estetica rosenfeld

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    1. ESTÉTICA

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    Podemos conceber o mundo como composto de ca-madas, das quais a mais alta seria a espiritual. Esta é sus-tentada pela camada psíquica, que, por sua vez, tem co-mo suporte a camada orgânica dos seres vivos. A base

    que tudo sustenta é constituída pela camada anorgânicados seres inanimados (pedras, terra, água etc.). Tería-mos, então, a partir da camada mais primitiva, a físicamaterial, a orgânica, a psíquica e a espiritual. Nenhumadas camadas superiores pode existir sem as inferiores,sendo a base de todas a camada material, anorgânica. Aespiritual apóiase em todas as inferiores. Não há de

    modo cientificamente observável vida espiritual sem

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    vida psíquica, nem esta sem vida orgânica, nem esta sema base material. Mas a vida espiritual ultrapassa a psíqui-ca mercê de vários momentos, entre os quais se distingueo da capacidade de símbolo. A capacidade do símbolo éreservada ao homem, nenhum outro animal parece pos-suíla.

    O símbolo é um sinal peculiar; é um sinal que, emvez de assinalar apenas determinada situação concreta,momentânea, vital, individual, ultrapassa essa situação

    singular e única para designar a essência de todas as si-tuações semelhantes, fora do contexto momentâneo e vi-tal. Estas nuvens, que agora escurecem o céu, indicam achuva que virá agora; temos aí um entre vários outros si-nais que também advertem os animais, que logo bus-carão abrigo. Esta fumaça (e outros sinais) indicam um

    incêndio na floresta; também os animais entendem essessinais e fugirão.

    Para o homem, no entanto, estes sinais podem trans-formarse em símbolos; qualquer nuvem negra (e não sóestas agora) pode tornarse, então, não só sinal de tem-

     poral próximo. Pode tornarse, além disso, em imagemque suscita a idéia geral  do temporal e mesmo do pe-rigo e da calamidade em geral, sem qualquer relaçãocom a situação momentânea, vital (que forçaria a buscarabrigo).

    Determinado som é um sinal, quando, indicando a proximidade da distribuição de comida, provoca o reflexosalivar dos ouvintes; mas é símbolo quando apenas signi-

    fica a idéia da comida (e não a própria comida), sem provocar o reflexo mencionado, sem portanto inserirsenum contexto vital de situação concreta e reação ime-diata.

    O animal emite o grito de dor quando sente a dor;esta dor, neste momento; tratase da expressão imediatada dor, expressão que é o sinal da dor atual, real. O ho-mem, no entanto, pode emitir esse grito sem sentir real-mente a dor. Neste caso, o grito não é um sinal, mas

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    o símbolo  da dor em geral. E os outros homens sabem perfeitamente distinguir entre o grito que é sinal e o gri-

    to que é símbolo embora às vezes não seja fácil, par-ticularmente quando se trata de um bom ator ou de umamulher histérica (esta é capaz até de sentir a dor só

     porque grita). Se o bom ator gritasse o seu grito em ple-na rua nós talvez o confundiríamos com um sinal, in-do em seu socorro. Mas quando grita no palco, deixa

    molo em paz. Ninguém vai em seu socorro. Todo mun-do sabe que o grito é apenas um símbolo com exceçãodos seus parceiros no palco, que, não como atores, mascomo personagens, tomam o grito por sinal, levandoo a sério.

    Os animais podem comunicarse em determinadá si-

    tuação vital, presente: podem emitir gritos de advertên-cia, que, para os outros animais, são sinais de perigo;mas esses sinais não se emancipam do contexto vital dasituação concreta. Assim, não podem usar o grito de ad-vertência numa ocasião em que não haja perigo, apenas

     para “representar” ou simbolizar o perigo possível, o pe-rigo em geral.

    A língua humana é, toda ela, um sistema de símbo-los. É só graças a ela, graças à capacidade do símbolo,que o homem pode transmitir aos seus semelhantes através das gerações a experiência acumulada das ge-rações anteriores. É, portanto, só graças à capacidade dosímbolo que os homens vivem em sociedades, as quais,

    diversamente de certas sociedades de animais (como asdas formigas e abelhas) não são sistemas rígidos, invariá-veis, regidos por instintos imutáveis, mas que desenvol-vem culturas variáveis, cumulativas, graças à aprendiza-gem, culturas em constante transformação.

    É, portanto, mercê dessa capacidade que o homem

    desenvolve a cultura termo que designa a soma totalde fenômenos que resultam do esforço do homem deajustarse ao mundoambiente e melhorar as suas con-dições de vida. Neste sentido, a cultura é a totalidade

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    complexa que inclui conhecimentos, crenças, artes, mo-ral, lei, costumes e quaisquer capacidades e hábitos ad-

    quiridos pelo homem, como membro de uma sociedade;inclui, naturalmente, também as criações materiais, co-mo instrumentos, vestuários, receptáculos, armas, mora-dias etc. O mais simples instrumento é impossível sem acapacidade do símbolo, pois cada instrumento contémem si a idéia abstrata e geral  de um semnúmero de si-tuações em que poderá ser usado. É por isso que mesmo

    o mono mais inteligente não chega ao instrumento, por.mais que use certos objetos para determinados fins; elenão guarda  tais objetos, por mais adaptados que sejam aestes fins, para outras ocasiões em que poderia usálos.

