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Espiritualidade do Trabalho
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JONAS MATHEUS SOUSA DA SILVA
ESPIRITUALIDADE DO TRABALHO:
O TRABALHO COMO ELEVAÇÃO DO
HOMEM A DEUS, NA ENCÍCLICA “LABOREM
EXERCENS”, DE SÃO JOÃO PAULO II
1 Edição Belém / PA
ArteSam
2018
Jonas Matheus Sousa da Silva
2
Copyring© Jonas Matheus Sousa da Silva, 2018 ®Todos os direitos reservados *Correção gramatical e estilística: Prof .: Maria Conceição de Lima. *Diagramação: Jonas Silva
Catalogação na Publicação (CIP) Ficha Catalográfica feita pelo autor
S586e Silva, Jonas Matheus Sousa da, 1989 – Espiritualidade do Trabalho: o trabalho como elevação do homem
a Deus, na encíclica “Laborem Exercens”, de São João Paulo II / Jonas
Matheus Sousa da Silva. – Belém: ArteSam, 2018.
95p.
ISBN: 978-85-5697-710-6 1.Teologia 2.Espiritualidade 3. Trabalho.
1.Título.
CDD: 240 CDU: 24
Espiritualidade do Trabalho
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Ao Frei Ângelo Falomi, OFM cap, decano da nossa
Fraternidade Nossa Senhora Auxiliadora, grande missionário
e trabalhador na propagação do Reinado de Deus.
Ao padrinho de Crisma, Antônio da Silva Conde (In
Memoriam).
Aos meus pais, Jovêncio Oliveira e Antônia do Carmo, assim
como meus avós, modelos de elevação a Deus através da doação
aos seus no exercício do trabalho.
Jonas Matheus Sousa da Silva
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O AUTOR
Jonas Matheus Sousa da Silva é paraense, de Capanema, nascido em 1989. Filho de Jovencio Oliveira da Silva e Antônia do Carmo Sousa da Silva, irmão de Jorbia Cecília e Jones Tiago. Franciscano-capuchinho e padre da Igreja Católica Romana. É licenciado em Filosofia e cursou Teologia na Arquidiocese de Belém. É formado em Coaching Integral Sistêmico, pela Febracis. Já publicou cinco de seus livros filosóficos e poéticos. Dispõe sua obra literária nas plataformas virtuais: Recanto das Letras e Clube de Autores. Colabora com diversos artigos para os jornais impressos: O Liberal e O Estado do Maranhão.
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AGRADECIMENTOS
Agradeço a Deus, Uno e Trino, por Sua
imensa misericórdia e providência para comigo,
propiciando-me uma existência cada vez mais livre e
plena a cada dia da minha vida. À Virgem Imaculada
por sua constante intercessão e a São Francisco,
Santo Antônio e São João Paulo II, meus patronos.
Agradeço aos meus familiares, sempre
em sintonia comigo; especialmente aos meus avós
Otávio e Osmarina, aos meus pais, Jovêncio e
Antônia; aos irmãos Jorbia e Tiago, ao cunhado
Ricardo e à sobrinha Sophia.
Agradeço a todos os confrades da
Província Nossa Senhora do Carmo, notadamente os
da minha fraternidade, N. Sra. Auxiliadora.
Obrigado a cada um dos meus
professores e aos colegas de turma ao longo do curso
de Teologia e a todos os trabalhadores da Faculdade
Católica de Belém. Obrigado ao Dr. Pe. João Paulo
de M. Dantas por fazer vivo, para a nossa turma, o
sentido da necessidade da elaboração da monografia,
orientando-nos. Agradeço, especialmente, à
professora Viviane Cartagenes, pelo serviço de
correção das normas técnicas e, à bibliotecária Vera
Cardoso, pela ficha catalográfica.
Jonas Matheus Sousa da Silva
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Obrigado ao meu guardião e orientador,
Dr. Frei Silvio Almeida, OFM cap; pela dedicada e
proativa colaboração para que esta monografia
resultasse excelente. Obrigado à nossa amiga e
colaboradora, Professora Maria Conceição de Lima,
pela generosidade, delicadeza e competência em
realizar a correção gramatical desta monografia.
Manifesto minha gratidão aos meus
orientadores espirituais ao longo desta etapa da
Teologia, os confrades: Frei Pedro Antônio Zanni;
Frei Mário Ivon e Frei Arilson Uchoa; também, ao
Frei Arilson, pelo acompanhamento através do
Coaching Integral Sistêmico. Minha gratidão à
madrinha espiritual Irmã Maria Elisabete da
Trindade, ocd, e à amiga Irmã Maria Teresa da
Santíssima Trindade, ocd, pelas dedicadas orações e
acompanhamento epistolar.
Muito obrigado aos nossos amigos e
amigas da Paróquia dos Capuchinhos, especialmente
aos membros do Grupo Amigos da Vocações. Meu
agradecimento aos dedicados trabalhadores da nossa
paróquia e convento.
Espiritualidade do Trabalho
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“Diz-se em Ciências Naturais que a mão do homem
é adaptada a todos os trabalhos, porque é extensa e
dividida em muitas partes [...] Nesta mão, portanto,
devemos ter a oferta da virtude, da caridade e da
esmola, e o incenso da devoção interior, de modo
que façamos com devoção tudo quanto fazemos”
Santo Antônio de Lisboa (1998, p.485).
Jonas Matheus Sousa da Silva
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RESUMO
Parte do status quaestionis, da encíclica Laborem
Exercens, apresenta a relação do Papa Wojtyła com o
mundo do trabalho, o seu contexto histórico e a
teologia do trabalho que influenciaram o documento
e a sua recepção imediata. Mostra as nuances do
Magistério Social da Igreja, anterior ao Papa Wojtyła,
no que diz respeito à espiritualidade do trabalho.
Sintetiza, com foco teológico, a encíclica e sua
originalidade. Enfatiza compreensões teóricas sobre a
situação atual do trabalhador e dispõe as bases
bíblicas e do pensamento do cardeal Wyszyński sobre
espiritualidade do trabalho. Conclui, sublinhando
Jesus Cristo, trabalhador e redentor, e a configuração
à sua cruz e ressurreição, pela Eucaristia, como chave
principal para que o trabalho seja vivenciado como
meio de elevação do homem a Deus e de
transfiguração das realidades temporais.
Palavras-chave: Laborem Exercens. Papa Wojtyła.
Espiritualidade. Trabalho. Elevação. Eucaristia
Espiritualidade do Trabalho
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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
B Beato
CELAM Conferência Episcopal Latino Americana e
Caribenha
cf Conferir em...
GS Gaudium et Spes
MM Mater et Magistra
Mons Monsegnor (vescovo – bispo)
n. número
OA Octagesima Adveniens
Ocd Ordem Carmelita Descalça
OFM cap Ordem dos Frades Menores Capuchinhos
PP Populorum Progressio
PT Pacem in Terris
QA Quadrasesimo Anno
RN Rerum Novarum
S São
Sj Sociedade de Jesus, Jesuítas
Jonas Matheus Sousa da Silva
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Espiritualidade do Trabalho
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO..................................................... 13
CAPITULO I - STATUS QUAESTIONIS.............. 19
I.1. Karol Wojtyła e o mundo do trabalho...........19
I.2. O contexto da Laborem Exercens................. 27
I.3. A recepção do documento............................ 36
CAPÍTULO II - A ENCÍCLICA LABOREM
EXERCENS............................................................ 41
II.1. Antecedentes da espiritualidade do trabalho
no Magistério Social da Igreja................................41
II.2. A estrutura do documento com os seus
aspectos teológicos................................................ 47
II.2.1. O trabalho e o ser humano...................... 51
II.2.2. O conflito entre trabalho e capital no
contexto histórico da Encíclica............................. 56
II.2.3. Direitos do ser humano do trabalho........60
II.3. A originalidade da encíclica........................ 63
CAPÍTULO III - O TRABALHO COMO
ELEVAÇÃO DO HOMEM...................................69
Jonas Matheus Sousa da Silva
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III.1. Desafios atuais para uma espiritualidade no
trabalho................................................................... 70
III.2. Fundamentos bíblicos para uma
espiritualidade laboral............................................ 74
III.3. A influência do Cardeal Stefan Wyszyński e
da sua obra “O Espírito do Trabalho”.....................77
III.4. O trabalho a luz da Eucaristia, eleva o
homem a Deus........................................................ 79
CONSIDERAÇÕES FINAIS................................. 85
REFERÊNCIAS..................................................... 89
INTRODUÇÃO
Espiritualidade do Trabalho
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No princípio, o divino artífice, ao criar o
céu e a terra (cf. Gênesis 1,1), modelou o ser humano
à sua imagem e semelhança, abençoou-o com o
crescimento e a fecundidade, e confiou-lhe o
trabalho de cuidar do mundo criado. Mas, aderindo
ao mal, o homem e a mulher deixaram de obedecer à
Palavra divina, apropriando-se, com autossuficiência,
da salvação, dom de Deus.
Assim, a sombra do mal entrou no
mundo e trouxe ao trabalho o drama da fadiga e da
dor, de modo que a pessoa humana, na atividade
trabalhista, padece o dramático destino de nutrir a
sua própria existência a partir da experiência
cotidiana da sua mortalidade, na estafa laboral e no
solo inculto. Até que a Palavra eterna assumiu a
condição humana (cf. João 1) e, com ela, o trabalho,
transfigurando-a na senda aberta a Deus, por sua
cruz e ressurreição.
Na arte de trabalhar, a pessoa humana
experimenta a realização da sua transcendência,
mediante a auto-doação. Construindo a ordem no
mundo, através da ação sobre a matéria, vai
conformando os entes por meio da sua corporeidade,
vinculada às suas dimensões psíquica e espiritual.
Nessa expressão de si, mediante a arte
laboral, o homem existe como nó de pulsões e
relações (Exupéry). “Essa intuição, que A. Saint-
Exupéry testificou em várias de suas obras, exprime
Jonas Matheus Sousa da Silva
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exatamente a natureza do homem. Realmente, o
homem concreto é um nó de relações voltado para
todas as direções até para o infinito” (BOFF, 1985,
p.17).
No pensamento do filósofo e humanista
jesuíta, Padre Henrique Vaz (1921-2002), em
consonância com a constituição antropológica que
está na I Carta aos Tessalonicenses 5, 23, pelo corpo,
o homem entra em relação com a dimensão material,
pela alma, com a dimensão psicológica da alteridade
e, pelo espírito, com o próprio Deus.
O trabalho manifesta a transcendência
relacional do homem trabalhador (Homo Faber), que é
sempre ser humano em busca (Homo Viator). Ao
exercer o trabalho, o ser humano constrói o mundo
e, desse modo, constrói a si mesmo (cf.
ABAGNANO, 2007, p.1149).
No entanto, percebem-se, ao lado de
tantas possibilidades positivas na realidade
trabalhista, vários aspectos contraditórios que
parecem aviltar as belas perspectivas aludidas.
Desde a Modernidade, com os avanços
industriais e cibernéticos, quando o ser humano já
não está na infelicidade do desemprego, os
trabalhadores se encontram a exercer atividades que
não são perspectivas ao seu gênio e vocação, mas
acabam por ser aceitas pela necessidade que os
mesmos têm de sobreviver e suprir as necessidades
básicas dos seus.
Espiritualidade do Trabalho
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O ambiente de trabalho e o próprio
trabalho pode vir a representar uma realidade que
não corresponde ao que exige a dignidade da pessoa
humana e, em seu detrimento, manifestar a injustiça
que instrumentaliza o outro, alienando-o.
Nas grandes cidades, nas manhãs e
tardes dos dias de semana, ao se observar o
transporte coletivo, verifica-se grande quantidade de
estudantes e trabalhadores se espremendo, como
sardinhas enlatadas, por um longo tempo e em
condições desconfortáveis, até chegarem às suas
escolas ou locais de trabalho, ou – ao final da tarde-
retornando para os seus lares; sem falar no dia
estafante de trabalho e das tarefas próprias do lar.
Diante dessa situação, surgem as questões: como tais
pessoas experimentam a transcendência humana de
um modo positivo, no seu contexto de trabalho?
Elas conseguem sentir a presença de Deus em meio à
jornada cotidiana? Afinal, elas concebem o trabalho
como graça? Como a teologia pode ajudá-las a
transcender (para, depois, reformar) tais situações,
mediante uma genuína espiritualidade do trabalho?
Para tanto, há uma madura colaboração
do magistério social da Igreja, através da carta
encíclica Laborem Exercens, do Papa Karol Wojtyła
(São João Paulo II), que também é poeta e filósofo
engajado no personalismo cristão. Assim, esta
monografia enfatiza “o trabalho como elevação do
homem a Deus, na Laborem Exercens, de São João
Paulo II”.
