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    TRANSFORMAESEXPANSIVAS

    NA PRODUOMATEMTICA ON-LINEDAISE LAGO PEREIRA SOUTO

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    CONSELHO EDITORIAL ACADMICO

    Responsvel pela publicao desta obra

    Dr. Marcos Vieira Teixeira

    Dra. Miriam Godoy Penteado

    Dr. Roger Miarka

    Dra. Rosana Giaretta Sguerra Miskulin

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    DAISE LAGO PEREIRA SOUTO

    TRANSFORMAESEXPANSIVASNA

    PRODUOMATEMTICAON-LINE

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    2014 Editora Unesp

    Cultura AcadmicaPraa da S, 108

    01001-900 So Paulo SPTel.: (0xx11) 3242-7171Fax: (0xx11) 3242-7172www.editoraunesp.com.brwww.livrariaunesp.com.brfeu@editora.unesp.br

    CIP BRASIL. Catalogao na publicaoSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

    S71t

    Souto, Daise Lago PereiraTransformaes expansivas na produo matemtica on-line [recur-

    so eletrnico] / Daise Lago Pereira Souto. 1. ed. So Paulo: Cultura

    Acadmica, 2014.Recurso digital : il.

    Formato: ePubRequisitos do sistema: Adobe Digital EditionsModo de acesso: World Wide WebInclui bibliografiaISBN 978-85-7983-581-0 (recurso eletrnico)

    1. Matemtica. 2. Matemtica estudo e ensino. 3. Livros ele-trnicos. I. Ttulo.

    14-18121 CDD: 510CDU: 51_

    Este livro publicado pelo Programa de Publicaes Digitais da Pr-Reitoria dePs-Graduao da Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho (Unesp)

    Editora afiliada:

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    SUMRIO

    Introduo 7

    1 As bases da teoria da atividade 112 Produo de conhecimento 333 Produo matemtica on-line e sistemas de atividade 514 Transformaes expansivas 615 Uma expanso terico-metodolgica em debate 145

    Referncias bibliogrficas 157Sobre a autora 163

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    INTRODUO

    Neste momento da histria, em que desenvolvemos tecnolo-gias digitais que j se tornaram parte de nossas vidas, como smart-phones, computadores, softwares, internet, tablets, e-reader, entreoutras, vivenciamos mudanas culturais que tm provocado trans-formaes na produo de conhecimento. Diversas perspectivastericas sugerem que o ator humano no o nico, nem o principalresponsvel pelo conhecimento produzido, e que esse processodeve ser visto como o produto de inter-relaes entre pessoas edispositivos tecnolgicos. No entanto, a escola tem dificuldade emacompanhar essa evoluo sociocultural e lidar com os diferentes

    espaos e modos de produo de conhecimento.H um descompasso entre as formas de comunicar e expressar

    ideias adotadas pela escola e aquelas utilizadas pelos alunos. A es-cola, de modo geral, resiste ao uso de tecnologias digitais e conside-ra o papel do professor, em uma viso bem conservadora, central noprocesso de produo de conhecimento. Ela continua arraigada racionalidade que surgiu com a escrita, a qual tem como base a exis-

    tncia de um conhecimento verdadeiro que deve ser transmitido(Bonilla, 2009).

    Sendo assim, a escola muitas vezes tem dificuldade para entrarem harmonia com os alunos, os quais, imersos na metamorfose cul-

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    tural da sociedade, utilizam as diferentes formas de expresso dopensamento e, consequentemente, de produo do conhecimentoque surgem com as tecnologias digitais, em particular com a internet.

    Na escola, os professores reconhecem que o modelo dito tradi-cional de educao j no funciona. No entanto, sentem-se insegu-ros, preocupados, angustiados e muitas vezes tm receio de tomarqualquer iniciativa em busca de mudanas. Isso porque qualqueratitude nessa direo pressupe o enfrentamento de tenses, deriscos. Afinal, mudar requer, no mnimo, uma reconstruo quedemanda ousadia, criatividade, coragem e, mais, exige romper comprticas muitas vezes j enraizadas.

    No que se refere especificamente produo matemtica, apreocupao em compreender as formas como ela ocorre em am-bientes on-lineno recente (e.g. Borba; Penteado, 2001; Gracias,2003; Santos, 2006; Zulatto, 2007; Malheiros 2008; Bairral, 2005,2010; Rosa; Maltempi, 2010). Observa-se um esforo para desmis-tificar as relaes entre atores humanos e no humanos em tal pro-duo. Atualmente, o uso de ambientes on-line na aula presencial considerado praticvel e j se discute a possibilidade de a internetmodificar a sala de aula (Borba, 2009, 2012).

    O nmero de pesquisas que tratam desse tema, apesar de tercrescido nos ltimos anos, ainda tmido. Contudo, seus resulta-dos trazem contribuies importantes e, de forma geral, sugeremque o contexto on-line diferencia-se, em vrios aspectos, da sala de

    aula presencial, entre eles, as formas de expresso do pensamentomatemtico. Em outras palavras, a linguagem matemtica mudade acordo com o espao comunicativo disponvel ou utilizado. Emum chat, por exemplo, ela precisa ser adaptada para a linguagemmaterna, enquanto a interao realizada oralmente que ocorre emvideoconferncias aproxima a linguagem matemtica da comunica-o usual na sala de aula presencial (Santos, 2006; Zulatto, 2007).

    Desse modo, ao considerar que a comunicao um dos aspectosque faz parte do processo de ensinar e aprender, entende-se queessas diferentes formas de comunicar ideias matemticas transfor-mam a produo de conhecimento.

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    No entanto, a velocidade exponencial com que as tecnologiasdigitais imprimem mudanas em nossas vidas nos impe, a cadadia, novos desafios, particularmente em relao busca de novascompreenses sobre as diferentes e incessantes transformaes quepodem ocorrer no processo de produo do conhecimento em vir-tude dos avanos tecnolgicos (Souto; Borba, 2013). Aceitar essedesafio pode ser uma forma de contribuir para que a escola consigacontemplar a complexidade das novas formas de organizar e ex-pressar o pensamento e, com isso, entrar em sintonia com os alunos.Alm do mais, tambm pode fazer o professor sentir-se menos inti-midado em utilizar as tecnologias digitais em suas aulas.

    Neste livro, so discutidas algumas especificidades dos atoresno humanos na produo matemtica, com o olhar direcionadopara as transformaes expansivas, analisando-se como elas podemocorrer em um curso on-line de Educao Matemtica a distnciapara professores. Alm disso, com base nas discusses (tericas eempricas) do estudo realizado, colocada em debate uma pers-pectiva terico-metodolgica que pode contribuir para pesquisasem Educao Matemtica, em particular aquelas desenvolvidas emambientes on-line.

    A opo pelas transformaes expansivas no foi feita ao acaso.Elas so propostas por Engestrm (1987), que tem contribudo, demodo particular, para o desenvolvimento de uma das vertentes dateoria da atividade. E esta teoria um dos referenciais tericos ado-

    tados no estudo que originou este livro. Nele feita uma breve apre-sentao do seu desenvolvimento histrico, com destaque para ascontribuies de trs de seus principais representantes. Aborda-setambm a forma como as transformaes expansivas, em conjuntocom quatro outros princpios (unidade de anlise, multivocalidade,historicidade e contradies internas), possibilitam um olhar amplosobre a produo e as transformaes do conhecimento reveladas

    em transformaes qualitativas, que podem ocorrer durante o cursomencianado, analisado como um sistema de atividade.

    Para realar a participao dos atores no humanos, adotamosno estudo a viso epistemolgica associada ao construto seres-hu-

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    manos-com-mdias. Apresentamos o pensamento de Borba (1999),que se apoia nas ideias de estudiosos da prpria teoria da atividade,da etnomatemtica e da filosofia da tcnica para defender que oraciocnio matemtico de quem interage com determinada mdia reorganizado com base nos retornos dados por ela. Em outras pa-lavras, humanos e mdias formam uma unidade bsica de produode conhecimento.

    Alm disso, foi reservado um espao para o reencontro entre ateoria da atividade e o construto seres-humanos-com-mdias, poisambos tm no pensamento vygotskyano uma origem comum, masse distanciaram medida que se desenvolveram, pois receberamoutras influncias tericas. Analisamos o prprio construto comoum sistema de atividade, ao mesmo tempo que relacionamos o seudesenvolvimento com o processo evolutivo da teoria da atividade aolongo da histria.

    Neste livro, o leitor tambm encontrar uma anlise qualita-tiva de dados empricos que foram produzidos durante o cursoon-line de Educao Matemtica, reflexes tericas sobre como astransformaes expansivas ocorrem e, de modo particular, como osatores no humanos as influenciam.

    Por fim, com base nas ideias que emergiram nas discusses te-ricas e empricas, propomos uma nova camada ao construto seres--humanos-com-mdias. Em vista disso, colocamos em debate umaperspectiva terico-metodolgica que pode trazer um novo hori-

    zonte para a anlise das transformaes do processo de produointelectual de conjecturas e refutaes que objetivam a soluo deproblemas matemticos, em conjunto com ferramentas da internete demais tecnologias a elas associadas.

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    1ASBASESDATEORIADAATIVIDADE

    A teoria da atividade fundamenta-se nos princpios da escolahistrico-cultural da psicologia sovitica, a qual tem como um deseus principais representantes Vygotsky e possui razes filosfi-cas nos trabalhos de Karl Marx e Friedrich Engels. Desenvolvidanas primeiras dcadas do sculo XX, a partir das contribuiesde Vygotsky e de seus colaboradores Leontiev e Luria, essa teoriaconsidera a atividade humana como a unidade bsica do desen-volvimento humano. Tem como eixo central as transformaesque ocorrem nas interaes que se estabelecem entre o ser huma-no e o ambiente no desenvolvimento de atividades mediadas por

    artefatos.1Em sua base, existem dois conceitos fundamentais para a

    compreenso da concepo de atividade humana que alicera essateoria. O primeiro coloca em destaque a natureza da existncia daatividade humana, a qual pressupe um elemento principal: o ob-jeto. Atividade sem objeto desprovida de significado (Leontiev,1978). O segundo indica que, a partir do conceito de mediao, os

    1 Artefatos (instrumentos e signos), no mbito da teoria da atividade, devemser entendidos como meios mediacionais. Referem-se s mquinas, escrita, fala, aos gestos, aos nmeros, aos recursos mnemotcnicos etc.

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    artefatos deixam de constituir somente produtos da ao dos sereshumanos sobre o ambiente e passam a ser entendidos como media-dores culturais por meio dos quais os indivduos agem na estruturasocial, material e psicolgica.

