen explicita as condições de existência dessa publicação através da seguinte declaração:

Esse jornal foi criado, portanto, com duas intenções principais. A primeira, apresentar ao público a estrutura do museumuseu, abrindo possibilidades de leitura, sem determinar os caminhos a serem percorridos. Estes se configuram naturalmente dependendo do interesse, do tempo e do tipo de aproximação de cada um às propostas do Museu. A segunda, possibilitar ao museumuseu uma intervenção no espaço físico da Bienal durante o evento – considerando que o jornal já funciona como pre-sença institucional compreensível –, de forma mais coerente com suas atividades. [8]

Assim, podemos observar a presença de um pensamento coerente entre o projeto museumuseu e suas intenções de pes-quisa, coleção e classificação. Ao escolher o jornal como veículo de apresentação e de documentação, em um evento artístico de grande reverberação, o projeto museumuseu deflagra uma

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possível flexibilidade em relação ao seu tempo de duração e às práticas museográficas. Sobre tal possibilidade, Ana Paula Cohen questiona: “[…] porque deveriam as proposições artísticas produzidas hoje serem mostradas em um só espaço, prontas para serem apreendidas de uma só vez?” [9]

Indo ao encontro de Cohen, poderíamos abordar o jornal como um suporte distributivo capaz de atingir lugares recônditos e distintos tipos de público. Esta parece ser também uma das intenções do Jornal perdidos no espaço do centro de porto alegre, ilustrada pelo editorial, onde Maria Ivone dos Santos destaca quem seria o público do jornal:

Este jornal foi pensado e dedicado a você que pode estar sentado num dos mais de duzentos bancos dessa nossa Praça da Alfândega; a você que pode estar assistindo distraidamente um jogo de damas ou de cartas para passar o tempo, ou a você que está acordando nesse momento, ou descansando, esperando, trabalhando; a você que observa a grande quantidade de pessoas caminhando na Rua da Praia, ou que usa o jornal como pretexto para olhar as meninas ou os rapazes; a você que está só ou que está (bem ou mal) acompanhado; a você que pode estar folheando este jornal à procura de notícias ou da pá-gina policial, à procura de trabalho, amor, religião, esporte, sexo ou diversão (mas não, parece que não é nada disso); a você que pode estar somente atrás dos quadrinhos (onde estarão?); a você, artesão, camelô ou que vende algo de vez em quando; a você que gostaria de pegar um solzinho no inverno; a você que freqüenta exposições de arte ou que visita museus, que tenta entender a diferença entre colecionar quadros e colecionar tampinhas de garrafa; a você que não freqüenta museus e que acha que fazer arte é coisa de alguém que apronta. [10]

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O Jornal perdidos do centro de porto alegre foi o resultado de uma oficina que agregou cerca de trinta pessoas interessadas em pensar a arte no espaço da cidade, sendo coor-denada por Hélio Fervenza e por Maria Ivone dos Santos, onde os participantes podiam publicar as experiências que haviam sido desenvolvidas durante os encontros. A oficina integrou as atividades paralelas à exposição é hoJe na arte contemporÂnea – coleção gilberto chateaubriand – mam, realizada em 2006, no Santander Cultural.

A Praça da Alfândega e o seu entorno localizado no centro da capital gaúcha tornaram-se espaços de reconheci-mento, de intervenções, de ações e proposições em arte. Larissa Madsen recolheu todos os manuscritos anônimos que encontrou durante uma hora de caminhada pela área da praça, Rosana Bones e Katlin Jeske estenderam suas roupas em varais mon-tados em frente ao MARGS [Museu de Arte do Rio Grande do Sul], Cecília Dutra criou instruções para esculturas públicas temporárias, espécies escultóricas criadas com lixo e outros materiais disponíveis, Sandro Bustamante recriou um mapa da praça de 1840, Márcia Sousa da Rosa entrevistou mulheres profissionais do sexo que ocupam os bancos da praça, Lilian Minsky trocou de lugar com um vendedor de antenas [enquanto a artista vendia antenas, o ambulante foi visitar a exposição no Santander Cultural]. Outros participantes desenvolveram ações, entrevistas, cartões de vista, panfletos e projeções.

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Ao final da oficina, o material resultante dessas atividades foi reunido no jornal, o qual retornou para o espaço da Praça da Alfândega, ao ser distribuído gratuitamente no seu lançamento no Santander Cultural. A ideia de editar e publicar as atividades desenvolvidas pelo perdidos no espaço já havia sido realizada em outros dois encontros do FÓrum social mundial, ocorridos em Porto Alegre, em 2003 e 2005. Interrogações sobre questões do espaço público e sobre trabalho coletivo foram tópicos de investigação das relações entre arte e lugar. Partindo desses tópicos, o jornal foi escolhido não apenas como um ponto de extensão e de prolongamento da experiência artística, mas também como um lugar de arte, como um espaço portátil e dinâmico que poderia encontrar novos leitores, outros públicos.

Não devemos esquecer que a história moderna do jor-nal está estreitamente ligada ao aperfeiçoamento da imprensa periódica, a qual teve as suas técnicas de reprodução de textos aprimoradas por Gutenberg, através dos tipos móveis. É neste momento que a informação ganhou uma dinâmica veloz, atingin-do um número relativamente grande de leitores. O conhecimento e a disseminação de aprendizagem em massa alcançaram uma larga escala de difusão por meio de técnicas reprodutivas de informação. Atualizando essa perspectiva histórica e abordando o jornal, como um espaço acolhedor de manifestações artísticas, podemos pensar no regime de comunicação que perpassa a arte atual. Ao conferirmos esse caráter comunicacional às atividades

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artísticas que se validam de produções textuais e imagéticas em meio impresso, as noções de leitura e de público de arte alteram-se completamente.

Desse modo, os jornais de Mabe e do perdidos jogam com a ampliação conceitual de público e com a sua transposição efetiva para leitor, decifrador, intérprete, pesquisador, decodi-ficador, distribuidor, colecionador entre outros. Nesse sentido, Paulo Silveira, destaca a abordagem do curador norte-americano Ralph Rugoff sobre trabalhos que exigem “[...] visão forense ou pericial de um público não mais observador (o que é muito frequente nas publicações de artista) [...]”. [11]

Evidentemente que Silveira, ao prospectar tal pensa-mento, se refere a um tipo específico de publicação, o qual articula situações não apenas contemplativas. As reminiscências das práticas conceitualistas, dos relatos de experiências, dos registros verbais e das inflexões mentais incorporadas, ao longo das últimas décadas em diferentes poéticas, podem exemplificar certas publicações de artistas.

Embora os trabalhos abordados neste bloco de texto possam ser reunidos sob dois conjuntos de projetos [inscrições da linguagem em sistemas impressos pré-estabelecidos e fabri-cação integral de um jornal], há, nos mesmos, a ideia implícita de circulação, disseminação.

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Notas

[1] HERKENHOFF, Paulo. Arte é Money [artigo originalmente publicado na Galeria Revista de Arte, n. 24, março/abril de 1991, p. 60-67]. A sua versão on-line pode ser acessada em:http://www.museuvirtual.org.br/targets/cafe/targets/panorama/targets/teoria/targets/texts/money.html

[2] CALDAS, Waltercio. Manual da ciência popular. São Paulo: Cosac Naify, 2007. [p. 5]

[3] NAVES, Rodrigo. Waltercio Caldas Jr.: de papel. In: NAVES, Rodrigo. O Vento e o Moinho: ensaios sobre arte moderna e arte contemporânea. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. [p.465]

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O proJeto cédula, 1970/1976, de Cildo Meireles, integrante de inserções em circuitos ideolÓgicos, toma a nota de dinheiro como suporte e veículo para a disseminação de mensagens gravadas com carimbos de borracha. Assim, tal projeto nos interessa pela ideia de gravação que carrega e por seu movimento incontrolável dentro das trocas mercantis. O gesto político desse projeto é intensificado pelo seu suporte e pelas mensagens que foram gravadas nas cédulas. As perguntas e as instruções lançadas nas notas possuem um remetente que deveria ser mantido oculto e infinitos destinatários que seriam desconhecidos.

Circulação e disseminação são características inerentes a qualquer moeda que media as trocas de bens e de serviços. A

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circulação do dinheiro é impulsionada pelos processos comerciais, os quais alimentam as reservas e as atividades da economia. Nessa perspectiva, as mensagens inscritas no proJeto cédula ganham o mundo pela rede de escambos, não podendo ser controladas nem censuradas.

Operando a lógica dos múltiplos, Zero cruZeiro e Zero dollar, 1974/1978, são cédulas impressas em litografia offset, medindo 7 x 15,5 cm e com tiragem ilimitada. Para confeccionar Zero dollar, Cildo Meireles contou com o apoio técnico de João Bosco Renaud, designer gráfico da Casa da Moeda do Brasil. As cédulas de Cildo Meireles são semelhantes aos dinheiros que lhe deram origem, entretanto, diferem dos mesmos por terem uma valoração nula e imagens estranhas ao padrão conformativo de uma cédula verdadeira. Aqui, Zero cruZeiro e Zero dollar não jogam com a falsificação de moeda, são notas impossíveis de circularem no sistema monetário. Conforme Herkenhoff:

É o valor perturbador que Cildo Meireles introduz no sistema de arte. Há um dinheiro no interior da história da arte brasileira, surgido em tempos de monetarismo e de economês oficial, característicos do autoritarismo pós-64. É parte fundamental de uma teoria dos valores da arte, trânsito entre axiologia e mercado. [1]

Enquanto que o proJeto cédula foi efetivamente inserido nas transações financeiras da época, Zero cruZeiro e Zero dollar não circularam no sistema econômico, agindo apenas no

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circuito da arte. A tiragem desses trabalhos é ilimitada e apesar da moeda brasileira estar datada, remetendo à sua origem ainda no Estado Novo, a sua preleção permanece atual. Ao longo de cinco décadas, o cruZeiro desenvolveu um ciclo de alternâncias em relação ao valor monetário e ao seu nome oficial como moeda de circulação corrente. A crescente desvalorização da moeda brasileira e a alta inflação decorrente da instabilidade política foram importantes causas das mudanças de seu padrão. Na época em que Zero cruZeiro foi criado, a moeda corrente estava em sua segunda edição. As efígies de Zero cruZeiro são representadas através da imagem de um índio da etnia Krahô e da foto de um interno de um hospital psiquiátrico.

Cildo Meireles, ao criar uma moeda que possui um valor nulo e ao estampá-la com duas imagens que podem sugerir a exclusão social, coloca em jogo as dimensões de valoração monetária e simbólica. Usualmente, o dinheiro carrega ícones máximos que representam ou que são emblemas da nação, na qual a moeda circula. Aqui, as duas representações inscritas nas efígies estão fora de qualquer sistema econômico. Caso manipulassem notas de dinheiro, os mesmos, talvez, não as apreendessem com o devido grau de abstração que toda moeda suscita. Do mesmo modo, poderíamos pensar o circuito onde essas moedas circularam [museus, galerias e outras instituições] como sendo o sistema de economia alegórica de Zero cruZeiro e de Zero dollar. Nessa perspectiva, Cildo Meireles, simboli-

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camente, faz de uma proposição artística objeto de mercadoria ficcional que tem um valor nulo como moeda de troca.

Acerca do uso do dinheiro como fonte de investigação, podemos igualmente mencionar os artistas brasileiros: Jac Leirner [os cem, 1985/1987, litlle pillow, 1991], Waltercio Caldas [dinheiro para treinamento e notas para ambiente, ambos de 1977] e Pablo Paniagua [um imaginário, 2005]. No contexto desta pesquisa, os dois últimos artistas nos interessam pelo caráter múltiplo de seus trabalhos e pelos seus trajetos através do meio impresso.

um imaginário, de Pablo Paniagua é um múltiplo de tiragem ilimitada, medindo aproximadamente 6,5 x 14 cm e impresso em offset sobre papel comum. O múltiplo um imaginário segue o modelo de uma cédula de real e a sua cor se aproxima do matiz da cédula de cinquenta reais. Jogando com os opostos ‘real’ e ‘imaginário’, Pablo Paniagua produziu um múltiplo que simula uma nota de dinheiro, a qual somente é possível no campo da imaginação, articulando-se como uma espécie de coringa. Diferente de Zero dollar e de Zero cruZeiro, que temos como quantificá-las [apesar de não existirem no circuito da economia], um imaginário é uma cédula de valor aberto, amplo e abstrato.

Talvez seu lugar de circulação seja somente o campo da arte, esse campo que é tomado de convenções e contratos, ne-gociações e construções. A cotação da moeda imaginário inexiste

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e ao mesmo tempo pode ser infinita, pois não há outros valores de cédula, além do seu valor unitário. um imaginário pode valer quanto for a sua necessidade, alcançando bens imensuráveis.

dinheiro para treinamento, de Waltercio Caldas, é uma colagem feita com recortes de jornais, simulando a configuração padrão de uma cédula. O seu título remete a um exercício fomal de construção e a um jogo da linguagem visual. De todos os dinheiros fabulados é o que menos se aproxima de uma cédula oficial. Devido ao seu material, dinheiro para treinamento é precário e, confirmando o seu título, não há probabilidade de circulação. Ao mesmo tempo, o dinheiro criado por Waltercio Caldas dialoga com o apuro da forma e com a síntese, sem identificação alguma, dos principais elementos de uma cédula comum. dinheiro para treinamento pode funcionar como um esboço ou como um estudo que vislumbra ações futuras sem corromper a sua forma-matriz.

Esse trabalho foi inserido nas páginas do manual da ciência popular, publicação que integrou a coleção abc da Funarte, lançada no início dos anos oitenta. manual da ciência popular é uma publicação de artista, ilustrada com fotografias de trabalhos, sendo acompanhadas por pequenos textos. Em 2007, a mesma ganhou uma segunda edição pela cosac naiFy, revisada e ampliada, de capa dura, com dimensões levemente aumentadas e papel mais encorpado, sendo menos interessante que a primeira edição, a qual possuía uma encadernação

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despretensiosa muito próxima de um manual. Nas páginas iniciais do manual da ciência popular, Waltercio Caldas diz:

Estamos diante da reprodução impressa, este hábito contemporâneo, superfície onde se passa grande parte da arte da nossa época. Aqui, em nosso caso particular, o que vai acontecer? Serão utilizados objetos de conhecimento de todos para apresentar significados estéticos em circulação no cotidiano ou, em outras palavras, passearemos pelos campos dos sentidos. [2]

manual da ciência popular é um marco de referência das publicações de artistas, manipulando imagem e texto de um modo irônico. Essa publicação fala sobre os processos reprodu-tíveis da imagem, tendo a fotografia como linha de inteligência. Certos trabalhos que ilustram a publicação de Waltercio Caldas parecem existir somente no campo da página do livro. Outros são espécies de lições elucidativas, aqui exemplificadas pela astuta imagem de como Funciona a máquina FotográFica.

Folheando as páginas de manual da ciência popular, es-quecemos que estamos diante de um manual de ciência que se diz popular. Mas, há nele demonstrações de fenômenos óticos, elementos químicos, estados da matéria, estudos geométricos, entre outras experiências. Já foi dito que manual da ciência popular não é um manual, não possui nada de científico e não é nem um pouco popular. Rodrigo Naves observa que:

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Todo manual é um “livro aberto”. Fornece receitas e procedimentos. Esse Manual da ciência popular não escapa à regra. Mais do que isso, o Waltercio Caldas Jr. criou um manual de manuais, um guia prático para a construção de guias. Um sistema de processos intermediários que não conduz rigorosamente a lugar nenhum, um jogo de reflexos nos leva a perder de vista a reprodução, que se transforma assim em produção, pondo de lado toda interrogação que a repetição de um movimento exigiria. [3]

A capa de manual da ciência popular é uma indicação do conteúdo que ela abriga – a sua estampa reproduz, em abismo, um livro dentro de um livro. manual da ciência popular existe em função da reprodução, ideia que lhe persegue, desde o seu interior até a sua embalagem. Essa parece ser também uma característica das cédulas de dinheiro – existir em função da reprodução, seja econômica ou ideológica.

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Notas

[1]. LOPES, João Texeira. Tensões do artista e do artístico no dealbar do novo século. In. CARVALHO, Isabel; NORA, Pedro (Orgs.). A economia do artista. Cidade do Porto: Braço de Ferro, 2010. [p.183].

[2]. BURY, Stephen. Artists’ Multiples 1935- 2000. London: Ashgate Publishing Limited, 2001. [p. 23].