Jonas Matheus Sousa da Silva
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No I capítulo, Status Quaestionis,
apresentamos uma breve biografia de Karol Wojtyła,
na sua ligação com o mundo do trabalho; em
seguida, abordamos o contexto do documento ligado
à ambientação da Guerra Fria com os sistemas
Capitalista e Socialista a dividir o mundo, as lutas dos
operários poloneses no partido “Solidariedade”, a
construção da Teologia do Trabalho, a partir do
Concílio Vaticano II. Após, indicam-se algumas
perspectivas de recepção da encíclica.
No II capítulo, “A encíclica Laborem
Exercens”, inicia-se com uma visão panorâmica dos
documentos pontifícios da Doutrina Social da Igreja,
de Leão XIII até o Beato Paulo VI, no que acenaram
a temas da espiritualidade do trabalho; segue-se uma
síntese com ênfase teológica das quatro seções
iniciais da encíclica e, finalmente, a síntese da sua
quinta seção, ressaltando a sua originalidade em
apresentar a espiritualidade do trabalho e do próprio
homem que é sujeito do trabalho.
No III e derradeiro capítulo, “O
trabalho como elevação do homem a Deus”, trazem-
se à baila reflexões recentes de teóricos que
apresentam a situação atual do trabalhador em
aspectos positivos e negativos. Logo ressaltam-se os
aspectos bíblicos e o pensamento do cardeal polonês
Stefan Wyszyński sobre a espiritualidade do trabalho.
Nessa esteira, embasado no magistério do Papa
Wojtyła, apresenta-se a solução para as questões
levantadas, no próprio evangelho do trabalho, Jesus
Cristo. Ele trabalhou com as próprias mãos,
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assumindo e salvando o trabalho como colaboração
com a obra do Criador e na conformação ao mistério
da sua cruz e ressurreição. Ele está presente
realmente nos frutos do trabalho humano
apresentados ao altar e eucaristizados na liturgia da
Igreja, pela Palavra e pelo Espírito, tornados “Pão da
vida eterna e vinho da Salvação” (cf. Missal
Romano). Na Eucaristia está a presença real de Jesus
Cristo e de seu mistério pascal.
Jonas Matheus Sousa da Silva
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CAPITULO I - STATUS QUAESTIONIS
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Elaborar um status quaestionis de um
tema, além de ser uma tarefa árdua, também é
necessária para que se compreenda melhor aonde se
quer chegar com a reflexão. O homem é um ser
histórico e vive inserido em uma história concreta.
Uma reflexão não nasce do acaso, ela traz uma
historicidade que, se considerada seriamente, pode
possibilitar uma maior compreensão e
desenvolvimento posterior.
Tratando-se de uma obra e de um ator
especifico, o status quaestionis tenta situar ambos
dentro da discussão atual sobre o tema, para poder
permitir colher a novidade e proporcionar uma
reflexão que seja madura, capaz de apontar
indicações que colaborem para um desenvolvimento
epistemológico acerca da realidade considerada. Por
isso, precisa-se apreciar o autor e a obra naquele
momento histórico, para entender o significado de
ambos, no ontem e no hoje da história do trabalho.
I.1 - Karol Wojtyła e o mundo do trabalho
Terceiro filho de trabalhadores, um
militar e uma dona de casa, Karol Wojtyła (São João
Paulo II) experimentou o trabalho manual em sua
juventude, pelo período da ocupação nazista na
Jonas Matheus Sousa da Silva
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Polônia (1939-1944). Trabalhou na pedreira
Zakrzowel
Numa primeira etapa, o operário Wojtyła trabalha no fundo
desses estranhos barrancos – atualmente coberto por uma água
translúcida – protegidos no alto por uma cerca hesitante. A
rocha é cortada com explosivos. Usando um carrinho de mão,
Karol transporta blocos de pedra calcária para serem quebrados
a picareta. Os rochedos são depositados em pequenos vagões,
nos quais serão transportados por uma pequena locomotiva a
vapor até a usina (LECOMTE, 2005, p.79).
Em seguida, no laboratório de produtos químicos da
Borek Falecki:
No início do verão de 1941, Karol é transferido da pedreira
para a estação de purificação de água da usina química, que
produz bicabornato no lugar conhecido como Borek Falecki
[...] O trabalho é extremamente cansativo. Karol passa o dia
inteiro transportando baldes cheios de cal e soda cáustica, que
vertem, para diluição num imenso reservatório: o objetivo é
diminuir o índice de calcário na água encaminhada para as
caldeiras, para evitar a diminuição de sua capacidade térmica [...]
Karol Wojtyła trabalharia durante três anos nessas caldeiras, no
calor e na poluição” (LECOMTE, 2005, p.81)
Apesar de não estar habituado ao
trabalho pesado, o jovem estudante universitário é
praticamente forçado a esse trabalho. Ainda assim,
essa nova condição, adquirindo uma atitude
espiritual, não tomando o trabalho como peso, mas,
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vivenciando-o como graça, a ponto de poetar, nesse
período, sobre a grandeza do homem do trabalho,
como está na sua poesia Matéria:
Ouve: o ruído dos martelos, sua cadência uniforme,
Eu os faço ressoar nos homens
Para aliviar a força dos golpes.
Ouve: a corrente elétrica
Corta um rio de pedra.
Um pensamento cresce em mim a cada dia:
A grandeza do trabalho está no homem. [...]
Olha: como o amor se alimenta
De uma tão profunda raiva
Ela flui no fôlego dos homens,
Rio inclinado pelo vento. [...]
Pelo trabalho, tudo começa:
O que cresce no pensamento e no coração,
Os grandes acontecimentos, as multidões.
O amor amadurece ao ritmo uniforme dos martelos. [...]”
(WOJTYŁA apud LECOMTE, 2005, p.80)
Jonas Matheus Sousa da Silva
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Essa visão positiva sobre o trabalho
como obra do homem, ser espiritual e corporal, que
revela o ser do seu executor, não é unilateral, pois
não ignora o drama vivenciado pelo trabalhador. De
fato, no poema Em memória de um companheiro
de trabalho, o autor, referindo-se a um
companheiro que sofreu um acidente fatal, na lida da
pedreira, diz:
Não estava só,
Seus músculos se espalhavam em uma imensa multidão
Até que levantam o martelo, até que vibravam de energia
Mas isto só durou até que ele sentiu a terra embaixo dos pés
Até que a pedra não lhe abriu a fronte e não lhe entrou no
[coração
Levantaram o corpo, avançaram em silêncio
Ainda emanava dele fadiga e um sentido de injustiça.
Vestiam blusas cinzas, sapatos enlameados até o tornozelo
E daquele jeito revelavam que teriam de ter fim aquelas pessoas.
O tempo dele parou com violência
Nos quadrantes de baixa tensão, os ponteiros soltos
[improvisamente desceram a zero
A pedra branca entrou nele, corroeu sua essência
E o assimilou de tal forma, que o transformou em pedra
Quem levantará aquela pedra?
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Quem disporá de novo os pensamentos naquela fronte rasgada
Como se racha reboco de muro?
Deitaram-no sob um lençol de cascalho
Chegou a esposa desesperada, a criança voltou da escola.
É só isso? Só a sua raiva passará aos outros?
Não amadurecia nele, talvez, com verdade e amor
Gerações futuras devem, talvez, desfrutá-lo como bruta matéria
Despojando da sua essência mais intima e única
As pedras se movem de novo, a carreta desaparece entra as
[flores
De novo uma descarga elétrica cai sobre a pedreira
Mas o homem trouxe com ele a estrutura secreta do mundo
Onde o amor prorrompe mais alto, se mais um embebe a raiva.
(WOJTYŁA, 2017)
A visão de Karol Wojtyła sobre a
ambivalência do trabalho, deixa-se iluminar pela
potência transfiguradora da espiritualidade cristã.
Iluminado pelos escritos de São João da Cruz e Santa
Teresa de Ávila, que ganhara, por aquela época, do
piedoso alfaiate, o Servo de Deus Jan TyranowskI,
Karol Wojtyła realizará uma compreensão dialética
entre o peso próprio daqueles trabalhos e a doutrina
espiritual desses santos carmelitanos. Assim
testemunhou o Papa Wojtyła, em “Dom e Mistério”:
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Jan Tyranowski. Era empleado de profesión, aunque había
decidido trabajar en la sastrería de su padre. Afirmaba que su
trabajo de sastre le hacía más fácil la vida interior. Era un
hombre de una espiritualidad particularmente profunda [...]
Tyranowski, que se estaba formando en los escritos de San Juan
de la Cruz y de Santa Teresa de Ávila, me introdujo en la
lectura, extraordinaria para mi edad, de sus obras. (JUAN
PABLO II, 1996).
Com o testemunho e a orientação
espiritual desse homem do trabalho, Wojtyła
assimilou a unidade da espiritualidade humana que
revela sua criatividade na ação laboral e o sentido do
próprio amor humano que se faz ação pelo bem da
alteridade. Outra influência espiritual lhe adveio da
leitura do livro “O Espírito do Trabalho” (1946), do
então bispo de Lublin, na Polônia, Stephan
Wyszynski (Cardeal-Primaz da Polônia, de 1953 a
1981), obra que retomaremos no último capítulo
deste. Certamente, tais experiências e orientações
influenciaram no amadurecimento do pensamento
filosófico e teológico wojtyliano.
Mais tarde, Karol Wojtyła – como
filósofo – pensou a fenomenologia do ato pessoal do
ser humano, como hermenêutica da personalidade
humana, na obra “Pessoa e ação” (1969); como
expressou na Introdução desta:
Las acciones son un momento privilegiado para ver la persona
y, por tanto, para conocerla experimentalmente. Constituyen
algo así como el punto de partida más adecuado para
comprender su naturaleza dinámica; y la moralidad, en cuanto
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25
propiedad intrínseca de las acciones, nos conduce a eso mismo
de manera aún más específica. En este lugar no nos interesan
los valores morales en sí mismos, lo que propriamente le
corresponde tratar a la ética, sino que nos interesa más bien el
hecho mismo de su constitución en acciones, su dinámico fieri.
Y esto porque ahí la persona se nos revela de manera más
profunda y amplia que en el acto mismo (WOJTYŁA, 2011,
p.44)
Também, na sua obra ética “Amor e
Responsabilidade” (1960), sobre o amor entre
homem e mulher, seguindo a Norma Personalista: “a
pessoa é um bem tal que só o amor se relaciona com
ela própria e plenamente” (WOJTYŁA, 1982, p.38),
expressando a ética da doação ao outro, no amor,
visando a educação e manutenção vital da prole, o
trabalho constitui um instrumento de recíproca
doação e, assim, de realização da pessoa humana. Da
sua elevação pessoal na prática do compromisso
familiar é que se cumpre o supremo valor do amor;
como está expresso na obra sobredita:
O amor é realmente o supremo valor moral. Mas é necessário
saber transferir as suas dimensões aos afazeres comuns da vida
cotidiana. E, precisamente por isso surge o problema da
educação do amor [...] O amor é dirigido por uma norma. Dela
é preciso deduzir o máximo valor de toda e qualquer situação
psicológica, para que esta atinja a própria plenitude e se torne a
expressão do amadurecido compromisso da pessoa. Na
realidade, o amor nunca é algo completo, algo ‘dado’ à mulher e
ao homem, sempre é uma ‘tarefa’ (WOJTYŁA, 1982, p.121).
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Em 1962, quando pregou um retiro para
jovens universitários poloneses, Karol Wojtyła
enfatizou que o trabalho em si não é suficiente para
realizar profundamente o ser humano com seus
anelos e consciência, mas, se tomado como meio de
efetivação da diaconia do amor, com sua potência
criadora, pode descarregar os sentimentos de revolta
e frustrações do ser humano; assim, o trabalho não é
um simples meio de utilidade, antes, é um meio
teleológico orientado para Deus e para o próximo.
Karol Wojtyła também se expressou com os termos:
“se o trabalho não for um modo de realização de
serviço e de amor, se o trabalho não tiver um valor
que derive da pessoa, poderá aniquilar o homem!
Mas o trabalho pode possuir também o valor que
constrói o homem” (WOJTYŁA, 1984, p.32).
Tais reflexões foram movidas pelo dever
pastoral de enfatizar a ação dos trabalhadores à luz
da doutrina cristã, frente ao perigo vigente de uma
leitura apenas materialista do trabalho, estandartizada
pelo marxismo vigente na União Soviética, no Leste
Europeu, sobretudo na Polônia, sua pátria, onde o
trabalho se configurava mais como uma obrigação
servil que um serviço engrandecedor da pessoa
humana.