    As inter-relaes que marcam o desenvolvimento da atividadehumana so caracterizadas por trocas mtuas entre seres humanose artefatos, as quais revelam o potencial transformador de umaatividade. Os seres humanos transformam-se e reorganizam-se pormeio da transformao, da reorganizao de atividades, as quais,por sua vez, transformam-se, reorganizam-se por meio do desen-volvimento de novos artefatos.

    Um exemplo clssico encontrado na literatura o da caada.Leontiev (1978) destaca que uma das formas mais elementares paraexplicar como a atividade humana desenvolveu-se historicamente a necessidade de saciar a fome. O autor ilustra uma passagem emque os homens, em busca de sua sobrevivncia (objeto), organizam--se de forma consciente para a atividade orientada, que nesse caso a caada. Ao longo do tempo, essa atividade foi se desenvolvendoe mudando, na medida em que os prprios homens foram aprimo-rando as tcnicas e estratgias que a mediavam. Desse modo, osseres humanos reorganizam-se, transformam-se e desenvolvem-sede acordo com as regras da natureza e o desenvolvimento da suaprpria histria e cultura (Kawasaki, 2008).

    Essa passagem sugere, de forma sutil, que as influncias das in-

    clinaes filosficas dessa teoria so aquelas predominantes na pocaem que Vygotsky desenvolveu seus estudos, cujas razes esto nostrabalhos de Karl Marx e Friedrich Engels. A ideia desses dois fil-sofos era romper com a dicotomia presente nas correntes filosficasalems: objetividade (materialismo) ou subjetividade (idealismo).2

    2 Para Marx, os proponentes do materialismo concebiam a conscincia a emer-

    gir do impacto que os objetos da realidade tinham no sujeito cogniscente,eliminando o poder de agir do indivduo. Em contraposio, o idealismo colo-cava todo o poder na mente/cabea do indivduo: a realidade seria concebidapelo pensamento humano, seria subordinada cognio humana, a conscin-cia existiria antes da matria (Kawasaki, 2008).

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    Para tanto, propuseram uma abordagem alternativa, materialista--dialtica, segundo a qual o pressuposto primeiro de toda a histriahumana a existncia de indivduos que, na luta pela sobrevivncia,organizam-se em torno do trabalho, estabelecendo relaes entre sie com a natureza.

    Apesar de fazer parte da natureza, o ser humano diferencia-sedela, na medida em que capaz de transform-la conscientemente,de acordo com as suas necessidades. Dessa forma, a compreensodo ser humano implica necessariamente a compreenso da sua rela-o com a natureza, j que nessa relao que ele constri e trans-forma a si mesmo e prpria natureza, criando novas condiespara a sua existncia (Rego, 2009).

    Um dos pontos de partida para a construo de argumentos quesustentassem essa abordagem filosfica foram os estudos que visa-vam a comparao entre a atividade animal e a atividade humana.Seguindo essa mesma linha, mas no campo da psicologia, Vygotskydesenvolveu parte de seus estudos e, em conjunto com seus colabo-radores, identificou traos caractersticos que distinguem o com-portamento humano do comportamento animal.

    Assim, com base nos resultados de suas pesquisas e influencia-do pela abordagem filosfica que consolidava a partir dos postula-dos marxistas, Vygotsky argumentava que os seres humanos nodeveriam ser considerados apenas em funo de suas reaes aoambiente exterior. Para ele, a maneira como criam o seu ambiente,

    o que, por sua vez, d origem a novas formas de conscincia, tam-bm deve ser observada (Rego, 2009).

    De acordo com a perspectiva materialista-dialtica, sujeito eobjeto de conhecimento relacionam-se de modo recproco e cons-tituem-se pelo processo histrico-cultural. Nessa relao, que dialtica, o sujeito ativo, pois a produo do conhecimento en-volve sempre um atuar do ser humano. A partir desse princpio,

    Vygotsky afirma que nas interaes entre o ser humano e a natu-reza que as funes psquicas surgem e se desenvolvem.

    No entanto, as aproximaes entre os estudos de Marx, En-gels e Vygotsky vo muito alm dessas primeiras consideraes.

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    O conceito de mediao, por exemplo, um dos pilares das tesesvygotskyanas, tambm mostra uma forte ligao entre as ideias

    desses estudiosos. Isso porque ele estendeu a noo de mediaohomemmundo pelo trabalho, por meio do emprego de instru-mentos, ao uso de signos. Contudo, no se pretende esgotar aquitodas as relaes entre o pensamento de Vygotsky e as ideias domaterialismo dialtico. O intuito foi apontar, de modo sucinto,algumas ligaes entre a base filosfica e a psicologia que funda-mentam a teoria da atividade. Na prxima seo, em que se aborda

    o desenvolvimento histrico dessa teoria, algumas dessas relaessero retomadas com maior detalhamento.

    O desenvolvimento histrico da teoria daatividade

    Abordar o desenvolvimento histrico de algo pressupe queo ponto de partida seja o seu princpio. Mas, no caso da teoria daatividade, a sua origem obscurecida principalmente devido sdificuldades de traduo (Daniels, 2011). Na literatura, tem sidoapresentada com diferentes variaes ou abordagens, de acordocom a perspectiva do estudioso que a apresenta. Engestrm (1987),por exemplo, explica a genealogia das suas prprias ideias e, para

    isso, descreve o desenvolvimento dessa teoria em trs geraes.Piccolo (2012) contra-argumenta, afirmando que essa diviso emtrs geraes controvertida, sobretudo em funo da posio quedeve ser ocupada por Leontiev em tal trade geracional (se na pri-meira ou na segunda). Kaptelinin (2005) destaca duas variaes quetm como foco a distino, no processo de anlise, entre a naturezaindividual e a natureza coletiva de uma atividade. Por outro lado,

    Daniels (2003, 2011) trata essa teoria no mbito das ideias queperpassam seu desenvolvimento. No h, no entanto, nos trabalhosdesse ltimo autor, preocupao com o rigor, em termos de umaapresentao linear de tempo.

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    Parece muito tnue a linha que esses e outros autores usam paraseparar as fases do desenvolvimento dessa teoria e, em certa medi-da, elas se complementam. Por isso, neste livro, nos limitaremos aapresentar a sua evoluo, procurando estabelecer uma linearidadede tempo a partir das contribuies de alguns de seus principaisrepresentantes, com destaque para Engestrm, pois foram as suasideias, em particular, que fundamentaram as anlises do estudo queoriginou este livro.

    As contribuies de Lev Semenovich VygotskyIniciamos com o desenvolvimento da teoria da atividade a partir

    do pensamento vygostkyano de mediao, por parecer uma gneseconsensual entre alguns estudiosos (Daniels, 2003, 2011; Rego,2009; Engestrm, 1987; Leontiev, 1978, 1981). Como foi comenta-do, Vygotsky elaborou esse conceito por meio da extenso da noode mediao da abordagem materialista-dialtica de Marx. Suainteno era superar duas tendncias psicolgicas a behavioristae a da psicanlise (ou psicoanlise) que predominavam na poca eeram radicalmente antagnicas. Segundo Vygotsky, nenhuma delaspossibilitava a fundamentao de uma teoria consistente sobre osprocessos psicolgicos tipicamente humanos.

    Engestrm (1987) explica, de forma didtica e simplificada,as ideias opostas dessas tendncias em relao s anlises sobre a

    mente, o comportamento humano e o mundo material. Para a ten-dncia behaviorista, o sujeito responderia de forma objetiva a umdado estmulo externo e o comportamento humano seria, portanto,controlado de fora para dentro. Para a psicanlise, o movimentoocorre de modo contrrio, de dentro para fora, ou seja, a respostaseria subjetiva e determinada pela conscincia.

    A crtica de Vygotsky, em ambos os casos, referia-se aceitao

    de uma resposta imediata para cada estmulo externo. Essa expli-cao elucida a observao de Leontiev (1978) a respeito de algocomum entre essas tendncias: o ponto de vista metodolgico. Eleafirmava que ambas eram derivadas de um plano binomial de

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    anlise: assunto resposta, resultante fenmenos (subjetivae objetiva). No behaviorismo, em conformidade com o estudo docomportamento, esse plano apareceu em sua primeira expressodireta no clssico esquema mostrado na Figura 1.

    Figura 1 Esquema do postulado da resposta imediata (immediacy postulate),tambm chamado de postulado da objetividade (Uznadze, 1966, apud Leontiev,1981, p.42)

    Indo ao encontro dos ideais marxistas, fundamentados no poder

    de agir do sujeito e que destacavam a importncia da dinamicidadenas relaes entre o comportamento humano e o mundo, Vygotskyargumentava que, independentemente do tipo de resposta, o proces-so da relao SR esttico. Com essa viso crtica, ele argumen-tava que a relao do ser humano com o mundo no direta, e simmediada. Tal relao representada na forma triangular (Figura 2),com a incluso de um terceiro elemento (X), um elo entre os outrosdois elementos (SR), o qual representa uma expanso da relaoproposta pelo esquema do postulado da resposta imediata (Figura 1).

    Figura 2 Ato complexo

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    A criao e o uso de signos auxiliares, representados pelo ele-mento X na Figura 2, para solucionar um problema psicolgico(lembrar, comparar coisas, relatar, escolher etc.) so, em certa me-dida, anlogos criao e ao emprego de instrumentos da aborda-gem materialista-dialtica no campo psicolgico (Vygotsky, 1984).O signo age como um instrumento da atividade psicolgica, demaneira semelhante ao papel de um instrumento de trabalho. Esteltimo responsvel por mediar atividades com fluxo externo.No entanto, na mediao dos signos, o ser humano pode controlarvoluntariamente sua capacidade psicolgica (atividade interna) eampliar sua capacidade de ateno, memria e acmulo de infor-maes, como amarrar um barbante no dedo para no esquecer umencontro, escrever um dirio para no esquecer detalhes etc.

    Essa explicao de Vygotsky esclarecedora no sentido de secompreender por que, na representao triangular da Figura 3,que posteriormente ficou conhecida atravs da teoria da atividade,instrumentos e signos aparecem juntos, como artefatos mediadoresa representar o elo entre sujeito e objeto.