[3]. SANTOS, Maria Ivone dos. Diante da perda do arquivo: reinvenções e narrativas da memória. In Revista Crítica Cultural. Palhoça, v.4, n.2 jul./dez. 2009. [p. 166].

[4]. CARVALHO, Isabel. O valor de um livro. In: CARVALHO, Isabel. NORA, Pedro (Orgs.). A economia do artista. Cidade do Porto: Braço de Ferro, 2010. [p.25].

[5]. SILVEIRA, Paulo. A Página Violada: da ternura à injúria na construção do livro de artista. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2001. [p. 191]

[6]. Ibid.[191]

[7]. Ibid.[191]

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Editada em 1962-1963, a publicação twenty-six gasoline stations, de Edward Ruscha, problematiza a discussão sobre a categoria livros de artista publicados, através de uma sequência fotográfica de postos de gasolina acompanhada por legendas que indicavam as suas localizações. A primeira tiragem de quatro-centos exemplares, assinados e numerados, foi impressa em papel comum, sendo a mesma comercializada por três dólares. Já a segunda e a terceira tiragem de twenty-six gasoline stations não receberam assinatura do artista, nem numeração, indicando uma postura crítica frente a qualquer associação que pudesse decorrer das edições de luxo ou das séries caras e especiais de livros de artista. Entretanto, hoje podemos encontrar, em lojas virtuais, seus exemplares originais comercializados por

Ora, mas o que vale realmente um livro que tem uma longa duração, que foi usado, que é um objecto no qual se projectam outros valores subjectivos? Não sabemos – é oscilante e incerto.

Isabel Carvalho

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alguns milhares de dólares. A supervalorização dessa publicação coloca em xeque as intenções do artista, ao mesmo tempo em que demonstra o impacto da economia sobre os objetos da arte, dos quais nem mesmo uma publicação pode escapar. João Texeira Lopes, analisando as tensões do artístico, entre o capital simbólico e o econômico, diz:

Não é só a cultura que sofre o impacto da economia-mundo. É também a economia que se culturaliza. A inflação do estético, a estetização do quotidiano, das formas corporais, dos estilos de vida, da ‘apresen-tação de si’, dos quadros da cultura-diversão mostram uma espécie de transfiguração do banal onde perdem sentidos as velhas aporias entre consumos materiais versus consumos simbólicos, objetos vulgares versus objetos artísticos. [1]

É evidente que a crescente fetichização da publicação twenty-six gasoline stations decorre do estatuto que as pinturas de Ruscha alcançaram ao longo das últimas cinco décadas. Assim, apesar de ter uma tiragem relativamente grande, essa publicação atingiu um alto valor em relação ao seu preço original. Tal fato contradiz as lógicas internas de um múltiplo que não possui, aparentemente, características sacralizantes, problematizando o que Stephen Bury2 observa:

2 Stephen Bury, ao empregar a expressão “múltiplos”, não faz distinção entre publicações de artistas e outros trabalhos em série. Assim, seu interesse está voltado para produções que possuem uma tiragem relativamente expressiva, independente de seu meio.

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O múltiplo poderia ser o melhor exemplo da separação e proximidade ao mundo real, conferindo-lhe um valor simbólico, abstrato. E ainda é negociável, vendável e amplamente distribuído. [2]

O tempo de existência e a sua história datada tornaram twenty-six gasoline stations um objeto de colecionador, no qual o tema ou o assunto, talvez, interessem menos que a sua existência artística. Os levantamentos fotográficos de Ruscha, presentes nessa publicação, dialogam com o uso da fotografia como ‘documento trivial’ (ROUILLÉ, 2008)3, desprendido de valo-res estéticos. Conservando o conceito e não subvertendo a sua forma, o livro de Ruscha, apreendido como suporte artístico, tange fronteiras ideológicas, através das quais uma publicação também consegue se valer. Nessa direção, a pesquisadora Maria Ivone dos Santos, abordando a publicação de Ruscha, como espaço político de difusão e descentralizadora da problemática da exposição, afirma:

Os livros impressos tornam mais complexa sua inserção dentro do que se costuma referenciar como livros artesanais feitos por artista. Obedecem à outra lógica quanto à fatura, visto que incluem processos de editoração e impressão industrial. Ao eliminarem igualmente o valor atribuído a uma obra única, a uma pintura, e ao atribuir diferentes valores a uma série fechada de fotografias, eles problematizam a ideia de obra. O trabalho se descentra do circuito de validação e se aven-tura em outros sistemas, como os de uma biblioteca, por exemplo. [3]

3 Cf. ROUILLÉ, André. A Fotografia entre Documento e Arte Contemporânea. São Paulo: SESC, 2008.

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Não podemos ignorar as problematizações que a publi-cação de Ruscha impôs nas estruturas convencionais de apre-sentação de um projeto artístico, entretanto não descartamos a sua existência enquanto uma mercadoria de arte que, ao longo do tempo, se tornou rara. Ao direcionar o foco para essa problemática de mercado, poderíamos pensar na manutenção de novas tiragens da publicação de Ruscha. Uma nova edição de twenty-six gasoline stations poderia baixar o valor daqueles exemplares da década de sessenta? Ou, ao inverso, tornariam aqueles objetos mais ‘valiosos’, por serem um referencial com-parativo? Essa prospecção nos ajuda a pensar no valor de um livro, problema que perpassa as interrogações de Isabel Carvalho:

Não é em lucro acumulado que se traduz este cálculo, porque não especulamos esse acréscimo no retorno, procuramos apenas assegurar que cada livro novo não coloque em risco os livros do futuro. [4]

É importante observar que Isabel Carvalho, está falando

sobre um tipo específico de publicações de artista, das quais os seus autores são também seus editores independentes, articulando economias de produção e de distribuição alternati-vas em relação ao circuito editorial. A tarefa de colocar preço em um livro, cuja edição é de autor, abarca não somente os custos de impressão, mas todas as etapas que perpassam a

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linha de produção de uma publicação. Aqui não deve haver equivalência com o mercado livreiro que se mantém através de grandes editoras.

Contudo, é certo que todo trabalho de arte funciona sob outras formas de valoração. Isso é evidente em twenty-six gasoline stations e em outras publicações de artista, que dentro de um circuito de arte, são apreendidas como obras únicas, apesar de serem seriadas. Aqui não é só a valoração que é inflada, mas a forma como esses materiais impressos podem ser apresentados – dentro de caixas de vidro como um ‘livro morto’. [5] Nesse sentido, Paulo Silveira, questionando a apresentação do livro veláZqueZ, de Waltercio Caldas, [durante o Panorama de Arte Brasileira 1997, no MAM de São Paulo] dentro de vitrinas, pergunta: “Seria por precaução ou por mise-en-scène?” [6]

A assinatura de Waltercio e a numeração na penúltima página do livro veláZqueZ são indícios de que essa publicação conserva ainda características de um trabalho artístico, sofrendo [ou simulando] as habituais influências do circuito econômico que rege o mercado da arte. Sobre esse aspecto, Silveira interroga se o gesto de assinar e numerar: “Seria por convenção ou seria um comentário crítico final?”. [7] As dúvidas que surgem de tal interrogação são intensificadas pela forma expositiva que a publicação de Waltercio infligiu. Sendo a sua assinatura um comentário crítico final e a sua apresentação equivalendo a uma

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encenação, a publicação veláZqueZ opera no frágil limite entre uma ‘obra’ de arte e um livro feito por um artista.

As questões de valoração econômica estão estreitamente ligadas à valoração simbólica, na qual as publicações de Ruscha e Waltercio se inscrevem. Independente das cogitações sobre edição ou tiragem, esses dois trabalhos impressos, quando inseridos nas práticas de mercado, se portam como objetos estranhos, pois, agora, valem menos que uma obra única e mais do que um livro comum.

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FORMATO-LIVRO

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Notas

[1]. SILVEIRA, Paulo. A Página Violada: da ternura à injúria na construção do livro de artista. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2001. [p. 72]

[2]. A CASA COMO CONVÉM é o nome de um ateliê-morada de Cristiano Lenhardt, Cristina Gouvêa, Jonathas de Andrade, Priscila Gonzaga e Silvan Kälin, localizado na casa onde habitam ou já habitaram, em Recife.

[3]. O edital do II Concurso Mário Pedrosa de Ensaios sobre Arte e Culturas Contemporâneas pode ser acessado em: www.fundaj.gov.br/geral/mpedrosa/edital2009mpedrosa.pdf

[4]. FERREIRA, Glória. Tomando licença. In: MORAIS, Fábio; CASTRO, Daniela. ARTE E MUNDO APÓS A CRISE DAS UTOPIAS, isso mesmo, em CAIXA ALTA e sem notas de rodapé. Santa Catarina: Par(ent)esis, 2010. [p.05]

[5]. BELTING, Hans. Após o fim da arte. São Paulo: Cosac Naify, 2006. [p.40]

[6]. Ibid. [p.37]

[7]. FORAY, Jean Michel. Art Conceptuel: une possibilite de rien. In. Artstudio, Paris, n. 15, 1989. [p. 46]. A versão integral deste artigo, traduzida por Maria Ivone dos Santos, encontra-se nos anexos da Dissertação de Mestrado Endemias ficcionais e o discurso da arte como vetores da prática artística, de Michel Zózimo, defendida em 2008 no PPGAV da UFRGS, sob orientação de Maria Ivone dos Santos, podendo ser acessada através do endereço:http://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/13508/000649455.pdf?sequence=1

[8]. MACLUHAN, Marshall; FIORE, Quentin. The medium is the massage: an inventory of effects. London: Penguin Classic, 2008. [p.123]

[9]. FERVENZA, Hélio. Transposições do Deserto. Porto Alegre:, 2010. [p. 04]

[10]. Ibid. [p. 10]

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Podemos apreender algumas publicações independentes como projetos que se deslocam entre diferentes linguagens, prospectando outras direções de apresentação por meio de desdobramentos visuais. Assim, um trabalho de arte, como projeto, possuiria distintos momentos, os quais seriam relativos às suas diversas formas de apresentação. Nesse caso, um projeto de uma ação dinâmica realizada em um determinado local, para um tipo específico de público, pode ser reeditado na forma de um livro. Ou de outro modo, projetos não efetivados, em suas primeiras intenções, também podem se materializar através do meio impresso. Da mesma forma, projetos inéditos de publicações podem ser editados independentemente da

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aprovação por incentivos públicos ou fomentos privados, para a qual originalmente foram submetidos.

Exemplificando tais possibilidades, deseja-se abordar três trabalhos que se efetivaram através de uma publicação im-pressa: transposições do deserto, [2010, Porto Alegre] de Hélio Fervenza, arte e mundo apÓs a crise das utopias – assim mesmo, em caixa alta e sem notas de rodapé, [2010, Santa Catarina] de Daniela Castro e Fabio Morais, e relaciÓn ornamental, [2006-2010, Recife] de Cristiano Lenhardt. Basica-mente, o conjunto dos referidos trabalhos possui a linguagem escrita que reflete ou exibe, de modo singular, pensamentos sobre as relações entre arte e mundo, apresentando-se em um formato-livro. Igualmente, a noção de edição, a qual perpassa toda a escrita textual, impõe-se como operação simbólica de desdobramentos de um trabalho artístico, os quais se dão em espaços e tempos diferentes. Segundo Paulo Silveira:

O primeiro grande elemento ordinal no livro é a seqüencialidade na percepção ou leitura. Ela é a diretriz da ordem interna da obra, en-volvendo a interação mecânica do leitor ou fruidor. Um livro envolve o tempo de sua construção e os tempos de seu desfrute. Cada vez que viramos uma página, temos um lapso e o início de uma nova onda impressiva. Essa nova impressão (e intelecção) conta com a memória das impressões passadas e com a expectativa das impressões futuras. [1]

Indo nessa direção, relaciÓn ornamental, [2006-2010], publicação de Cristiano Lenhardt, tem o formato de um livrinho

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A6, com doze páginas que possuem textos e imagens. Impres-so em uma única cor [azul] e com primeira tiragem de 100 exemplares, relaciÓn ornamental aborda o projeto transplanta [composto por fotografias de registro e textos autorais] e mais dois conjuntos de fotografias, um com imagens de quartos e outro com imagens de caminhões de mudança. Em 2006, Cristiano enviou o projeto transplanta para o spa das artes em Recife, não sendo selecionado. O projeto de Cristiano consistia em transplantar uma planta [muito provavelmente uma erva daninha] que havia nascido em uma rachadura de um viaduto próximo da UFPE, levando-a para a sacada de seu apartamento.

A planta possuía cerca de sete metros de altura, me-dida aproximada da distância do viaduto até o solo, sendo equivalente a altura da sacada de seu apartamento. Carregando uma visualidade potente e uma atmosfera simbólica, o projeto transplanta, apesar de não ter sido realizado, foi incluído jun-tamente com outras imagens e outros textos na publicação relaciÓn ornamental. As fotografias de cômodos e de caminhões de mudança documentavam a vida itinerante de Cristiano, segun-do o qual, no intervalo de um ano, havia dormido em mais de trinta quartos diferentes.

O ano de 2006 marca a mudança de Cristiano para Recife e o contato com as experiências tropicais da cidade, com todos os seus afetos e temores. O gesto simbólico de transplantar uma espécie de erva daninha, que havia brotado

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em uma fenda de concreto, levando-a para outro ambiente, poderia gerar uma situação de risco para a planta, a qual pro-vavelmente não se adaptaria as mudanças. Dispensar cuidados, provendo água e terra fértil, talvez não fosse suficiente para a manutenção de uma forma de vida que estava adaptada às adversidades do seu ecossistema original. Conforme Cristiano Lenhardt, uma semana após o registro fotográfico, o qual ilustra a publicação relaciÓn ornamental, trabalhadores da prefeitura teriam retirado a planta do viaduto.

Durante as atividades do SPA, apesar de não ter sido selecionado, Cristiano comercializou a relaciÓn ornamental, por um real, em um local onde aconteciam ações integrantes do evento. Segundo o artista, grande parte das pessoas levou a publicação sem colocar o dinheiro na caixinha que estava ao seu lado. Em 2010, uma segunda edição da publicação relaciÓn ornamental fora feita, por ocasião da exposição A CASA COMO CONVÉM [2], realizada na galeria Mariana Moura em Recife. A segunda tiragem possui seis exemplares, impressos em p&b sobre papel azul.

arte e mundo apÓs a crise das utopias – assim mesmo, em caixa alta e sem notas de rodapé, é uma publica-ção de Daniela Castro e Fabio Morais, de 2010, editada pela Par(ent)esis, de Regina Melim, com tiragem de 1.000 exem-plares. Impressa em offset sobre papel verde, a publicação de título longo é fruto de um projeto enviado pelos autores para

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o Ii concurso mário pedrosa de ensaios sobre arte e culturas contemporÂneas, realizado pela Fundação Joaquim Nabuco, ainda em 2010.

O projeto de Daniela e Fabio não foi premiado no con-curso, sendo, então, editado na forma de um livro pelos próprios autores. Segundo o edital do concurso a seleção seria “em âmbito nacional de três ensaios, resultado de pesquisa inédita e original, elaborados desde disciplinas e pontos de vistas diversos que versem sobre o tema escolhido: ARTE E MUNDO APÓS A CRISE DAS UTOPIAS”. [3] Daniela e Fabio usaram o tema do concurso como parte do título de seu ensaio, empregando a mesma grafia em caixa alta.

Jogando com a problemática do assunto, no seu sub-título, os autores deixam clara a ausência de notas de rodapé, como possíveis suportes explicativos que o tema suscita. Ou seja, o título do ensaio de Daniela e Fabio, aparentemente, daria conta do assunto que o livro trata, não necessitando de maiores explanações. Nesse caso, o título é como uma frase enfática, a qual exclama uma afirmação que não pode ser questionada. Ou de outro modo, o título é tão problemático que não necessita de explicações aprofundadas, as quais o tornariam redundante.