Com sua intuição cristã, frente ao perigo
que se abatia sobre a concepção e a práxis de uma
genuína antropologia do trabalhador, o Papa
Wojtyła, iluminado por Deus e sob perenes bases
teóricas e magisteriais, impostou uma melhor
Espiritualidade do Trabalho
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compreensão antropológica do trabalho na encíclica
Laborem Exercens.
I.2 - O contexto da Laborem Exercens
O santo Papa Wojtyła, na esteira da
Constituição pastoral Gaudium et Spes,1 do Concílio
Vaticano II (1962 – 1965), contribuiu para a
Doutrina Social da Igreja, abordando o tema do
trabalho, através da encíclica Laborem Exercens (1983),
em comemoração ao 90° aniversário da Rerum
Novarum de Leão XIII, evidenciando o trabalhador
como sujeito do trabalho e, este, como chave da
questão social; opondo-se às ideologias marxista (o
homem e sua cultura como produtos do trabalho) e
neoliberal (instrumentalização utilitarista do ser
humano, em troca de capital).
1 Números-chave desta constituição acerca do trabalho e sua espiritualidade: n.22 “Na realidade, o mistério do homem só no mistério do Verbo encarnado se esclarece verdadeiramente. Adão, o primeiro homem, era efetivamente figura do futuro, isto é, de Cristo Senhor. Cristo, novo Adão, na própria revelação do mistério do Pai e do seu amor, revela o homem a si mesmo e descobre-lhe a sua vocação sublime”; n.67 “É com o seu trabalho que o homem sustenta de ordinário a própria vida e a dos seus; por meio dele se une e serve aos seus irmãos, pode exercitar uma caridade autêntica e colaborar no acabamento da criação divina. Mais ainda: sabemos que, oferecendo a Deus o seu trabalho, o homem se associa à obra redentora de Cristo, o qual conferiu ao trabalho uma dignidade sublime, trabalhando com as suas próprias mãos, em Nazaré. Daí nasce para cada um o dever de trabalhar fielmente, e também o direito ao trabalho; à sociedade cabe, por sua parte, ajudar em quanto possa, segundo as circunstâncias vigentes, os cidadãos para que possam encontrar oportunidade de trabalho suficiente” (GAUDIUM ET SPES, 2017).
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Para tanto, houve um contexto histórico
e teológico que levou Karol Wojtyła a dar uma nova
impostação magisterial ao trabalho humano nesta
encíclica. Neste ponto, necessita-se considerar tal
contexto.
O mundo se encontrava dividido em
dois blocos econômicos contrapostos na busca da
hegemonia global, envolvido numa competição
bélica e técnica, ameaçando o globo terrestre com a
possibilidade de uma destruição sem precedentes,
numa possível III Guerra mundial. Os blocos
econômicos da economia socialista, levados pela
União Soviética, e o do capitalismo liberal,
conduzido pelos Estados Unidos, e suas ameaças de
mútua destruição, dividiram o globo entre Oriente
socialista e Ocidente capitalista, caracterizando o
período conhecido por Guerra Fria (1945-1991).
Sobre essa realidade, Wojtyła se expressou na
encíclica Sollicitudo Rei Socialis (1987).
No Ocidente, existe, de fato, um sistema que se inspira
fundamentalmente nos princípios do capitalismo liberalista, tal
como este se desenvolveu no século passado, com a
industrialização; no Oriente, há um sistema inspirado pelo
coletivismo marxista, que nasceu da interpretação da condição
das classes proletárias feita à luz de uma leitura peculiar da
história. Cada uma das duas ideologias, referindo-se a duas
visões tão diferentes do homem, da sua liberdade e do seu papel
social, propôs e promoveu, no plano económico, formas
antitéticas de organização do trabalho e de estruturas da
propriedade, especialmente pelo que se refere aos chamados
meios de produção. [...] As relações internacionais, por sua vez,
não podiam deixar de sentir os efeitos desta «lógica dos blocos»
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e das respectivas «esferas de influência». Nascida logo após a
conclusão da segunda guerra mundial, a tensão entre os dois
blocos dominou os quarenta anos que se seguiram, assumindo,
quer carácter de «guerra fria», quer o de «guerra por
procuração», mediante à instrumentalização de conflitos locais,
quer mantendo os espíritos na incerteza e na ansiedade, com a
ameaça de uma guerra aberta e total. (JOÃO PAULO II, 1987).
No mundo da Filosofia, o trabalho foi
visto como positividade e meio de construção da
cultura e do próprio ser humano, a partir dos
pensamentos dialéticos de Georg Hegel (1770-1831)2
e Karl Marx (1818-1883)3, que influenciaram a
ideologia do bloco socialista representado pela União
Soviética, com ênfase na negação de Deus e da
transcendência espiritual do ser humano; em
contrapartida a Hegel e Marx, Søren Kierkergaard
2 Conforme Nicola Abagnano (2007, p.1148): “Já nas Lições de Iena (1803-1804) Hegel considerava o Trabalho como a ‘mediação entre o homem e seu mundo’; de fato, diferentemente dos animais, o homem não consome imediatamente o produto natural mas elabora, das maneiras e para as finalidades mais diversas, a matéria fornecida pela natureza, dando, assim, à tal matéria, o seu valor e a sua conformidade ao objetivo (Fil. Do dir.§196). É só na satisfação das necessidades por meio do Trabalho que o ser humano é realmente humano: porque se educa tanto teoricamente, através dos conhecimentos que o Trabalho exige, quanto na prática, por se habituar à ocupação, adequando sua própria atividade à natureza da matéria e adquirindo aptidões universalmente válidas” 3 “Os homens começaram a distinguir-se dos animais, segundo Marx, quando ‘começaram a produzir seus meios de subsistência, progresso este que é considerado por sua organização física. Produzindo seus meios de subsistência, os homens produzem indiretamente sua própria vida material’ (A Ideologia Alemã, I, A; trad. It, p.17) [...] A produção e o Trabalho não são, portanto, uma condenação para o homem: são o homem mesmo, o seu modo específico de ser e de fazer-se homem” (ABAGNANO, 2007, p.1149).
Jonas Matheus Sousa da Silva
30
(1813-1855)4, com seu existencialismo cristão, havia
valorado o trabalho, ligando-o à dignidade humana.
No Século XX, com o patrocínio da
hierarquia da Igreja, surgiram grupos de leigos ou
clérigos, que aproximaram a espiritualidade católica
da esfera do trabalho, tais como a Juventude
Operária Católica (1923 – Bélgica), a Prelazia da
Santa Cruz e Opus Dei (1928- Espanha), a Ação
Católica (1929 – Papa Pio XI), os Padres Operários
(1943 –França), entre outros.
No mundo teológico em torno ao
Concílio Vaticano II, o teólogo francês, Marie-
Dominique Chenu, fundador da revista Concillium,
(1895-1990) destacou-se com a Teologia do Trabalho5,
que é “o prato forte, a ponta de diamante do edifício
teológico de Chenu, sendo, ao mesmo tempo, a sua
contribuição mais importante, original e válida à
teologia perennis” (MONDIN, 1979, p.145),
devidamente valorizada no pós-concílio. Para esse
teólogo,
4 “Do ponto de vista de uma ética religiosa, Kierkegaard afirmava, por sua vez, a estreita ligação do Trabalho com a dignidade do homem. Dizia que ‘[...]O dever de trabalhar para viver exprime o universal humano e o exprime também no sentido de ser uma manifestação da liberdade’ (Entweder-Óder II)” (ABAGNANO, 2007, p.1149). 5 Para Battista Mondin (1979, p.149): “Na construção de Chenu [...], a parte mais importante e original é a teologia do trabalho. Nesse ponto, ele preencheu um vazio que durava há séculos. É certo que ele não foi o único a se interessar por esse problema do nosso tempo. Paralelamente a ele, outros teólogos (Teilhard de Chardin, Congar, Philips e Thils, entre os católicos; Tillich, Bonhoeffer, Gogarten, Cox e muitos outros, entre os protestantes) examinaram o assunto. Mas ele apresentou uma solução que supera todas as outras pela sua solidez dos argumentos e a amplitude de visão”
Espiritualidade do Trabalho
31
a dura realidade do trabalho leva à efetiva validade da justiça, a
virtude máxima da nova sociedade [...] O cristão, aberto à
transformação do processo do trabalho, saberá entender o
alcance, as dificuldades, a delicadeza desse novo e rico
fenômeno, que se abre à lei do evangelho. Ele não se recusará a
um amor de indivíduo a indivíduo. Ele reconhecerá o seu
‘próximo’ também lá onde não o encontra mais pessoalmente,
mas só através do intricado aparato social [...] A construção do
Corpo Místico de Cristo, mesmo mediante a demonstração de
um amor quase institucionalizado, liga-se à construção de um
mundo, no qual o trabalho humano garante uma certa
maturação da criação para a sua coroação na glória (CHENU,
1971, p.348)
A III Conferência Geral do Episcopado
Latino-americano, sob o tema: “A evangelização no
presente e no futuro da América Latina”, realizada
em Puebla, México, em 1979, que contou com a
participação de São João Paulo II, tratou do tema do
trabalho como gesto litúrgico (n° 213):
Por Cristo, único Mediador, participa a humanidade da vida
trinitária. Cristo, hoje, sobretudo por sua atividade pascal, nos
leva a participar do mistério de Deus. Por sua solidariedade
conosco, nos torna capazes de vivificar pelo amor nossa
atividade e transforma nosso trabalho e nossa história em gesto
litúrgico, isto é, de sermos protagonistas com Ele na construção
da convivência e das dinâmicas humanas que refletem o
mistério de Deus e constituem sua glória vivente (III CELAM,
1979, p. 131).
Jonas Matheus Sousa da Silva
32
Do mesmo modo, o Papa Wojtyła
enfatizou a necessidade de promover, pela oração
particular dos fiéis, a santificação do trabalho (n°
956): “Promover as obras que fomentem a
santificação do trabalho” (III CELAM, 1979, p. 277).
Na ocasião dessa viagem (1979), São
João Paulo II, em 30 de janeiro, discursou aos
operários, acentuando aspectos da espiritualidade do
trabalho:
O trabalho não é uma maldição, é uma bênção de Deus que
chama o homem a dominar a terra e a transformá-la, a fim de
que, com a inteligência e o esforço humano, continue a obra
criadora e divina [...] o trabalho não deve constituir mera
necessidade, deve ser visto como uma verdadeira vocação, um
chamamento de Deus para construir um mundo novo em que
habitem a justiça e a fraternidade, antecipação do Reino de
Deus, onde já não haverá nem faltas, nem limitações. O
trabalho deve ser o meio para que toda a criação esteja
submetida à dignidade do ser humano e filho de Deus [...] O
mistério central da nossa vida cristã que é o mistério da Páscoa,
faz-nos olhar para o céu e para a terra nova. No trabalho deve
existir essa mística pascal, coma qual os sacrifícios e as fadigas
se aceitam com impulso cristão, a fim de fazer com que
resplandeça mais claramente a nova ordem querida pelo Senhor
e para fazer um mundo que corresponda à bondade de Deus na
harmonia, no amor e na paz (JOÃO PAULO II, 1979, p.127).
No ano 1980, na sua viagem ao Brasil, ao
discursar aos operários, em São Paulo, São João
Paulo II acentuou o trabalho como serviço e
disciplina que engrandece o homem: “o trabalho é
Espiritualidade do Trabalho
33
um serviço, um serviço a suas famílias e a toda a
cidade, um serviço no qual o próprio homem cresce
na medida em que se dá aos outros. O trabalho é
uma disciplina em que se fortalece a personalidade”
(JOÃO PAULO II, 1980, p.112).
Na América Latina, com grande parte
das suas nações oprimidas em estado político de
exceção, sob os militares; sob a tensão da Guerra
fria, ganhavam força, entre o povo culto, as
doutrinas marxistas e seus partidos, como modo de
luta pela liberdade truncada pelos então regimes
políticos, aí surge a Teologia da Libertação, com
fundamentos bíblicos no êxodo, nos profetas e na
proximidade de Jesus com os marginalizados;
incorporando em si, em um certo momento,
concepções metodológicas da filosofia de Karl Marx.
A bíblia e o discurso teológico se tornam
compreensíveis ao mundo das classes oprimidas
neste contexto histórico, dentre estas a de parte dos
trabalhadores braçais e menos abastados, criando
uma simpatia pela luta de classes. Para o pai da
Teologia da Libertação, Gustavo Gutiérrez (1986,
p.268):
A teologia da libertação é uma teologia de salvação nas
condições concretas, históricas e políticas de hoje. Essas
mediações históricas e políticas atuais valorizadas por si
mesmas, alteram a vivência e a reflexão sobre o mistério
escondido desde todos os tempos e revelado agora, sobre o
amor do Pai e a fraternidade humana, sobre a salvação.