     No entanto, o objeto tornase instrumento não pelo fatode eu usálo neste momento, mas pelo fato de eu, mesmo

    não o usando agora, guardálo, para dele fazer uso emocasiões propícias. Portanto, mesmo o que se chama cultura material  é criação espiritual do homem, baseada nasua capacidade do símbolo. Toda a cultura é uma objetivação das virtualidades espirituais do homem. Estas de- pendem, como vimos, do substrato psíquico (deemoções, desejos, impulsos, reflexos etc.), este do subs-trato orgânico (do nosso corpo), e este do substrato físicomaterial (das leis físicas, químicas, da matériaanorgânica). Assim, a cultura, situada no topo de umasérie de camadas superpostas, é o espírito objetivo ouobjetivado de uma sociedade, espírito que se desenvolvee se transforma através do tempo, quer lenta, quer rapi-

    damente.

     II 

     Não há ser humano que não viva dentro de uma so-ciedade e cultura; só dentro delas atinge o status  de ser

    humano. Todos os seus comportamentos, atividades, de-sejos, emoções, se definem dentro de determinada cultu-ra e são regidos em alto grau por convenções, costumes,

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    regras e leis determinados por esta mesma cultura. Onosso comportamento responde e corresponde a certos

    valores básicos valores de utilidade, vitais, estéticos,religiosos etc., valores esses que se definem mais de per-to através das valorizações específicas de determinadacultura.

    O valor tem tudo a que satisfaz uma necessidade,suscita prazer, aprovação ou aplauso, preferência, inte-

    resse e, em geral, uma reação positiva. No pólo opostoencontramse os “desvalores”, os valores negativos cor-respondentes, que suscitam rejeição, repugnância, indig-nação, aborrecimento e, em geral, reações negativas.Também os animais reagem, preferem, rejeitam, mas is-so sempre em determinada situação vital, sem que che-

    guem a objetivar valores, a referirse a um mundo de valores.  Este só se define em determinada cultura, atravésdas valorizações variadas de variadas sociedades (o quevaria são as valorizações, não os valores).

     Não vivemos num mundo apenas constituído de “fa-tos”, situações, acontecimentos e pessoas neutros e indi-

    ferentes, mas num mundo que constantemente suscita asmais variadas reações, que nos impressiona favorável oudesfavoravelmente, apela à nossa vontade ou aos nossosdesejos ou à nossa apreciação positiva ou negativa. Aolongo de toda a nossa vida realizamos atos de valorização positiva ou negativa, atos que são determinados em altograu pela nossa cultura (apesar de todas as variações in-

    dividuais: também estas são previstas e toleradas pelacultura). O valorizar impregna nossa vida até o âmago. O

     próprio conteúdo da nossa consciência, aquilo que a nos-sa consciência retém, graças a atos de atenção e concen-tração, já é de certa forma determinado por atos de valo-rização prévios, já que não costumamos reter o que nos

    deixa totalmente indiferentes. Os inúmeros valores po-dem ser classificados, de um modo geral, em: de utilida-de, hedonísticos, vitais, científicos, estéticos, morais, reli-giosos.

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    Quando, por exemplo, adquiro um aquecedor elétri-co, colocandoo no meu quarto e ligandoo à corrente

    elétrica, posso diante dele fazer uma série de valori-zações. Inicialmente adquiroo como utilidade  (valor deutilidade), como bem que é meio para proporcionarmevalores hedonísticos, o prazer de sentir calor e bemestarnum dia frio. Além disso, é meio para proporcionarmevalores vitais (manter minha saúde no inverno). A técni-

    ca interveio, junto com a indústria, para criar este valorútil, apoiada na ciência  orientada pelo valor da verdadecientífica. Posso, ao fitar o clarão vermelho do aparelho,clarão que brilha na armação niquelada e ilumina fraca-mente o crepúsculo do quarto, apreciar o aparelho comoobjeto bonito, bem acabado, de formas elegantes. Sãovalores estéticos. Penso entristecido naqueles que não

     podem comprar tal aquecedor e que, nesta hora, trememde frio: penso e sinto em termos de valores morais e sociais. Ao imaginar a energia que proporciona o calor,sintome relacionado, possivelmente, com um poder sagrado, cósmico, criativo, do qual, em última análise, de- pendo e em que deposito confiança. Valorizo em termos

    religiosos.Este exemplo mostra que vivemos inseridos num

    denso tecido de valorizações. De fato, nem sequer per-cebemos bem o que não nos interessa, ou seja, o que nãoé por nós focalizado na perspectiva de determinado va-lor. Não “vejo” o calçamento, a não ser que seja muito

     perfeito ou muito deficiente (isto é, a não ser que o veja pelo prisma valorizador) ou a não ser que eu faça profis-sionalmente parte do departamento municipal que sedestina a cuidar desse aspecto urbano. Isto quer dizerque não só a cultura em geral, mas também minha po-sição dentro desta cultura determina em alto grau minhavisão das coisas.

    Um índio, percorrendo a mata virgem, verá coisas bem diversas daquelas que chamam a atenção de umhomem oriundo do mundo urbano da civilização ociden-

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    tal, porque ambos se orientam por valorizações diferen-tes. Mas, mesmo entre os expoentes dessa civilização ur-

     bana, haverá grandes diferenças na apreciação da flores-ta, em virtude da sua posição dentro da cultura ou mes-mo da finalidade da sua passagem pela floresta. O botâ-nico terá outra visão da floresta que o negociante de ma-deira, e este outra que o engenheiro enviado para proje-tar uma estrada de ferro. Diversa será ainda a experiên-

    cia do citadino comum, em excursão de recreio ou a domístico ou homem religioso. A diversidade dessas apre-ciações decorre do fato de que estas pessoas experimen-tam a realidade orientadas, preponderantemente, por umou outro valor; o que, naturalmente, não quer dizer que,abandonando a sua atitude valorizadora costumeira, se-

     jam incapazes de apreciar a realidade circundante, emdeterminados momentos, conforme outro valor. Emborao negociante de madeiras dificilmente chegue a ver a flo-resta à maneira do botânico, e este à maneira do nego-ciante, ambos podem decerto apreciála, em certa oca-sião, como o excursionista que se sente deliciado pela be-leza da mata, pelas delicadas cores de uma flor, pela gra-

    ça de um animalzinho ou pelo majestoso silêncio da pai-sagem.