    Figura 3 Mediao entre sujeito e objeto pelos artefatos (Baseado em: Enges-trm; Miettinen, 1999)

    Leontiev (1978) explica que, na representao da Figura 1, estexcludo o processo em que so feitas conexes reais do sujeito com

    o mundo dos objetos. Essa lacuna superada na forma representadapela Figura 3, em que os artefatos mediadores so os instrumentose os signos. Entretanto, preciso ressaltar que h distines entreesses elos. Segundo Vygotsky, embora a funo desses artefatos seja

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    mediar a atividade, nenhum deles deve ser considerado isomrfi-co em relao s funes que realiza. Os instrumentos medeiam(atividades com fluxo externo) a influncia humana sobre o obje-to da atividade, enquanto os signos medeiam a atividade interna,dirigindo-a para o controle do prprio indivduo. Desse modo,atividades mediadas por signos influenciam a mente, a memria e opensamento (Vygotsky, 2000).

    Souto e Arajo enfatizam a importncia das contribuies deVygotsky:

    O trabalho de Vygotsky, que relaciona dialeticamente a ati-

    vidade interna psquica do indivduo com sua atividade externa,

    significou um grande avano para a compreenso de como o sujeito

    transforma a realidade e a si mesmo por meio da produo e apro-

    priao de artefatos culturais. (Souto; Arajo, 2013, p.74)

    a partir desse trabalho, de seu mestre, que Leontiev (1978)formulou as suas prprias ideias e deu continuidade ao desenvolvi-mento da teoria da atividade.

    As contribuies de Alexei Nikolaevich Leontiev

    Existe na literatura uma srie de argumentos que procuram, apartir de diferentes perspectivas, explicar a continuidade que Le-

    ontiev deu ao trabalho de Vygotsky.Para Engestrm (2001), Vygotsky continuava focando as anli-

    ses no indivduo, e Leontiev expandiu as discusses para o papel decoletivos humanos em atividade.

    Kaptelinin (2005), por outro lado, afirma que a distino entreo individual e o coletivo no parece to cristalizada nos trabalhosde Leontiev; segundo o autor, o vis das anlises de Leontiev pa-

    recia ter uma acentuada, seno nica, inclinao para o individual,mesmo que ele tenha reconhecido a atividade como coletiva.

    Para Daniels (2011), o aspecto a destacar diz respeito formacomo a proposta de Leontiev deve ser considerada: um esforo

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    para colocar a mediao em seu contexto cultural, ampliando a pre-sena real da cultura na vida humana. O autor (2003) ressalta queVygotsky no se baseava em uma explanao das estruturas sociaisque agem, elas mesmas, para organizar e restringir a prpria ativi-dade, e que o trabalho de Leontiev traz contribuies nesse sentido.

    Do ponto de vista de Ratner (2002), Vygotsky enfatizava a gne-se da mediao da mente por meio de ferramentas culturais (semio-ses), enquanto Leontiev fazia-o atravs das relaes sociais e dasregras de conduta, governadas por instituies culturais, polticase econmicas (aproximando-se do que Marx chamava de atividadehumana sensria). Essa nfase foi mais tarde elaborada e apresenta-da de forma sistmica por Engestrm (1987), em colaborao comoutros tericos (Cole; Engestrm, 1993; Thorne, 2005).

    As posies desses autores no se mostram mutuamente exclu-dentes. Mesmo as ideias de Kaptelinin (2005), que, a princpio,parecem destoar das demais, tm em comum com os outros autorespelo menos um ponto: Leontiev um dos principais representantesda teoria da atividade e trouxe contribuies importantes para o seudesenvolvimento. O seu trabalho envolveu a elaborao das noesde objeto e meta, colocando a centralidade do objeto na motiva-o. Nessa perspectiva, nem todo processo que o indivduo realiza considerado uma atividade. Esta s se configura nos processosrealizados em resposta a uma necessidade, ou seja, o que caracterizaou distingue uma atividade de outra o seu objeto.

    A primeira condio de toda atividade uma necessidade.

    Todavia, em si, a necessidade no pode determinar a orientao

    concreta de uma atividade, pois apenas no objeto da atividade que

    ela encontra sua determinao: deve, por assim dizer, encontrar-se

    nele. Uma vez que a necessidade encontra a sua determinao no

    objeto (se objetiva nele), o dito objeto torna-se motivo da ativi-

    dade, aquilo que o estimula. (Leontiev, 1978, p.107-8)

    Para Leontiev (1978), o motivo da atividade impulsiona-a edireciona-a para a satisfao de determinada necessidade. Para

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    ilustrar o seu pensamento, retomemos o exemplo apresentado an-teriormente: na organizao da atividade de caada, a cada membroso atribudas, individualmente ou em grupo, diversas aes quevisam atender metas distintas. Alguns devem afugentar as presasem direo a outros que devem aguardar o momento oportunopara abat-las. Essas aes tm metas imediatas e, a depender daforma como so analisadas, parecem no coincidir com o real mo-tivo da atividade, que est alm da caada. Juntas, essas pessoastm em vista obter alimento e vestimentas a sua sobrevivncia o verdadeiro motivo da atividade, portanto, o objeto. Assim, paracompreender por que aes separadas, como espantar uma presa,so significativas, preciso entender o motivo por trs delas.

    Leontiev (1978) elaborou uma estrutura hierrquica para expli-car a atividade (Figura 4).

    Figura 4 Estrutura hierrquica da atividade (Baseado em: Leontiev, 1978)

    Na representao da Figura 4, cada nvel da atividade ativi-dade, ao e operao associa-se a outros conceitos importantes:

    atividade ligada a um motivo, aes ligadas a objetivos, operaesligadas a condies de realizao das aes. Com essas ideias, Le-ontiev (1978) organizou e modelou a atividade nesses trs nveisdistintos, mas interdependentes.

    As aes so processos subordinados a metas individuais ob-jetivos parciais , que em sua totalidade compem, de forma noaditiva, o objeto da atividade, e so realizadas por diferentes indiv-

    duos do grupo que conduz a atividade.Diferentemente da atividade, que coletiva, a ao individual

    e pode ser executada por um nico indivduo, ou por um grupo deindivduos que realizam a mesma ao, compartilham o mesmo ob-

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    jetivo. No exemplo anterior, possvel identificar no mnimo duasaes: a de espantar a presa e a de abat-la. Cada uma visa atingiruma meta objetivo especfico e feita por grupos distintos, masa realizao da atividade depende de ambas.

    Quaisquer que sejam as aes, elas dependem das condiesmateriais e dos mtodos para realiz-las, ou seja, dos procedimen-tos que o indivduo emprega para alcanar o objetivo delas. A dis-tino entre ao e operao fundamental, uma vez que uma nicaao pode ser realizada em condies materiais e com o uso de m-todos diferentes, por meio de operaes distintas. Retomando a

    ao que visa o abate, no exemplo da caada, possvel pensar queas ferramentas utilizadas operacionalizam a ao, permitindo aogrupo atingir seu objetivo: o abate.

    Existe um carter relacional entre as definies de atividade,ao e operao. Leontiev ilustra, com o exemplo de aprender adirigir, o movimento de passagem entre esses nveis da atividade:

    No incio, toda operao, como mudar as marchas, formadacomo uma ao subordinada especificamente a essa meta e temsua prpria base de orientao consciente. Em seguida, a ao includa em outra ao [...], por exemplo, mudar a velocidade docarro. Mudar as marchas torna-se um dos mtodos para atingir ameta, a operao que efetua a variao na velocidade, e mudar asmarchas cessa agora de ser realizada como um processo orientado

    para uma meta: sua meta no isolada. Para a conscincia do moto-rista, mudar as marchas em circunstncias normais como se noexistisse. Ele faz algo mais: ele tira o carro de um lugar, sobe ladeirasngremes, dirige o carro em alta velocidade, para em determinadolugar etc. Na verdade, essa operao [de mudar marchas] pode, comose sabe, ser totalmente retirada da atividade do motorista e executadaautomaticamente. Em geral, o destino da operao torna-se, maiscedo ou mais tarde, a funo da mquina. (Leontiev, 1978, p.66)

    O propsito do autor mostrar que a mudana de marcha, paraum motorista experiente, constitui um aspecto operacional da suaao, uma vez que esse comportamento j est automatizado e absor-

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    vido por ele. No entanto, para quem ainda est aprendendo a dirigir,mudar de marcha no algo automtico ou j incorporado. Nestecaso, a mudana de marcha no se trata de uma operao, mas pode servista como uma ao que parte de uma atividade de aprendizagem.

    Com a frase uma vez ao, nem sempre ao Kawasaki (2008,p.107) destacou esse carter relacional entre os nveis da atividade.

    Em sntese, de acordo com o pensamento de Leontiev, a ativi-dade humana consciente e intencional, tem a mediao culturalcomo principal caracterstica e leva a um processo de transforma-es recprocas entre sujeito e objeto. Seus exemplos e argumentosapontam a necessidade de uma ampliao, em relao unidade deanlise de Vygotsky, focada no individual, para um plano coletivo.Entretanto, ele no elaborou um modelo para esse novo foco queexpandisse aquele modelo representado na Figura 3; quem o fez foiEngestrm (1987).

    As contribuies de Yrj EngestrmA partir das ideias de Leontiev, Engestrm (1987) prope uma

    estrutura sistmica (Figura 5) que representa uma ampliao da es-trutura inicial (Figura 3), na qual esto inseridos, de modo formal,elementos que fazem parte de atividade humana e que at entono estavam representados: comunidade, regras de estruturao eformas de distribuio continuamente negociada de tarefas (diviso

    do trabalho).

    Figura 5 Representao do sistema de atividade humana

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    Nessa representao, a relao entre sujeitos e objeto mediada,

    tambm, pela comunidade, ou seja, no apenas os artefatos medeiam

    essa relao. A mediao entre sujeito e objeto, pela comunidade, representada pelo tringulo que une esses trs elementos. A relao

    entre sujeito e comunidade, por sua vez, mediada pelas regras e

    representada [...] pelo respectivo tringulo. Finalmente, a relao

    entre comunidade e objeto mediada pela diviso do trabalho. O

    tringulo que tem por vrtices a comunidade, a diviso do trabalho

    e o objeto representa essa mediao. Como resultado da atividade,

    o objeto, entendido como a matria-prima ou o espao-pro-blema para o qual a atividade direcionada (Engestrm; San-

    nino, 2010, p.6), transformado no produto da atividade. (Souto;

    Arajo, 2013, p.76)

    A exemplo de Daniels (2011), na Figura 5 fizemos uma mudan-a no sistema originalmente representado por Engestrm (1987),

    destacando o objeto com a ajuda de uma oval. O propsito foienfatizar a complexidade desse elemento: o objeto de atividade um alvo mvel (Engestrm, 1999d), e as aes orientadas porele so caracterizadas por ambiguidades, surpresa, instabilidade epotencial para mudana (Daniels, 2011, p.170).