Jonas Matheus Sousa da Silva
34
Outros fatores da década de 1980, que
marcaram profundamente o contexto desta encíclica,
foram o processo de decadência da União Soviética e
as lutas do sindicato de Trabalhadores Solidariedade,
na Polônia, com o apoio do Papa Wojtyła, pela
independência do seu país que estava sob as
diretrizes da União Soviética.
Baseadas no planejamento centralizado,
as economias do bloco de países socialistas,
organizavam a produção conforme as metas
estabelecidas pelo Estado. Isso gerava graves
problemas sociais, como a escassez de alimentos e
bens de consumo, e a estagnação tecnológica,
afundando os países deste bloco numa profunda
crise, entre as décadas de 1970-1980. A partir de
1985, sob Mikhail Gorbachev, como secretário geral
do Partido Comunista, o bloco comunista foi se
abrindo, com diversas medidas modernas, à
democratização, culminando na queda da União
Soviética, em 1989, com a abertura política,
encerrando a Guerra Fria, representada com o
evento da queda do Muro de Berlim, naquele ano.
Nesse panorama, na Polônia, sobre a
qual se impôs o domínio da União Soviética após a II
Guerra Mundial, tonando-se país satélite do bloco
comunista, na década de 1970, a economia polonesa
imergia numa profunda crise por dívidas contraídas
com o Fundo Monetário Internacional. O governo
polonês promovia o racionamento obrigatório,
aumentando os preços de alimentos e bens de
consumo.
Espiritualidade do Trabalho
35
Em 1980, a reação dos trabalhadores
poloneses se concretizou com a fundação do
sindicato Solidariedade, liderado pelo operário Lech
Walesa, espalhando a greve trabalhista por toda a
Polônia. Tal movimento encontrou o amplo apoio
do Papa Karol Wojtyła, filho daquela nação. Wojtyła
se expressou revisando o sucesso dos trabalhadores
poloneses naquela década, no número 23, da
encíclica Centesimus Annus:
De entre os numerosos fatores que concorreram para a queda
dos regimes opressivos, alguns merecem uma referência
particular. O fator decisivo, que desencadeou as mudanças é,
certamente, a violação dos Direitos do trabalho. Não se pode
esquecer que a crise fundamental dos sistemas, que pretendem
exprimir o governo ou, melhor, a ditadura do proletariado,
inicia com os grandes movimentos verificados na Polônia, em
nome da solidariedade. São as multidões dos trabalhadores a
tornar ilegítima a ideologia, que presume falar em nome deles, a
reencontrar e quase redescobrir expressões e princípios da
doutrina social da Igreja, a partir da experiência difícil do
trabalho e da opressão que viveram. Merece, portanto, ser
sublinhado o facto de, quase por todo o lado, se ter chegado à
queda de semelhante «bloco» ou império, através de uma luta
pacífica que lançou mão apenas das armas da verdade e da
justiça (JOÃO PAULO II, 1991).
O Partido Comunista reagiu a tal levante
popular gerado pelo Solidariedade, nomeando para a
Polônia o general Wojciech Jaruzelski que, em 1981,
decretou a lei marcial de estado de sítio, aprisionando
todos os líderes do Solidariedade, os quais, mesmo
encarcerados, continuaram a se organizar de modo
Jonas Matheus Sousa da Silva
36
clandestino, com o apoio da Igreja Católica. Tais
lideres só foram libertos em 1988, terceiro ano de
uma nova crise econômica marcada por vivos
protestos de revolta no país. O governo socialista
polonês já estava totalmente desacreditado na
opinião pública polonesa. O general Jaruzelski
reuniu-se com os líderes do Solidariedade, tornando-o
o primeiro sindicato livre da União Soviética. O
Partido Comunista suplantou Jaruzelski por um
presidente interino não-comunista, que preparou as
eleições totalmente livres, em 1990, quando o povo
democraticamente elegeu presidente o operário Lech
Walesa que, no seu governo, ativou um programa de
reformas econômicas, integrando a Polônia na
democracia capitalista.
Tal foi o contexto do documento. Dado
que adentraremos no texto da encíclica no próximo
capítulo, considerado o seu contexto, passamos a
verificar a sua recepção.
I.3 - A recepção do documento
Na recepção da encíclica Laborem
Exercens, pudemos colher de vários periódicos e
livros teológicos e pastorais que sucederam
imediatamente a encíclica, algumas posições que
catalogamos em: a) compreensão de simpatia
marxista; b) compreensão de crítica ao capitalismo; e
c) crítica de simpatizantes da Teologia da Libertação
à encíclica.
Espiritualidade do Trabalho
37
A posição de simpatia marxista percebe
que o Papa Karol Wojtyła pareceu usar alguns
conceitos da antropologia marxista. Para o Padre
Jaime Correa, no artigo “Laborem Exercens: um
confronto com o marxismo” (1982), a concepção de
homem e trabalho como chave da questão social, da
essência humana constituída pelo trabalho e da
alienação do trabalho como raiz da alienação
econômica são ideias tomadas de Karl Marx e
reelaboradas na perspectiva da Doutrina Social da
Igreja, pelo humanismo cristão de Karol Wojtyła.
Conforme Correa (1982, p.325):
O humanismo cristão, ponto central da encíclica, embora inclua
elementos positivos do marxismo, supera-o em clareza,
amplitude e coerência de fundamentação. Alude, além do mais,
a problemas e questionamentos atuais, que Marx não pôde ter
presentes e que muitos neomarxistas querem solucionar,
repetindo enunciados e problemas de um século atrás.
O Padre Luiz Benedetti, no artigo
“’Laborem Exercens: uma encíclica exigente” (1982),
faz uma leitura da encíclica muito entusiástica, numa
perspectiva de valores de militância que foram
próprios da Teologia da Libertação e seu vínculo
marxista. Escreveu Benedetti (1982, p.13):
A importância pastoral deste item [A espiritualidade do
trabalho] está no fato de ser a chave para solucionar questões
do tipo fé e política [...]. No fundo, há uma solução nova para
problemas do tipo ação-contemplação, liturgia-militância. Não
Jonas Matheus Sousa da Silva
38
são atitudes separadas, opostas, mas atitudes que mutuamente
se exigem, uma vez que a ação humana – trabalho – é, por
natureza, “subjetividade”, “consciência”, “significação
interiorizada”
A compreensão de crítica ao capitalismo,
ao seu turno, ressalta os aspectos que podem ser
utilizados para atacar o sistema capitalista e
neoliberal como corruptores do trabalho, roubando
ao trabalhador sua dignidade e transformando-o em
mercadoria. Para o Padre Paschal Rangel no artigo
“Alguns aspectos da ‘Laborem Exercens’” (1981), o
primado da pessoa impostado pela encíclica não
compactua com o comportamento individualista,
mas está aberto à alteridade; a alusão a ideias
marxistas na encíclica é só um diálogo imposto pela
conjuntura política na Guerra Fria, onde se destacou
o bloco socialista; não é porque tal encíclica
reconheceu certa “evolução histórica” capitalista no
mercantilismo primitivo, que ela esteja de acordo
com o capitalismo neoliberal, menos ainda alguma
aprovação a tal sistema. Escreve Rangel (1981,
p.249):
Os capitalistas se arranjam com a crise; os trabalhadores, não.
Fica uma pergunta: essa situação de desrespeito para com o
trabalho humano, tratado como uma mercadoria descartável
quando não interessa mais, é intrínseca ao capitalismo ou é uma
falha humana dos capitalistas históricos?
Espiritualidade do Trabalho
39
Outra reação que encontramos foi a de
teóricos envolvidos com a Teologia da Libertação,
que criticaram aspectos da espiritualidade do trabalho
enfatizados pela encíclica. Por exemplo, a
discordância de que na Sagrada Escritura, trabalhe-se
para participar da obra criadora de Deus. Para José
Comblin (1985, p. 181):
Por outro lado, quando a Bíblia menciona o trabalho do povo,
ela não o relaciona com a obra de Deus. O próprio trabalho de
Jesus em Nazaré não foi destacado como colaboração com o
Deus criador e Paulo não invoca essa motivação para exigir essa
fidelidade ao trabalho ou para justificar o seu próprio trabalho.
O motivo sempre invocado ou subjacente é comer. É preciso
trabalhar para comer.
Após se enfatizarem essas reações à
encíclica em questão e se compreender o seu
contexto histórico, há de se adentrar à própria
Laborem Exercens na sua estrutura, originalidade e
posição dentro da Doutrina Social da Igreja.
Jonas Matheus Sousa da Silva
40
Espiritualidade do Trabalho
41
CAPÍTULO II - A ENCÍCLICA LABOREM
EXERCENS
Pretende-se, aqui, deter-se sobre o
documento em questão, sem, todavia, intentar sua
apresentação metodológica. E sim, apresentar a
encíclica colhendo sua importância no contexto
histórico onde a mesma está situada, sua importância
no magistério da Igreja e originalidade. Isso
favorecerá muito compreender o trabalho como
elevação do homem, argumento central dessa
pesquisa. O que até o momento pode ser
considerado como hipótese, será verificado e
comprovado se o documento em questão for
assumido no seu contexto, conteúdo e originalidade.
II.1 - Antecedentes da espiritualidade do
trabalho no Magistério Social da Igreja
Nos vários documentos pontifícios que
constituem o Magistério Social da Igreja, desde a
carta encíclica Rerum Novarum, de Leão XIII, ano
1891, até a carta apostólica Octogesima Adveniens, do
beato Paulo VI, ano 1971, é possível apreciar
indicações sobre a espiritualidade do trabalho que
exerceram influência sobre o magistério social do
Papa Wojtyła. Nota-se uma crescente torrente de
acenos à espiritualidade laboral, que foi recebida e
levada à sua maior expressão magisterial na Laborem
Jonas Matheus Sousa da Silva
42
Exercens. Quanto ao tema do trabalho em geral e de
seu sujeito em si, tratado de modo exaustivo, em
todo o Magistério Social da Igreja, não convém
abordar nesta monografia, pois escaparia ao tema, e
aumentaria seu volume de modo supérfluo.
Na Rerum Novarum6 (1891), Leão XIII
escreve que o homem, mesmo na inocência
paradisíaca, na graça, era destinado a trabalhar,
escapando da ociosidade (RN 6); ademais, o trabalho
corporal é causa de nobreza e honra para o ser
humano, pois lhe é sustento digno de vida; também
o Cristianismo prescreve o bem da alma dos
trabalhadores e seus interesses espirituais (RN 10);
considera que o Filho de Deus encarnado consumiu
grande porção de sua existência terrena no trabalho,
como filho de artesão (RN 13); expressa que o
repouso do trabalho, unido à religião, chama o
trabalhador a elevar a mente para Deus (RN 24),
tanto que o dia do descanso e o da dedicação à
Religião no Domingo deve ser condição
imprescindível na expressão do contrato trabalhista
(RN 26).
Pio XI, através da carta encíclica
Quadragesimo Anno7 (1931), constata e lamenta que o
trabalho, ao invés de cumprir sua finalidade espiritual
como remédio para o corpo e para a alma, após a
queda dos primeiros pais, tenha se transformado em
matéria de perversão, não mais elevando o
trabalhador. Aconselha que os operários reprimam
6 Sigla: RN. 7 Sigla: QA.
Espiritualidade do Trabalho
43
os sentimentos de ódio e inveja, no contexto da luta
de classes da doutrina marxista e se empenhem com
honradez no bem comum, a exemplo de Cristo,
Filho de Deus, que se fez operário na terra.
No ano 1941, na "Radiomensagem de
Pentecostes", Pio XII manifestou que, na globalidade
laboral, as energias físicas e espirituais do ser
humano abrem-se ao desenvolvimento sadio e
responsável (n. 4), vinculando o trabalho com outros
dois valores fundamentais do ser humano: o usufruto
dos bens materiais e a família (n.9). Enfatizou que as
normas do Estado no campo laboral, se legítimas e
benéficas, respeitam os exercícios dos Direitos e
deveres dos trabalhadores como o do culto divino e
o de optar por seguir uma verdadeira vocação (n.21).
Encerra o discurso, recomendando aos trabalhadores
o culto ao Sagrado Coração de Jesus (n.27).
São João XXIII, na encíclica Mater et
Magistra8, ano 1961, reconhece e estimula "as
associações profissionais e os movimentos sindicais
de inspiração cristã" que fomentam a elevação moral
dos trabalhadores com positivos resultados no
mundo, com um forte influxo de renovação cristã no
mundo do trabalho (MM 100-101). Enaltece o
trabalho dos agricultores, reconhecendo maior
facilidade para desenvolver uma espiritualidade, em
colaboração com a divina providência, perante o
contato direto com a obra do Criador (MM 143.