     III 

    Foram mencionados, na classificação sumária acimaapresentada, os valores utilitários, hedonísticos, vitais,científicos, morais (e sociais) e religiosos.

    a. Os valores de utilidade  fundamentais em todacultura e dominadores na vida econômica distinguemse pelo fato de servirem apenas de meios para arealização de outros valores. O seu valor consiste em se-rem meios, não em ter valor próprio (a não ser em si-tuações anormais). Os outros valores, podendo ser emalguns casos igualmente meios, geralmente têm ainda va-

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    lor próprio. Os valores utilitários são em alto grau quantificáveis. Aumentam e diminuem com a quantidade

    maior ou menor dos bens e com o número maior ou me-nor de pessoas que, desta forma, pode participar destevalor útil. Três litros de leite têm mais valor útil do queum litro, dez automóveis mais do que dois, e sete marte-los mais do que três. No entanto, o valor da verdade en-cerrado numa fórmula matemática não aumenta pela sua

    divulgação quantitativa. O valor estético de um poemanão aumenta pelo fato de ser lançado numa tiragem dedez mil exemplares. Em termos estéticos, o poema ma-nuscrito, encerrado na gaveta e nunca publicado, tem omesmo valor. Dez facas têm dez vezes mais valor (útil)do que uma, mas dez discos da Quinta Sinfonia de Beethoven aumentam em nada o valor estético dela. O valor

    moral de um ato filantrópico é incomensurável em ter-mos quantitativos. Um gesto temo, na face de uma pes-soa que sofre, pode valer moralmente  mais que um mi-lhão de cruzeiros contribuídos por um milionário parauma boa causa, ainda que a utilidade  dessa contribuiçãocertamente seja maior do que a daquele gesto.

     b. Os valores hedonísticos, ou seja, o prazer que sen-timos ao apreciar um bom prato, um bom vinho ou umasituação agradável por exemplo, o prazer que umaquecedor me proporciona num dia de frio intenso ,são referidos intimamente ao sujeito que os experimenta.O que importa é o prazer que eu sinto, não o objeto queé a causa deste prazer. Não é sempre fácil diferenciar eseparar por inteiro o prazer hedonístico do prazer estéti-co. Mas é evidente que no prazer estético dirijome, an-tes de tudo, para o objeto e só em grau muito menoraprecio o meu estado subjetivo. Viso, antes de tudo, aoobjeto. O peso da apreciação estética referese ao ladoobjetivo da relação objetosujeito, ao passo que, no pra-

    zer hedonístico, ele se concentra principalmente no ladosubjetivo, no gozo voluptuoso a que me entrego. Mas,nesta relação estética do sujeito com o objeto, embora

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    este prepondere, aquele não se apaga por completo. Pormais que possa esquecerse, confundido com o objeto

    estético, conserva certa distância e sente como sendo de-le, sujeito, o arrebatamento. Inteiramente diversa é a re-lação do cientista para com seu objeto. Plenamente cons-ciente de si, apaga, contudo, metódica e friamente, a suasubjetividade para que prevaleça, por inteiro, o objeto. Asua atitude é de observação impassível, não de apre-ciação prazerosa ou arrebatada.

     No gozo hedonístico, portanto, prevalece por inteiroo sujeito. Mesmo quando digo que o bolo  (objeto) é sa-

     boroso, atribuindo um valor ao objeto, penso muito maisno bolo como causado meu prazer  do que no próprio bo-lo como tal. No entanto, um bolo de aniversário podetambém ter certo valor estético, quando se trata de uma

    daquelas obras magistrais da confeitaria. Este valor semanifestará como essencialmente objetivo. Aprecioosde forma contemplativa (os sentidos estéticos são quaseexclusivamente o visual e o auditivo, raramente tambémo tátil, ao passo que os hedonísticos são, antes de tudo, o

     paladar e o olfato, o epidérmico da temperatura, não seexcluindo o visual e o auditivo). É uma contemplação de-

    sinteressada, desligada de interesses e desejos vitais, uti-litários, hedonísticos. A valorização hedonística, em par-ticular, provocando desejos que me impelem a agir sobreo objeto, sempre exige a existência  dele para que sejamsatisfeitos, ao passo que a contemplação estética se de-sinteressa da existência real do objeto, satisfazendosecom sua organização formal. No caso do bolo surgemesmo um conflito entre a valorização estética e a he-donística: para obter o prazer hedonístico tenho de negaro prazer estético, destruindo o bolo, e é geralmente sódepois de um leve hesitar que se inicia a destruição da

     forma  para chegar à posse da matéria.  É evidente que ovalor estético, neste caso, é subordinado ao valor he-

    donístico; sua função é realçar e intensificar este último.Da mesma forma o valor estético é muitas vezes associa-