A metodologia empregada na construção do ensaio aborda todas as palavras do tema - [ARTE], [E], [MUNDO], [APÓS], [A], [CRISE], [DAS], [UTOPIAS], demonstrando que a análise individualizada dos termos acarretaria no estabelecimento

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de relações complexas entre os mesmos. De um modo crítico, Daniela e Fabio estabelecem uma abordagem atualizada do tema, por meio de um discurso bem-humorado. Em determinado momento do ensaio, os autores se propõem a pensar a partir do título, caso a conjunção [E] ganhasse um acento agudo, tornando-se o verbo [É]. Outro ponto que deve ser abordado é a participação de Glória Ferreira na publicação, através de uma espécie de prefácio, onde a crítica de arte e curadora independente apresenta, aos leitores, o texto de Daniela e Fabio. Glória Ferreira também participou do processo seletivo do concurso e segundo as suas próprias palavras:

O ensaio não foi agraciado no concurso (decisão da qual não me esquivo como um dos membros do júri), seu teor reflexivo analisa, no entanto, de modo singular a expressão ARTE E MUNDO, discutindo as relações entre arte e vida que daí emanam. [4]

O fato de Glória Ferreira ter sido convidada para es-crever a apresentação da publicação pode representar uma intenção insistente por parte dos autores, em configurar o seu ensaio da forma que havia sido prospectado, independente da sua aprovação e apoio institucional. E a decisão afirmativa de Glória Ferreira, apresentando o ensaio e os seus eixos conceituais, demonstra a relevância do projeto, apesar de sua não aprovação. Nesse caso, a publicação de Daniela e Fabio constitui-se por uma produção crítica que reflete sobre a relação

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da arte com as outras coisas do mundo, produzindo formas discursivas.

O que chamamos aqui de ‘discurso em arte’, Hans Belting, astutamente, chama de “comentários sobre arte”. Conforme Belting, o problema de abordagem da arte contem-porânea está ligado aos seus “métodos”, onde não é mais possível aplicar uma narrativa na história da arte, restando-nos os comentários sobre arte – espécies de produções discursivas que acompanham o acontecimento artístico, conferindo-lhe um sentido atual, diferente dos textos históricos. [5] De outra forma, o autor conclui seu pensamento sobre textos de artistas: “[...] que eles naturalmente sempre escreveram, ganharam uma nova qualidade com Marcel Duchamp, que refletia sua obra em textos que logo não podiam ser mais diferenciados dela e produziam mais quebra-cabeças do que a própria obra”. [6]

Resgatado pela arte conceitual, Duchamp desempenhou um papel fundamental nas formulações das proposições que interrogavam a função da arte, onde talvez a sua importância esteja ligada, não somente ao desprendimento do objeto estético, mas às questões do contexto artístico, se ancorando nos seus discursos internos para balizar ou colocar em xeque as suas próprias premissas. A produção textual de Duchamp e os seus jogos com a língua francesa são importantes objetos de estudo para problematizarmos questões da linguagem em arte. Desse modo, as palavras em Duchamp, usadas nos títulos de seus

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trabalhos ou nos seus escritos, poderiam se articular como espé-cies de ready-mades linguísticos. Segundo Jean-Michel Foray:

A linguagem foi pega – naquilo que nomeamos hoje de Arte Conceitual – seja como um ready-made, pela sua capacidade de substituir pedaços de textos existentes aos objetos e aos materiais tradicionais; seja como uma língua. No primeiro caso são as suas qualidades exóticas de escrito que são utilizadas; no segundo caso; os artistas escolhem utilizar a língua a fim de que a experiência estética não seja mais sujeitada exclusivamente à forma material do objeto de arte. [7]

Talvez a linguagem escrita tenha sido para a arte concei-

tual o que a linguagem pictórica representou para uma parte da arte moderna. Mergulhada nessa perspectiva e espelhada em Duchamp, a produção textual dos artistas conceituais ganhou uma nova dimensão através de proposições, ideias esquemáticas, postais e publicações efêmeras e baratas.

prospectiva 74 e poéticas visuais, de 1977, organizadas no Brasil por Walter Zanini em colaboração do espanhol Julio Plaza, no MAC da USP, são duas mostras exemplares desse contexto, exibindo investigações em xerox, offset, serigrafia, fotografias, folders, revistas, filmes super-8 e outros processos reprodutíveis de textos e imagens. Lembremos que essas pro-postas curatoriais coincidem com a disseminação dos processos reprodutíveis das máquinas fotocopiadoras. Essa observação pode ser verificada por meio da constatação de Marshall MacLuhan e de Quentin Fiore, segundo os quais havia chegado:

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[...] os tempos da publicação instantânea. Onde, qualquer um pode agora tornar-se autor e editor. Tomar qualquer livro, sobre qualquer assunto e costume e fazer-lhe o seu próprio livro, simplesmente xerocar um capítulo deste, um capítulo daquele – um roubo instantâneo. [8]

Devemos atentar para dois pontos de interesse presen-tes na citação de MacLuhan e Fiore, as ideias de autoria e de edição geradas pela acessibilidade do meio impresso. Há, nesses pontos, certa lógica de autonomia do artista, a qual não é subjugada pelos modelos externos de uma exposição institucional. Em contrapartida, a noção de edição, aqui pode ser ampliada, de um artista que edita o seu material, tomando as decisões de escolha e de corte dos seus conteúdos, para a ideia de edição como multiplicação e transformação de um trabalho de arte. Ou seja, a ideia de re-edição, a qual já havia sido tratada no início deste bloco de texto, aproxima-se da publicação como um espaço de edição de projetos artísticos. É nessa linha que a publicação transposições do deserto, de Hélio Fervenza, transita.

transposições do deserto, 2010, é uma espécie de livreto de capa amarela com vinte páginas de texto e tiragem de 400 exemplares em offset p&b. Tal publicação é um desdobramento de uma ação de mesmo nome realizada em 2003, fazendo um reenvio à outra publicação de Hélio Fervenza intitulada o + é deserto, também de 2003. Essa última é o terceiro volume da série documento areal, coordenada por Maria Helena Bernardes

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e André Severo, projeto contemplado na 2ª seleção do programa petrobras artes visuais, 2001. Na publicação o + é deserto, Hélio Fervenza falava de questões investigativas que perpas-savam a sua poética – o vazio, o deserto, os limites e as suas fronteiras. Em 2003, ao receber o convite de Celina Albornoz para fazer o lançamento da publicação o + é deserto, na cidade de Sant’Ana do Livramento [Brasil], Fervenza desenvolveu a proposição transposições do deserto – um projeto realizado em colaboração com duas escolas, uma brasileira e outra uruguaia.

É preciso notar que a cidade de Sant’Ana do Livramento faz fronteira com a cidade de Rivera, Uruguai, possuindo uma linha imaginária que divide os dois países e que passa pelos centros das duas cidades. Conforme Hélio Fervenza:

Quando ali nos encontramos, a linha de demarcação que sinaliza os distintos territórios pode ser traçada mentalmente, ao religarmos os pequenos marcos brancos espalhados aqui e lá, e que indicam o seu percurso e os limites dos países. Ela percorre ruas e avenidas, contorna canteiros, esquinas, edifícios, monumentos, morros e árvores, passa pelo centro das duas cidades, atravessa um parque ziguezagueia e se insinua debaixo de nossos pés, às vezes visível, às vezes invisível. [9]

Após a negociação com as duas escolas, transposições do deserto ocorreu efetivamente:

Ele consistiu, finalmente, na realização de uma troca de professoras entre uma escola situada no lado brasileiro e outra situada no lado

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uruguaio. Simultaneamente, duas professoras de geografia proferiram em suas línguas respectivas uma aula sobre desertos, entre às 9h e às 10h do dia 21 de novembro de 2003. As aulas foram realizadas na escola Rivadávia Corrêa, em Sant’Ana do Livramento, pela Professora Beatriz Tarocco, e no Colégio Rodó, em Rivera, pela Professora Carmozina. [10]

No decorrer da publicação, Hélio Fervenza descreve como a proposição ocorreu, oito anos atrás, expondo as experiências de uma aula de geografia que falava sobre o deserto, em duas línguas irmãs. O intercâmbio dos idiomas e dos currículos pedagógicos, das trocas afetivas e dos assun-tos transversais, o qual permeou o projeto transposições do deserto, foi adaptado, em 2010, para uma publicação de nome congênere. Vale destacar que a publicação é bilíngüe [português e espanhol], conservando a coerência interna do projeto. Os trechos do texto de Fervenza são dispostos nas páginas, lado a lado, como se fossem a tradução um do outro, entretanto, em decorrência das suas diferenças gráficas, eles se perdem ao longo das folhas. Tal fato demonstra as sutilezas de duas línguas que estão muito próximas, pelas grafias, pelos significados e pelos sons, mas que em determinados pontos divergem, se afastam, se corrompem, dadas às fronteiras que, apesar de invisíveis, demarcam os seus limites.

Ainda em 2010, a publicação transposições do deserto integrou a exposição dois pontos, ocorrida no Museu Murilo La Greca, na cidade de Recife. Sob a curadoria de Fernanda

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Albuquerque, a exposição foi selecionada pelo proJeto ampli-Ficadores, reunindo nove artistas, dentre os quais estava Hélio Fervenza. A participação do artista, nessa exposição, através de sua publicação, atesta a dinâmica de um projeto que continua em operação, onde os seus relatos não encontraram um limite de extinção. transposições do deserto teve origem a partir de uma publicação e oito anos depois retornou para o lugar de onde havia principiado – folhas impressas que abrigam escritos, relatos e vivências em arte. Há nessa operação uma relação de confiança, devemos acreditar naquilo que Hélio Fervenza conta no referido livreto e imaginar um trabalho de arte que, ao sabor do tempo, se fez invisível.

As três publicações brasileiras abordadas neste bloco de texto, relaciÓn ornamental, ARTE E MUNDO APÓS A CRISE DAS UTOPIAS [...] e transposições do deserto foram colocadas em diálogo com questões que são decorrentes da ideia de edição – como escolha, montagem, reconstrução e [ou] trans-formação de um trabalho de arte ou de uma produção textual. Aqui, não é apenas a ideia de multiplicação e de acessibilidade que persegue essas publicações, mas também a noção de tempo e de espaço que passa a delineá-las como projetos artísticos. O formato-livro parece precipitar as condições favoráveis para que essas operações ocorram, devido às suas instâncias temporais e portáteis, convulsionando aquilo que apreendemos como um lugar de exposição, um espaço de reflexão, um início e um fim.

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Notas

[1]. RANCIÈRE, Jacques. A Partilha do Sensível: estética e política. São Paulo: Ed.34, 2005. [p.43]

[2]. ALBERRO, Alexander. Conceptual art and the politics of publicity. Massachusetts: MIT Press, 2003. [p.133]

[3]. LIPPARD, Lucy. Seis Años: La desmaterialización del objeto artístico: de 1966 a 1972. Madrid: Akal, 2004. [p. 22]

[4]. MELIN, Regina. Exposições Portáteis. In: MARX, Daniela; SARI, Marcos. Meio. Porto Alegre: Ed. Panorama Crítico, 2010. [p. 07]

[5]. ZANINI, Walter. A Atualidade de Fluxus. In: Ars - Revista do Departamento de Artes Plásticas/ECA - USP, São Paulo, ano 2, nº 3, p. 10-21, 2004. [p. 19]

[6]. Cf. HENDRICKS, Jon. O Que é Fluxus? O Que Não É! O Porquê. Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil, 2002. [p. 170]

[7]. Cf. OBRIST, Hans Ulrich. Uma Breve História da Curadoria. São Paulo: BEI Comunicações, 2010. [p. 50]

[8]. FOUCAULT, Michel. Isto não é um Cachimbo. São Paulo: Paz e Terra, 2007. [p. 60]

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Os espaços habituais de arte, divididos em parcelas e parâmetros de galerias comerciais, de fundações culturais ancoradas por instituições privadas, de museus institucionais e de tentativas esparsas que davam vazão à produção de arte, foram amplamente questionados pelas práticas artísticas das décadas de sessenta e setenta. Havia, também, os lugares de discussão e pesquisa, acadêmicas ou não, que ganhavam uma dimensão relevante a partir da arte como campo de conheci-mento. Além desses espaços, a própria cidade se mostrava como uma arquitetura infalível de acontecimentos da arte. O espaço aberto do campo, as paisagens desérticas, os lagos e as florestas indicavam uma abertura para as invenções da arte. O corpo se apresentava como motor e suporte de ações artísticas.

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Arte e vida formavam um par que parecia ser indissociável. Ao mesmo tempo, proposições conceitualistas se desprendiam de qualquer objeto, articulando linguagem e pensamento através de interrogações filosóficas.

É notável que esse conjunto de transformações, ocorridas nas décadas de sessenta e setenta, ainda sublinhem certos aspectos da arte atual. Ao sair do restrito, do privado, a arte parece alcançar uma dimensão mais flexível, carregada de valores sociais e, até mesmo, políticos. Aqui a dimensão do político em arte não se faz presente por suas qualidades visíveis, como tema de ideologia e assunto histórico, mas sim como ‘invenção de formas sensíveis’[1], novos modos de agir e de habitar. Assim, a discussão acerca das fronteiras entre público e privado é intensificada, por uma arte que intenta ultrapassar as suas extensões.

Algumas placas sinalizam a linha dos limites públicos, os quais também indicam os nossos endereços. Em alguns casos, a nossa própria morada pode ser o lugar que abriga, expõe [ou é] arte, exemplificado pelo merZbau de Kurt Schwitters, pelo museu de arte moderna – departamento do século XX, de Marcel Broodthaers e pela Fluxshop, loja montada no apartamento de Maciunas. Em uma escala menor e através de uma arquitetura portátil, um espaço de arte pode ser o chapéu, como fez Robert Filiou, uma maleta ou uma caixa em Marcel Duchamp, um livro para André Malraux ou uma coleção de sabão para Mabe

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Bethônico. A lista destes espaços é tão extensa quanto o limite que separa o visível do prosaico ou do mundo.

Assim, a portabilidade de um trabalho de arte pode ser verificada em múltiplo sala dobradiça [2010], formato expositivo portátil coordenado pelos artistas Alessandra Giovanella e Elias Maroso, espaço de bolso [2003], múltiplo dobrável impresso em offset, de Maria Lucia Cattani, biblioteca de bolso [2008], maleta-biblioteca de Luciana Paiva, proJeto malote [2005], maleta de Luana Veiga que viaja pelas cidades carregando, coletando e expondo trabalhos portáteis de diferentes artistas, soFá, publicações coletivas coordenadas por Raquel Stolf desde 2004, arquivo de emergência, projeto-pesquisa da Arquivista Cristina Ribas, entre outros.

Do mesmo modo, uma publicação pode ser o lugar de uma exposição, abrigando no espaço plano de suas páginas um projeto curatorial ou apenas um texto que descreve proposições de arte. Nas décadas de sessenta e setenta, o curador norte-americano Seth Siegelaub desenvolveu projetos significativos que utilizavam a publicação como espaço expositivo. Catálogos, antes empregados somente para divulgar exposições, nos projetos de Siegelaub, passaram a ocupar o papel principal ou exclusivo daquilo que seria uma exposição de arte. november, 1968, de Douglas Huebler, statements, de Lawrence Weiner e the xerox booK, ambos de 1968, são exemplos de catálogos-exposição ou de publicações-exposição, idealizados por Siegelaub, os

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quais abriam novas perspectivas para práticas artísticas através do meio impresso. Alexander Alberro analisa the xerox booK, afirmando que:

Esta exposição, com o seu uso estratégico dos meios de comunicação avançados, portanto, representou uma vigorosa crítica da obra de arte única e autêntica que desprivilegiava e despersonalizava o processo de criação artística e virtualmente aboliu o limite entre a alta cultura e a cultura massa. [2]

A publicação the xerox booK teve a participação de sete artistas [Carl André, Robert Barry, Douglas Huebler, Joseph Kosuth, Sol Lewitt, Robert Morris e Lawrence Weiner], os quais ganharam, individualmente, vinte e cinco páginas para produzir uma série de trabalhos que integraria o volume de um livro parcialmente fotocopiado. Simultaneamente, nesse mesmo período, um conjunto relevante de revistas e periódicos surgiram, abrindo o campo para exposições em caráter impresso e reflexões de artistas, entre eles: art & language, studio international e posteriormente artForum. A edição de verão de 1970 da studio international, sob a direção de Siegelaub, abriu as suas páginas para artistas publicarem seus projetos na forma de esboços, textos, fotografias, relatórios e interferências gráficas concebidas para a publicação. A crítica norte-americana Lucy Lippard observa a relevância desse tipo de revista:

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Um dos temas que discutíamos, ao final dos anos sessenta, era o papel que as revistas jogavam. Em uma época de propostas de projetos, de obras de foto-texto e de livros de artistas, a publicação periódica podia ser veículo para a própria arte, em lugar de servir unicamente para a reprodução, para o comentário crítico e para a promoção. [3]

Essa discussão ainda permanece atual, conforme pode-mos observar em exposições portáteis, texto publicado em 2010 na meio (volume i)4, publicação que agrupa trabalhos de artistas feitos originalmente em meio impresso. No referido texto, a pesquisadora Regina Melim, abordando um conjunto de mostras que se dão no espaço da publicação, observa:

Seu formato portátil (ou de bolso), tal como livros, blocos, cadernos ou folhas avulsas, acrescido do baixo custo destas publicações, através de tiragens impressas e geralmente ilimitadas para a reprodução carregam o objetivo expresso de alargar o espectro de audiência e participação. Além disso, o fato de poder levar consigo e poder interagir tactilmente com esta exposição altera profundamente a forma convencional de recepção que usualmente temos diante de um trabalho de arte. [4]

4 A publicação meio (volume i), organizada por Marcos Sari e Daniele Marx, configura-se como a compilação de dez edições do projeto meio, iniciado em 2003, na cidade de Porto Alegre. Tal projeto possibilita a seus colaboradores a utilização de meio papel A4 para a experimentação gráfica, fotográfica, dentre outras. Além da reunião de dez edições do referido projeto, meio (volume i) abriga ainda, textos de críticos, de curadores e de artistas. Essa edição foi contemplada pelo edital público Conexões Artes Visuais da Funarte 2010.