148). Exorta os patrões e autoridades que têm poder
sobre os trabalhadores, que não impeçam seus
8 Sigla: MM.
Jonas Matheus Sousa da Silva
44
subordinados de observarem os preceitos de Deus e
da Igreja (MM 251); afirma ser correspondente ao
plano da divina providência que o trabalhador se
aperfeiçoe pela sua obra cotidiana (MM 254) e,
dirigindo-se ao clero e aos fiéis leigos que exercem,
como membros do corpo místico de Cristo, seus
respectivos trabalhos, ensina que "todo o trabalho e
todas as atividades, mesmo as de caráter temporal,
que se exercem em união com Jesus, divino
Redentor, tornam-se um prolongamento do trabalho
de Jesus e dele recebem virtude redentora: "Aquele
que permanece em mim e eu nele, produz muito
fruto" (João 15,5). É um trabalho, através do qual
não só realizamos a nossa própria perfeição
sobrenatural, mas contribuímos também para
estender e difundir aos outros os frutos da
Redenção, levedando, assim, com o fermento
evangélico, a civilização em que vivemos e
trabalhamos." (MM 257).
Ainda São João XXIII, agora na encíclica
Pacem in Terris9, do ano 1963, considerou a adequação
do direito ao trabalho, ao lado da liberdade de
iniciativa, na esfera econômica, como exigência
natural da pessoa (PT 18); também, que o valor
constituído pela dignidade humana deve pautar o
direito do exercício responsável da atividade
econômica, conforme a justiça, satisfazendo a vida
digna do trabalhador e da sua família (PT 20).
Enfatiza que "para impregnarem de retas normas e
princípios cristãos uma civilização, não basta gozar
9 Sigla: PT.
Espiritualidade do Trabalho
45
da luz da fé e arder no desejo do bem. É necessário,
para tanto, inserir-se nas suas instituições e trabalhá-
las eficientemente por dentro" (PT 146).
A Constituição pastoral Gaudium et Spes10,
do Concílio Vaticano II (1962-1965), promulgada no
ano 1965, considerando que na Encarnação o Filho
de Deus está em comunhão com cada pessoa
humana e que “o mistério do homem só no mistério
do Verbo encarnado se esclarece
verdadeiramente”(GS 22), pois, assumindo a nossa
condição humana, o Filho de Deus “trabalhou com
mãos humanas, pensou com uma inteligência
humana, agiu com uma vontade humana, amou com
um coração humano”(GS 22). Enfatiza que a norma
para a atividade humana, incluindo o trabalho, é
“segundo o plano e vontade de Deus, conforme com
o verdadeiro bem da humanidade e torna possível ao
homem, individualmente considerado ou em
sociedade, cultivar e realizar a sua vocação integral”
(GS 35), que consiste em assemelhar-se a Deus uno e
trino, vivendo a comunhão pessoal, seguindo os
passos de Cristo, imagem do Pai (cf. GS 12; GS 22).
O Beato Paulo VI, na carta encíclica
Populorum Progressio11, de 1967, apontando a
solidariedade universal como dever de todos os seres
humanos (PP 17) e o desenvolvimento como novo
nome da Paz (PP 87), aborda a passagem do Gênesis
sobre o dever dado ao homem de encher e dominar
a terra, mostrando o homem como fim da criação,
10 Sigla: GS. 11 Sigla: PP.
Jonas Matheus Sousa da Silva
46
desde que ele a valore com o seu trabalho,
aperfeiçoando-a com o seu serviço (PP 22).
Confirma que o trabalho humano é querido e
abençoado pelo Criador, embora critique como
exagerada uma certa mística do trabalho, pois "todo
trabalhador é um criador", imprimindo seu caráter na
matéria por ele trabalhada e, quando vivenciado em
comum, na comunidade de trabalhadores, o trabalho
é propício para construir laços fraternos, mostrando
aos homens do trabalho que são irmãos (PP 27).
Também, o trabalho humano, pois consciente e livre,
quando exercido por cristãos, "tem ainda a missão de
colaborar na criação do mundo sobrenatural,
inacabado, até chegarmos todos a construir esse
Homem perfeito de que fala são Paulo, "que realiza a
plenitude de Cristo" (Efésios 4, 13)" (PP 28).
O mesmo pontífice, na carta apostólica
Octogesima Adveniens12, em 1971, usa a metáfora do
trabalho para enfatizar o dever de todos, sobretudo
dos cristãos, em se empenharem com todas as
energias na construção da fraternidade universal,
alicerce de genuína justiça e paz permanente (OA
17); ainda, afirma a dignidade do trabalho,
considerando a necessária ação econômica, se está a
serviço do ser humano, como fonte da fraternidade
universal e sinal da ação da Providência divina na
história (OA 46); cita o exemplo dos presbíteros
enviados pela Igreja a exercerem o seu ministério no
mundo dos trabalhadores, partilhando suas
atividades laborais (OA 48).
12 Sigla: OA.
Espiritualidade do Trabalho
47
Todos esses documentos supracitados
exercem certa influência da encíclica Laborem
Exercens. Ora, podemos afirmar que tal influência se
dar, seja por motivo epistemológico, ou seja, o autor
considera a reflexão anterior como discursão sobre o
tema; seja por motivo magisterial, um documento
pontifício não pode desconsiderar o magistério
precedente, ou seja, o que está contido em outros
documentos.
Não obstante a influência e consideração
da matéria precedente, é necessário colher a
novidade, em suas diversas propriedades, no
documento em questão. Para isso faz-se necessário,
antes de tudo, considerar o dito texto, seja na sua
estrutura como também no seu conteúdo, nesse
caso, os aspectos teológicos do mesmo.
II.2 - A estrutura do documento com os seus
aspectos teológicos
Obtida uma visão panorâmica de
apontamentos da espiritualidade do trabalho,
esparsos no Magistério Social da Igreja que
antecedeu o Papa Wojtyła, este trabalho passa a
observar, de modo sintético, a estrutura da Laborem
Exercens13, acentuando a sua perspectiva teológica.
13 Publicada em 14 de setembro de 1981.
Jonas Matheus Sousa da Silva
48
A carta Encíclica Laborem Exercens, sobre
o trabalho humano, publicada no nonagésimo
aniversário da encíclica Rerum Novarum, é dirigida aos
membros do Povo de Deus e a todo ser humano de
boa vontade, mostrando o caráter católico da
doutrina social que expressa.
Disposta em cinco partes, ressalta a sua
motivação histórica, que é a dimensão antropológica
do trabalho, o conflito entre trabalhadores e a
economia capitalista no contexto da Guerra Fria, e a
defesa dos Direitos humanos no mundo do trabalho.
Sua conclusão dá bases para uma espiritualidade do
Trabalho, em 27 tópicos de abordagem.
Deste modo, a esta altura desta
monografia, cabe uma síntese em perspectiva
teológica da referida encíclica.
O trabalho é instrumento de evolução da
criatura humana a nível corporal e espiritual no
mundo e na história, e encontra raízes teológicas na
protologia bíblica que, no livro do Gênesis, apresenta
Deus como o artífice criador fazendo o ser humano
à sua imagem e semelhança (cf. Gênesis 1, 26s), com
a vocação de trabalhar, cuidando da criação.
Nesse sentido, o trabalho é peculiar ao
homem, tornando plena a sua existência espiritual e
material, inscrito na natureza humana constituída por
corpo, alma e espírito (cf. I Tessalonicenses 5, 23).
Desde o princípio de seu estatuto criatural, o
trabalho como ação de colaborar na criação, pode ser
concebido como elemento fundamental da imagem
Espiritualidade do Trabalho
49
de Deus no ser humano, ao lado da vontade,
inteligência, liberdade e da comunhão pessoal, dada
na corporalidade14. Conforme as palavras iniciais da
Laborem Exercens:
Feito à imagem e semelhança do mesmo Deus no universo
visível e nele estabelecido para que dominasse a terra, o
homem, por isso mesmo, desde o princípio é chamado ao
trabalho. O trabalho é uma das características que distinguem o
homem do resto das criaturas, cuja atividade, relacionada com a
manutenção da própria vida, não se pode chamar trabalho;
somente o homem tem capacidade para o trabalho e somente o
homem o realiza preenchendo ao mesmo tempo com ele a sua
existência sobre a terra. Assim, o trabalho comporta em si uma
marca particular do homem e da humanidade, a marca de uma
pessoa que opera numa comunidade de pessoas; e uma tal
marca determina a qualificação interior do mesmo trabalho e,
em certo sentido, constitui a sua própria natureza. (JOÃO
PAULO II, 1981).
Há noventa anos do magistério social de
Leão XIII, introduziu-se essa encíclica considerando
o ser humano como redimido por Cristo, a quem a
14 Conforme o documento “COMUNHÃO E SERVIÇO: a pessoa humana criada à imagem de Deus”, n.40, da Comissão Teológica Internacional, ano 2004: “As pessoas criadas à imagem de Deus são seres corpóreos cuja identidade, masculina ou feminina, os destina a um tipo especial de comunhão uns com os outros. Como ensinou João Paulo II, o significado nupcial do corpo encontra sua realização no amor e na intimidade humana, que refletem a comunhão da Santíssima Trindade, cujo amor recíproco se derrama na criação e na redenção. Esta verdade está no centro da antropologia cristã. Os seres humanos são criados à imago Dei justamente como pessoas capazes de conhecimento e de amor pessoais e interpessoais. É em virtude da imago Dei neles que estes seres pessoais são também seres relacionais e sociais, compreendidos em uma família humana, cuja unidade é ao mesmo tempo realizada e prefigurada na Igreja. ” (COMISSÃO, 2004).
Jonas Matheus Sousa da Silva
50
Igreja serve para que trilhe o caminho da salvação. O
ser humano é via da Igreja, por isso, o trabalho
humano lhe exige uma visão renovada e atenta, aliada
ao testemunho, pois o homem trabalha para ganhar
seu sustento de cada dia, doando suas energias
corporais, através da estafa e do suor.
A Igreja está a serviço da dignidade de
seus filhos trabalhadores, objetos dos Direitos
humanos, e se empenha pela justiça e pela paz no
mundo, pelo desenvolvimento da humanidade,
iluminada pela unidade da luz pascal de Cristo. A
Igreja também denuncia as injustiças no mundo.
O trabalho, componente fundamental da
vida humana e da própria sociedade, mostra o
homem como co-criador do mundo e da sociedade e,
assim, o trabalho é concebido como chave da
questão social. Assim o diz, a Laborem Exercens n. 3:
O trabalho humano é uma chave, provavelmente a chave
essencial, de toda a questão social, se nós procurarmos vê-la
verdadeiramente sob o ponto de vista do bem do homem. E se
a solução — ou melhor, a gradual solução — da questão social,
que continuamente se reapresenta e se vai tornando cada vez
mais complexa, deve ser buscada no sentido de « tornar a vida
humana mais humana », então, por isso mesmo a chave, que é o
trabalho humano, assume uma importância fundamental e
decisiva. (JOÃO PAULO II, 1981).
Espiritualidade do Trabalho
51
II.2.1 - O trabalho e o ser humano
Tratando sobre o trabalho e o ser
humano pela ótica da antropologia bíblica, presente,
sobremaneira, nos primeiros Capítulos do Gênesis, a
Igreja tem a convicção de que o trabalho é uma
dimensão fundamental da existência humana. Essa é
uma convicção da Fé revelada que ilumina a
antropologia teológica.
Evidencia-se claramente na Laborem
Exercens n.4, que o trabalho está compreendido no
mandato do Criador, para que o ser humano
submeta e domine a terra, como componente da
Imago Dei na criatura humana. Para o Papa Wojtyła:
Quando este, criado “ à imagem de Deus... varão e mulher “,
ouve as palavras “Prolificai e multiplicai-vos enchei a terra e
submetei-a”, mesmo que essas palavras não se refiram direta e
explicitamente ao trabalho, indiretamente já o indicam, e isso
fora de quaisquer dúvidas, como uma atividade a desempenhar
no mundo. Mais ainda, elas patenteiam a mesma essência mais
profunda do trabalho. O homem é imagem de Deus, além do
mais, pelo mandato recebido do seu Criador de submeter, de
dominar a terra. No desempenho de tal mandato, o homem,
todo e qualquer ser humano, reflete a própria ação do Criador
do universo. (JOÃO PAULO II, 1981)15.
15 Texto latino: “Cum is, factus « ad imaginem Dei ... masculus et femina » haec verba audit: «Crescite et multiplicamini et replete terram et subicite eam », ea dicta — quamvis non proxime et expresse ad laborem referantur — oblique, omni sublata dubitatione, eum significant quasi navitatem in mundo exsequendam: quin immo reconditam eius essentiam ostendunt. Est autem homo imago Dei,
Jonas Matheus Sousa da Silva
52
O trabalho é compreendido como
atividade transitiva pela qual a criatura humana
exerce sua cura e domínio sobre a criação material. O
mandato do domínio sobre o criado é de amplo
alcance. Deve ser mais compreendido pela
consciência humana à medida que o ser humano se
desenvolve ao longo da história. Compreende-se que
“dominar sobre a terra” é uma atitude de cuidado e
cooperação com o Criador.