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    do aos valores utilitários, para tornálos mais atraentes.Um automóvel, um cinzeiro, uma cesta de papéis emesmo uma lata de lixo, cujo valor é essencialmente deordem utilitária, aumentam suas possibilidades no mer-cado, mercê dos valores estéticps associados, isto é,mercê da execução esmerada, elegância das linhas, boacombinação de cores etc. A presença de valores estéticosna nossa cultura certamente é menor do que na Gréciaantiga; ainda assim, encontramolos em muitos dos obje-

    tos simples que nos cercam, embora geralmente preste-mos pouca atenção a eles.

    c. Valores vitais, como os da saúde, força, do viço,vigor e juventude, parecem por vezes quase confundirsecom os estéticos, quando se os contempla como qualida-des de seres humanos ou outros organismos. Muitos au-tores, entres eles Darwin e Schopenhauer, supunham quecertos valores estéticos se ligassem aos valores vitais gra-ças à manha da natureza. Desta forma os indivíduos maisadaptados se atrairiam, garantindo a sobrevivência dosmais aptos e assim, da espécie. Sem dúvida, o impulsosexual se socorre de elementos estéticos, não só na nature-za, mas também no mundo cultural. Penteados, batons

    etc., servem para, através da acentuação estética e artifi-cial, aumentar a atração sexual. A moda particularmen-te a feminina embora em larga medida manipulada porinteresses econômicos e conquanto uma das suas funçõesseja a de simbolizar o status  social de quem recorre aosseus produtos mais refinados, encerra em si valores estéti-cos a serviço dos valores vitais, particularmente sexuais.

     No entanto, também a escala negativa dos valores vi-tais pode sofrer valorização estética positiva. Certas cor-rentes do romantismo e certos movimentos decadentistasexaltavam a doença, atribuindo particular valor estético a pessoas de aspecto frágil, melancólico, pálido e de re-quintada delicadeza. Ter tuberculose era, então, quase

    uma moda; mas, como não era tão fácil adquirila, basta-va ter o aspecto de quem sofresse dela.

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    d. Quanto aos valores morais, é fácil mostrar quetêm uma modalidade bem divesa dos estéticos: o valor

    moral reside nas intenções e nos atos de pessoas reais, ao passo que os valores estéticos podem manifestarseatravés de quaisquer “objetos” pessoas ou não (ani-mais, flores, obras etc.), reais ou não (numa naturezamorta só a tela e as tintas são reais, as uvas, flores, a ga-linha etc., não têm “realidade”). Uma boa intenção (en-

    tendese que não deve ser mera  intenção, mas intençãode um ato) é esteticamente neutra, é um valor que resideinteiramente na intimidade de uma pessoa, na “boa von-tade” dela, e que, como tal, não tem nenhuma manifes-tação sensível, nem sequer no ato correspondente, poiseste dificilmente nos revela o âmago da intenção. Os va-lores estéticos, todavia, inexistem sem manifestaçãosensível. O mundo sensível é o seu domínio.

    Se, portanto, Platão ou Goethe falam de uma “belaintenção” ou de uma “bela alma”, usam o termo “belo”em sentido muito lato. Uma alma, uma intenção, podemser boas. Para chamarmolas belas, no sentido estético,elas teriam de manifestarse sensivelmente de um modo

    adequado, no físico da pessoa, no porte sublime ou nagraça dos movimentos.

    Precisamente o fato de os valores morais não se ma-nifestarem de um modo sedutor e não terem nenhumencanto sensível induz muitos moralistas a porem os va-lores estéticos a serviço dos valores morais, a fim de dar

    lhes mais apelo às emoções e à sensibilidade. Através dosséculos atribuiuse à arte, e em particular à literatura eao teatro, a função de serem úteis  e, ao mesmo tempo,deleitarem os apreciadores; a função, portanto, de ensi-narem deleitando. Sua utilidade essencial seria a de aomesmo tempo instruir, educar e elevar moralmente o

    apreciador e isso de uma forma agradável, e mesmo ar-rebatadora. Vestindo os preceitos morais abstratos deformas atraentes, vivas, facilitarseia a sua divulgação,dandolhes ao mesmo tempo uma força emocional de

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    convicção intcn^ e impositiva. A própria beleza, pensa-vam alguns, mesmo sem revestir normas morais, seria

    capaz de enobrecer os sentimentos, tornar as emoções e paixões mais cordatas e os costumes mais requintados.Pensavase niu^ verdadeira educação estética da hu-manidade, em qUe 0 teatro exerceria uma função impor-tante. Tais esperanças talvez nos pareçam um tantoingênuos. Mas seria grave erro negarlhes todo o funda-mento.

    Todavia, p0r mais fundamento que atribuamos a es-sas esperanças generosas, não podemos limitar a artea tais funções e nem admitir que essas funções seriamessenciais à arte. Assim, não se pode dar razão a LeonTolstoi, quando na sua 0bra Que é a Arte?, afirma que amissão da arte £ “tornar sensível e capaz de assimilação

    aquilo que não p0(je ser assimilado na forma da argu-mentação [...]”. Caberia à arte a missão de transportar os preceitos morais Jq domínio do mero conhecimento aodas emoções, já que Qs homens são movidos mais pelosensível e pelas emoções do que pela lógica e pelo pen-samento abstrato% \    ^ te cobriria, por assim dizer, o feioesqueleto da vercjacie ou do bem moral com as formas

    sedutoras da bel^^^ douraria a pílula amarga, para, des-ta maneira, conquistar consumidores mais entusiasmadose em maior núni^r0 para os princípios morais. Levada aeste extremo, a teoria não merece discussão e, mesmoem suas manifestações mais atenuadas, ela não pode serelevada a dogma^

    e. Os valore& científicos  da verdade, objetividade,correção lógica ^ tc Há muitos tipos e concepções deverdade e falase çjela também na religião e na arte, dandolhe as mais d i \ ,ersas acepções. No entanto, se o valorconstitutivo da é 0 *agrado e os da estética certas

     peculiaridades s e ^ s(vejs de determinados objetos, é naciência (e na f i l a ^ 0fia) que a verdade se torna o valorfundamental. É n ^ ciência que se elaboraram os métodosmais perfeitos p a r ^ se chegar à “verdade objetiva”, ainda