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Além de pesquisar e refletir sobre a publicação como espaço expositivo, Regina Melim desenvolve espécies de propostas curatoriais mediadas por publicações editadas pela par(ent)esis, tais como PF, amor leve com você, coleção e os livros conversas e arte e mundo apÓs a crise das utopias: assim mesmo, em caixa alta e sem notas de rodapé. A editora par(ent)esis é uma plataforma independente de Regina Melim, criada em 2006, que produz e edita projetos artísticos e curtoriais na forma de publicações. Exemplificando, a publicação pF [por FaZer], de 2006, pode ser apreendida como uma exposição-portátil, onde um grupo de artistas propõe aos seus leitores atividades cotidianas ou estéticas por meio de instruções e desenhos esquemáticos. Nessa ótica, podemos verificar uma proximidade de por FaZer à exposição in-progress intitulada do it, iniciada em 1994, sob curadoria do suíço Hans Ulrich Obrist. A ideia de trabalho acabado, de autoria e o conceito de exposição tradicional são, de certa forma, subvertidos por do it, ao agrupar instruções de performances, ações e desenhos, instigando o público a realizar as proposições em qualquer lugar.

LOJA é outro projeto curatorial de Regina Melim que tem a publicação como objeto central. Iniciado em 2009 e colocado em suspensão ao final do ano subsequente, o projeto LOJA se constituiu por um agrupamento de publicações de artista e objetos múltiplos, oriundos de diversas regiões do país. Na LOJA, os trabalhos eram comercializados sem acréscimo sobre

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seus valores originais, sendo estes repassados integralmente aos seus autores. As duas únicas exigências para os artistas que tinham seus trabalhos vinculados a LOJA eram: doar um exemplar para o seu acervo [o qual estaria disponível para o manuseio do público] e não ultrapassar o valor de R$ 300,00.

No breve período de atividade desse projeto, houve cinco edições em diferentes locais. A LOJA não possuía lugar fixo, era um tipo de emblema ou uma espécie de sinalização, a qual se utilizava de estruturas físicas pré-existentes para acomodar as suas estantes e mesas. Instalada em tais locais, a LOJA ficava aberta por um curto período de tempo. Em uma edição da LOJA, durante o seu fechamento, pude observar que todo o seu material de venda cabia dentro de uma mala de viagem. Naquela ocasião, associei o projeto LOJA ao modo de existência ‘mascate’ e ao sistema de mercado ambulante. Tal iniciativa exemplifica, através de suas operações simbólicas e de suas negociações efetivas [agenciamento dos lugares, curadoria dos artistas, transporte dos trabalhos, divulgação das edições, modos de apresentação, participação do público e comercialização dos trabalhos], uma provável expansão dos territórios negociáveis da arte.

Assim, LOJA aponta diretamente para as experiências prospectadas nas décadas de sessenta e setenta pelo Fluxus. Lembremos que, encabeçado pelo artista lituano George Maciunas, o Fluxus agrupou profissionais de diferentes áreas

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e partes do mundo, da literatura à economia, realizando apre-sentações de concertos musicais, ações visuais, improvisações, ‘produtos flux’, vocalizações, instruções, partituras, manufatura de instrumentos estranhos, arte postal, caixas e maletas com tiragens de edições, entre outros múltiplos. Fluxus nasceu como um coletivo informal, sob o signo de influências e reminiscências futuristas, surrealistas, dadaístas, situacionistas, duchampianas, construtivistas, zen-budistas, entre outras. Em um artigo intitulado a atualidade de Fluxus, Walter Zanini observa:

Desde 1963 começaram a surgir edições individualizadas que deram um outro rumo ao que era previsto para os anuários. Múltiplos compostos de bens baratos apareciam em plena cultura da “desmaterialização”, porém antagônicos ao espírito ilusionista das beaux-arts. [...] [5]

De certo modo, as edições das caixas Flux, contendo objetos industriais, filmes e materiais impressos, borram as fronteiras entre arte e vida, através da apropriação das redes industriais e distributivas da sociedade de consumo. Em Fluxus, talvez, a resistência ao consumismo se efetive por uma lógica que ‘segue’ os princípios internos da própria cultura industrial. Entretanto, os ‘múltiplos flux’ quebram a racionalidade do sistema de mercadorias, ao apresentar falhas e inoperâncias em seus produtos. Podemos observar a presença de tais ruídos, através de uma carta, redigida em 1967, onde George Maciunas comenta as sugestões de Ben Vautier para os ‘itens flux’:

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Caro BenAgora posso responder sua carta com as sugestões para vários itens flux:SÃO TODAS ÓTIMAS!!![…] – Lux Flux (poderia ter muitas variações, como uma lâmpada de 8 volts com um fio de 115 volts para que queimasse antes que fosse ligada). […[ – Ovo Flux (talvez seja frágil demais). […] – Baralho de cartas que faltam (MUITO BOM e fácil!!!). [6]

De um modo geral, quase todos os itens mencionados por Maciunas são reconfigurações de produtos já existentes, articulando-se com a noção de ready-made. Assim, as ideias de originalidade e de edição implícitas no conceito de ready-made fariam parte do legado que Duchamp deixou ao Fluxus. Vale observar que grande parte dos ready-mades, hoje existentes, não é original. Ao serem perdidos ou extraviados, na década de cinquenta e sessenta, Duchamp realizou novas edições dos seus trabalhos, assinando e datando-os conforme seus ‘originais’. Tal fato é descrito pelo curador Pontus Hultén, ao lembrar-se de uma exposição realizada em uma livraria, onde Duchamp participou com seus ready-mades:

Ele me marcou profundamente. Na livraria, fizemos uma exposição – não tínhamos nem mesmo uma Caixa-valise (1941-1948) –, mas arrumamos algumas réplicas. Depois, Duchamp assinou tudo. Ele gostava da ideia de que uma obra de arte pudesse ser repetida. Ele odiava obras “originais” com preços competitivos. [7]

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Por meio das novas edições dos ready-mades, podemos cogitar que não há um original em Duchamp. Há, sim, uma matriz de pensamento, a qual possibilita inúmeras tiragens. Haveria diferença entre a Fonte de 1917 e suas outras edições? Aqui podemos transpor a abordagem que Foucault desenvolve sobre René Magritte para a poética de Marcel Duchamp:

O similar se desenvolve em séries que não têm nem começo nem fim, que é possível percorrer num sentido ou em outro, que não obedecem a nenhuma hierarquia, mas se propagam de pequenas diferenças em pequenas diferenças. [8]

O múltiplo boîte-in-valise, realizado na década de 1940, joga com a ideia de reprodução em série, similaridade e portabi-lidade, através de réplicas de trabalhos, em escalas reduzidas, guardados em uma caixa desdobrável. Marcel Duchamp confec-cionou trezentos exemplares de seu ‘museu portátil’, assinando vinte caixas que formavam uma coleção ‘Deluxe’, as quais, segundo o artista, possuíam uma obra original misturada às cópias. Além de réplicas tridimensionais dos ready-mades, boîte-in-valise guardava impressões em cor de suas pinturas e de suas aquarelas. Nessa perspectiva, o conteúdo de boîte-in-valise pode ser considerado como uma espécie de já-feito que também se propaga ‘de pequenas diferenças em pequenas diferenças’.

Outra iniciativa comercial que deve ser abordada chama-se Fluxus mail-order warehouse, consistindo-se por um sistema

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de venda através de catálogo, onde os ‘produtos fluxus’ com-prados eram remetidos pelos serviços postais. Maciunas usou a rede de contatos da arte postal para divulgar os projetos do Fluxus, aproveitando um amplo canal de comunicação e criando um caminho próprio para o varejo. Talvez, tal criação possa ser abordada como sendo uma crítica à mercantilização de objetos únicos e aos altos valores decorrentes das características singulares que tais produções encerram.

Atualmente, existem lojas virtuais que comercializam alguns ‘produtos flux’, disponibilizando-os para colecionadores e para outros interessados, entretanto, especialistas em Fluxus analisam esses itens com certa hesitação. A morte de Maciunas, o qual se auto-intitulava como sendo o fundador do grupo, em 1978, parece ter extinguido boa parte do ânimo que movia o Fluxus em suas ações irônicas, seus projetos artísticos e em seus empreendimentos comerciais. Grande parte das iniciativas artísticas de criação de espaços que distribuem múltiplos e publicações articula-se como um reflexo da abertura principiada pelo Fluxus.

Aqui, esta discussão não buscou delinear traços de semelhanças, através de uma paridade conceitual entre os projetos abordados, mas, sim, observou as confluências entre ‘invenção de formas sensíveis’ e ‘modos de agir e habitar’. Ao aproximar os projetos de curadoria portátil de Regina Melim às proposições de Siegelaub e de Obrist ou ao acolher no mesmo

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ideário Duchamp e Fluxus, constatou-se que ambos não se esgotam nas relações de originalidade e de portabilidade. Tais projetos, buscando espaços moventes e propondo aberturas para o escoamento da produção artística, abrem questões que restam em suspenso. Assim, ao abordar um trabalho de arte que simula características de um produto em série, mesmo que em uma micro-situação, problematizam-se as relações da arte com as outras coisas do mundo, aquelas que, aparentemente, o fazem funcionar.

Talvez, a ‘invenção de formas sensíveis’, das quais nos fala Rancière, possa ser apreendida, não apenas como novas configurações do mundo, mas também como outros modos de atuar sobre esse que se apresenta. Portanto a ideia de ‘estra-tégias expansivas’, a qual permeou as linhas de pensamento deste livro e as escolhas dos trabalhos abordados, se afasta do significado militarista do termo. Ao contrário, o seu sentido subjetivo está mais próximo de investigações em arte que, de certo modo, ampliam as margens e os territórios do privado e do público.

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IMAGENS

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Grupo perdidos no espaço, conjunto das três edições do Jornal perdidos no espaço, [2003, 2005 e 2006].

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Mabe Bethônico, Jornal museumuseu, 2006.

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Cristiano Lenhardt, relaciÓn ornamental, 2006.

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Daniela Castro e Fabio Morais, arte e mundo apÓs a crise das utopias – assim mesmo, em caixa alta e sem notas de rodapé, 2010.

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Hélio Fervenza, transposições do deserto, 2010.

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Cildo Meireles, Zero cruZeiro, 1974/1978.

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Cildo Meireles, Zero cruZeiro, 1974/1978.

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Pablo Paniagua, imaginário, 2005.

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Pablo Paniagua, imaginário, 2005.

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FÁBIO MORAIS

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Feriado [páginas propostas para esta publicação]

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ENTREVISTAS

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INA MELIM

[LOJA]

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Regina Melim - vive e trabalha em Florianópolis, SC. Docente no Departamento de Artes Visuais da Universidade do Estado de Santa Catarina. Coordena nesta mesma Universidade o Grupo de Pesquisa Processos Artísticos

Contemporâneos. Em 2006 cria a plataforma independente par(ent)esis para produzir e editar projetos artísticos e curatoriais cujo formato são de publicações, tais como: «Pf» (2006), «Amor: leve com você» (2007), «Coleção»

(2008), «Conversas: Ana Paula Lima e Ben Vautier – Tudo pelo Ben» (2009); «Conversas: Fabio Morais e Marilá

Dardot – blá blá blá» (2009); «ARTE E MUNDO APÓS A CRISE DAS UTOPIAS: assim mesmo, em CAIXA ALTA e sem notas de rodapé» – Os performers (2010) e «Projeto A2» – Diego Rayck (2010). Autora do Livro «Performance nas artes visuais», Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 2008.

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MichelRegina, começo aqui uma conversa...Mas ela falta, precisa de eco...As palavras escritas também podem ecoar...A LOJA é um espaço portátil para publicações, congregando artistas de produções distintas, com tiragens múltiplas. Ao mesmo tempo, ela não é um espaço físico. Ela possui a mesma portabi-lidade dos objetos que abriga [a LOJA é tão portátil quanto um livro, uma revista, uma camiseta...]. Entendo-a como um emblema, uma placa de sinalização e ativação do espaço que temporariamente ocupa. Vejo neste processo de agenciamento uma relação com questões institucionais da arte e, ao mesmo tempo, informais. Estou no caminho certo?

ReginaSim. Mas, também, é importante assinalar que tudo começou quando os dois primeiros volumes da série conversas (Ana Paula Lima e Ben Vautier / Fabio Morais e Marilá Dardot) estavam prontos e senti a necessidade (igual havia sido com o pF, amor: leve com você e coleção) de criar um circuito próprio para eles. Não era em uma prateleira de livraria (tão somente), porque essa série eu vejo como um modo outro de expor, cujo lugar é o de uma publicação. Assim, surgiu a ideia de fazer uma exposição onde pudesse inserir outras ‘exposições’, outras publicações onde não apenas compartilharia com outras

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produções, outros pares, mas poderia começar a debater sobre esse lugar-publicação, tanto como uma exposição (cada uma delas, independentemente) e também, no conjunto, seus modos de expor. Além disso, uma questão sempre me perseguiu: publi-cação tem que ser manipulada, folheada, lida. O espectador tem que ter essa proximidade e um tempo diferenciado daquele usualmente estabelecido em uma mostra de trabalhos de arte. Outra questão que também acompanha desde sempre os projetos que desenvolvo no formato de publicações é a possibilidade do espectador, indivíduo que visita uma exposição dessa natureza, poder levar consigo. Poder estender esse tempo da apreciação e leitura. Poder ativar e compartilhar essa exposição em outros contextos. Desde o inicio, em 2006, quando surgiu a primeira publicação, o PF, denominei de ‘exposição portátil’ - termo que peguei emprestado de Walter Zanini de um texto de apresentação As novas possibilidades, para o Catálogo da exposição poéticas visuais, no MAC/USP, em 1977, porque achei ultra adequado para o que estava propondo.

MichelDuas questões sobre o nome LOJA... A primeira [...] Ser uma coisa e ter como nome a própria coisa [ser uma loja que tem o nome de LOJA] e, no mesmo intervalo, não ser uma loja e ter o nome de LOJA...

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ReginaEntão, o nome LOJA e a ideia de fazer uma exposição que fosse como uma loja surgiu a partir dessa busca de atender as exigências que eu mesma colocava: de possibilitar um acesso mais direto, mais próximo do espectador e, deste poder levar para casa cada uma das exposições-publicações. Não poderia ser, portanto, uma exposição com publicações dispostas em vitrines e alguns fac-similes para o manuseio, num espaço-tempo usual de uma mostra, de um mês, dois, ou três. Não era isso. Não poderia ser desse modo. Eu tinha uma referência muito importante que eram as lojas Fluxus e no meu imaginário, pas-sar na Canal Street, NY, em 1964, entrar e adquirir ou levar algo que estivesse ali para ser distribuído gratuitamente, era o mesmo que passar no mercado e levar frutas, ou passar na padaria e levar pão. Tudo tratado como gênero de primeira necessidade. Pode soar estranho, mas foi isso que me motivou. E a logo da LOJA - um carrinho de compras, daqueles de ir à feira - potencializava isso.