Tratando do trabalho em sua dimensão
objetiva, dada na técnica, a Laborem Exercens n.5,
afirma que
O homem domina a terra quer pelo fato de domesticar os
animais e tratar deles, granjeando, assim, o alimento e o
vestuário de que precisa, quer pelo fato de poder extrair da terra
e dos mares diversos recursos naturais. Mas o homem, além
disso, « submete a terra » muito mais quando começa por
cultivá-la e, sucessivamente, reelabora os produtos da mesma,
adaptando-os às suas próprias necessidades (JOÃO PAULO II,
1981).
Do cultivo e desenvolvimento das
técnicas, o trabalho humano desenvolveu sua
missis aliis rebus, eo quod a Creatore suo mandatum accepit terram subiciendi. Quod implens praeceptum, homo, quivis animans humanus, efficit ut actio ipsa Creatoris universi in semet ipso reluceat.” (Disponível em: < http://w2.vatican.va/content/john-paul-ii/la/encyclicals/documents/hf_jp-ii_enc_14091981_laborem-exercens.html>. Acesso em 30 set. 2017)
Espiritualidade do Trabalho
53
indústria até chegar ao avanço das máquinas
modernas. Assim, propondo os seus próprios
programas e modos de trabalhar, desde a força bruta
e a perícia manual até o controle racional e
matemático dos meios de produção e, mesmo em
contexto de mecanização e sintetização da ação
laboral, o ser humano permanece como o sujeito do
trabalho.
Continua em vigor na Imago Dei, presente
na criatura humana, o chamado divino para que o
homem trabalhe e, assim, a técnica - fruto da
Inteligência humana - não existe para suplantar o
homem, arrancando-lhe a criatividade e
responsabilidade pelo trabalho, mas existindo como
meio de executar o trabalho. Logo, a técnica deve ser
aliada do ser humano, conformando-se à ética e aos
genuínos Direitos humanos.
Em seguida, O Papa Wojtyła apresenta a
dimensão antropológica do trabalho, seu sentido
subjetivo; pois o sujeito do trabalho é um ser
humano. O trabalhador é pessoa, sua ação brota da
imagem de Deus impressa no seu ser. Nesse sentido,
a situação laboral tende a se realizar como pessoa e,
por isso, o trabalho deve ser personalizado e ter uma
natureza ética; sempre derivado do trabalhador como
sujeito consciente e livre.
O trabalho é sagrado por ser vocação
dada pelo Criador e por entrar na constituição da
imagem de Deus, gravada na criatura humana. Essa
imagem no ser humano é sempre reflexo do Filho de
Deus que “é a imagem do Deus invisível”
Jonas Matheus Sousa da Silva
54
(Colossenses 1, 15); o Filho de Deus é a imagem do
Pai. Então, Ele, verbo encarnado, Jesus Cristo, é o
sublime e mais eloquente Evangelho do trabalho.
O trabalho, ferido pelo pecado humano,
acarretando fadiga e sofrimento com frequentes
insucessos para o trabalhador (cf. Gênesis 3, 17-19),
foi assumido e redimido por Jesus Cristo. O Filho de
Deus, ao entrar na história, assumiu o trabalho como
verdadeiro homem que é sempre sujeito divino.
Conforme a Laborem Exercens n.6: “Aquele que,
sendo Deus, tornou-se semelhante a nós em tudo,
passou a maior parte dos anos da vida sobre a terra
junto de um banco de carpinteiro, dedicando-se ao
trabalho manual” (João Paulo II, 1981).
O Papa Wojtyła sublinha a ação laboral
de Jesus Cristo, como a nova fonte da dignidade do
trabalho, também porque o trabalhador é pessoa. Aí
o trabalho aparece em sua dimensão subjetiva. Por
isso, o ser humano é o fundamento primeiro do
valor do trabalho, que, por esse motivo, sempre deve
estar a serviço do seu executor. Isso mostra o valor
subjetivo que está em cada espécie de trabalho.
Tratando da ameaça à hierarquia de
valores, elencam-se os desafios ao mundo do
trabalho, perante perspectivas materialistas e
economicistas que trazem o perigo da coisificação do
trabalho e do trabalhador, com o perigo da reificação16
do ato humano, causando a instrumentalização do
16 Significa, a atitude relacional de, ao invés de tratar a pessoa como pessoa (fim de toda a relação), tratá-la como objeto ou instrumento (meio).
Espiritualidade do Trabalho
55
próprio homem no que tange à solidariedade dos
homens do trabalho.
O trabalho pessoal é apresentado na
perspectiva da Doutrina Social da Igreja, perante as
exigências do mundo moderno, pois, com essas
exigências, houveram modificações no mundo do
trabalho; como a questão operária: se o trabalho se
torna fator de desumanização, isso reclama a
solidariedade dos trabalhadores a nível Mundial.
É necessário que se desenvolva uma
melhor diagnose da questão das condições dos
trabalhadores, sobretudo pelos movimentos de
solidariedade. Apresenta-se a pobreza como
resultado da violação da dignidade do trabalho
humano. Nesse sentido, a dignidade do trabalho
aparece na vocação bíblica do homem, na protologia17
bíblica; a fadiga do trabalho, a questão do domínio
sobre a criatura, mostra que o trabalho é a vocação
universal da pessoa humana, criatura de Deus.
Santo Tomás de Aquino (1225 – 1274)18
já tomara o trabalho como bem árduo, bem útil e
17 Concepção que se refere à Pré-História teológica, ao Princípio, sempre referido em linguagem metafórica. Especialmente compreendido entre os capítulos 1 e 12 do Livro do Gênesis. Esta realidade é sucedida, no esquema bíblico-catequético, pela História da Salvação e, esta, pela Meta-história ou Escatologia. 18 Summa Theologica, I-II, q.40, a.1, c: “... a potências diversas correspondem paixões de espécies diversas. Ora, a esperança está no irascível, enquanto o desejo e a cupidez estão no concupiscível. Logo, a esperança difere em espécie do desejo ou cupidez. ” (TOMÁS DE AQUINO, 2009, p.471). Summa Theologica, I-II, q.34, a.2, ad1: “... o honesto e o útil dizem-se assim em referência à razão; por isso, nada é útil ou honesto que não seja bom. O deleitável se diz em relação ao apetite, que às
Jonas Matheus Sousa da Silva
56
bem digno que proporciona a dignidade humana. O
Papa Wojtyła imposta que o trabalho é um bem do
homem, é uma virtude laboriosa que nobilita a
matéria.
Por outro lado, a experiência dos
campos de concentração na II guerra mundial mostra
o lado do trabalho tratado como opção pelo lado
obscuro do usufruto da ação laboral.
A virtude do trabalho está vinculada à
ordem social; assim, pode-se falar de trabalho
conjugado à sociedade, família e nação. O trabalho é
o fundamento da vida familiar e condiciona o
processo de educação na própria família. Existem
três esferas do trabalho: a que permite a vida e a
manutenção da família, a que realiza as finalidades da
família, sobretudo a educação e a que propicia os
laços culturais e históricos da grande sociedade. O
ser humano pertence à sociedade e o domínio sobre
o mundo pelo trabalho ocorre na dimensão subjetiva
através da técnica.
II.2.2 - O conflito entre trabalho e capital no
contexto histórico da encíclica
O trabalho é a realidade que desenvolve
o sentido do ser humano e está visceralmente ligado
vezes tende para o que não convém à razão. Por esse motivo, nem todo deleitável é bom, de bondade moral, que se considera segundo a razão. ” (TOMÁS DE AQUINO, 2009, p.420).
Espiritualidade do Trabalho
57
ao ser pessoa humana, ao seu valor e ao seu sentido.
O caráter do trabalho desenvolve o ser humano no
amor, por isso, o caráter positivo, criador, educativo
e meritório é um bem inserido no trabalho.
A partir da encíclica Rerum Novarum, de
Leão XIII, o Papa Wojtyła apresenta, no contexto da
Guerra Fria, o conflito entre o trabalho no
desenvolvimento industrial do mundo capitalista e o
trabalho na concepção marxista do conflito
transformado em lutas de classe, programada sobre a
influência do pensamento de Karl Marx, impostando
a coletivização dos meios de produção. No
monopólio do poder da ditadura do proletariado, no
sentido do contexto contemporâneo, aparece como
chave-hermenêutica sobre a prioridade do trabalho.
No contexto da Guerra Fria e da corrida
armamentista, a Igreja ensina o princípio da
prioridade do trabalho sobre o capital. Os meios de
produção são instrumentos, no sentido de submeter
a terra. Nos primeiros capítulos do Gênesis, a terra
representa todos os recursos materiais que servem ao
ser humano mediante o trabalho; a posse dos
recursos pelo ser humano, na propriedade privada,
está a serviço do trabalho.
Existem fases do processo: primeiro, a
relação do homem com os recursos naturais; é Deus
quem dá ao homem e à natureza que Ele criou em
seu mistério; o homem, pelo trabalho, humaniza os
recursos naturais, elaborando os meios de produção
com a experiência e a inteligência.
Jonas Matheus Sousa da Silva
58
Tudo que serve ao trabalho humano é
fruto do mesmo trabalho; o homem deve considerar
os instrumentos de produção como fruto do próprio
trabalho. O trabalho eleva a capacidade de
reproduzir através da instrução, pois o ser humano é
o verdadeiro sujeito eficiente que usa os
instrumentos de produção. A Doutrina Social da
Igreja considera que a pessoa humana goza do
primado no processo de produção e em relação às
coisas.
Sobre “economismo” e materialismo, o
homem utiliza, do seu duplo banco do trabalho, os
recursos naturais e técnicos elaborados no curso da
história do trabalho. O trabalho é alteridade. O
trabalhador, utilizando-se das técnicas desenvolvidas,
aproveita o trabalho de outrem; há uma
interdependência e dependência fundamental ao
Criador; disso deriva o primado da pessoa sobre as
coisas. Contra essa verdade, os erros fundamentais
do século XX foram o economismo e o materialismo
teórico e prático, que caminham juntos.
O Papa Wojtyła, preocupando-se com a
ideologia do materialismo dialético, aborda a
antinomia trabalho- capital, alude às mudanças
radicais que devem ser empreendidas para superar
tais antinomias, baseadas na firme convicção do
primado da pessoa sobre as coisas e do trabalho
sobre o capital. Escrevendo sobre trabalho e
propriedade, afirma que, por trás da antinomia
ideológica, há pessoas concretas, patrões e
empregados.
Espiritualidade do Trabalho
59
Citando a Rerum Novarum de Leão XIII,
aborda o tema da propriedade; também cita a Mater et
Magistra, de São João XXIII. Traz à memória que a
Doutrina Social da Igreja, por vezes, opõe-se, tanto
ao coletivismo como ao capitalismo, pois ela é a
maneira peculiar de compreender o direito de
propriedade e a destinação universal dos bens, o
direito ao uso comum e o direito à propriedade
privada, pois a propriedade não deve gerar contraste
social, porém, adquirida pelo trabalho, serve ao
trabalho.
A legítima posse dos meios de produção
tem a finalidade de servir ao trabalho que, por sua
vez, serve ao uso comum e à destinação universal
dos bens. Esses são princípios já formulados por
Santo Tomás de Aquino. A propriedade serve ao
trabalho e ao seu sujeito contra o princípio do
capitalismo de propriedade. As diversas espécies de
trabalho manual e intelectual, de concepção e de
direção, são consideradas, na encíclica, sempre à luz
da Doutrina Social da Igreja.
A encíclica trata da propriedade dos
meios de trabalho e da participação dos
trabalhadores na gestão das empresas. O capitalismo
rígido, por seu turno, deve ser submetido e depurado
pelos Direitos da Pessoa Humana. A encíclica
também se posiciona contra a luta de classes e a
estatização promovida pelo comunismo; ela defende
que só existirá genuína socialização quando os
membros da sociedade tiverem acesso, pelo trabalho,
ao pleno direito como co-proprietários no “banco do
Jonas Matheus Sousa da Silva
60
trabalho”, marcados pelas relações de recíproca
colaboração em prol do bem comum.
Abordando o argumento personalista,
diz que o princípio do primado do trabalho sobre o
capital pertence à moral social e, mesmo assim, o
trabalho e o capital não se dissociam, porque o
trabalhador não deve apenas receber seu salário, mas
sentir-se sujeito do trabalho. Mesmo na socialização
da propriedade, o homem deve ter consciência de
trabalhar como sujeito.