    Na citao anterior, expressamos (Souto e Arajo, 2013), demodo sinttico, mas esclarecedor, o que foi destacado nas ideias

    de Daniels (2003; 2011), Ratner (2002), Cole e Engestrm (1993)e Thorne (2005), apresentadas anteriormente, e que dizem respei-to s compreenses de Vygotsky e Leontiev sobre o conceito demediao. Mencionamos o esforo do ltimo terico em estendertal conceito ao contexto cultural. O seu trabalho profcuo e o seuesforo foram cristalizados na representao sistmica (Figura 5)elaborada por Engestrm (1987).

    Os seis elementos que compem um sistema de atividade (Figu-ra 5) se inter-relacionam e formam uma macroestrutura com moti-vos, objetivos e condies de operacionalizao. A atividade pode

    envolver uma srie de aes que visam determinados resultados,

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    direcionando a prpria atividade e as aes dos indivduos. Estas,por sua vez, podem ser concretizadas de diversas maneiras ou com

    o uso de diferentes mtodos, pelas operaes que esto disponveispara realiz-las, de acordo com o objetivo pretendido.Assim, a atividade tomada como um processo contnuo de

    mudana e movimento decorrentes de crises e rupturas, os quais,inter-relacionados em uma formao criativa, composta de ml-tiplos elementos, vozes e concepes, provocam transformaes einovaes que so entendidas do ponto de vista histrico.

    A proposta de Engestrm estruturou-se a partir dos estudos deLeontiev. Contudo, h uma diferena fundamental entre as pers-pectivas desses tericos, no apenas em relao forma triangularde representao de uma atividade (ou sistema de atividade), masprincipalmente no que tange concepo de objeto de cada um.Para Leontiev o objeto da atividade nico e corresponde ao seuverdadeiro motivo, enquanto para Engestrm a atividade coletiva

    e o objeto, em geral, compartilhado por todos os sujeitos e refere--se matria-prima ou espao-problema para o qual a atividade dirigida. Esse elemento moldado e transformado em resultado,e no se devem descartar as necessidades humanas em sua consti-tuio. Alm disso, essa nova tica permite a anlise de atividadespolimotivacionais (que possuem mais de um motivo).

    Engestrm (1999c) prope como um desafio necessrio ex-

    tenso das anlises o desenvolvimento de ferramentas conceituaispara se compreender os dilogos, as mltiplas perspectivas e astransformaes para alm do sistema de atividade singular e seguirem direo ao exame de redes de atividade. O autor (2001) apontacinco princpios que explicam a teoria da atividade em seu formatoatual, os quais permitiram atender aos propsitos da pesquisa queoriginou este livro, que buscou compreender as transformaes que

    enfatizam aspectos da produo matemtica, realizada de forma co-letiva e colaborativa, em um curso on-line de Educao Matemtica.

    O primeiro princpio proposto por Engestrm indica que umsistema de atividade coletivo, mediado por artefatos e orientado

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    para o objeto, e deve ser tomado como a unidade mnima de anlise.Os sistemas de atividade se realizam ao gerar aes e operaes. As

    aes esto relacionadas a um objetivo, e tambm s operaes, asquais, por sua vez, esto ligadas s condies materiais e aos mto-dos disponveis. Ambas so unidades de anlise relativamente in-terdependentes, mas subordinadas, e so compreendidas de modoadequado quando interpretadas contra o pano de fundo do sistema.

    Um sistema de atividade integra sujeitos, objeto, artefatos, re-gras, comunidade e diviso de trabalho em um todo unificado, que

    costuma ser ilustrado pela forma triangular da Figura 5. Essa repre-sentao utilizada como ferramenta para explicar as relaes entreos prprios elementos que constituem o sistema.

    O segundo princpio consiste na multivocalidade do sistemade atividade. Engestrm argumenta que uma atividade, por sercoletiva, sempre heterognea e apresenta mltiplas vozes. Eleexplica que os indivduos que compem o sistema carregam con-

    sigo diferentes valores, histrias, convenes, posicionamentos,enfim, diferentes vivncias que so compartilhadas. A diviso dotrabalho, por exemplo, gera diferentes posies, que revelam os in-teresses pessoais de cada um. Assim, as mltiplas vozes que emer-gem podem ser fonte de problemas, mas ao mesmo tempo podemrevelar-se potenciais para a inovao.

    Pode-se dizer que o curso Tendncias em Educao Matemtica3

    acontece no encontro de mltiplas vozes que podem ser representa-das, no mnimo, por dois grupos: o dos professores organizadores,os quais idealizaram a proposta do curso, ambos docentes do ensinosuperior, e o dos professores participantes, constitudo por docen-tes de diversos nveis de ensino, oriundos das mais diversas regiesdo pas e do exterior (Espanha, Japo, Argentina, Venezuela).

    3 O curso serviu de palco para a produo de dados empricos que sero anali-sados no Captulo 4. Trata-se de uma ao extensionista que visa a formaocontinuada de professores em ambientes on-line e que vem sendo ofertadodesde o ano 2000, sob a coordenao do prof. dr. Marcelo de Carvalho Borba.

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    O eco dessas mltiplas vozes mltiplos pontos de vistas, tra-dies e interesses carrega consigo potencial para gerar distrbios

    ou conflitos, mas, por outro ngulo, deve ser visto tambm comomola propulsora para inovar o sistema de atividade.O terceiro princpio o da historicidade, que tem razes na

    noo de desenvolvimento humano discutido pela lgica do ma-terialismo dialtico: o ser humano desenvolve-se, em atividade,sujeito ao jogo dialtico entre a sua natureza biolgica e histrica(Kawasaki, 2008). Qualquer que seja o sistema de atividade, ele

    deve ser visto luz da sua histria, pois construdo e transfor-mado de forma irregular ao longo do tempo. Desse modo, os seusproblemas e potenciais s podem ser compreendidos em toda a suacomplexidade se a sua prpria histria pode ser estudada. A hist-ria precisa ser considerada em termos da histria local do sistemae seu objeto, mas tambm como a histria das ideias e ferramentastericas que moldaram a atividade (Daniels, 2003, 2011).

    Assim, a produo matemtica dos professores e o processo detransformao que ocorre ao longo do curso Tendncias em Educa-o Matemtica devem ser analisados com base na histria de suaorganizao local e na histria global dos conceitos e procedimentosempregados e acumulados na atividade local.

    Para elaborar o quarto princpio, que remete ao papel das con-tradies internas como fonte de mudana e de desenvolvimento,

    Engestrm valeu-se das ideias de Ileynkov (1977). As contradiesno equivalem a problemas ou conflitos, mas so tenses estru-turais historicamente acumuladas nos sistemas de atividade. Elaspodem servir de fonte que renova tentativas de mudar a atividade,ou de energia para conflitos que seriam discordncias, choques deopinies ou no aceitao do outro.

    Consideradas tenses ou desequilbrios inerentes a toda e qual-

    quer atividade, as contradies podem, portanto, gerar mudanas etransformaes. Elas podem surgir pelo menos de quatro formas:no interior do sistema, entre seus prprios elementos; entre os ele-mentos do sistema de atividade e algo novo; entre as possveis aes

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    que formam o objeto coletivo, principalmente entre algo que pro-posto e algo que padro dominante; entre o sistema de atividade eoutros a eles interligados.

    As contradies internas (tenses) so consideradas molas pro-pulsoras potenciais, as quais fazem que novos estgios qualitativose formas de atividades possam emergir como solues. Em outraspalavras, podem possibilitar que as transformaes expansivas dosistema de atividade venham a emergir. Desse modo, compreendercomo ocorrem as transformaes expansivas em um curso a distn-cia on-line para professores de Matemtica pressupe a anlise desuas contradies internas.

    Por fim, o quinto princpio refere-se possibilidade de transfor-maes expansivas em sistemas de atividade. Engestrm define-oenfatizando um carter muito mais relacional do que determinsticopara a sua compreenso.

    Os sistemas de atividade atravessam ciclos relativamente lon-

    gos de transformaes qualitativas. medida que as contradies

    de um sistema de atividade so agravadas, alguns participantes

    individuais comeam a questionar e se afastar de suas normas esta-

    belecidas. Em alguns casos, isso ascende viso colaborativa e a

    um deliberado esforo coletivo de mudana. Uma transformao

    expansiva realizada quando o objeto e o motivo da atividade so

    reconceitualizados para abarcar um horizonte radicalmente mais

    amplo de possibilidades do que no modo anterior da atividade.(Engestrm, 1999d, p.4-5)

    O autor explica que as transformaes expansivas so movimen-tos contnuos de construo e resoluo de tenses em um sistemaque envolve objeto, artefatos e os motivos dos participantes envol-vidos. Segundo ele, tambm podem ser entendidas como movimen-

    tos de reorquestrao da multivocalidade do sistema de atividade.Com o intuito de facilitar a compreenso acerca do desenvol-

    vimento histrico, do surgimento de contradies internas e dasocorrncias de transformaes expansivas na unidade de anlise,

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    do com o autor, no suficiente para incorporar os processos decriao de artefatos e a produo de novos padres sociais. Para ele,transformao no se reduz a aquisio, assimilao e internaliza-o da cultura, mas inclui fundamentalmente a criao do novo.

    Engestrm (1987), ento, define zona de desenvolvimento pro-ximal como a distncia entre as aes cotidianas dos indivduos eas formas historicamente novas da atividade social que podem sercoletivamente geradas (p.174). Ao ressignific-la, inclui a ideiade transformaes expansivas, com nfase nos processos de trans-formao social e na natureza conflituosa da prtica social. Paraele, a internalizao est ligada reproduo da cultura, e a exter-nalizao, criao de artefatos que possam ser usados para trans-formar a cultura. Ambos os processos esto intimamente ligadospor relaes no lineares de continuidade e mudana, reproduoe transformao, que devem ser analisadas em conjunto, luz dahistoricidade.

    Com essa compreenso, Engestrm (1999b) explica que umciclo de aprendizagem expansiva (Figura 6) em geral comea com asocializao e a formao dos aprendizes para se tornarem membrosda atividade, que acontece por meio de questionamentos, crticasou negaes prtica corrente.

    Nesse incio, h a predominncia do processo de internalizao.A externalizao ocorre de forma discreta nas inovaes indivi-duais, com a realizao da anlise da situao e a proposta de pos-

    sveis solues. Com o avano do ciclo, o desenho e a execuo deuma nova representao para a atividade a externalizao come-am a dominar, ou seja, construdo um novo modelo ou uma novaideia que explique e oferea uma soluo para a situao-problema.Parte-se ento para a experimentao desse modelo ou dessa ideia,com o intuito de verificar suas potencialidades e limitaes. Nesseestgio, as rupturas e contradies da atividade tornam-se mais

    exigentes, levando a internalizao a assumir cada vez mais a autor-reflexo crtica, e a externalizao, a ampliar a busca por solues.Encontrado o melhor modelo, soluo ou ideia, hora de imple-ment-lo por meio de aplicao prtica.