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    que muitas vezes com prejuízo do interesse e da im- portância de tais verdades para a nossa “existência”, para

    a nossa experiência vital e para os nossos atos imediatos.Considerando a verdade segundo uma longa tra-

    dição como correspondência entre um juízo (é neleque a verdade se localiza) e a realidade a que ele se refe-re, verificamos que a exatidão científica desse juízo de-corre de um processo de abstração que reduz a realidade

    a alguns dos seus elementos mais gerais. O processocientífico da ciência é sempre um processo de redução darealidade. O juízo científico não apreende a riquezaimensa da realidade concreta, sensível, mas um esqueletogeral, cuja pobreza é o resultado da abstração conceituai.A ciência abstrai de todas as peculiaridades e singulari-dades individuais para formular, através de juízos abstra-tos, os momentos gerais em que uma série de fenômenosindividuais coincidem. Ela não se interessa por esta ouaquela flor, mas pelos predicados em que coincidem to-das as flores da mesma espécie e pelos processos bio-químicos característicos dessa espécie. Desta forma, elachega a formular certas leis gerais que regem os proces-

    sos da realidalde. Assim, o fisiólogo e o biologista redu-zem o indivíduo humano a uma série de processos e re-lações: a namorada transformase numa certa proporçãode células constituídas de água, cal, fósforo, numa pro-

     porção de mucosas, ossos e tecidos de várias espécies. O psicólogo reduz a imensa variedade dos desejos,

    emoções, atitudes e sentimentos de meu filho a certosmecanismos psíquicos; a física, ao fim, reduz a plenitudedos objetos multicores, palpáveis, sonantes, perfumados,macios ou duros, lisos ou ásperos, a um turbilhão deátomos, inapreensíveis pelos nossos sentidos. Vêse quea ciência paga a exatidão das suas verdades com o alto

     preço do empobrecimento do mundo. Ela apresenta uma

    abreviação, um esquema abstrato da realidade.É patente a profunda diferença da visão estética. A

    arte, em particular ainda que também costume reduzir e

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    selecionar, até certo ponto, os dados sensíveis da reali-dade, fálo para intensificar e enriquecêla. Ela apela precisamente aos nossos sentidos (ou à nossa imagi-nação) e mesmo o quadro mais “abstrato” é uma reali-dade individual, peculiar, rica em dados sensíveis. Háabstração também na arte, mas tratase de uma seleçãoespecífica para ordenar, revigorar e aprofundar o mundosensível, ao invés de, como na ciência, eliminálo em fa-vor da formulação abstrata das relações gerais. De certa

    forma, podese dizer que a ciência procura ordenar osnossos pensamentos a respeito de certas regiões da rea-lidade; a ética procura dar ordem às nossas ações; ao

     passo que a arte visa impor ordem à nossa apreensão domundo sensível.

    A profunda diferença e mesmo a oposição que há

    entre os valores científicos e estéticos não excluem quemuitos cientistas e particularmente filósofos tenhamapresentado as suas teorias e concepções em ensaios dealta qualidade literária. A mera clareza e a transparênciada exposição podem ter certo valor estético. No entanto,não é injustificada certa desconfiança em face de obrascientíficas ou filosóficas que convencem mais pela

    elegância e pela retórica do que pela argumentação e pe-la lógica.

    f. Os valores religiosos  o valor do sagrado em par-ticular manifestamse no impacto de um mundo supe-rior, transcendente ao nosso mundo profano, e nas re-lações entre o homem e este mundo superior. O homemreligioso tem a intensa experiência subjetiva desses pode-res sagrados, em face dos quais reconhece com humilda-de a sua dependência total, e que se lhe afiguram logomajestosos, ou bondosos, logo terríveis e vingativos.

    Desde tempos remotos notase uma íntima asso-ciação entre os valores religiosos e os estéticos. Nas faseschamadas primitivas seria quase impossível separálos,

    de tal modo se mostram fundidos no ritual e no mito. Is-so, aliás, também se refere aos outros valores; nas cultu-

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    ras “primitivas” não há diferenciação tão nítida das esfe-ras como na nossa. Nas tribos primitivas qualquer ato

    utilitário podia ligarse a certo cerimonial mágicoreligioso, e nesta cerimônia estavam encerrados ao mesmotempo valores religiosos, estéticos, mágicos (a magiasendo uma espécie de ciência primitiva). Assim, um em-

     preendimento prático, de ordem utilitária, como a caçaou pesca, podia ligarse a cerimônias religiosas, de valorestético etc.