II.2.3 - Direitos do ser humano do trabalho
O trabalho, mais que obrigação, deve ser
visto como fonte de Direitos. Citando a encíclica
Pacem in Terris, de S. João XXIII, na sua abordagem
dos Direitos do trabalhador sempre radicados nos
Direitos universais da pessoa humana, ensina que o
dever de trabalhar deve ser motivado pelo mandato
do Criador e pela solidariedade para com o próximo.
Assim, as relações entre o dador do trabalho e os
trabalhadores, para serem justas, devem derivar
disso.
O dador de trabalho indireto, como as
pessoas, as instituições de diversos tipos e os
contratos coletivos de trabalho, devem ser
conduzidos pelo Estado a uma justa política
trabalhista; por seu turno, o dador direto do trabalho
fixa as condições de trabalho, sob as objetivas
Espiritualidade do Trabalho
61
exigências dos trabalhadores. Assim, há uma
consideração dos Direitos objetivos do trabalhador,
sendo que a ordem moral social se baseia nos
Direitos da pessoa humana, como seu elemento
chave.
Sobre o problema do Emprego, a
questão fundamental é conseguir emprego. É
necessário que haja uma planificação global das
instituições mundiais contra o desemprego; há de se
implementar uma interdependência entre Estados,
soberania e colaboração Internacional a favor do
trabalho; as organizações internacionais devem se
guiar por uma diagnose correta neste setor, buscando
maior eficácia nos planos comuns de ação.
Citando a encíclica Populorum Progressio,
do Beato Paulo VI, o Papa Wojtyła recorda que o
progresso atuado pelo ser humano deve produzir
frutos em prol do próprio ser humano, descobrindo
as justas proporções entre os vários trabalhos,
conforme o sistema de instrução e educação para o
desenvolvimento da humanidade. Lembra o fato
desconcertante que importantes recursos naturais são
inutilizados, em contraste com a realidade da massa
de desempregados, indigentes e famintos, do mundo.
Tratando sobre o salário e outras
subvenções sociais, o Papa Wojtyła enfatiza que se
deve evidenciar o aspecto da ética social da
remuneração justa do trabalho executado na relação
entre empregador e empregado. Nesse sentido, o
justo salário é fator da verificação da justiça, que
deve estar presente no funcionamento do sistema
Jonas Matheus Sousa da Silva
62
econômico. É pelo justo salário que se mantém a
família nas suas estruturas.
É imperativo revalorizar socialmente o
papel da mulher, respeitando a sua abertura à
maternidade; também, o trabalho deve se organizar
de modo personalista. Nesse contexto, o trabalho
feminino não pode sacrificar o papel materno da
mulher, assim como, há de se manter com dignidade
o direito dos trabalhadores ao repouso, férias,
aposentadoria.
Quanto ao tema da importância dos
sindicatos, a encíclica afirma que os trabalhadores
têm direito de se associarem em sindicatos. Em
continuidade com o magistério social anterior,
verifica-se que os sindicatos crescem com a luta dos
trabalhadores por seus Direitos, defendendo os seus
Direitos existenciais. Desse modo, como expoente
da luta pela justiça social, aparecerá o crescimento no
âmbito dessa luta, sempre em conformidade com o
bem comum, no sentido que o trabalho une os seres
humanos.
A união dos trabalhadores por seus
Direitos constitui um gesto de solidariedade que
compõe a ordem social, por isso, os sindicatos, com
suas exigências, jamais poderão se transformar em
egoísmo corporativista, mas devem cumprir as suas
missões de inserir os operários na esfera política, em
busca do bem comum.
Se, porventura, os sindicatos se
afastarem da luta pelo bem comum e dos Direitos
Espiritualidade do Trabalho
63
Humanos dos Trabalhadores e passarem a servir a
outros fins que não a reta ação dos sindicatos, farão
com que a sociedade se deteriore. Nisso, a encíclica
considera o direito à greve, que não deve ser vista
como a luta de classes da ideologia marxista; não se
pode abusar desse direito, de modo a prejudicar a
vida socioeconômica.
Em seguida, o Papa Wojtyła ressalta os
Direitos e a dignidade do agricultor, e a inclusão da
pessoa com deficiência, no mercado de trabalho.
Toca ainda no problema do trabalho e da emigração,
sobretudo, quando é movida pela busca de trabalho;
também aos emigrados se aplicam os Direitos das
pessoas humanas e dos trabalhadores, em todos os
sentidos, considerando-se sempre o capital a serviço
do trabalho.
II.3 - A originalidade da encíclica
Esta seção, traz à baila a originalidade da
encíclica Laborem Exercens, com a impostação da
espiritualidade do trabalho – este, chave de toda a
questão social - na perspectiva do trabalho subjetivo
como ação do ser humano, sujeito do trabalho,
criado à imagem e semelhança de Deus e redimido
no mistério pascal de Cristo, pois, cada trabalho “se
mede, sobretudo, pelo padrão da dignidade do
Jonas Matheus Sousa da Silva
64
mesmo sujeito do trabalho, isto é, da pessoa, do
homem que o executa” (JOÃO PAULO II, 1981)19.
A última parte dessa encíclica enfatiza a
própria espiritualidade da ação trabalhista, como
novidade do magistério do Papa Wojtyła,
contribuindo para a Doutrina Social da Igreja.
O trabalho é ato da pessoa, por isso é
ato espiritual. Dado que o trabalhador é o mesmo ser
humano objeto da Revelação e da salvação, é
necessário que as virtudes teologais –fé, esperança e
caridade - ajudem o trabalhador a dar sentido
espiritual à sua ação laboral.
O Papa Wojtyła destaca o trabalho como
participação na obra do Criador, considerando a
compreensão do Concílio Vaticano II e as primeiras
páginas da Sagrada Escritura. O ser humano foi
criado à imagem e semelhança de Deus, recebendo a
missão de cuidar da terra. Portanto, é conteúdo da
Revelação divina que, pelo trabalho, o ser humano
participe da obra do Criador.
O livro do Gênesis, apresenta a Criação
como trabalho divino. A protologia bíblica, nesse
livro, trata de Deus Criador no molde de artesão,
ordenando que o ser humano submeta e cuide do
criado. O Papa Wojtyła o chama de primeiro evangelho
do trabalho, pois a dignidade do trabalho se dá no fato
de que o ser humano imita o Divino Artífice, tanto
19 Laborem Exercens n. 6.
Espiritualidade do Trabalho
65
no trabalho como no repouso, realizando a
semelhança.
Deus quis apresentar-lhe a própria obra criadora sob a forma
do trabalho e sob a forma do repouso. E essa obra de Deus no
mundo continua sempre, como o atestam as palavras de Cristo:
‘Meu Pai opera continuamente...’: (João 5,17) opera com a força
criadora, sustentando na existência o mundo que chamou do
nada ao ser; e opera com a força salvífica nos corações dos
homens, que desde o princípio destinou para o ‘repouso’ (Hb 4,
1.9s) em união consigo mesmo, na ‘casa do Pai’ (João 14, 2).
(JOÃO PAULO II, 1981)20.
Assim, considera-se que existe uma
interioridade no trabalho. Deve-se ter uma cotidiana
consciência do significado do trabalho como
participação na obra de Deus e prolongamento da
obra criadora, como serviço à providência divina que
conduz a história da humanidade. Nesse sentido, a
espiritualidade do trabalho deve ser vista como o
patrimônio necessário e comum, aliada à mensagem
cristã, que incentiva o ser humano na tarefa da
construção do mundo e do bem comum dos seus
semelhantes, de modo mais exigente, conforme o
mandamento da caridade.
Cristo é o homem do trabalho. O Papa
Wojtyła afirma que Jesus patenteia que, pelo
trabalho, o ser humano participe da obra de Deus.
20 Laborem Exercens n.25.
Jonas Matheus Sousa da Silva
66
‘Porventura não é este o carpinteiro ...? ’ (Marcos 6, 2s). Com
efeito, Jesus não só proclamava, mas sobretudo punha em
prática com as obras o « Evangelho » que lhe tinha sido
confiado, a Palavra da Sabedoria eterna. Por esta razão, tratava-
se verdadeiramente do « evangelho do trabalho », pois Aquele
que o proclamava era Ele próprio homem do trabalho, do
trabalho artesanal como José de Nazaré. (cf. Mateus 13,55).
(JOÃO PAULO II, 1981)21.
Jesus encarou o trabalho com amor,
tomando as expressões do exercício do trabalho
como linhas de semelhança do ser humano com
Deus, inscritas no seu coração. Nessa esteira, o
Antigo Testamento faz várias referências ao trabalho
humano, inclusive na confecção dos objetos sagrados
da Tenda da Reunião e do próprio templo de Deus,
bem como nos objetos da liturgia hebraica.
Jesus Cristo cumpriu tais prefigurações
do Antigo Testamento pois, ao trabalhar com suas
próprias mãos, manifestou o próprio Evangelho do
Trabalho. Seguindo o Senhor, o apóstolo Paulo
complementa a doutrina cristã sobre o trabalho,
dando próprio exemplo e exaltando a ação laboral
para que os cristãos, trabalhando em paz e com
responsabilidade, provejam o próprio sustento sem
serem pesados aos outros. Na epístola aos
Colossenses 3, 23, dá bases para que se trabalhe de
coração, como dedicação ao Senhor.
No trabalho, o ser humano se constrói,
ao passo que constrói o mundo. Com essa visão
personalista, o Papa Wojtyła evidencia a norma para
21 Laborem Exercens n.26.
Espiritualidade do Trabalho
67
o trabalho humano, conforme a Constituição
pastoral do Concílio Vaticano II, Gaudium et Spes
n.35:
‘É a seguinte, pois, a norma para a atividade humana: segundo o
plano e a vontade de Deus, ser conforme com o verdadeiro
bem da humanidade e tornar possível ao homem,
individualmente considerado ou como membro da sociedade,
cultivar e realizar a sua vocação integral’ (JOÃO PAULO II,
1981)22.
Em conformidade com a visão
axiológica do trabalho, do Concílio Vaticano II e
com a própria espiritualidade do trabalho, há de se
considerar o justo significado do progresso,
enraizado na atividade trabalhista.
Considerando o trabalho humano à luz
da cruz da ressurreição de Cristo, o Papa Wojtyła
imposta que a fadiga de todo o trabalho acarreta, em
sua essência, contrapondo-se à benção original sobre
o trabalho, algo que aponta para a própria
mortalidade humana. O trabalhador pode
compreender a fadiga do trabalho como um
chamado para participar da cruz de Cristo e
trabalhar, fitando, com esperança, seus olhos na luz
da Páscoa.
No mistério pascal está contida a Cruz de Cristo, a sua obediência
até à morte, que o Apóstolo contrapõe àquela desobediência
que pesou desde o princípio na história do homem sobre a terra
22 Laborem Exercens n.26.
Jonas Matheus Sousa da Silva
68
(cf. Romanos 5, 19). Aí está contida também a elevação de Cristo
que, passando pela morte de cruz, retorna para junto dos seus
discípulos com a potência do Espírito Santo pela Ressurreição
(João Paulo II, 1981)23.
O homem do trabalho, suportando o
peso da sua ação, unido a Cristo e à sua cruz, segue
um caminho de discipulado, com esperança na
participação da Ressurreição do Senhor e na
transfiguração do mundo em Reino de Deus. A
fadiga do trabalho é considerada uma pequena
parcela da cruz de Cristo; essa parcela redime o
próprio trabalho e o encaminha para a Glória, pois
Jesus Cristo, na sua vida histórica, já assumiu o
trabalho. A ressurreição e a esperança escatológica
vão iluminando o trabalho, suscitando luz de
esperança na construção de novos céus e nova terra,
por parte de Deus, na ação do Espírito Santo e na
colaboração humana, pela graça.
Desse modo, a dignidade humana e a
liberdade devem se fazer expandir sobre a terra,
perante o reto desempenho do trabalho humano,
unido à oração, na escuta da Palavra de Deus, para
que o homem do trabalho colabore na construção,
não só do progresso terreno, mas, do
desenvolvimento do Reino de Deus, na ação do
Espírito Santo sobre o mundo, pelo ministério da
Igreja.
23 Laborem Exercens n.27.
Espiritualidade do Trabalho
69
CAPÍTULO III - O TRABALHO COMO
ELEVAÇÃO DO HOMEM
Assumir o trabalho como elevação do
homem significa considerá-lo na sua dimensão
espiritual. Isso significa tentar ultrapassar uma
compreensão meramente instrumental, social e
econômica do trabalho e apreciá-lo de modo bem
mais amplo. De fato, quase sempre que falamos de
trabalho, consideramo-lo apenas na ótica do
instrumental e esquecemos que ele pode ser
assumido como meio de santificação do homem,
como colaboração na obra de redenção de todo o
criado. Tal compreensão possibilita pensar essa
realidade como dom e não apenas como uma
questão meramente funcional.