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    Nessa fase, em que uma nova representao para a atividade implementada, a externalizao atinge o seu pico. Segue-se entoa reflexo avaliativa sobre a nova representao, a partir da qual anova prtica se consolida, ou seja, quando essa nova representaose estabiliza, a internalizao das suas formas e dos meios ineren-tes de aprendizagem e desenvolvimento torna-se mais uma vezdominante.

    Se o pesquisador observar que um ciclo no est avanando, po-der intervir no sentido de provocar ou promover movimentos quegerem tenses ou impulsionem a resoluo daquelas j existentes.Com isso, ele pode favorecer o desenvolvimento de transformaesexpansivas.

    Figura 6 Diagrama representativo de um ciclo de aprendizagem expansiva(Baseado em: Engestrm, 1999c)

    Cada uma das etapas representadas na Figura 6 pode ser enten-dida, de modo resumido, da seguinte forma: 1. Questionamento ato de questionar, criticar ou rejeitar aspectos da prtica corrente;

    2. Anlise da situao envolve o olhar para a situao criticada,questionada, a fim de compreender seus diferentes aspectos; 3.Modelagem da nova situao corresponde construo de mo-delos que possam explicar e oferecer uma soluo para a situao;

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    4. Escolha do melhor modelo refere-se explorao das possibi-lidades e limitaes dos modelos para encontrar aquele que pareao mais adequado para a situao; 5. Implementao do modeloescolhido o momento de concretizar a aplicao do modelo naprtica; 6. Avaliao do modelo implementado corresponde aoprocesso de reflexo e anlise das implicaes da implementao domodelo; 7. Consolidao da prtica momento em que possvelobservar o estabelecimento de fato da nova prtica.

    Um ciclo como aquele representado na Figura 6 pode dar a ideiade movimentos repetitivos e sequenciais. Contudo, um ciclo deaprendizagem expansiva, como proposto por Engestrm, deve serentendido como um movimento espiral que se desenvolve marcadopor relaes no lineares. De acordo com o autor (1999b), ele podedurar meses ou anos e seu desenvolvimento completo nem sempreocorre. Alm disso, ciclos que se desenvolvem em perodos maiscurtos de tempo tambm podem ser considerados potencialmenteexpansivos.

    A ideia de ciclos menores de tempo, em conjunto com os pres-supostos do construto seres-humanos-com-mdias, foi utilizada naanlise da produo matemtica dos professores que realizaram ocurso mencionado, no momento em que, organizados em pequenosgrupos, realizaram o estudo das cnicas.

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    2PRODUODECONHECIMENTO

    Os estudos de Tikhomirov (1981) e de Lvy (1993) constituemas bases tericas do construto seres-humanos-com-mdias. Borba(1999) discute, aproxima, amplia e reorganiza as ideias desses dois

    autores no mbito da Educao Matemtica e coloca em pauta apreocupao em compreender como acontece a produo de conhe-cimento, destacando o papel das mdias informticas no processo.

    O trabalho do psiclogo russo Oleg Tikhomirov (1981) pu-blicado originalmente em russo em meados de 1970 baseia-se nateoria da atividade e versa sobre computadores e cognio. O autorconsidera uma mdia como a informtica como reorganizadora do

    pensamento, no lugar de substitu-lo ou suplement-lo. Para ele,o pensamento mais do que a capacidade para resolver um dadoproblema, porque abrange o caminho utilizado para alcanar a re-soluo, os valores nela envolvidos e a prpria escolha do problemacomo parte do pensamento.

    O francs Pierre Lvy (1993), filsofo da tcnica, descreve trstecnologias que esto associadas memria e ao conhecimento:

    oralidade, escrita e informtica as tecnologias da inteligncia ,que caracterizam distintas ecologias cognitivas,1devido sobretudo

    1 Lvy (1993) define ecologia cognitiva como o estudo das dimenses tcnicas ecoletivas da cognio.

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    s suas respectivas formas cannicas do saber, de comunicar as fi-guras do tempo, a memria social. Para Lvy (1993), as tecnologiasda inteligncia devem ser vistas entrelaadas com os seres humanose a produo de conhecimento, pois diferentes tecnologias tmmoldado a forma como as pessoas vm produzindo conhecimentoao longo da histria, e exemplifica: a oralidade, caracterizada pelacircularidade do pensamento, foi utilizada por muitos povos para adisseminao do seu conhecimento. Com o surgimento da escrita,foi possvel o desenvolvimento de um pensamento linear. A infor-mtica rompe com essa linearidade, na medida em que permite queimagens, sons, textos e vdeos sejam utilizados de modo simultneopara a elaborao de uma ideia. O autor afirma que oralidade, es-crita e informtica so formas qualitativamente diferentes de esten-dermos nossa memria.

    Essas so, de modo resumido, as ideias que formam a base doconstruto seres-humanos-com-mdias. A seguir apresentamos,com um nvel maior de detalhamento, os estudos de Tikhomirove Lvy e, na sequncia, o modo como essas ideias so ampliadas,reorganizadas e trazidas para o mbito da Educao Matemticaatravs desse construto.

    Reorganizao do pensamento

    Os fundamentos da proposta de Tikhomirov (1981) esto an-corados na discusso de trs abordagens que versam sobre compu-tadores e cognio. A primeira abordagem a da substituio, pelaqual o computador considerado substituto das esferas intelectuaishumanas. O autor argumenta que colocar o computador comosubstituto do ser humano uma viso distorcida. Embora em de-terminadas situaes essa mquina possa chegar ao mesmo resul-

    tado que o ser humano, isso no significa que possa ser colocadano mesmo nvel do pensamento humano. Isso porque, segundo oautor, no processo gerado pelo computador no so consideradosmuitos elementos envolvidos nos processos humanos que so mo-

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    bilizados quando um problema eleito e solucionado. Borba (1999)destaca que a refutao desta abordagem baseada em uma visode conhecimento na qual a escolha do problema fundamental eest intimamente relacionada com seus entornos socioculturais(p.286).

    Aps descartar a abordagem do computador como substitutodo ser humano, Tikhomirov (1981) apresenta seus argumentospara contestar a abordagem pela qual o computador seria um su-plemento para os seres humanos, existindo, nesse caso, apenas umajustaposio entre as novas tecnologias e o ser humano.

    Para o autor, essa abordagem est fundamentada na ideia deque o pensamento pode ser dividido em pequenas partes, em queo ser humano justaposto ao computador, o qual poderia ser vistosimplesmente como um aumento ou complemento quantidadede informaes processadas pelos seres humanos, pressupondouma viso meramente quantitativa, e no qualitativa de como oscomputadores influenciariam a atividade humana. Alm disso,esse enfoque no considera os objetivos que se tem em mente ao es-colher determinado problema, nem as possveis modificaes quepodem ocorrer no processo de resoluo.

    Por fim, Tikhomirov (1981) defende a abordagem da reorgani-zao do pensamento, que atribui ao computador o papel de me-diador da atividade humana. Ancorado nos princpios da teoriada atividade, em que o processo de produo do conhecimento

    concebido pela (re)construo do pensamento, que ocorre nas re-laes do ser humano com o mundo, o autor destaca que o cartermediador que permeia essas relaes produz uma reorganizaonos processos de criao, busca e armazenamento de informao,bem como nas relaes humanas.

    De acordo com o autor (1981), o pensamento exercido porsistemas de ser-humano-computador, em que a reorganizao dele

    considerada um novo estgio, qualitativamente diferente, poisenvolve as possibilidades oferecidas pela mquina.

    Borba (1999) concorda com a teoria da reorganizao do pensa-mento e destaca que a informtica exerce papel semelhante quele

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    realizado pela linguagem na teoria vygotskyana, base da teoria daatividade. No entanto, o autor ressalta que h uma diferena qua-litativa, pois, nesse caso, todos os processos so mediados tambmpelas imagens dos monitores, pelos sons e outros recursos que essesequipamentos oferecem. Ele explica que o computador pode darfeedback a passos intermedirios da atividade humana, que seriamimpossveis de serem dados por observadores externos (p.287).

    As consideraes de Lvy (1993) mostram-se compatveis coma teoria da reorganizao do pensamento. Contemplam dimensestcnicas e coletivas da cognio e, principalmente com o adventoda internet, vo alm do sistema ser-humano-computador, pro-pondo a noo de um coletivo pensante homem-coisas. As ideiasde Tikhomirov e Lvy tambm tm forte ligao, por exprimirema no possibilidade de separao entre seres humanos e tcnicas noprocesso de produo do conhecimento.

    Ecologias cognitivas

    Ao desenvolver o conceito de ecologia cognitiva, Lvy (1993)discute o papel das tecnologias informticas na constituio deatividades cognitivas e defende a ideia de um coletivo pensantehomem-coisas. O autor observa que preciso desfazer e refazeras ecologias cognitivas, que estavam estabilizadas desde o sculo

    XVII, com a generalizao da impresso, e que as tecnologias da in-teligncia oralidade, escrita e informtica trazem contribuiesimportantes para construirmos os alicerces culturais que guiam aforma como nos apropriamos da realidade.

    O autor argumenta que as tecnologias devem ser vistas entre-laadas com os seres humanos e a produo de conhecimento, poisdiferentes tecnologias tm moldado a forma como as pessoas vm

    produzindo conhecimento ao longo da histria, e destaca a ideiacentral do conceito de ecologia cognitiva: as tecnologias da inte-ligncia condicionam, mas no determinam o pensamento, que exercido por um coletivo dinmico. Ele realiza o exerccio de refle-

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    xo sobre as influncias que a oralidade, a escrita e a informtica,associadas memria e ao conhecimento, tm historicamente exer-cido sobre as formas de pensamento e as normas do saber.

    Lvy (1993) constri a sua linha de raciocnio a partir da maisantiga forma de expresso a linguagem oral e define dois tiposde oralidade: a primria, que remete ao papel da palavra antes doadvento da escrita, e a secundria, relacionada com o estatuto dapalavra, que complementar ao da escrita, tal como a conhecemos.A oralidade primria, por situar-se antes de qualquer tipo de re-presentao escrita, atribua palavra a funo bsica de gesto damemria social, espao onde a cultura era preservada.