    Percebemos de imediato o valor estético, por exem- plo, de um ritual dançado, como o do candomblé, e a be-leza do mito, quando baixam os orixás e se manifestamnas filhas de santo. Estas transformamse, então, emXangô, Iansã, Iemanjá etc., vivendo perante os nossosolhos de novo a dramática vida dos deuses. Para nós, tais

    mitos dramatizados nos rituais têm alto valor estético. Omundo mítico é povoado de seres poderosos, de deuses edemônios. Cada árvore, cada fonte, cada pedra, é um servivo com uma história dramática, e essa visão de ummundo animado, palpitando de vida e seres semelhantesa nós mesmos, faz com que a relação do homem com es-

    te universo não seja a de um Eu em face de coisas mor-tas, mas de um ser vivo dentro de um mundo vivo, ha-vendo uma relação em que Eu me defronto não com osobjetos abstratos da ciência, mas com o Tu de árvores,fontes, auroras, estrelas etc. A aurora não é o efeitomecânico de ondas de luz emitidas pelo Sol ainda invi-sível; ela é uma jovem que precede Apoio. Este o

    Sol logo virá no seu esplendoroso carro de ouro. Au-rora antecedeo, ruborizada, porque seus amores foramindiscretamente revelados aos deuses olímpicos. Seu ru-

     bor tinge o céu, cada manhã, de matizes róseos. Vemosque o mundo mítico é ao mesmo tempo poético e dramá-tico.

    Repetimos: a visão mítica do mundo é uma visãodramática. Ela exige minha ação o ritual paraabrandar a ira dos deuses ou demônios ou para propiciar 

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    a sua benevolência. E o ritual exige, por sua vez, o mito:este explica minha ação e dálhe sentido.

    Para o homem da fase mítica, o ritual e o mito reves-temse de grande seriedade. Do ritual eficaz pode de-

     pender a vinda da chuva, a fertilidade do solo, a sobre-vivência do povo. Nele, no ritual, os deuses estão presentes. Para os crentes do culto do candomblé, a filha desanto, uma vez caída no orixá e depois de sair paramen-

    tada da camarinha, não representa  Xangô ou Iemanjá,mas “presenta”os: os deuses estão presentes. A filha jánão é a filha, mas a própria divindade. O mesmo se davano culto dedicado a Dioniso, entre os gregos antigos.

     Neste culto, como em todo ritual autêntico, os crentestêm plena fé na presença da divindade. O teatro gregonasceu do culto dionisíaco, mas de certa forma não é

    mais o próprio ritual. Naturalmente, este teatro continuatendo um sentido religioso e religiosa é a sua ori-gem , mas em determinado momento há uma transiçãodo ritual para o espetáculo, da presença da divindade pa-ra a mera representação dela, se assim se pode dizer. Al-guns autores consideram o teatro grego como sintoma de

    decadência religiosa. A seriedade do ritual transformaseem jogo, pelo menos parcialmente, começa a revestirsede caráter lúdico. O que começa a predominar é a atitu-de de “fazer de conta”. Para nós, ao assistirmos ao ritualde candomblé na Bahia, os orixás não estão presentes, asfilhas de santo apenas os representam (para nós). O que

     para os crentes ainda é um ritual, para nós já é um es- petáculo, com valor “apenas” estético e não religioso.

    Vemos aí que os valores estéticos e religiosos, pormais íntima que possa ser a sua associação, podem en-trar em conflito. Ambos os valores têm a tendência de setornarem exclusivos. O valor religioso admite o estéticoapenas como subordinado, a serviço dele. Mas o valorestético reivindica os seus direitos sensíveis e muitas ve-zes sensuais, e então pode surgir um conflito entre ele eo rigor espiritual do valor religioso. Talvez resida nisso

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    uma das razões porque os israelitas proibiram fazer imagens  do Deus invisível (puramente espiritual), como se

    receassem a sensualidade de qualquer materializaçãosensível, por mais abstrata e menos “representativa” quefosse. Em épocas de grande fervor religioso, surgem fa-cilmente atitudes contrárias à arte, pela mesma razão.Pensemos só nos puritanos, violentamente opostos às ar-tes e em especial ao teatro.

    Um poeta francoalemão, Adalbert Chamisso(17811838) exprimiu este conflito num poema, de formadrástica: um pintor cristão, profundamente religioso, de-seja pintar uma crucificação, a mais bela jamais pintada, para glória da arte e do cristianismo, para exaltar, comuma palavra, a arte cristã. Mas o artista prevalece sobreo cristão: crucifica, impiedoso, o adolescente que lhe ser-ve de modelo para pintar a dor mais perfeita que jamaisse viu num quadro.

     A “Verdade” na Arte

    O termo “verdade” costuma ser usado em muitasacepções. Na exposição anterior, a verdade foi apresen-tada como valor científico e apenas como tal ela foi defi-nida, embora superficialmente: como a adequação de um

     juízo ao ser a que este juízo ser refere.

    O termo, no entanto, é usado na vida prática em

    muitas outras acepções. Por exemplo: isto é café de ver-dade, ou seja, café real  (e não qualquer imitação sintéti-ca). Na religião: o verdeiro Deus, isto é, não se trata deum ídolo. Nestes casos, a “verdade” não reside no juízo esim no próprio Ser. De outro lado, quem dirige uma pre-ce com todo o fervor religioso a um ídolo, não rezará es-te com mais verdade do que aquele que se dirige ao“verdadeiro Deus”, mas de um modo indiferente e con-vencional? Kierkegaard afirma que o primeiro, emborase dirigindo a um ídolo, reza ao verdadeiro Deus. O que

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    importa é o fervor íntimo da prece, a autenticidade daminha prece. É nesta sinceridade total que reside a ver-

    dade.Vêse que, fora do contexto científico, o termo pode

    ter muitas acepções. Também no campo estético empre-gase a noção de verdade. Excluímos, de início, a noçãoque atribui “verdade” a uma obra de arte quando o seuautor aparentemente se exprime plenamente nela. Otermo “verdade” significa neste caso “sinceridade” e estanoção não tem validade estética. O que pode importarnuma obra de arte é que ela  parece  ser sincera; a realsinceridade, isto é, o problema de se o autor nela expri-miu seu ser mais profundo não importa; não é possívelverificálo e de qualquer modo não importa esteticamen-te. Temos que apreciar a obra e não o autor. Este só se-

    cundária e marginalmente é campo da indagação estéti-ca. Basta verificar que a obra como tal parece ser ex- pressão autêntica de uma visão, de um sentimento de vi-da, de uma emoção, de uma experiência. E isso dependemuito mais da “arte” do que da “sinceridade” do autor.