MichelA segunda questão [...]O nome LOJA [escrito em letras garrafais] joga com a força que o título pode instituir. Lembro aqui do museumuseu da Mabe B. [ressalto que estou falando sobre as suas semelhanças constitutivas do título e não dos modos de operação do referido trabalho]...

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ReginaLOJA - assim mesmo, em caixa alta - para reforçar a ideia de que ali o espectador vai encontrar uma série de publicações que estão à disposição para o manuseio, venda e distribuição gratuita.

MichelObservo em alguns trabalhos anteriores [PF, amor leve com você e conversas] - a publicação como um vetor de condensamento de artistas e de seus trabalhos, ideias e pensamentos. Na LOJA, isto acontece também [agora são as publicações e os objetos múltiplos que estão agrupados sobre o mesmo escopo]. Como que funciona o processo de contato com os artistas que possuem trabalhos vinculados a LOJA?

ReginaFunciona da mesma forma que os projetos anteriores que você à pouco citou, ou seja, através de uma rede que vem se formando, ao longo do tempo, por afetos e proximidades conceituais.

MichelHá um limite de preço estipulado para os trabalhos que são comercializados na LOJA? Por quê?

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ReginaPorque o que sempre me interessou nos procedimentos artísti-cos, cujos formatos são o de publicações, é a possibilidade de poder multiplicar, de ser uma série que se estende e passa a lidar com outros valores, menos extorsivos, muitos deles com valores tão ínfimos que qualquer um pode possuir. Nunca me interessei por publicações que se apóiam em tiragens mínimas como uma qualidade que as singularizam. A força está na circulação e na expansão do circuito. MichelEm todo este processo - o valor dos trabalhos é repassado integralmente aos seus autores. Isto, novamente, quebra com a lógica de uma loja comum. Assim, me pergunto: A LOJA seria um trabalho de arte que passa invisível aos olhos dos outros? Ou é outra coisa?

ReginaA LOJA pode ser tratada como um trabalho artístico sim. Do mesmo modo que uma exposição pode ser tratada, em muitos casos, como um trabalho artístico. Mas tem outro lado que gostaria de assinalar que é o fato da LOJA, assim como os outros projetos que tenho desenvolvido, estarem todos muito aderidos à minha prática de professora e pesquisadora na universidade. Não consigo desvincular uma atividade da outra.

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Assim, A LOJA também se traduz como uma amostragem das prospecções de uma pesquisa acadêmica, cujo objetivo é suscitar debates acerca dos modos de apresentação de uma pesquisa experimental em arte. Trato a LOJA como uma expo-sição e essa exposição do mesmo modo como se estivesse apresentando um texto ou um artigo. Em cada edição da LOJA vamos ter novos passos do desenvolvimento e transformações dessa pesquisa. Eu penso que, quando estabeleço essas duas instâncias: pesquisa acadêmica e exposições - ambas centradas no processo de seu desenvolvimento (que continua a cada (a)mostra(gem)), tenho a possibilidade de visualizar situações que, via de regra, são excluídas. Além do percurso, muitas vezes restrito à condição de bastidor, o cruzamento entre uma pesquisa realizada na universidade com exposições abertas ao público tem gerado processos efetivamente mais dinâmicos, acrescidos de algumas camadas que são cercadas de uma exterioridade muitas vezes ignorada. Assim, tanto a pesquisa acadêmica quanto as exposições tornam-se estruturas abertas e processos contínuos de formulações e debates coletivos, dentro e fora da universidade.

MichelDo mesmo modo que a LOJA possui uma portabilidade congê-nere aos objetos que abriga, ela também possui edições [como uma publicação pode ter]. Já está na quinta edição?

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ReginaSim, na quinta e última edição. E o mais interessante é que ela fecha como LOJA e como seminário, dentro de uma universidade.

MichelComo elas aconteceram? Os lugares e os públicos foram diferentes?

ReginaEntão, como o formato da LOJA, enquanto exposição, difere daquilo que estamos acostumados a conviver, o lugar e o público, igualmente são diferentes e com muitas variantes. A primeira edição foi realizada em Curitiba (PR), no Núcleo de Estudos de Fotografia - um lugar que é coordenado por dois artistas, Milla Jung e Felipe Prando. A LOJA permaneceu durante três semanas do mês de novembro de 2009, convivendo com visitantes que ali chegaram para ver a exposição, bem como os alunos que durante a semana assistiam aulas ministradas por esses dois artistas. Ocupamos a sala principal, onde as aulas são ministradas e onde os artistas trabalham. Foi um convívio interessante, disse um dos alunos quando fizemos a habitual conversa com o público. Em dezembro deste mesmo ano, fizemos a LOJA em Florianópolis (SC). Durante uma semana ocupamos uma pequena sala, no centro da cidade,

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conhecida como Memorial Mayer Filho e que é destinada a espaço expositivo. Pelo fato de ser na área central da cidade, com um grande fluxo de pessoas, e estarmos a poucos dias do natal, o público foi o mais diversificado possível. A LOJA tomou aspecto de espaço de comercialização mesmo! Não parávamos de atender, fazer pacote. Não houve a mínima possibilidade de fazer um debate com o público. Mas foi interessante ficar imaginando as pessoas presenteando naquele ano com trabalhos de arte. Em março de 2010 fomos para São Paulo montar a LOJA no Beco das Artes - um espaço coordenado por um grupo de artistas. Foram apenas três dias e o público foi totalmente composto por artistas. Em abril, a partir de um convite, fomos para a quarta edição num espaço de dança em Ribeirão Preto conhecido como ONG FINAC.

E, novamente, o público foi totalmente diverso, composto grande parte por bailarinos participantes das atividades daquele espaço. Agora vamos para quinta e última edição, na Pinacoteca Barão de Santo Ângelo, no Instituto de Artes da UFRGS, com um formato compacto em sua duração, pois a LOJA estará aberta ao público apenas no período das 10h00min às 16h30min horas. Além disso, a LOJA vai ter também o formato (além de loja) de um seminário. Ela abre como seminário, onde vamos apresentar o projeto e seremos mediados pelos artistas profes-sores, Maria Ivone dos Santos e Hélio Fervenza.

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Será também uma oportunidade, de poder reunir na mesma mesa, três artistas pesquisadoras que me acompanham neste projeto: Maíra Dietrich, Ana Clara Joly e Tatiana Sulzbacher. Outra parceira, desde 2006, Giorgia Mesquita - responsável por toda a identidade visual dos projetos, não estará presente, pois mora em Londres desde janeiro deste ano.

MichelPor enquanto, era isso. Abraço.

ReginaE eu digo o mesmo, por enquanto era isso. Abraço e até breve.

Participaram ao longo das cinco edições da LOJA os seguintes artistas: Alex Cabral, Aline Dias, Amir Brito, Ana Paula Lima, Ana Clara Joly, Ana González, Anna Korteweg, Anna Paula Stolf, Brígida Baltar, Carla Zaccagnini, Claudia Zimmer, Cleverson Salvaro, Diego Rayck, Fabio Morais, Fernanda Gassen, Giorgia Mesquita, Glaucis de Morais, Glória Ferreira, Grupo Poro, Hélio Fervenza, Joana Corona, João Rosa, Jorge Luiz, Jorge Menna Barreto, Julia Amaral, Juliana Crispe, Karen Pagno, Laercio Redondo, Luize Cornelius, Maikel da Maia, Maíra Dietrich, Nara Milioli, Márcia Souza, Maria Ivone dos Santos, Mariana Silva da Silva, Marilá Dardot, Marina Borck, Michel Zózimo, Milla Jung, Milton Machado, Orlando Maneschy, par(ent)esis, Paulo Bruscky, Priscila Zaccaron, Priscilla Menezes, Rafael Adorjan, Raquel Stolf, Rosana Rocha, Sergio Basbaum, Traplev e Yiftah Peled.

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CRISTINA FREIRE

[MUSEU]

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Cristina Freire vive e trabalha em São Paulo, SP. Docente da Universidade de São Paulo. Atualmente é vice-diretora do Museu de Arte Contemporânea

da Universidade de São Paulo [MAC-USP]. Publicou diversos artigos em revistas especializadas nacionais e internacionais assim como é autora dos livros: «Além dos Mapas. Os Monumentos no Imaginário Urbano Contemporâneo», São Paulo, Annablume/Fapesp, 1997; «Poéticas do Processo. Arte Conceitual no Museu», São Paulo, Iluminuras, 1999; «Arte Conceitual», Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2006; «Conceitualismos do Sul/Sur» [Org.], São Paulo, Annablume, 2009, entre outros.

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MichelBom, começo então prospectando algumas questões que pode-riam ser tratadas na nossa conversa. O assunto da pesquisa é publicações de artista [abordando trabalhos de artistas brasileiros da década de sessenta até ao presente momento] que se configuram através do meio impresso com tiragens limitadas e ilimitadas, justapondo, através das artes gráficas, imagem e [ou] texto. Trata-se de um importante veículo de difusão e de dispersão utilizado por distintos projetos artísticos, os quais podem empregar ou abrir mão das estruturas convencionais de edição, publicação, distribuição e de circulação.

1] Nesse sentido, acredito que o lugar de onde falamos pode ser um dos indicativos dos nossos modos de pensar a arte. Por tal motivo, gostaria de abordar a tua experiência como professora-pesquisadora da universidade e vice-diretora do MAC-USP. A meu ver, dois lugares que, essencialmente, vivem de relações dinâmicas entre pesquisa e arquivo, e que muitas vezes podem esbarrar nos processos distributivos e de circulação, tanto da produção intelectual, como da produção artística. Como o museu de arte contemporânea pensa este tipo de produção que articula, em seus processos intrínsecos, circulação, manuseio e leitura?

CristinaNa minha atividade de ensino, nos cursos de graduação e de

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pós-graduação que ministro, assim como nas minhas palestras, nos textos que escrevo de uma maneira ou de outra meu ponto de partida é sempre o museu. Esse é o lugar (no sentido antropológico, histórico, arquitetônico, de onde partem minhas reflexões etc, etc). Ou seja, meu pensamento sobre as práticas artísticas é sempre contextualizado e volta-se criticamente para seu ponto de partida. Como curadores de museu, o acervo é nosso horizonte de trabalho. Ele dá o limite e as possibilidades de nosso trabalho e faz com que junção entre a pesquisa a docência e a extensão (no meu caso a curadoria de exposições) sejam tarefas absolutamente interligadas. Esse me parece o diferencial mais significativo [...].

Mas mesmo dentro do Museu, há diferentes maneiras de abordagem da arte. Assim não é o Museu que se pensa, são os diferentes pesquisadores-curadores que pensam a partir do acervo do museu e ao expor seus critérios podem, ou espera-se que possam adensar a compreensão das práticas artísticas em suas imbricações com as dinâmicas sociais e institucio-nais. Penso que alguns conceitos devem embasar a reflexão dentro de um trabalho de curadoria e pesquisa num acervo. É necessário pensar antes o próprio museu, pois o museu de arte é o narrador oficial da História da Arte, como sabemos, é onde a modernidade foi gerada, implementada e sustentada ao longo do tempo. É também um instrumento ótico privilegiado,

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onde são recriados constantemente crenças, representações e valores. É um lugar de visibilidade, de visualidade e também de ocultação. É onde se cristalizam ideias. E o papel da pesquisa deve partir da interrogação, isto é interrogar, reverter a ocultação. Isto sugere que tudo o que se expõe, se expõe a partir de uma convenção. Neste sentido, entendo ser fundamental para o trabalho de pesquisa e de curadoria no museu universitário, algumas questões:

A primeira, e eu acho que isto que vai diferenciar o trabalho da pesquisa num museu de arte, do trabalho de investigação em outros contextos, é que a obra de arte é o ponto de par-tida. Não deve-se cair no risco de tratar a obra de arte como algo isolado e autônomo, mas, sim, pensar na retórica que ela engendra numa coleção. Essa retórica é feita de palavras e silêncio, ou seja, de presenças e ausências. Isto quer dizer que é significativo do ponto de vista artístico e político dar atenção aos artistas menos conhecidos. Isto porque, muitas vezes, existe aquela tentação mercadológica de reiterar o mesmo. E a nossa situação num museu de arte público e universitário é justamente resistir a essa sedução, cada vez mais forte, que o mercado e as organizações espetaculares criam em relação ao sistema da arte. É preciso admitir que fazemos muito, muito mesmo, por poucas obras e fazemos pouco por centenas de milhares de outras. Isto requer deixar um pouco de lado a expectativa do

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público, já moldada pela sociedade de consumo e por meio de uma pesquisa em profundidade levantar outras questões que possam estar abrindo outras veredas.

Michel2] As publicações de artista são caracterizadas por terem uma tiragem, um valor relativamente baixo e por transitarem em espaços distintos. Nesta circunstância, cria-se um entrave material, pois apesar terem uma distribuição mais ampla, certos trabalhos ganham um caráter de raridade, ao serem descartados por seus leitores ou desaparecerem com a fugacidade do tempo. Em contrapartida, poderíamos perguntar: Em um espaço expositivo, qual seria o estatuto de uma obra múltipla?

Cristina‘Publicações de artista’ é uma categoria ampla que pode abarcar muitas coisas: livros de artista, revistas editadas por artistas, obras gráficas, sonoras e efêmeras, entre outras. Essa cate-goria me interessa, pois basta lembrar com Walter Benjamin em seu já antológico texto de 1935 a obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica, que alerta para o fato que o que se vinha processando ao longo do tempo, construindo, era não apenas uma modificação nos meios de reprodução, mas na própria imagem que envolve, necessariamente, formas de percepção. Assim, o que interessava Benjamin não era uma

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análise isolada de uma obra de arte, nas técnicas de reprodução isoladamente, mas partir delas para pensar a sensibilidade e as estruturas de percepção em cada tempo. Esse ‘possível’ é necessariamente político e em muitos casos trata-se de uma verdadeira batalha que se trava a partir de diferentes narrativas. No museu, esse ‘possível’ passa pelo que chamamos (ou não) de obras, pelas categorias disponíveis para sua documentação, formas de exibição e programas de preservação. Cada vez mais, tudo isto está no centro das problemáticas de museus de arte contemporânea. Cada uma dessas funções, pois tendo como origem um conceito de obra moderna (autônoma) ainda pautado nas categorias herdadas das Belas Artes. Publicação de artista, portanto como categoria dá conta de uma variada gama de práticas artísticas. Tenho buscado ampliar a compreensão do que venha a ser ‘publicação de artista’ no âmbito das práticas museológicas. Isso quer dizer, por exemplo, reconhecer a existência de zonas de trânsito, por exemplo, entre a reserva técnica, a biblioteca e o arquivo no museu vis-à-vis a produção artística contemporânea. Essas zonas, creio eu, não devem ser obliteradas, mas avaliadas cuidadosamente em suas correlações para que possam redefinir o papel e o lugar do museu no século 21.

Michel 3] Ao ar do tempo, o histórico do MAC-USP, iniciado pelo

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professor Zanini, já demonstrava uma especial atenção para este tipo de produção. Não é? Na lógica do acolhimento de experimentações em arte contemporânea, poderia comentar as reverberações que ainda hoje ecoam?

4] As narrativas que história da arte nos apresenta, em grande parte, são genéricas - pois uniformizam os modos de pensa-mento e de produção. Assim, diferenças e ruídos são excluídos. Partindo, da arte de endereçamento conceitual [em 60 e 70] que era produzida no Brasil e em outros países da América Latina - quais seriam os seus desvios daquela arte conceitual, a qual os livros já oficializaram?