    O autor esclarece que, nas sociedades sem escrita, a produo deespaotempo est quase totalmente baseada na memria humana,associada ao manejo da linguagem. Junto com os gestos, a oralidadeprimria limitava o homem ao espao do seu grupo, no qual elecirculava e se comunicava. A memria e a cultura do grupo erampropagadas por meio de cantos, poesias, rituais, em uma poca queo autor representa atravs da forma cannica do crculo, supon-do um movimento de recomeo, de reiterao. Ele afirma que aslembranas retratadas nas histrias dos seus membros, circulares,adquirem novos contornos, sem, contudo, abalar a sua estrutu-ra. Desse modo, o uso regular da fala pode ser interpretado comodeterminante para a cultura e a forma de transmisso de conheci-mentos de um povo.

    De acordo com Lvy (1993), a oralidade uma classe particularde ecologias cognitivas, que disponibilizam ao homem apenas recur-sos de sua memria para reter e transmitir as representaes que lheparecem dignas de subsistir. Com o surgimento da escrita, uma novaecologia cognitiva fundada, a qual implica a compreenso de umarepresentao grfica. Kenski (2007) explica que os primeiros regis-tros grficos do pensamento humano foram encontrados nas pare-

    des de cavernas, em ossos, pedras, peles de animais, at se chegar inveno do papel, que estimulou a escrita e a impresso de livros.

    A escrita, argumenta Lvy (1993), permite que os textos sejamseparados das circustncias em que foram produzidos. Essa pos-

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    sibilidade gera um distanciamento entre a pessoa que escreve ea outra que l e interpreta o escrito, permitindo a construo demltiplas verses para um mesmo texto, gerando autonomia aoconhecimento que se d por meio da compreenso racional do queest sendo apresentado.

    Para o autor, a escrita como uma ferramenta para a extensoda memria, do pensamento e da comunicao, pois essa tecnologialiberta a memria da dependncia das lembranas humanas, umavez que possibilita o registro. Vista dessa forma, a escrita permiteao homem expor as suas ideias, deixando-o mais livre para ampliara sua capacidade de reflexo e apreenso da realidade. Entretanto,o fato de a memria no depender exclusivamente da capacidadehumana exige uma organizao modular e sistemtica para regis-tro das informaes, e assim o espaotempo na sociedade escritatorna-se linear.

    Por fim, Lvy (1993) discute o papel das tecnologias inform-ticas na constituio das atividades cognitivas. O autor argumentaque a informtica rompe com as narrativas circulares e com a line-aridade do pensamento, na medida em que, ao englobar aspectosda oralidade e da escrita, apresenta-se como um fenmeno descon-tnuo, fragmentado, e ao mesmo tempo dinmico, aberto e veloz,permitindo a utilizao de imagens, sons, textos e vdeos de formasimultnea para a elaborao de uma ideia.

    O fato de a memria estar to objetivada em dispositivos auto-

    mticos faz o autor questionar se a prpria noo de memria seriapertinente na tecnologia informtica.

    O saber informatizado afasta-se tanto da memria (este saber

    de cor), ou ainda a memria, ao informatizar-se, objetivada a tal

    ponto que a verdade pode deixar de ser uma questo fundamental,

    em proveito da operacionalidade e velocidade. (Lvy, 1993, p.119)

    Contudo, o autor afirma que no se trata de omisso da verdade,ou mesmo de falta de preocupao com a exatido dos fatos, mas simde identificar o deslocamento do centro de gravidade em atividades

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    cognitivas desempenhadas pelo coletivo social. O conhecimentodo tipo operacional, fornecido pela informtica, origina modelos

    que so constantemente atualizados e aperfeioados, segundo umalgica que classifica sua pertinncia de acordo com o objetivo a quese destinam. Por analogia ao tempo circular da oralidade e ao tempolinear da escrita, Lvy (1993) ressalta que na informtica ocorreuma imploso cronolgica de um tempopontualinstaurado pelasredes de informtica (p.115; grifo do autor).

    A reconstruo histrica que o autor faz acerca das tecnologias

    da inteligncia evidencia que nenhum tipo de produo de conhe-cimento independente delas. Para ele, o sujeito cognitivo frutode uma infinidade de coisas, tais como objetos simulados, associa-dos, imbricados, reinterpretados, suportes de memria e pontos deapoio de combinaes diversas, que chama de coisas do mundo,sem as quais os seres humanos no pensariam. So, em si, produtodeles prprios, de coletividades intersubjetivas, que as saturam de

    humanidade.Villarreal e Borba (2010) recorrem a Davis e Hersh (1981) para

    ilustrar o pensamento de Lvy. Para Davis e Hersh, a rgua e ocompasso so incorporados aos axiomas na fundao da geome-tria euclidiana, a qual definem como a cincia da construo comrgua e compasso. Expandindo esse pensamento, Villarreal e Borbaafirmam que a geometria euclidiana produzida por coletivos de

    seres-humanos-com-rgua-e-compasso, ao interpretarem o pen-samento dos autores como sendo a mdia uma parte intrnseca dafundao dessa geometria. Com isso, querem chamar a atenopara o fato de que, ao longo da histria, instrumentos so associadoss tecnologias da inteligncia e produo de conhecimento, emparticular, neste caso, de conhecimento matemtico.

    A viso de que seres humanos e mdias misturam-se de forma

    inextricvel, formando uma unidade que pensa junto e produz co-nhecimento, a ideia central da noo de seres-humanos-com-m-dias inicialmente proposta por Borba (1999) e depois sistematizadapor Borba e Villarreal (2005).

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    Seres-humanos-com-mdias

    As ideias de reorganizao do pensamento e de ecologia cogni-tiva indicam a constituio de novos estilos cognitivos, em razo doavano das tecnologias informticas. Em particular, Tikhomirov(1981) toma da teoria da atividade o carter mediador dos artefatosna atividade humana, que est implcito no conceito de reorga-nizao, presente nos processos de interao do ser humano como ambiente, e prope a constituio de um sistema formado porser-humano-computador. Por sua vez, Lvy (1993), diante dasdimenses tcnicas e coletivas da cognio, conceitua a expressoecologia cognitiva e, ao vivenciar as novas possibilidades pro-porcionadas pela informtica, sugere um sistema que vai alm daproposta de Tikhomirov (1981), que componha um coletivo pen-sante de homem-coisas. O trnsito dessas ideias para o mbito daEducao Matemtica foi feito por Borba (1999).

    [...] Podemos pensar, metaforicamente, que o pensamento exer-

    cido por sistemas ser-humano-computador, como proposto por

    Tikhomirov (1981) [...]. Podemos ampliar esta metfora e pen-

    sar que o ser humano tem sido ao longo da histria ser-humano-

    -oralidade, ser-humano-escrita e ser-humano-informtica. Um

    novo passo pode ser dado [...] se a unidade bsica de conhecimento

    for pensada como ser-humano-lpis e papel-informtica-... cujas

    reticncias significam que o pensamento algo coletivo, como pro-posto por Lvy (1993). (Borba, 1999, p.292)

    O autor expande as ideias de Tikhomirov (1981) e de Lvy(1993) e prope, inicialmente, uma unidade bsica de conhecimentoque se forma a partir do desenvolvimento de um pensamento cole-tivo do ser humano com tecnologias. Depois, passa a denominar

    esse coletivo de seres-humanos-com-mdias, forma empregadaat hoje.

    Para expressar a amplitude de seu pensamento em relao aosdiferentes tipos de tecnologias, Borba (1999) utiliza o termo m-

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    dias para referir-se tanto s tecnologias materiais (instrumentos,ferramentas, coisas) como s imateriais (oralidade, escrita, infor-mtica, pensamento).

    Borba e Villarreal (2005) esclarecem que a produo de co-nhecimento deve ser entendida como um pensar com mdias.Nessa perspectiva, as teconologias materiais ou imateriais devemser consideradas parte constitutiva dessa produo, na medida emque s mdias atribudo um papel mais abrangente, que vai almde um suporte ou veculo de mensagem que atravs de produzconhecimento.

    A perspectiva terica adotada por Borba (1999) est em harmo-nia com Leontiev (1978), que elaborou seus argumentos pautadona necessidade que os seres humanos tm de sobreviver, isto , dedesenvolver-se e, ao mesmo tempo, desenvolver o ambiente queos cerca para se manterem nele. Esses processos, segundo o autor,se do por meio de relas recprocas, de trocas mtuas entre sereshumanos e ambiente, que geram transformaes ou reorganizaestanto em um como no outro.

    Embora, para Leontiev (1978) e outros estudiosos da teoria daatividade, a referncia de coletividade esteja mais fortemente ligada constituio de um conjunto de seres humanos, no se pode negarque aos artefatos atribudo um papel de destaque, uma vez quesem eles no seria possvel o desenvolvimento da atividade. Talcomo preceitua a noo de seres-humanos-com-mdias, ou seres-

    -humanos-com-tecnologias, em que o conhecimento tido comoalgo produzido por um coletivo de atores humanos e no humanos,em que todos desempenham um papel central, essas metforas, nombito da Educao Matemtica, segundo Borba (2001), sugereminsights sobre como se d a produo de conhecimento.

    Do meu ponto de vista, creio que essa metfora [seres-huma-

    nos-com-mdias] sintetiza uma viso de cognio e de histria dastcnicas que permite que seja analisada a participao de novos

    atores informticos nesses coletivos pensantes de uma forma que

    no julgamos se h melhoria ou no, mas sim de uma forma que

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    identifica transformaes em prticas. [...] Tal noo adequada

    para mostrar como o pensamento se reorganiza com a presena

    das tecnologias da informao e que tipos de problemas so gera-

    dos por coletivos que incluem lpis e papel e diversas facetas das

    tecnologias da informao. (Borba, 2001, p.139)

    Borba (2001) destaca que no existeuma escala de qualidadeentre as mdias, classificando-as em melhores ou piores, mas dife-rentes tipos de mdias, que tm, ao longo da histria, condicionadoa produo de diferentes tipos de conhecimentos. Os seres huma-nos, ao interagirem com elas, reorganizam o pensamento de acordocom as mltiplas possibilidades e restries que essas mdias ofere-cem. Portanto, a presena ou a ausncia de uma mdia influencia otipo de conhecimento produzido e, mais, o uso ou o surgimento dedeterminada mdia no invalida ou extingue outra.

    Um exemplo apresentado por Borba e Penteado (2001) e con-siste na realizao da seguinte tarefa: traar um grfico de uma fun-o comoy= 2x. Eles argumentam que tal tarefa pode tornar-se umproblema para um coletivo de seres-humanos-com-lpis-e-papel,mas isso no acontecer se o coletivo que desenvolver a tarefativer, por exemplo, um software que permita o traado de grficos.Os autores afirmam que no trabalho dos educadores matemticosdeve residir a preocupao com a matemtica produzida nessesdiferentes tipos de coletivos. Faamos uma alterao/acrscimo a

    essa afirmao: no momento de planejarmos determinada tarefa,devemos observar se os objetivos que pretendemos alcanar estoem sintonia com o coletivo que ir desenvolv-la.