    Falase muitas vezes de “verdade” nas artes repre-sentativas, isto é, nas artes que, de alguma forma, repro-duzem a realidade, o mundo humano e a natureza emgeral. “Como acertou!”, “Como é verdadeiro!”, ouvimosdizer o apreciador diante de um retrato “semelhante” oudiante de um quadro que apresenta uma paisagem, umanimal saltando ou uma flor. O termo verdade significaaqui reprodução fiel da realidade exterior que nos cerca.

    Toda arte realista considera esta verdade um alto valorestético. Para muitos, é ainda hoje critério estético im-

     portante. É conhecida a anedota segundo a qual um fa-moso pintor da Antiguidade, em competição com outro,

     pintou frutas tão “verdadeiras” que os passarinhos vie-ram comêlas. Mas o outro pintou, por cima das frutas,uma rede tão “verdadeira” que o primeiro, ao ver o qua-dro, tentou tirar esta rede das frutas.

    Até certo ponto exigese, principalmente do palco,

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    certa “verdade da vida”: as personagens não podem afas-tarse por inteiro da realidade humana, por menos realis-ta que seja a peça. Mas esta “verdade da vida”, esta ver-dade realista, é muitas vezes negligenciada em favor deuma “verdade mais essencial”. Dom Quixote, lutandocontra moinhos de vento, contradiz a “verdade da vida”;isto é impossível em termos realistas. Mas essa ignorân-cia da situação real que aqui chega ao mítico não

    será um traço fundamental do ser humano? Cervantes, pondo de lado toda a verdade realista, apresentanosuma verdade profunda acerca do homem. As persona-gens de Molière muitas vezes não têm plena verdade devida, mas, assim, òonseguem apresentarnos caricaturasextraordinárias das fraquezas humanas, de certa forma

     bem mais verdadeiras do que muitas personagens de pe-ças rigorosamente realistas. Macbeth é um monstro de-sumano, exorbitante, e não acreditamos hoje (geralmen-te) em feiticeiras; mas que retrato tremendo das possibi-lidades demoníacas que se escondem na alma humana eque “verdade” na atmosfera criada pela presença de fei-ticeiras! Assim também encontramos verdades profundas

    nas peças de Wedekind e Ionesco, por mais grotescos eirreais que sejam muitas vezes os ambientes e as perso-nagens.

    Mesmo nas artes nãorepresentativas falase, por ve-zes, de “verdade”, por exemplo na arquitetura ou na mú-sica. Neste caso é evidente que o termo toma uma

    acepção bem diversa, já que essas artes não representamrealidades empíricas (e ninguém chegará ao ponto de di-zer que esta ou aquela música é o retrato fiel e “verda-deiro” do ciúme, da paixão, da angústia, embora não sedeva excluir a teoria de que a música é uma represen-tação simbólica e altamente estilizada dos “movimentos

    da alma”).O termo terá, portanto, nas artes não representativas

    (também na pintura e escultura “abstratas”) um sentidoque não toma em conta as relações externas à própria

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    obra de arte: o critério de verdade será interno, imanenteà própria obra. Caracterizaremos como “falsa” uma obra

    cm que se nota certa incongruência formal, certa falta decoerência interna: uma obra de música, por exemplo, queapresenta um prelúdio cheio de pompa e espalhafato,sem que nas partes posteriores nada se siga que corres-

     ponda a este início. Esperase de uma obra de arte certanecessidade de coerência no desenvolvimento, certa uni-dade íntima; não se admite, em geral, a mera arbitrarie-dade, a não ser que esta constitua, por sua vez, certo pa-drão coerente de exaltação do “jogo”, da imaginação lú-dica. Falsa será também uma canção popular com gran-de orquestração ou cantada segundo o estilo do bel cantoitaliano. Na arquitetura existem relações falsas entre omaterial e a forma, a imposição de formas que não cor-

    respondem ao material escolhido. Existe a incoerênciade um portal esplêndido que dá acesso a residências mi-seráveis, ou de um edifício que reúne vários estilos deuma forma incongruente. Sentimos em tais casos a “fal-sidade” da obra, isto é, usamos um critério de “verdadeestética”. O mesmo se dá quando um cenário não cor-responde ao espírito da peça: o cenário não é “verdadei-

    ro”, por mais realista que seja sua reprodução de deter-minado ambiente, quando o espírito da peça não é realis-ta. No entanto, é possível, até certo ponto, lançar o cená-rio contra o espírito da peça para obter efeitos dechoque, efeitos grotescos, caricatos ou paródicos. Nestecaso, a incoerência aparente entre o espírito da peça e o

    cenário (e o modo do desempenho dos atores etc.) é parte de um plano mais amplo, que, coerente em si, jo-ga com a própria incoerência, fazendo dela um recursoestético.