CristinaÉ certo que pensar a arte dentro do museu, envolve pensar sempre as questões que estão embasando uma determinada ideia de arte. A mais arraigada é essa ideia de arte que re-monta ao Renascimento e sustenta que a obra de arte é única, autêntica, e permanente e deve se considerada, sobretudo nos procedimentos museológicos, a partir dos seus meios e técnicas tradicionais: pintura, escultura, desenho e gravura. É certo que tudo isto vai ser suspenso, do ponto de vista da sua aplica-bilidade, a partir da segunda metade do séc. 20 e é por isso que me interessa a coleção de arte conceitual do MAC-USP. É com a arte conceitual que, considera mais as ideias do que

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os objetos, que tudo isto entra em suspensão. A obra deixa de ser única, torna-se reproduzível. A autenticidade é colocada em xeque, muitas obras são realizadas por autoria coletiva, não são permanentes, são transitórias. Em várias exposições ocorridas no MAC nos anos 70, os artistas trabalhavam no espaço do museu e em alguns casos ali permaneciam durante o período todo da mostra. Isto quer dizer, ideologia que cerca a divisão dos espaços, o espaço de recepção: museu, espaço de criação: atelier ou estúdio se desfaz. E este museu, neste momento, representava este ‘espaço operacional’. Isto é um espaço de produção e recepção artística fundidos como arte e vida. Dirigido pelo prof. Walter Zanini, grande incentivador da arte de vanguarda desconstrói-se, nesse momento, a autonomia do museu e da obra de arte. Outras proposições entram no campo da definição do que deva ser ou que pode ser o objeto de arte: a arte postal, os livros de artista, as instalações e os vídeos. Coloca-se hoje, então, a questão extremamente im-portante, dentro do conceito de curadoria de arte e de arte contemporânea: o que significa conservar e o que significa restaurar? Conservar, especialmente no conceito próprio à arte contemporânea, sugere dar inteligibilidade aos trabalhos e o papel da pesquisa é aí fundamental. Isto é, trata-se, sobretudo de atribuir a estes projetos significado e valor, ao inseri-los numa rede simbólica mais ampla. No caso da América Latina, a história política do continente deve ser considerada. Isto

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porque esta rede simbólica compreende o contexto político e social da realização das obras, as condições de sua legitimação ou exclusão institucional, assim como repertórios de intenções dos artistas. Deste modo, restaurar pode significar recuperar a função política do museu, ao reinventar suas práticas, para que ele possa representar o lugar privilegiado estratégico, onde se formula cotidianamente a visualidade do nosso tempo. Uma reflexão para finalizar: penso que nossa tarefa como pesquisadores nos museus de arte na sociedade contemporânea, parece ser, cada vez mais, perscrutar o horizonte, em busca de uma outra luz que nos oriente, para além do espetáculo dominante.

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AMIR BRITO

[BIBLIOTECA]

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Amir Brito é artista gráfico e professor da Habilitação em Artes Gráficas da Escola de

Belas Artes da UFMG. Doutorando em Artes na UFMG, realiza pesquisas sobre livros de artista. Participou de mostras coletivas de gravura e de poesia visual. Em 2007 realizou exposição individual em Campinas, na Galeria de Arte da Unicamp. Membro da comissão organizadora do seminário “Perspectivas do Livro de Artista”, realizado em Belo Horizonte em 2009. Publicou o livro de artista «As Façanhas de Um Jovem Dom Juan» pelas Edições Andante, em 2010.

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MichelOi AmirChegamos agora a pouco de SP...Foram proveitosas as conversas no Tijuana5.Ouvir a tua fala ajudou a pensar as questões que eu gostaria de conversar contigo... Elas já caminhavam para esta direção e grande parte do assunto tratado no Tijuana pode servir de referência para a nossa conversa. Bom, em um primeiro momento, gostaria de saber como surgiu a ideia do seminário perspectivas do livro de artista, ocorrido em 2009 na UFMG, e qual a importância deste na prospecção de uma Coleção Especial de Livros de Artistas na Biblioteca da EBA da univer-sidade? Como foi o processo de negociação com a Biblioteca da EBA, para se inserir está coleção - a qual, muitas vezes, parece ser inclassificável? Como começou a coleção e como ela continua? Como se dá o processo de seleção do material e aquisição dos livros? Como se dará o acesso ao público?

5 Projeto criado em 2007 pela Galeria Vermelho [SP], TIJUANA tem como objetivo a apresentação de obras impressas cujo suporte as diferencia dos formatos tradicionais de obras de arte como a pintura, a fotografia ou a escultura. No TIJUANA, obras de arte como livros de artista, gravuras, pôsteres, vinis e DVDs são produzidos, apresentados, e comercializados. O projeto acomoda também lançamentos de diversos tipos de publicações de artistas e de projetos editorias, criando com esses procedimentos uma plataforma ampla de apresentação e discussão acerca da arte impressa.

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E o que falta para isso ocorrer? Pelo que percebi, na tua fala e no exemplares da coleção, há uma tendência pelos múltiplos e pelas publicações... Poucos exemplares são trabalhos únicos... Acredito que tal fato possui uma lógica interna em relação ao lugar que os abriga - uma biblioteca. Caso fossem trabalhos sem tiragem, o contato com o público, talvez, seria de outra ordem e em outro lugar?

Amir Brito respondeu as perguntas em um texto único.

AmirA ideia do seminário: A pós-graduação da EBA realizava todo ano seminários, abertos ao público, mas obrigatórios para os alunos. A Cacau, minha orientadora, era coordenadora da pós, e pensamos em fazer um seminário temático. Ela participou da banca de defesa do Paulo Silveira, e tem interesse em livros de artista, assim propusemos este tema. Depois de confirmar a participação do Paulo Silveira e do Paulo Bruscky, os outros convidados prontamente aceitaram participar. Era para ser um evento pequeno, ele foi crescendo aos poucos: era para ter apenas as mesas-redondas, mas decidimos aproveitar a vinda dos convidados para oferecer uma palestra ou curso, pensamos que um ou outro aceitaria esta atividade extra, sem receber cachê, apenas bilhete aéreo e estadia, e todos toparam.

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A coleção iniciou um pouco antes, e haveria uma mostra com os livros, que também foi crescendo: inicialmente era o meu acervo pessoal e da Cacau, e alguns exemplares recebidos para a formação da biblioteca, depois incorporamos obras dos convidados, e finalmente dos alunos, ex-alunos e professores da EBA. A mostra incluiu uma instalação, obras únicas, livros alterados, fac-similes.

O seminário foi importante para dar visibilidade ao nosso acervo; outra consequência direta foi que vários participantes deixaram obras para a nossa coleção. Algumas pessoas que foram as-sistir às palestras também doaram livros de sua autoria. Mas, não lembro de muitos livros que foram citados no seminário que tenham sido incorporados ao acervo. O Brad Freeman apresentou um livro chamado belo horiZonte, de um artista alemão, Joachim Schmid: pedimos a ele, Schmid, a doação deste livro, e recebemos um pacote com 4 ou 5 livros diferen-tes, alguns em alemão. Para minha comunicação, sobre livro infantil, consegui a doação de um importante catálogo italiano, do OPLA, que vem com um CD-Rom. O Brad enviou 120 exemplares do JAB para distribuição durante o seminário (ed. 23 a 25). Recebemos alguns livros teóricos: sobre o Bruscky, sobre o Felipe Ehrenberg, o artist’s booK yearbooK, e libros de artista, catálogo de Martha Hellion. Demorou certo tempo para conseguirmos apoio, colocaram empecilhos quanto à verba

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para aquisição, pessoal para cuidar, espaço físico. Fizemos um projeto em que detalhamos isso, destacando as doações por meio de cartas-convite. A expectativa, na época, era de receber 40 livros. A nova diretora também apoiou a causa, e tem intenção de se especializar na catalogação deste tipo de material. O Paulo Silveira enviou uma cópia do artists’ booKs: a cataloguers’ manual, que copiei para a diretora. Envio um texto inédito que conta como a coleção iniciou. Será publicado no próximo ano, na revista da pós que tem um dossiê sobre o Seminário. Para dar continuidade, estamos escrevendo um projeto para a Funarte, para aquisição de obras. Fiz uma lista de publicações que achei interessantes, que estavam na Bienal, e estamos contatando os artistas, pedindo doações. Tem alguns que se prontificam a colaborar, mas não enviam o material, por esquecimento ou desinteresse. Aconteceu até um fato que me deixou contrariado: alguns artistas que ficaram de enviar os livros para a EBA, não enviaram dizendo que a edição estava esgotada, mas enviaram depois para a Bienal, para o espaço criado pela Marilá e o Fabio. Excelente projeto, por sinal. Ainda não conseguimos formar um conselho curador para a seleção. Por enquanto tem apenas eu e a Cacau, e ocasionalmente conversamos com outros pesquisadores a respeito de alguma obra que desafia a classificação: os catálogos que o artista considera livro de artista, mas são apenas um bom catálogo com um projeto gráfico orientado pelo artista (memento mori, de

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Walmor Corrêa). Estou fazendo uma cronologia, com as obras publicadas no Brasil desde a década de 50. Ocasionalmente, incluo artistas estrangeiros que publicaram no Brasil (Leon Fer-rari) e brasileiros que publicaram no exterior (Aloísio Magalhães) Digo isso porque tenho pouca informação a respeito destes dois casos específicos.

Uma parte da informação foi recolhida de catálogos de ex-posição, como o tendências do livro de artista no brasil, realizado no CCSP em 1985 (curadoria de Annateresa Fabris e Cacilda Teixeira da Costa); ex-libris/home page, Paço das Artes, São Paulo, 1998 (curadoria de Giselle Beiguelman); livro-obJeto: a Fronteira dos vaZios (curadoria de Marcio Doctors, evento paralelo a Bienal de Veneza, 1993 / Centro Cultural Banco do Brasil – CCBB–RJ, 1994 / MAM–SP, 1995); brasil: sinais de arte – livros e vídeos 1950-93 Milão, Veneza, Florença e Roma, 1993 (curadoria de Paulo Herkenhoff).

Repare que faz dez anos que não acontece uma grande mostra só de livros de artista no Brasil. O público tem acesso aos livros, mas não pode retirar da biblioteca. Ainda não definimos como será o manuseio, se precisa de luva, se um funcionário vira a página. Vamos conversar com o pessoal da conservação, e as bibliotecárias do setor de livros raros, para ver como procedem. Talvez adotemos um procedimento assim para obras delicadas,

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em pequena tiragem. O Mário Ishikawa pediu algumas garan-tias de conservação das obras, antes de decidir se faz uma doação. O material ainda não está catalogado, temos cobrado para agilizar isso, havia outra prioridade, que era a catalogação de livros novos, para os cursos do Reuni, do governo federal.

Sim, obras sem tiragem costumam ter tratamento de obras de arte - acesso restrito, o manuseio é impensável. Não é o perfil da nossa coleção, a ideia desde o início era ter os livros ordinários, que qualquer pessoa pode comprar.

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CRISTIANO LENHARDT

[RELACIÓN O

RNAM

ENTAL]

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Cristiano Lenhardt vive e trabalha em Recife. Formou-se em Artes Plásticas pela UFSM/RS em 2000. Professor da Faculdade Aeso em Recife - PE. Participou do espaço Torreão de 2001 a 2003. Integra o grupo «Laranjas» e «A Casa

como Convém». Principais exposições: «7ª Bienal do Mercosul - Grito e Escuta» 2009; «Paço das Artes – Temporada de Projetos» 2009; «Prêmio Projéteis Funarte» 2007-2008; «Programa de Exposições Centro Cultural São Paulo», 2008; «Abre Alas - Galeria A Gentil Carioca» - Rio de Janeiro, 2008; «Prêmio Concurso vídeo-arte da Fundação Joaquim Nabuco» - Recife 2007; «SPA das Artes» 2007 e 2004 – Recife; «Fiat Mostra

Brasil» - São Paulo 2006.

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Michel

Cris,A relaciÓn ornamental é uma publicação de artista muito especial para mim...

Quando um volume dela chegou pelo correio - foi uma surpresa.Ela contaminou o meu processo de criação e o meu modo de ver e entender o trabalho artístico [como uma massa de pensamento que não dissocia a imagem, da documentação, do texto...]. Enfim, das relações da arte e da vida. Já se passaram quatro anos de sua publicação [ela foi editada em setembro de 2006]. Parece-me que esta publicação marca uma fase da tua vida - de mudança de Porto Alegre para Recife. Dos encontros felizes...Tem interesse em falar um pouco sobre esta publicação?Na capa da «relaciÓn ornamental» há uma fotografia de um trabalho teu, chamado «transplanta»? É isso, não é? Fale sobre este trabalho que está na capa e que perpassa os textos das páginas internas da publicação? Como que nasceu a ideia de publicar? Ela tinha uma tiragem, ou tu foi fazendo e não contou? Como foi a sua distribuição? Restam algumas?

A formatação do texto de Cristiano Lenhardt foi conservada conforme seus originais.

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CristianoObrigado Michel, o que vc fala sobre como vc recebeu relaciÓn ornamental, para mim nesse momento é muito importante. Estou numa fase esquisita, me sinto um outro que ainda não conheço, que ainda não sou amigo, mas convivo diariamente, ignorando-me.

É bom saber de mim, saber como toco os outros. Estou estranho hoje, fotograma velado, papel molhado. Mas não desgosto por completo, sinto uma curiosidade do por vir, sinto esperança, mas não me sinto, estou por fora de mim, não me permiti entrar em mim ainda, o eu desconhecido, sei lá quem, é interessante também, é a vida numa vibração que desconhecia.

transplanta foi um projeto para o SPA das artes aqui em Recife.Havia uma planta que nasceu e cresceu no meio de um viaduto em frente a UFPE. Essa planta vinha até quase o chão, numa altura de aproximadamente 7 metros. Minha intenção era trans-plantá-la para a sacada no terceiro andar do apartamento que estava morando em Recife.

Fiz umas fotos com o Jonathas para anexar ao projeto e na semana seguinte trabalhadores da prefeitura removeram a planta do viaduto. A ideia original já não era mais viável, mas havia uma série de observações e reflexões que tratavam da

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minha chegada nessa nova cidade, pensei em reunir em um pequeno livrinho.

Antes de eu chegar no Recife fiquei indo e vindo entre Rio Grande do Sul, Rio e Recife. Parava em casa de amigos, parentes e hotéis, ao todo foram mais de trinta camas diferentes em um ano. Abrigos e despedidas em uma profusão de senti-mentos.

Por esse tempo escrevi de um lugar em que me encontrava, a felicidade e a transformação.

Meu encontro com o mundo tropical foi impactante, senti os os-sos aquecidos. A vontade era de fazer essa descoberta circular. Para mim, escrever é encontrar um lugar onde uma espécie de intuição se aproxima do verbo e encoraja o fabular, destrava o limite entre o real e o artifício. Um encontro com algo que está bem mais adiante de mim.

Fiz 100 livrinhos, um tanto eu vendi por 1 real durante o SPA das artes em 2006, outro tanto eu dei a amigos e artistas.

Um abraço, Cris.

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Nota

Em 2010, foi produzida uma segunda tiragem de Reláción Ornamental para a exposição A CASA COMO CONVÉM na Galeria Mariana Moura [PE], espaço que, a partir de janeiro de 2011, abriga a BANCA [projeto móvel e independente concebido pela arquiteta Cristina Gouvêa e por Silvan Kälin, apresentado e comercializando trabalhos múltiplos e impressos de artistas.

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PAULO SILVEIRA

[PUBLICAÇÃO

DE ARTISTA]

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Paulo Silveira é professor adjunto de história da arte no Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, e ex-coordenador de editoração da Editora da UFRGS. Desenvolve o prosseguimento das pesquisas de mestrado e doutorado, com foco na estética, contexto histórico e funções do livro de artista, assunto sobre o qual publicou o livro «A página violada», 2001

(Fumproarte/Prefeitura de Porto Alegre e Editora da UFRGS), atualmente em segunda edição. É membro da ANPAP, Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas, e do CBHA, Comitê Brasileiro de História da Arte. É integrante do grupo de pesquisa

Veículos da Arte, UFRGS/CNPq.

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MichelO termo publicação, em sua origem, não consegue se desvincular do conceito-livro, no sentido de um vetor que publica algo. Aqui, seus desdobramentos de ações ainda ecoam - editar, espalhar, circular, manusear, ler. Neste sentido, este tipo de produção em artes visuais pode, muitas vezes, passar de um estatuto de obra única para um estado de múltiplo, o qual convulsiona certas questões da arte. Assim, sem perder as características congêneres do conceito-livro, o qual lhe dá origem, algumas publicações de artistas, ao mesmo tempo, podem se afastar da formatação padrão de um livro?

PauloA formatação padrão de livro é uma das apresentações possíveis de uma publicação de artista. Existem as revistas, jornais, folhetos e outras conformações, que geralmente associamos aos formatos gráficos de leitura. Entretanto, acho (de fato não tenho certeza) que o termo ‘publicação’ não tem sua origem ligada ao livro. Acredito que esteja ligado à etimologia de ‘público’. E editar tem relação com entregar, pôr fora, apresentar, mostrar. Sempre é bom lembrar que éditos não são livros, mas decisões ou proclamações vindas oficialmente a público, que se fazem saber em voz alta (neste caso, voz impressa). A ideia de publicação me parece associada à ideia de divulgação, efetivada pela entrega ao público de algum tipo de material multiplicado

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por equipamentos gráficos. É objetivamente funcional (e palpável, diferente de difusão, por exemplo). Tornar público é uma ação que vem em oposição ao permanecer privado. Podemos insolentemente atribuir julgamentos como correto ou incorreto, bom ou mau, etc., mas não há arrogância em perceber uma existência mais ativa ou mais passiva de uma obra, no todo ou em seus detalhes. Se um livro de artista é uma peça única, ele carece (por opção conceitual, por impraticabilidade técnica, por impedimento civil, por mediocridade, etc.) da mais importante oportunidade que lhe é oferecida, a reprodutibilidade como qualidade não mais alternativa, mas inerente a sua concepção.