    Avanando na ampliao das ideias sobre reorganizao do pen-samento e coletivo pensante, Borba e Penteado argumentam:

    [...] Os seres humanos so constitudos por tcnicas que estendem

    e modificam seu raciocnio e, ao mesmo tempo, esses seres huma-nos esto constantemente transformando essas tcnicas. Assim,

    no faz sentido uma viso dicotmica. Mais ainda, entendemos

    que o conhecimento produzido com uma determinada mdia,

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    ou com uma tecnologia da inteligncia. por isso que adotamos a

    perspectiva terica que se apoia na noo de que o conhecimento

    produzido por um coletivo formado por seres-humanos-com-

    -mdias. (Borba; Penteado, 2001, p.46)

    A ideia dos autores est pautada na perspectiva de que a pro-duo de conhecimento no atributo de um agente nico, mas derelaes mtuas entre as estruturas do pensamento, as ferramentasdo intelecto fornecido pela cultura e as mdias.

    De forma sutil, essa linha de raciocnio deixa transparecer ainfluncia da teoria de Vygotsky, que estende a noo de mediao eafirma que o processo de construir conhecimento implica uma aopartilhada, que se materializa nas interaes entre o ser humano e omeio em que vive. Nessas aes mtuas, novas estruturas cogniti-vas surgem, a partir de demandas sociais, de necessidades de novosinstrumentos de trabalho e de pensamento. Com esse mesmo con-ceito, Tikhomirov (1981) prope que a participao do computadorna atividade humana faz o pensamento atingir um novo estgio.

    Tikhomirov sugere uma integrao entre tcnica e ser humano em outras palavras, entre informtica e pensamento , indo aoencontro da noo de moldagem recproca proposta por Borba(1999), pela qual o computador visto como algo que molda oser humano e ao mesmo tempo moldado por ele (p.288). Dessemodo, pode-se dizer que o computador protagonista no processo

    de reorganizao do pensamento humano.Tambm o pensamento de Lvy (1993) mostra-se coerente com

    a noo de moldagem recproca. Como exemplificam Villarreal eBorba (2010), oralidade, escrita e informtica so formas qualitati-vamente diferentes de estender a memria, e cada uma, sua manei-ra, contribui para moldar os seres humanos. Um exemplo a formacomo os estudantes utilizam determinado software, muitas vezes

    diferente da maneira como a equipe que o desenvolveu havia pensa-do. Por outro lado, os autores chamam a ateno para o fato de quea equipe que desenvolve um software procura elaborar um designlevando em considerao a forma como os estudantes utilizam-no.

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    A noo de moldagem recproca proposta por Borba (1999)tambm guarda forte relao com a teoria da atividade. Por essanoo, o ser humano, apesar de fazer parte da natureza pois um ser natural, criado pela natureza e submetido s suas leis ,diferencia-se dela na medida em que capaz de transform-la cons-cientemente, segundo suas necessidades, e, assim, estabelecer re-laes de trocas que provocam transformaes recprocas, em queele constri e transforma a si mesmo e prpria natureza, criandonovas condies para a sua existncia. Isto , sujeitos e objeto doconhecimento no so dissociveis, uma vez que se relacionam demodo recproco, um dependente do outro, formando um polo nicoque se constitui pelo processo histrico-social.

    Borba e Villarreal (2005) apresentam, alm dessas ideias, omodo como elas tm sido legitimadas pelas teorizaes resultantesde estudos empricos. Os autores revelam tambm preocupaocom a produo de conhecimento na Educao a Distncia on-line.Na prxima seo apresentamos uma sntese de alguns trabalhosque foram realizados em contextos on-line e que se apoiaram noconstruto seres-humanos-com-mdias. preciso reconhecer que setrata de um olhar endgeno sobre a produo do Grupo de Pesquisaem Informtica, outras Mdias e Educao Matemtica (Gpimem),de fundamental importncia principalmente para ilustrar algumasideias que podem fortalecer uma reaproximao da teoria da ativi-dade com esse construto, que ser discutida no prximo captulo.

    Seres-humanos-com-EaD-on-line

    Borba, Malheiros e Amaral (2011) discutem como estenderpara o contexto da EaD on-line a noo de que os seres humanosso essenciais para a produo de conhecimento, na mesma medida

    que as mdias. Segundo esses autores, as primeiras pesquisas esta-vam muito arraigadas aos estudos desenvolvidos em salas de aulapresenciais e buscavam sobretudo indcios de como a matemticaera produzida em ambientes virtuais de aprendizagem.

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    Uma exceo foi a pesquisa de Gracias (2003), que tinha comopreocupao compreender a reorganizao do pensamento em um

    curso totalmente on-line para professores sobre tendncias emEducao Matemtica. As anlises realizadas pela autora cami-nham na mesma direo das ideias de Borba (2001), uma vez queela conclui que o pensamento condicionado pelas tecnologiasintelectuais. Ou seja, a produo de conhecimento est associada aum coletivo pensante formado por atores humanos e no humanos.Dessa forma, as tecnologias digitais no podem, do seu ponto de

    vista, ser encaradas como neutras ou transparentes, pois exercemum papel fundamental de referenciais intelectuais.A partir do estudo da autora, comeou a ser desenvolvido o

    conceito de multilogo, definido por Borba, Malheiros e Amaral(2011) como a forma como o dilogo se estabelece em um chat, noqual vrias pessoas conversam ao mesmo tempo, em diferentesdilogos que so estabelecidos de acordo com os interesses dos par-

    ticipantes, instituindo uma dinmica diferenciada de uma sala deaula presencial.

    Os autores destacam que a natureza da discusso, em um chat,caracteriza o tipo de multilogo. Como exemplo, podem ser citadasas discusses dos chats relatadas nos trabalhos de Gracias (2003)e Santos (2006). As discusses que permearam o primeiro estudoforam pautadas em algumas tendncias em Educao Matemtica,

    necessitando apenas da linguagem materna como forma de expres-so. J o segundo estudo, focado na produo matemtica, exigiuo uso da linguagem dos smbolos matemticos, o que deman-dou uma transformao/adaptao nas formas de expresso dopensamento.

    Avanando na formulao do conceito de multilogo, Santos(2006) evidencia, em sua anlise, que as mdias utilizadas em um

    ambiente virtual de aprendizagem condicionaram a forma como osparticipantes de sua pesquisa discutiram as conjecturas formuladasdurante as construes geomtricas propostas e transformaram aproduo matemtica desenvolvida nesse ambiente.

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    [...] O pensamento coletivo passa a sofrer fortes influncias

    do ator internet e transformado pelas interfaces associadas a ela,

    como, por exemplo, o chat. E encarando o chatcomo um ponto

    de encontro, possvel notar que ao reunir pessoas com diferentes

    saberes, que se ajudam mutuamente, uma inteligncia coletiva se

    consolida. Por esta razo, noes de espao, hipertexto, conheci-

    mento em rede, virtualidade, entre outras, so visivelmente eviden-

    ciadas nos resultados dessa pesquisa, por transformarem a forma

    como a produo matemtica acontece. (Santos, 2006, p.125)

    A formao de uma inteligncia coletiva pode trazer indicativosda existncia de um ser cognitivo, que transcende o ser biolgico, oqual, neste caso, constituiu-se a partir do encontro de seres humanoscom o chat e outros aspectos da EaD on-line. Outro aspecto inte-ressante, na anlise de Santos (2006), a presena de fatores sociaise culturais que condicionaram a produo matemtica. Mesmo nosendo abordados de forma explcita, pertinente considerar que osdilogos entre pessoas de diferentes saberes, em sua maioria, socarregados de experincias vivenciadas em outros contextos. Essefato destacado tambm por Borba, Malheiros e Amaral (2011),que chamam a ateno para o fato de que as prprias tecnologiasda inteligncia oralidade, escrita e informtica so produto demarcas histricas, sociais e culturais e que, portanto, nesse sen-tido que seres-humanos-com-EaD-on-line devem ser vistos como

    impregnados de aspectos sociais e culturais.Outro estudo que aborda as ideias desse construto o de Ma-

    lheiros (2008), que busca compreender a importncia dos atoresinformticos na elaborao de projetos de modelagem no contextoda EaD on-line. De certa forma, essa pesquisa pode ser considera-da em sintonia com as ideias tecidas por Gracias (2003). A autorafaz meno a um papel que as tecnologias digitais ocupariam no

    processo cognitivo, mas no explicita que papel esse, nem a suaextenso, uma vez que isso extrapolaria o objetivo de seu trabalho.

    Malheiros (2008) faz a interpretao das conversas dos chats,fruns e portflios do ambiente Tidia-Ae construdos durante a

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    edio do ano de 2006 no curso Tendncias em Educao Matem-tica. Aponta como um dos resultados o fato de que as tecnologiasde informao e comunicao tiveram o papel de protagonistasao longo de todo o processo e que a natureza da comunicao e dainterao com a internet qualitativamente diferente do que emgeral acontece no presencial.

    Penso sim que as mdias condicionam a natureza do conheci-

    mento, ou seja, quando muda uma mdia, ela tambm modificada.

    E, sendo assim, s o fato de os alunos-professores terem elaborado

    projetos de modelagem por meio da internet e no pelo telefone,

    por exemplo, caracteriza diferenas na comunicao e interao

    entre eles, e essas diferenas, embora sutis no resultado final, mos-

    tram que, dependendo do meio utilizado, estratgias so elaboradas

    para que os objetivos sejam alcanados. O projetar no ciberespao

    ganhou contornos prprios, desde o minimizar e maximizar de jane-

    las at a comunicao por palavras, de modo sncrono e assncrono,

    por meio de diferentes mdias e tticas. (Malheiros, 2008, p.121)

    A autora enfatiza no apenas o papel das mdias a condicionar odesenvolvimento de projetos no ciberespao, mas tambm a mol-dagem recproca, observando que, ao mesmo tempo que uma mdiamuda, ela tambm se modifica. As consideraes de Malheiros(2008) caminham paralelamente ao trabalho de Zulatto (2007), que

    investigou a natureza da aprendizagem no contexto da Educao aDistncia on-line. Os resultados relatados por essa autora indicamque a aprendizagem matemtica com chat e videoconferncia teveuma natureza coletiva, colaborativa e argumentativa, na medida emque a produo matemtica foi condicionada pelo coletivo pensantede atores humanos e no humanos.