    IV  

    Os valores estéticos e a arte. Os exemplos acima refe-remse a obras de arte. É nelas, nas obras de arte, que os

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    valores estéticos chegam à sua expressão mais significati-va e se manifestam de modo mais autônomo. Isso, como

     já foi repetido, não costuma verificarse nas outras esfe-ras da cultura nem na vida habitual. Geralmente, os valo-res estéticos encontramse associados a outros valores,subordinandose a eles; as mercadorias louças, jnóveis,trajes etc. são produzidas por empresa que em certamedida respeitam certos valores estéticos, a fim de pode-

    rem vender esses produtos e competir no mercado pelofavor dos consumidores. Da mesma forma, os donos derestaurantes, os oradores políticos, os sacerdotes que ce-lebram rituais, recorrem a valores estéticos a fim deatingir, de forma eficaz, os fins a que visam. Em todosesses casos, os valores estéticos são subordinados a ou-

    tros valores e desempenham papel apenas secundário.Uma poltrona terá de ser, antes de tudo, confortável e,só em segundo lugar, bonita, embora por vezes a relaçãose inverta. Na dança social, nos costumes de cortesia, nasformas de cortejar, nos usos de mesa, encontramosigualmente certa estilização estética; certas cerimôniasatingem um alto grau de beleza. Mas em todos esses ca-sos, os momentos estéticos têm função apenas marginalou acessória.

    Somente na obra de arte, na medida em que a mes-ma se defina e se imponha como tal, invertese a relaçãodos valores. Os valores estéticos, mesmo não se tornandototalmente autônomos, passam a ser critério decisivo paraa avaliação do objeto (ou ato, ação, movimento etc.), ao

     passo que os outros valores se tornam agora acessóriosou se revestem de função “serviçal”. Uma tragédia como

     Macbeth evidentemente põe em jogo valores morais e vi-tais; mas estes se tornam agora suporte aliás indis-

     pensável dos valores estéticos: julgamos a obra não só

    e principalmente pela lição moral nela contida ou pela profundeza filosófica, e, sim, antes de tudo, pela grande-za estética com que esses outros valores se manifestam; é“nas costas” dos outros valores que se manifesta o valor 

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    estético, agora tornado decisivo. Os mesmos valores mo-rais ou vitais não teriam “expressão” nenhuma se apenas

    surgissem apresentados numa narração corriqueira. Noentanto, como valores morais ou vitais, seriam os mes-mos. O que torna a obra imensa não são, portanto, estesvalores, mas a arte de Shakespeare, a extraordinária for-ça com que o dramaturgo faz funcionar estes valores,agora a serviço de fins estéticos.

    A autonomia dos valores estéticos chega ao pontoculminante na arte abstrata, em que esses valores preci-samente pretendem atingir a completa pureza, afirman-dose como únicos, com exclusão de todos os outros va-lores.

    É, pois, na obra de arte que os valores estéticos serealizam em toda a sua plenitude, revelando toda a sua

    força e expressividade. A organização estética dos ele-mentos sensíveis a que agora se subordinam todos osoutros valores, na medida em que estejam presentes

     parece dar à obra de arte um caráter de expressão ime-diata de emoções, sentimentos, disposições anímicas, eenvolve também estes outros valores eventualmente pre-

    sentes numa aura emocional, que lhes dá um impactocomunicativo extraordinário.Pelo exposto nas páginas anteriores talvez possamos

    dizer que os valores estéticos se manifestam em objetos(ou ações, gestos, movimentos etc.) que se distinguem

     pela organização e seleção formais dos seus elementossensíveis, graças aos quais suscitam em nós um prazer

    específico. Tratase de certos arranjos seletivos na pro- porção de sons, formas, superfícies, massas ou palavras,de certa unidade e coerência na multiplicidade dos ele-mentos, de certa harmonia de relações formais que nãoexclui de modo nenhum fortes tensões e mesmo desar-monias, mas que se sobrepõe a todas as “dissonâncias”,dandolhes uma última “solução”.

    O prazer específico produzido por este objeto (açãoetc.) é dirigido para o objeto e sua organização formal, e

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    não se detém no autogozo do próprio estado prazeroso(como no prazer hedonístico). É desinteressado, pois se

    esgota na contemplação das formas do objeto (ou das re-lações formais) e, de qualquer modo, não implica a rea-lidade do mesmo que poderia estimular, como tal, nossosdesejos e impulsos hedonísticos ou vitais. Tampouco en-volve a nossa atuação moral. Os valores estéticos nãocrescem, como tais, em proporção à sua multiplicação(como ocorre no caso dos valores utilitários). Não resi-dem em atos ou intenções reais, como ocorrem com osvalores morais, que são inerentes a pessoas reais (e sósecundariamente a obras em que se divulgam lições demoral, mandamentos etc.). E não exigem o pleno com- promisso com determinada visão do transcendente deum mundo superior como ocorre no caso dos valores

    religiosos. Nem tampouco exigem a aceitação e apro-vação plenas de tais e tais concepções apresentadas, bas-tando, em geral, a apreciação do modo como tais con-cepções são apresentadas. Podemos reconhecer (e apre-ciar) a grandeza da Divina Comédia, de Dante, ainda quenão sejamos católicos e tenhamos outra cosmovisão. Po-demos apreciar o fantasma do pai de Hamlet, ainda que

    não acreditemos em tais seres espectrais. E podemos jul-gar excelentes algumas peças de Brecht, ainda que nãosejamos comunistas.

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