MichelIndo ainda na mesma direção da pergunta anterior, algumas publicações de artistas, concebidas para terem um preço relativamente baixo, circularem por distintos lugares e serem manuseadas ao sabor da leitura, com o passar do tempo, ganham outro estatuto [retornam ao meio em que foram criadas e conseqüentemente perdem as suas características de objetos do mundo]. Aconteceu isto com a publicação twenty-six gasoline station, do artista Ed Ruscha e com tantas outras. A possi-bilidade de o artista manter uma tiragem constante poderia quebrar com essa lógica? [Parece-me que o Cildo Meireles ainda faz tiragens da notas Zero cruZeiro...]

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PauloA lógica da mais-valia e do fetiche é constitutiva de qualquer mercado de trocas. Ela pode, sim, ser aplacada pela impressão por demanda, pela reedição ou outras soluções. Mas sempre haverá um comprador disposto a pagar mais por um rebento da primeira impressão ou mesmo um exemplar de uma edição espúria.

MichelPoderia falar sobre alguns trabalhos, na arte brasileira, que tu considera como sendo emblemáticos da publicação de artista [tiragem e circulação]? PauloHá alguns livros que são muito importantes, como os livros - objetos de Augusto de Campos e Julio Plaza; o manual da ciência popular, de Waltercio Caldas (com reedição inclusive em inglês); a produção histórica e marginal de livretos feitos em fotocopiadoras; e algumas edições atuais (e às vezes luxuosas) de editoras maiores e com público cativo. Temos, também, o material postal de Paulo Bruscky e seu círculo, os periódi-cos criados e mantidos por artistas (muitos sequer passaram dos números iniciais), os registros fonográficos (esses mais raros), os objetos inclassificáveis e a memorabilia em geral (de qualquer natureza ou grau de ‘artisticidade’, do Zero cruZeiro

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aos cartazes de exposição). Esse é um território em que obra plástica, documento, crítica, política e anedota se misturam, e que aguarda uma prospecção intensa, construída com metodo-logia e seriedade. É um campo ainda em aberto, mas com pesquisas de alto gabarito acadêmico surgindo.

MichelE sobre os seus espaços de inscrição [como que estes trabalhos transitam em diferentes meios do social]

PauloOs espaços de inscrição são os de domínio das trocas culturais: você compra ou faz escambo de bens símbolicos. O circuito é segmentado e faz parte de uma união de grupos específicos, com escala de valores diferenciados. Acredito que o trânsito desses impressos e artefatos esteja facilitado pelo colecionismo contemporâneo de produtos e subprodutos indiciais ‘alternativos’, um hábito aceito com grau elevado de aprovação social.

MichelE, de um modo específico, sobre os lugares considerados artísticos nos quais estas produções se inscrevem...

PauloNeste caso prefiro uma distinção entre um local ser específico

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da arte ou ser artístico. Estas produções quase que apenas se inscrevem nos lugares (solenes ou alternativos) da arte e nos “lugares artísticos” (neste último caso as aspas são uma ironia, uma afetação). Entretanto, elementos como o humor, a narra-tividade ‘estilizada’ ou a presença facilitadora de signos culturais urbanos podem favorecer a oferta para grupos de consumidores não necessariamente interessados nas dimensões sublimes da arte ou de seus príncipes (os artistas). O consumidor aqui pode ser uma pessoa física (leiga ou iniciada) ou uma instituição (mesmo exterior ao sistema artístico).

O cenário dito street, por exemplo, consome, devolve ao sistema e consome novamente uma retórica visual com elementos híbri-dos do temperamento adolescente, da comunicação de massa e da arte intermidial, num resultado que se coloca entre uma expressão meramente confusa e recursos já muito estudados pela publicidade gráfica e audiovisual. E nós, consumidores eruditos de bens simbólicos, assistimos pranchas de skate galgando paredes de museus de arte e antropologia. No final das contas, é justo: você me empresta o seu pódio e eu lhe empresto o meu. O lugar alternativo se funde ao espaço do sagrado.

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MARIA IVONE DOS SANTOS

[TRÂNSITO]

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Artista plástica e pesquisadora. Seu trabalho se articula com contextos urbanos e expositivos, desenvolvendo peças gráficas, objetos, fotografia, vídeo, instalacões, ações urbanas e publicações. Doutora em Artes pela Universidade de Paris I Panthéon - Sorbonne. Professora no Departamento de Artes Visuais e no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais do Instituto de Artes da UFRGS. Coordena o Grupo Veiculos da

Arte, juntamente com Hélio Fervenza. Desenvolve a pesquisa As Extensões da Memória: a experiência artística e outros espaços e coordena o Programa de Extensão Formas de pensar a Escultura – FPES / Perdidos no espaço – DAV-IA/UFRGS. Mantém o site www.ufrgs.br/artes/escultura. Organizou em

2004, juntamente com Alexandre Santos, o livro A Fotografia nos processos Artísticos Contemporâneos, editado pela SMC de Porto Alegre e a Editora da UFRGS. Organizou em 2009, juntamente com Joerg Bader (Centro de fotografia de Genebra/HEART de Perpignan, França), as Jornadas Preparatórias do Seminário Internacional Ponto de Vista: Lugares, Práticas e

políticas das publicações em Arte. Ensaios críticos e Publicações de artistas, no Museu da UFRGS em Porto Alegre.

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Michel

Olá Ivone Gostaria de estabelecer uma interlocução contigo, a partir de alguns questionamentos... Atento para o que segue, ressalto que as questões são amplas. E desta forma, podem ser refi-nadas pelas direções que tu escolher. Nosso assunto é sobre publicação e sobre o que está além dele - reflexões, ações, posições e pesquisa em arte.Isto não é uma pergunta.

Vejo uma estreita relação entre os grupos perdidos no espaço e veículos da arte - a caminhada, a circulação, o trajeto que uma proposição artística desenha ao ser lançada em circunstâncias de espaços [públicos e privados]. Enquanto que o perdidos [projeto originário do grupo de extensão - Formas de pensar a escultura da UFRGS] acolhe participantes eventuais e público externo à Universidade, o veículos é um Grupo de Pesquisa formado por professores e pesquisadores, todos vinculados, de alguma forma à instituição.Poderia falar um pouco sobre estas duas experiências coletivas?

Maria IvonePosso falar dos perdidos no espaço que define a condição na qual nos encontrávamos em Porto Alegre em meados de 2002.

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Este nome surgiu como um apelido carinhoso ao Programa de Extensão denominado Formas de pensar a escultura - FPES, coordenado por mim no Departamento de Artes Visuais da UFRGS. Desde o inicio nosso objetivo foi criar um ambiente para praticar e discutir as expansões da arte, partindo de es-paços pré-definidos no âmbito de cada ação e da articulação de diversas posições e pontos de vista dos participantes. Em 2002-2 inscrevemos uma ação de extensão visando explorar o Campus central da Universidade. A partir de uma primeira incursão iniciamos um laboratório para pensar e produzir inter-venções, ações para aquele local. O objetivo inicial era propor algumas ideias na forma de projetos, exercitando um pouco este formato para as ideias e as argumentações.

De natureza efêmera, muitas dessas práticas implicaram a necessidade de observar, mapear, registrar o processo de algum modo, o que gerou uma infinidade de documentos e uma ação reflexiva potente, decorrentes de caminhadas, propostas, imagens e das aproximações sensíveis com aquele local tão estranho. No campus as diferentes unidades e seus prédios, e os equi-pamentos urbanos foram sendo construídos paulatinamente, acolhendo o processo de expansão da própria universidade, sem um real planejamento. Usamos inicialmente a web para guardar o material que vínhamos produzindo. No site começamos a publicar os processos e os resultados destas ações. Em

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2002, Andrei Thomaz, à época nosso aluno na escultura, criou e programou o site que segue sendo muito ativo, tornado-se desde então um lugar de compartilhamento e de trânsito das questões levantadas pelas práticas e ações que propomos. [...]

O programa Fpes - perdidos no espaço agregou pessoas de horizontes diferentes, alunos de graduação das artes, alunos do mestrado, artistas e comunidade externa. Esta mistura foi se mostrando profícua, elevando o nível das propostas e também das reflexões delas decorrentes. Com a realização do Iii FÓrum social mundial para Porto Alegre em janeiro de 2003, decidimos propor a realização de um projeto dentro do módulo temático mídia, cultura e contra-hegemonia, apoiados financeiramente com uma pequena verba destinada pela ADUFRGS e contando com a parceria da PROREXT e do Museu da UFRGS. Realizamos as intervenções no campus e publicamos 1000 exemplares do primeiro jornal dos perdidos, o número zero. O jornal teve ampla distribuição durante o Fórum e também depois. Ali já havia um trabalho de teorização que se iniciava visto que recebemos diversas contribuições. Nós mesmos havíamos nos encarregado de gerar um canal de difusão para nossas propostas e inquietações, criando nosso próprio jornal. [...] Propusemos também no Museu da UFRGS um seminário inscrito como atividade do PPGAV, no qual participaram Geraldo Orthof da UnB - Brasília, Julio Castro do projeto Prêmio Interferências

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Urbanas / Santa Teresa – Rio de Janeiro, o professor José Dallo Frota da Faculdade de Arquitetura da UFRGS, entre outros. Nossa ideia foi olhar para as experiências da arte na sua relação com os lugares e contextos e as experiências coletivas que surgiam. Isto possibilitou uma conexão importante entre aspectos da arte e os temas sociais do Fórum, e surpreendentemente atraiu um público muito significativo, que veio ao Fórum inicialmente mais por seu enfoque social. A sala esteve lotada. O programa deste seminário evidencia nosso interesse por pensar dinâmicas coletivas.

Uma intensa agenda de trabalho animou as atividades do FPES em 2003 e 2004, tais como encontros, o projeto espaço de montagem, os cursos de extensão que resultaram no desenho de outras ações. Os perdidos não pararam de pensar e de produzir o que tornou possível encaminhar outra proposta para o Fórum de 2005 (e desta vez bem mais organizados), que intitulamos eFeitos de borda: subJetividade e espaço público. A proposta envolveu um processo de discussão coletivo am-pliado, oportunizando que os integrantes se colocassem de uma forma mais propositiva e menos dependente de nossa coordenação. Claudia Zanatta e Andrei Thomaz organizaram a Mostra de vídeos. Luciana Mannoli trabalhou de forma muito competente no site, criando interfaces visuais que permitiram a maior internacionalização dos conteúdos e de nossa agenda. A

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programação e as sinopses dos vídeos, workshops e debates que propusemos aparecem no site em três línguas, português, inglês e francês. Silvia Livi traduziu grande parte dos conteúdos do site para o inglês. No Jornal eletrônico reunimos contribuições excelentes e geramos um fórum de discussão muito profícua, sendo o site uma publicação, entendida no seu enfoque amplo. Em maio de 2005, reunimos os participantes das diversas propostas criando a plataforma perdidos no espaço, na qual trazíamos para consulta pública uma vasta documentação bem como tínhamos uma mesa com um representativo acervo de publicações que havíamos reunido ao longo do tempo. [...]

É importante salientar que o programa de extensão Formas de pensar a escultura nasceu também com a vocação de dialogar com outras disciplinas, visto que, como artistas, nos interes-sava compreender, por exemplo, os enfoques do urbanismo, da arquitetura, da geografia e da psicologia social contemporânea, mas também, de qualquer outro saber que pudesse trazer alguma contribuição às situações e questões confrontadas. Roçávamos questões comuns e produzíamos desdobramentos diferenciados. Segue sendo prioritário para os FPES atuar no campo da arte e entender como agimos e que contribuições, por sua vez, nosso modo de inserção poderia trazer para as questões da cidade. Através da arte passamos a produzir um conhecimento pela vivência e prática de um determinado lugar.

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Penso que a dimensão complexa que o programa foi tomando nunca reduziu sua potência criativa. As ações artísticas que foram propostas tiveram como consequência uma crescente problematização das práticas do campo da arte. A atividade crítica é de fato muito mais trabalhosa e segue nos exigindo até hoje um esforço suplementar.

O programa se nutre de uma metodologia recorrente, reunir pessoas em torno de um contexto dado, estabelecer um pólo de discussão que permita as expressões individuais e as coletivas se manifestar e produzirem um pensamento, ação, etc. Sempre houve um espaço privilegiado para a leitura e para discussões de questões da arte. Tivemos que estudar muito, indo atrás de referenciais teóricos para circunstanciar a complexidade do que fazíamos. Desde 2002 observamos detidamente os enfoques referenciais na história da arte, revisitando desde as caminhadas surrealistas até as teorias Situacionistas, os projetos contem-porâneos envolvendo arte e espaço político. Estudamos o que vinha ocorrendo ao longo do século XX, no plano internacional e na realidade brasileira e latino-americana (Oiticica, Barrio, o espaço NO) para citar apenas alguns exemplos. Observamos de que forma os artistas vinham se relacionando com os con-textos urbanos, explorando certa forma de agir e inventando uma política que investia em sistemas da circulação, nos fluxos da cidade e na comunicação (Paulo Bruscky, Cildo Meireles,

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Muntadas, Hans Haacke, Barbara Kruger, Jenny Holzer). Desta forma passamos a definir na universidade um campo disciplinar que atentava as questões advindas da experiência cotidiana e da subjetividade, explorando formas de ocupação do espaço. Passamos a observar mais atentamente as práticas do espaço urbano como conteúdo curricular da escultura, tanto na gradu-ação em Artes Visuais (Disciplina de Laboratório da Linguagem tridimensional) quanto no PPGAV-UFRGS, com a criação da disciplina ações públicas: arte e contexto, ambas por mim ministradas. Passamos a escrever e a publicar mais, sempre atentos a fragilidade de nosso assunto e vendo de que forma a arte se relaciona com os eventos efêmeros, com os lugares e contextos nos quais se insere. Isto tudo tem agregado uma dimensão política às nossas reflexões. […]

Podemos hoje ter uma distância crítica e ver que rumos tomaram as coisas e como tudo isto foi crescendo. Para mim, a questão da autonomia e da heterogeneidade de pontos de vista segue sendo crucial. Eu vejo esta questão como projeto de arte, pois sabemos que os processos de normalização social e de apaziguamento, alguns produzidos pela indústria cultural ou por políticas públicas, por vezes neutralizam iniciativas em sua potência transformadora. Os pontos de vista hegemônicos (e não me cabe julgar) têm vindo na esteira das grandes produções artísticas que aterrisam e se formam em Porto Alegre: abertura

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de centros culturais, criação do museu Iberê e consolidação do projeto político da Bienal do MERCOSUL. Um sistema com um formato mais vertical difere do processo de investigação ao qual nos propomos que é de fato mais horizontal e aberto.

Acredito que a arte é um processo de pensamento original, uma localização do discurso que traz consigo uma posição do sujeito artista. Pois o nosso projeto guarda esta preocupação investigativa e formativa, visto que aposta no afloramento de processos singulares. Produziu-se de fato, ao longo destes anos, uma intensa circulação de ideias. Sonhamos e trabalhamos muito, protagonizando situações importantes para a cidade. Trabalhamos o compartilhamento de energias, com altos e baixos, num formato um pouco distinto do viés produtivista da indústria cultural. Passamos a agir de forma mais organizada para criar num ambiente cultural que vem se tornando mais complexo. Soubemos nos beneficiar dos ares transformadores do FÓrum social mundial de 2003 e de 2005. Os jornais, e como veremos, nosso site surgem como um lugar de acesso público para estes gestos e ideias tão esparsas. A difusão, e isto é muito importante frisar, abriu um caminho para ações mais consequentes que foram sendo praticadas no ensino da arte. Houve uma escuta e uma abertura para problematizações teóricas mais consequentes. Basta ver a produção do grupo de Pesquisa para constatar o quanto tem sido feito e os esforços

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individuais e coletivos. Fazemos muito em meio as demandas do ensino na graduação e na pós-graduação na UFRGS, o que por si só denota nosso ritmo e nosso fôlego. Esbarramos em questões logísticas, na lentidão da própria universidade, mas temos dedicado muito tempo para melhorar nossa estrutura de trabalho, para que o que fazemos não seja uma questão individual, mas sim uma construção institucional de melhores condições para os projetos editorias e outros que queremos empreender. Recentemente apoiei iniciativas editorias de nos-sos ex-alunos. Vi nascer e crescer a revista panorama crítico (2009), a investigação 11 (2010) e tornar-se livro o que começou como um zine, o meio (2010) organizado por Sari e Daniele Marx, entre outros tantos projetos. Isto tudo se encontra num mesmo movimento que busca potencializar iniciativas de artistas valorizando a arte como um saber.