    As mdias condicionaram esse processo [de aprendizagemmatemtica], pois a distncia geogrfica foi superada por meio

    do ciberespao, e a interao em tempo real aproximou coletivos

    pensantes atuais em um coletivo pensante virtual. Dessa forma,

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    conhecimento, sugere a participao de mdias distintas no processode produo de diferentes conhecimentos e atribui a elas o papel deprotagonistas. Alm disso, coloca em destaque a ideia de que as m-dias fazem parte de um sujeito que no corresponde a ningum emparticular, mas que abarca, ao mesmo tempo, as potencialidades deseres humanos e mdias, formando um todo que, em conjunto, pro-duz conhecimento.

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    Nos captulos anteriores, procuramos mostrar que os fun-damentos do construto terico seres-humanos-com-mdias e osprincpios da teoria da atividade podem atender aos propsitos do

    estudo que originou este livro. A ligao mais forte entre ambos soos movimentos que indicam a ocorrncia de trocas mtuas, relaesrecprocas entre humanos e no humanos.

    Neste captulo, especificamente, buscamos reaproximar essesfundamentos tericos, a fim de mostrar que se harmonizam, sepotencializam, apesar de se relacionarem dialeticamente. Afinal,Herclito1j afirmava que da dialtica que nasce a concrdia, a

    harmonia: o contrrio em tenso convergente, da divergncia doscontrrios a mais bela harmonia (Fragmento 8, apud Bettoni, 2001).

    O pensamento vygotskyano e os estudos de Tikhomirov (1981)so as chaves que explicam o sentido de se pensar em uma reaproxima-o. Vygotsky considerado o principal representante da escola his-trico-cultural da psicologia sovitica da qual se originou a teoria daatividade. Tikhomirov (1981) baseia-se na ideia de mediao oriun-

    da dessa teoria para elaborar a noo de reorganizao do pensamen-to e sugerir a constituio de um sistema ser-humano-computador.

    1 Filsofo pr-socrtico considerado o pai da dialtica (Bettoni, 2001).

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    No mbito da Educao Matemtica, Borba (1999) apoia-senas ideias de Tikhomirov (1981) e de Lvy (1993) para propor oconstruto seres-humanos-com-mdias, que tem como conceitocentral a noo de moldagem recproca. razovel pensar que, decerta forma, temos uma relao transitiva, pois Tikhomirov (1981)apoia-se na teoria da atividade, e a noo desse construto baseia-senesse autor. Logo, teoria da atividade e seres-humanos-com-m-dias harmonizam-se. No entanto, essa relao no to simples edireta, uma vez que a noo de seres-humanos-com-mdias recebeuoutras influncias. Alm disso, a prpria teoria da atividade temdiferentes abordagens.

    Uma forma de reaproximar e fortalecer esses laos realizar oexerccio de analisar o construto mencionado como um sistema deatividade e, ao mesmo tempo, relacionar o seu desenvolvimento aoprocesso evolutivo da teoria da atividade ao longo da histria. Essaanlise terica foi iniciada por Souto e Arajo (2013).

    De acordo com a teoria da atividade, o ser humano, ao longo dahistria, inventou ferramentas e desenvolveu formas de adaptaopara garantir sua sobrevivncia. Esse processo de criao e interaocom o ambiente dialtico, pois faz que, ao mesmo tempo que o serhumano transforma o ambiente, tambm seja transformado por ele.Essa ideia, sob a tica do construto terico seres-humanos-com--mdias, assemelha-se ao que Borba (1993, 1999) chama de mol-dagem recproca. A diferena reside na nfase que o autor atribui

    interao com uma mdia como a informtica. Um exemplo quan-do os seres humanos recebem feedbacks que condicionam (sem de-terminar), que moldam suas aes, ao mesmo tempo que tais aescondicionam e moldam as possibilidades que a mdia oferece.

    A noo de moldagem recproca semelhante tese vygotskya-na de mediao, base da teoria da atividade, ao tratar o desenvolvi-mento de ferramentas pelo ser humano, ao longo da histria, para

    adaptar-se ao ambiente e, desse modo, garantir sua sobrevivncia(Souto; Arajo, 2013). Em sntese, tanto na teoria da atividadecomo nas ideias que circundam o construto seres-humanos-com--mdias, os movimentos convergem para uma forma de reorganiza-

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    o que engloba os meios culturais, sociais, materiais e psicolgicos(neste ltimo, inclui-se a reorganizao do pensamento).

    possvel perceber que h uma aproximao entre a noo demoldagem recproca (seres-humanos-com-mdias) e a teoria daatividade, na medida em que so consideradas as transformaesrecprocas entre os polos sujeitosobjeto. Ao mesmo tempo, veri-fica-se que h algo distinto quando essa noo coloca em evidnciaesse mesmo processo tambm no polo sujeitosartefatos. Dessemodo, a moldagem recproca sugere que as mdias desempenhampapel duplo. Utilizamos representaes triangulares (Figuras 7 e 8),como aquelas empregadas na teoria da atividade, para ilustrar umaforma de compreender o construto seres-humanos-com-mdiascomo um sistema de atividade, e percebemos a necessidade de ana-lisar o duplo papel das mdias sugerido por esse construto.

    Figura 7 Mdias como artefatos no sistema seres-humanos-com-mdias (Souto;Arajo, 2013)

    Figura 8 Mdias como artefatos no sistema seres-humanos-com-mdias (Souto;Arajo, 2013)

    Na Figura 7, as mdias so artefatos que medeiam a atuao dosseres humanos em suas atividades, tal como preconizado pela teo-

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    ria da atividade. J na Figura 8, as prprias mdias, de acordo coma noo de moldagem recproca, so transformadas e transformamos seres humanos. Desempenham, portanto, o papel de objeto, oqual, ao transformar-se, gera mudanas nos processos de produode conhecimento.

    Em outras palavras, as mdias so artefatos que, no desenvol-vimento da atividade, transformam-se em objeto o qual, por suavez, gera como resultado mudanas nos processos de produo deconhecimento , sem deixarem de ser artefatos. Em vista disso,surge a necessidade de analisar esse duplo papel das mdias.

    As duas representaes so semelhantes, mas preciso deixarclaro que no devem ser consideradas congruentes representaoda Figura 3, organizada originalmente a partir de Vygotsky, que semanteve nos estudos de Leontiev. Isso porque h duplicidade nopapel que a mdia ocupa nesse novo sistema. Outra diferena deveser ressaltada: na teoria da atividade, de incio, o polo sujeito eramarcado pela nfase no indivduo, diferente do que ocorre aqui, em

    que os seres humanos (coletivo) protagonizam esse polo desde a suaprimeira representao. Esse tipo de constatao indica uma pri-meira inclinao em direo ao pensamento de Engestrm (1987),o qual elaborou um modelo que estendeu a unidade de anlise paraum plano coletivo, surgindo uma possibilidade para o avano dareaproximao que se busca neste captulo do livro.

    Com um olhar mais refinado para os resultados dos trabalhos

    que utilizam a noo de seres-humanos-com-mdias no contexto daEducao a Distncia on-line apresentados na seo anterior, pos-svel verificar uma possibilidade de expanso da unidade de anlisedesse sistema. Esse movimento assemelha-se ao que Engestrm(1987) prope em relao s ideias de Leontiev (1978).

    Como mencionado anteriormente, os estudos de Gracias (2003)e Santos (2006) desenvolvem o conceito de multilogo, o qual in-dica que as regras comuns em uma sala de aula presencial, comorespeitar a vez do outro falar, prestar ateno em um nico discur-so, expressar o pensamento por meio da oralidade, so transfor-madas no contexto on-line. Essa constatao, do nosso ponto devista (Souto; Arajo, 2013), permite ampliar o foco que, at ento,

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    mantinha-se nas transformaes entre humanos e mdias, ou seja,na trade sujeitoartefatoobjeto.

    O conceito de multilogo sugere que as regras so elementosimportantes no sistema, o qual passaremos a chamar de sistema deatividade seres-humanos-com-EaD-on-line. De acordo com En-gestrm e Sannino (2013), as regras medeiam a relao entre sujeitose comunidade. Desse modo, observar que elas desempenham umpapel nesse novo sistema implica considerar o papel da comunida-de, uma vez que so fruto de aspectos socioculturais historicamenteconstrudos pela prpria comunidade.

    Por outro lado, preciso atentar para o fato de que na relaoda comunidade com o objeto da atividade que se estabelecem di-ferentes formas de organizao do trabalho (Souto; Arajo, 2013).Desse modo, guardadas as devidas propores, alcana-se umaproximidade entre o desenvolvimento do construto seres-huma-nos-com-mdias, analisado como um sistema de atividade, e o de-senvolvimento da prpria teoria da atividade (Figuras 9 e 10).

    A respeito dessa nova representao (Figuras 9 e 10), impor-tante frisar que, a exemplo do que foi apontado anteriormente emrelao ao duplo papel das mdias (Figuras 7 e 8), em que foramreferendados os trabalhos relativos EaDon-line, esta tambmdeve ser considerada um artefato que, de acordo com a noo demoldagem recproca, transforma-se ao longo do desenvolvimentoda atividade e passa a desempenhar o papel de objeto.

    Figura 9 EaDon-linecomo artefato no sistema seres-humanos-com-EaD--on-line(Souto; Arajo, 2013)

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    Figura 10 EaDon-linecomo objeto no sistemaseres-humanos-com-EaD--on-line(Souto; Arajo, 2013)

    Nas Figuras 9 e 10, o sistema seres-humanos-com-EaD-on-linepode ser considerado uma expanso do sistema seres-humanos--com-mdias (Figuras 7 e 8), em que so includos, a partir do olharsobre os resultados de trabalhos j desenvolvidos, outros elementos:regras, comunidade e organizao do trabalho. Nessa nova repre-sentao, anloga quela proposta por Engestrm (1987) (Figura 5),a necessidade de analisar a produo de conhecimento mantm-se,as mdias passam a ser representadas pela EaD on-line e, da mesmaforma que no sistema seres-humanos-com-mdias, transformam-seem objeto ao longo do desenvolvimento da atividade.

    Entretanto, no apenas isso que deve ser observado. De acordocom Engestrm (1987), qualquer sistema de atividade se desen-

    volve por meio de mediaes dialticas e deve ser visto como umaunidade. Assim, no sistema seres-humanos-com-EaD-on-line, asregras das quais o multilogo faz parte tambm colaboraram paraa transformao do objeto em produto (Souto; Arajo, 2013). Esteltimo resulta em mudanas no processo de produo do conhe-cimento q