O Grupo de pesquisa veículos da arte nasceu pela reunião de um grupo de mestrandos e doutorandos (Hélio, Paulo, Paula, Solana, Mariana e eu) em 2006. O Hélio me convidou para partilhar a coordenação do grupo com ele em 2007. O Paulo Silveira, doutorando orientado pelo Hélio, organizou o ciranda, uma publicação que reunia artistas convidados a produzirem um capítulo visual. Destaco que o livro foi um projeto pioneiro visto que aliava a prática da publicação no interior de um projeto de tese em HTC, produzindo uma experiência curiosa, visto que o

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Paulo de certa forma testava seu assunto, as narrativas visuais, propondo aos artistas pensar os encadeamentos de imagens formando um capítulo. Ao lado de análises de narrativas visuais canônicas (O livro de Ruscha, por exemplo), havia este projeto que propunha observar distintos processos narrativos, como laboratório. Foi à primeira publicação aprovada pelo conselho editorial da UFRGS que privilegiou um livro exclusivamente feito de conteúdos visuais, tendo sido impresso pela editora da UFRGS, na coleção visualidade do PPGAV.

O grupo se dispõe a por em prática modos de compartilhamento da arte pensando nos processos criativos, mas também na mobilidade e no trânsito destes veículos (livro, jornal, cartaz, DVD ou outro meio de difusão). O trânsito tem sido nosso ponto nevrálgico. Há um movimento que os veículos, como experiência artística, trouxeram para a pesquisa em arte que passa a pensar estas iniciativas geradas por práticas nômades, portáteis, transportáveis. Os veículos enquanto grupo se estrutura a partir do processo do livro ciranda. Um seminário da pesquisa do PPGAV reuniu todos os participantes. Na sequência houve outras iniciativas dos seus membros. Solana Guangiroli propôs à Pinacoteca, por mim coordenada em 2006-2007, uma mostra de livros de artista. A proposta trazida reunia parte da importante coleção de livros de Carlos Romero e de livros da editora instantes gráFicos de Buenos Aires. Estes eventos foram

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sucedidos pela viagem que o Hélio fez a Mar del Plata em 2007, levando na maleta toda uma exposição (intitulada vehículos del arte: conexiones al sur) que ocupou a Villa Victória, antiga casa da Victoria Ocampo, numa ação igualmente agenciada por Solana Guangiroli. Desta exposição participaram os membros do Grupo até então (Hélio, Paula, Mariana, Solana, Mario e Carlos Romero). A Exposição da Villa Victoria apresentava propostas envolvendo diversas linguagens. Eu fui a Mar del Plata em novembro daquele ano para ministrar um workshop na Universidade e discutir a prática da caminhada. Reunimos naquela ocasião um grupo de 12 arquitetos artistas. Este foi um bom laboratório, que infelizmente não resultou em publicações por motivos econômicos e burocráticos, mas do qual guardo agradáveis lembranças.

O Grupo de pesquisa foi se alterando pela saída de alguns membros e entrada de outros. Para mim algumas questões foram se precisando quando comecei a chamar convidados para os Seminários da pesquisa do PPGAV, Mabe Bethônico que publicou os jornais no projeto museumuseu, Joerg Bader que se dedica a organização de publicações de artistas que trabalham com a fotografia. Convidamos também a Leila Danziger para falar sobre suas intervenções em jornais e mais recentemente mostramos a LOJA que reuniu Regina Melim e seus bolsistas em Porto Alegre (2009). Alguns destes contatos frutificaram

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em interlocuções muito ricas, que prosseguem hoje em outras frentes. Nos veículos optamos por um modo de agir autônomo, centrado nos modos de circulação da prática artística, dando especial ênfase às publicações e ações.

Em 2009 eu propus as jornadas pontos de vista, junto com Joerg Bader (Perpignan). Algumas questões gerais se apresentaram então. Que formas e que lugares surgem hoje para a prática artística contemporânea e para a crítica na França e no Brasil? Uma publicação de artista pode encontrar seu lugar político? Como formatar os modos de relação com seu público e com os sistemas artísticos, tendo como ideia original, a circulação da obra? Que bases são necessárias a fim de constituir um exercício crítico, tomando em conta a aproximação de duas culturas e a exploração recíproca de meios de comunicação que dizem respeito às ideias da prática e da crítica em arte? Outras questões foram sendo trazidas à medida que íamos observando o que ocorria quando o artista passava a ser o editor de conteúdos que ele dispunha e agenciava, sem aspirar à aura da “obra de arte”. O objetivo das Jornadas preparatÓrias foi de trabalhar no levantamento de um elenco de temas e de agentes, artistas e pesquisadores teóricos que vem buscando criar condições de constituir visibilidade e problematização a proposições da arte que dão especial atenção a exploração de outras iniciativas e da difusão. Com a publicação a arte se

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abre a outros sistemas. Que olhar crítico se produz com este tipo de prática e como se discutem e se agenciam as questões implícitas ao sistema de artes no Brasil, ao sistema de arte vigente? Como a prática crítica discute, expõe, amplia, enfim, faz existir de fato ações da arte? Deixo claro que compartilho esta dúvida enquanto leitora e público, inquieta em ver como se indexam estas iniciativas na história da arte. Depois dos anos 60, mais especialmente nos 70 já vemos emergir um olhar mais consequente sobre o leque amplo de ações não inicialmente reconhecidas como arte. No plano teórico o livro de Osborne, conceptual art, reposiciona estas ações e dá uma amostragem de experiências conceituais mostrando que este movimento abriu um leque novo de ações para a arte que passa a se inserir em outros sistemas, no político, nos temas sociais e nos sistemas da comunicação. Lippard havia aberto o caminho para pensar na desmaterialização da obra de arte. Nos anos 70 proliferam os escritos de artista o que evidencia uma tomada de posição do artista que tem por impacto tencionar a função crítica e os lugares da crítica. (Oiticica entre outros tantos artistas elencados na publicação organizada pela Glória Ferreira e Cecília Cotrin e em revistas de arte americanas e européias).

As publicações, e especialmente as experiências ligadas às primeiras redes, a arte postal e as publicações, zines, livros, edições de quintal abriram possibilidades de difusão do

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pensamento anti-hegemônico, sendo aquele período no Brasil, lembremos, marcado pelo controle da ditadura política. Cristina Freire pontua estas questões com pertinência, no seu livro poéticas do processo - arte conceitual no museu, e continua o trabalho nos textos e curadorias que vem realizando (Bruscky, Padín) e no livro conceitualismo do sul-sur. As publicações de artistas funcionam como uma rede que permite o intercâmbio de ideias. De Bruscky no Brasil a Ditborn no Chile. De Ana Bella a Ferrari, um intenso intercâmbio de ideias permitiu a arte de transitar por continentes e trafegar emprestando tanto imagens das mídias quanto do mundo. Para Ditborn, por exemplo, agenciar suas “pinturas aeropostales” era a forma encontrada de burlar com a censura imposta pela ditadura no Chile. Ao emprestar as vias de transporte dos correios ele utilizava um modo de circulação fora da arte. Hoje, em tempos de naturalização de todos os gestos, os fatos vistos pela lógica do evento, haveria que reposicionar estes gestos num contexto histórico visto que contribuíram para expandir os lugares da arte. E também penso que os processos midiáticos que vemos no formato evento contribuem para uma política de indistinção, (por não dedicar o tempo a estas reflexões) mastigando o trabalho do público e o anestesiando de alguma forma.

As publicações históricas as quais me referi acima parecem estar longe, mas ao abrir um computador nos deparamos novamente

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com sua lógica, visto que está circulando nas redes, está fora do trânsito hegemônico da informação. Explico esta expressão emprestada dos temas do iii FÓrum social mundial para dizer que as regras do circuito de validação de uma obra, suas qualidades e sobrevivência passa pela natureza do gesto que visa à exaltação do autor, mas tem por consequência produzir invisibilidades (por ofuscamento) sobre outras manifestações. Como é possível ocupar um lugar diante do processo de indistinção ao qual é submetida à prática da arte? O que produz o artista?

Assim, pensando, percebi que por mais que as publicações e suas redes venham sendo assumidas por um mercado editorial ou por sistemas indexadores, há no ato de difusão uma potência subversiva intrínseca e incontrolável dada pela transitorialidade do veículo, pela capacidade de chegar a distintos pontos, e que pela leitura e interpretação que prescinde a um leitor, outro sujeito que cria lugar para o objeto pela leitura. Assim, quando o artista se investe em editor de um mundo que ele deseja dar a ler, ele pode selecionar o mundo em filtro vermelho (Rennó), extrair o texto de um jornal (Danziger) deixando as imagens soltas pela folha, ou apor outros escritos a esse suporte. Ele pode alterar a percepção aplicando filtros sobre as imagens (Waltercio), ou se ocupar de ver o mundo sob uma ótica outra, como nos documentos e devaneios de Bernardes no livro vaga

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em campo de reJeito, ou nas ruminações de escritos volumosos, visíveis blocos duros a digerir de Severo, ou na criação de dicionários para as sensações de Coutinho. Basbaum produz relatos performáticos de seus sistemas relacionais, quando faz transitar seu NBP. Hélio faz uma dupla tomada de posição no seu livro o + é deserto, onde relata e retoma numa prosa rara e necessária, este olhar lúcido do artista. Eu citei apenas um grupo de experiências que me ocorrem dentre inúmeras outras que estão atuando pela difusão.

Quais diálogos estabelecidos entre estes grupos? Quanto às questões relacionadas à ideia de coletivo penso ser muito importante enfatizar que nos perdidos os processos individuais são estimulados da mesma forma que os coletivos. Nos veículos a questão passa por um viés problemático, de afinidades intelec-tuais. Em ambos os casos unimo-nos para agregar forças e dialogar, criando um ambiente, acreditando na potência das iniciativas que cada qual vai empreender como agente de uma transformação, como artista-pesquisador, questão que deveremos avaliar caso a caso.

MichelMuitas vezes, espaços de ações e reflexões se ampliam, na medida em que escapam dos domínios do restrito, daquilo que não é público. Assim, como uma publicação pode ser

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considerada uma forma política de intervenção no mundo?

Maria IvoneMichel, eu teria vontade de esmiuçar tua dúvida. Tua questão me coloca diante de duas frentes amplas. O político e o comum. Do que pode ser visto para além da política entendida como consenso, mas como exercício do espaço público e democrático. Cabe a arte revelar a singularidade da posição de quem fala? Vermeer era político assim como Hans Haacke? Cada qual enunciava seus conteúdos sob certas formas. Considero que as publicações são de fato práticas políticas assim como outras formas. Para os artistas contemporâneos a difusão representa a possibilidade de exercer autonomia conquistada à duras penas. Publicar é uma forma de ser e de estar no mundo que se endereça diretamente a um leitor. Isto não é pouca coisa desde Gutenberg.

Hoje vejo outras questões surgindo numa paisagem marcada pelas infindáveis possibilidades geradas pela técnica de edição. Qualquer um pode ser um editor, inclusive o artista? O que define a potência política de uma publicação? Como medir a potência política de uma publicação? De forma geral toda publicação contribui para a difusão, mas um artista como Oiticica, por exemplo, nos dá um sentido do exercício de autonomia e conhecimento que se pode ter. O artista exerce sua posição

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de fato e temos que sempre levar em conta os contextos de inserção destes gestos. Percebo então uma ligação direta entre a prática enunciativa, teórica ou performativa, e seu veículo, como uma alternativa concreta para o artista ou grupo, de criação de um espaço político, que encontra um veículo de difusão democrático. Olhar portativo, o texto do artista pode produzir ressonâncias na medida em que contagia outros agentes enunciativos a ocuparem suas posições no espaço público. [...]

[Esta entrevista encontra-se disponível na íntegra no site: www.ufrgs.br/artes/escultura]

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Jornal Perdidos no Espaço no III Fórum Social Mundial - 2003[Número 0, janeiro, Porto Alegre, Brasil, 2003]Equipe editorial: Maria Ivone dos Santos, Fernando Falcão, Hélio Fervenza, Glaucis de Morais e Mariana Silva da Silva e Fabiana Wielewicki. Colaboraram: Departamento de difusão Cultural da UFRGS, Elida Tessler, Muriel Caron, Julio Castro, Cristina Ribas, Paulo Reis, Monica Hoff, Andrea da Costa Braga, Stéphane Huchet, Maria Helena Bernades, Fernando Lindote, Cláudia Zanatta, Alexandre Moreira, Raquel Stolf.

Jornal Perdidos no Espaço no V Fórum Social Mundial[Número 1, janeiro, Porto Alegre, Brasil, 2005]Equipe editorial: Maria Ivone dos Santos, Hélio Fervenza, Gláucis de Morais e Mariana Silva da Silva. Colaboraram: Maria Helena Bernardes, Daniele Marx, Monica Narula, Cláudia Zanatta, PORO, GIA, Stéphane Huchet, Cristina Ribas, Daniela Cidade, Gláucis de Morais, Grupo URBOMAQUIA, Muriel Caron, Mari Linnman, Fabiúla Tasca, Hélio Fervenza, POIS, Mabe Bethônico, Raquel Stolf, Elaine Tedesco.

Jornal Perdidos no Espaço no Centro de Porto Alegre[Número 2, maio / junho, Porto Alegre, Brasil, 2006]Equipe editorial: Maria Ivone dos Santos, Hélio Fervenza, Glaucis de Morais e Mariana Silva da Silva. Colaboraram: Melissa Flores, Sandro Bustamante, Larissa Madsen, André Venzon, Rosana Bones, Katlin Jeske, Cecília Fonseca Dutra, Márcia Sousa da Rosa, Lilian Minsky, Ana Becher, Janaina Czolpinski, Marcio Lima, Bitta Marin, Fabrizio Rodrigues, Jaqueline Peixoto, Eduarda Gonçalves, Fernanda Gassen, Michel Zózimo, Pablo Paniagua.

Nota: Todos os textos publicados nos jornais impressos encontram-se também nos jornais eletrônicos do site: www.ufrgs.br/artes/escultura/. Nos jornais eletrônicos se agregam outros colaboradores: (2003) Orlando da Rosa Farya, Mariana Silva da Silva, Patrícia Franca, Arteconnexion (FR), Geraldo Ortoff, Arte Construtora. (2005): Pablo Paniagua, Lilian Minsky, Georg Schöllhammer (Áustria), Janaina Bechler, Maria Ivone dos Santos. (2006) Alfonso Santos.

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AGRADECIMENTOS

A contemplação deste projeto no edital Bolsa de Estímulo à Produção Crítica em Artes Visuais, pela Fundação Nacional de Artes, em 2010, possibilitou seu pleno desenvolvimento. A contribuição de todos os envolvidos, durante os curtos seis meses de realização desta pesquisa, foi fundamental para torná-la possível. Não posso deixar de mencionar os nomes de todos aqueles que, de alguma forma, estão presentes neste livro: Amir Brito, Cristiano Lenhardt, Cristina Freire, Denise Helfenstein, Fabio Morais, Fernanda Gassen, Juliano Lopes, Maria Ivone dos Santos, Maria Lucia Cattani, Marina Polidoro, Pablo Paniagua, Paulo Silveira, Regina Melim e Valserina Bulegon Gassen.

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[Kartika].[Papel Pólen Bold 90g/m²].[Offset].[2.000 exemplares]

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Michel Zózimo da [email protected]

É artista e pesquisador, integrante do Grupo de Pesquisa Veículos da Arte UFRGS/CNPq.

Doutorando em Artes Visuais - PPGAV/UFRGS.Mestre em Artes Visuais - PPGAV/UFRGS.Especialista em Arte e Visualidade - UFSM.

Para Circe, Nãna e Fernanda.

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