Pretendemos colher, na reflexão de
Wojtyła, a dimensão espiritual da atividade laborativa
e, com isso, propor uma reflexão que possa iluminar
a atual realidade do trabalho, quase sempre visto
apenas como modo de produção, de gerar lucro e
consumo. Para isso, faz-se necessário considerar os
desafios atuais.
Jonas Matheus Sousa da Silva
70
III.1 - Desafios atuais para uma espiritualidade
no trabalho
Pode, o trabalho humano, ser via
agraciada de elevação da pessoa humana a Deus?
Atualmente, o trabalhador vivencia o seu trabalho
como graça e elevação?
Para tais questões, destacam-se duas
linhas de pensamentos atuais, que são: a impostação
do Pe. Ivonil Parraz, doutor em Filosofia e a do Papa
Francisco (Jorge Bergoglio, sj).
O Pe. Ivonil Parraz, ao seu turno, no
artigo “A humanização e a desumanização do
trabalho” (Revista Vida Pastoral, 2015), oferece um
panorama sintético das abordagens de vários outros
cientistas, considerando a precária situação do
trabalhador no contexto das exigências da revolução
tecnológica.
De fato, para manusear os meios de
produção sempre mais informatizados para
potencializar larga produção em menor tempo, o
trabalhador deve estar capacitado com uma instrução
adequada para manusear com eficiência tais meios,
cabíveis à sua competência na divisão do trabalho.
Quem não recebe tal formação que lhe dê domínio
do aparato técnico, está fora do mercado de trabalho.
O trabalhador deve incorporar todo o seu conhecimento no
processo produtivo. Há uma relação de flexibilidade entre o
Espiritualidade do Trabalho
71
trabalhador e a máquina. O software da máquina está aberto às
alterações do operador. Exige-se do trabalhador a capacidade
de interpretá-lo e, conforme o desempenho produtivo,
reprogramar a máquina. A interação entre trabalhador e
máquina permite àquele acumular mais conhecimento, o qual,
por sua vez, será disponibilizado na produção (PARRAZ, 2015,
p.22)
Parraz também evidencia a estratégia
ideológica de fazer o trabalhador sentir-se como
grande membro beneficiado da “grande família, a
empresa”, fazendo-o servir voluntariamente;
acrescente-se: inclusive, sacrificando energias e
tempos de outras esferas de sua vida, como sua
família, a espiritualidade, a saúde, a cultura e o lazer.
Assim, o trabalhador está alienando o
seu senso de realidade para atender às metas da sua
empresa, ao passo que os patrões podem, após ter
incutido tal mentalidade nos funcionários, dar-se a
luxos e extravagâncias, como longos períodos de
férias em viagens pelo mundo...
‘Vestir a camisa’ da empresa como se fosse sua. Tudo o que diz
respeito a ela lhe diz também respeito. O pobre assalariado se
responsabiliza pela empresa [...] a empresa passa a se incorporar
na vida do operário. O que tem de melhor, energia e capacidade
intelectual, é dedicado a ela. O trabalhador transforma-se em
colaborador: sente-se sócio. [...] estratégia de domínio da
empresa sobre o operário tem um objetivo específico: fazê-lo
acreditar que possui autonomia. Ao trabalhador dá-se certa
liberdade de inventar, de aplicar seu conhecimento, sua
imaginação. Ele sente-se responsável por aquilo que produz e,
Jonas Matheus Sousa da Silva
72
ao mesmo tempo, também pela empresa, uma vez que é sócio
(PARRAZ, 2015, p.23).
Outras nuances enfatizadas no artigo de
Parraz são a tendência atual à celularização do trabalho
-“a formação do espaço de produção em escala
menor permite uma visibilidade maior dos operários.
A administração da empresa estabelece cumprimento
de metas para cada célula. Os membros destas
distribuem, entre si, as atividades de trabalho”
(PARRAZ, 2015, p.23) - e a consequente panoptização
- “O sentimento de estar constantemente vigiado não
é provocado somente pela relação vertical patrão-
operário. Também entre os próprios membros da
equipe de trabalho (as células) predomina esse
sentimento” (PARRAZ, 2015, p.24) -, como meios
de controle do trabalho dos funcionários e de
aumentar a concorrência entre os trabalhadores,
destruindo a solidariedade entre os operários, e
tornando-os – em tela – solidários ao patrão. Esse
modo de estar trabalhando se torna, então, motivo
de angústia, desconfiança e receio.
Para além do artigo de Parraz, recorde-se
a realidade do trabalho escravo, ainda encontrado em
grandes espaços geográficos que propiciam o
escondimento dessa prática, como na Amazônia,
também o trabalho infantil, os agricultores sem
muitos subsídios do governo, os que estão
trabalhando em condições estressantes nas grandes
metrópoles, como os motoristas e cobradores de
ônibus, os garis, os funcionários de grandes
Espiritualidade do Trabalho
73
supermercados, entre tantos. Ressalta-se a não
correspondência ao respeito da dignidade pessoal
dos trabalhadores, tidos como meios instrumentais
para os serviços desejados, mas não como sujeitos do
trabalho.
Por outro lado, o Papa Francisco
concebe o trabalho como condição sine qua non24,
para que ser humano possua dignidade pessoal e, por
conseguinte, realização pessoal. Ainda, denuncia o
problema social do desemprego como responsável
por muitas pessoas não conseguirem realizar sua
dignidade humana e, assim, não gozarem da
realização pessoal, como se depreende da homilia na
Capela da Casa Santa Marta, em 01 de maio de 2013:
O trabalho nos dá dignidade. Quem trabalha é digno, tem uma
dignidade especial, uma dignidade de pessoa: o homem e a
mulher que trabalha são dignos. Ao invés disso, aqueles que não
trabalham não têm essa dignidade. Mas muitos são aqueles que
querem trabalhar e não podem. Isso é um peso na nossa
consciência, porque quando a sociedade é organizada dessa
maneira, onde nem todos têm a possibilidade de trabalhar, de
serem elevados pela dignidade do trabalho, essa sociedade não
está bem, não é justa. Vai contra o próprio Deus, que quis que a
nossa dignidade começasse daqui (BERGOGLIO, 2015, p.112)
Urge, como é o tema deste trabalho,
desenvolver-se tal visão como meio de uma
espiritualidade laboral para elevação do ser humano,
enraizada na Revelação, nos aportes da Teologia
24 “Sem a qual”, indispensável.
Jonas Matheus Sousa da Silva
74
contemporânea e no magistério do Papa Wojtyła.
Para tanto, a base de toda a Teologia está na
Revelação que se inscreve na Sagrada Escritura, junto
à Tradição e ao Magistério eclesial.
III.2 - Fundamentos bíblicos para uma
espiritualidade laboral
Evidenciando o que a Sagrada Escritura
traz sobre o Trabalho em seu valor positivo de meio
de comunhão do ser humano com Deus, tomamos
Gênesis 2, quando Deus entregou ao ser humano o
cultivo da terra, tonando o trabalho como guardiania
da criação. Depois do pecado, o trabalho se torna
pesado e fatigoso, marcado pelo sofrimento (cf.
Gênesis 3,17). Evidencia-se o aspecto negativo do
pecado, também na Escravização dos hebreus sob o
Faraó no Egito (cf. Êxodo 2, 23).
No entanto, a Sabedoria divina, artífice
da criação, pode ser invocada para que o homem
desempenhe seu trabalho com justiça (cf. Sabedoria
9), e o sopro de Deus é dado aos artesões do
santuário (cf. Êxodo 31, 1-11). Davi, o rei justo, foi
escolhido e ungido quando trabalhava como pastor e,
também, os profetas, como Amós de Técua (cf.
Amós 1,1; 7, 14), trabalhavam.
No Novo Testamento, o Filho de Deus
se fez homem, nascido da Virgem Maria. Sua mãe foi
dona de casa, desempenhando trabalhos domésticos
Espiritualidade do Trabalho
75
no lar de Nazaré; seu justo esposo, José, tornou-se o
pai putativo de Jesus, que o auxiliou no trabalho
artesanal a ponto de ser chamado “filho do
carpinteiro” (Mateus 13, 55).
No Evangelho, Jesus é chamado ‘filho do carpinteiro’. José era
um trabalhador, e Jesus aprendeu a trabalhar com ele. Deus
trabalha para criar o mundo. Este ‘ícone de Deus trabalhador
nos diz que o trabalho é algo que vai além simplesmente de
ganhar o pão’ (BERGOGLIO, 2015, p. 112).
Em João 5,17 na Palavra “Meu Pai
trabalha, e eu também trabalho”25, Jesus revela Deus
25 Bento XVI ressaltou este versículo, vinculando-o à concepção monástica do “Ora et Labora”, que construiu a Europa pela atuação dos cristãos, no discurso ao mundo da cultura francesa no Collège des Bernardins (2008): “Os cristãos, que desse modo prosseguiam na tradição há muito praticada pelo judaísmo, deviam, além disso, sentir-se interpelados pela palavra de Jesus no Evangelho de João, quando defendia o próprio agir num sábado: “Meu Pai trabalha continuamente e Eu também trabalho” (5,17). O mundo greco-romano desconhecia um Deus-Criador; na sua concepção, a divindade suprema não podia, por assim dizer, sujar as próprias mãos com a criação da matéria. “Construir” o mundo estava reservado ao demiurgo, uma divindade subordinada. Bem distinto é o Deus cristão: Ele, o Uno, o verdadeiro e único Deus, é também o Criador. Deus trabalha; continua a trabalhar na e sobre a história dos homens. Em Cristo, entra como Pessoa no trabalho cansativo da história. “Meu Pai trabalha continuamente e Eu também trabalho”. O mesmo Deus é o Criador do mundo, e a criação ainda não está terminada. Deus trabalha. Assim, o trabalho dos homens, deveria aparecer como uma expressão particular da sua semelhança com Deus e, desse modo, o homem tem a faculdade e pode participar no agir de Deus na criação do mundo. Do monaquismo faz parte, junto com a cultura da palavra, uma cultura do trabalho, sem a qual o progresso da Europa, o seu ethos e a própria concepção do mundo são impensáveis. Mas este ethos deveria incluir a vontade de fazer com que o trabalho e a determinação da história por parte do homem sejam uma colaboração com o Criador, haurindo
Jonas Matheus Sousa da Silva
76
Pai como um contínuo trabalhador e mostra sua
comunhão com o Pai por estar em conformidade
com Ele, trabalhando26.
Os apóstolos de Jesus também advieram
do mundo do trabalho, alguns eram pescadores, Levi
fora cobrador de impostos (cf. Marcos 1, 16-20; 2,
14). Para Jesus, o trabalho e a Lei estão a serviço da
vida do homem, jamais no sentido inverso (cf.
Marcos 2, 23-28; 3, 1-6).
Jesus transmitiu seus ensinamentos
sobre o advento do Reinado de Deus a pessoas do
mundo do trabalho, a julgar pelas narrativas das suas
parábolas e alegorias, com cenas dos trabalhos de
construtores, administradores, agricultores e
pastores.
O apóstolo Paulo, a partir do seu
exemplo, exorta ao trabalho como fuga do ócio (cf. I
Tessalonicenses 2,9; 4, 11-12; II Tessalonicenses 3, 6-
13) e como necessidade para viver com dignidade,
d’Ele a medida. Onde falta essa medida e o homem eleva-se a si mesmo a criador deificado, a transformação do mundo pode facilmente desembocar na sua destruição” (BENTO XVI, 2008). 26 O biblista Pe. Alberto Casalegno sj (2009, p.195), ensina: “A expressão 10,30, [“Eu e o Pai somos um”], com a qual termina o primeiro momento do debate com os judeus, destaca, pois, a ação comum de Jesus e do Pai em relação aos crentes, fazendo que eles não se retraiam do caminho do Evangelho. A bem da verdade, é somente segundo esse aspecto que o Pai e Jesus são colocados no mesmo plano. Não se pode excluir, todavia, que, com essa expressão, o autor também queira deixar entrever a dimensão divina de Jesus [...] A frase tem uma certa relação com a de 5,17: “Meu Pai trabalha, e eu também trabalho”, na qual a palavra de Jesus que cura em dia de sábado é interpretada pelos adversários como o arrogar-se uma prerrogativa divina e é tachada de blasfêmia (v.16) ”.
Espiritualidade do Trabalho
77
satisfazendo suas necessidades vitais, com
expectativa da realização escatológica da história, já
realizada na Páscoa do Senhor e na vida do cristão;
O apóstolo exorta: “Trabalhai para a própria
salvação com temor e tremor” (Filipenses 2, 12-16).
III.3 - A influência do Cardeal Stefan
Wyszyński e da sua obra “O Espírito do
Trabalho”
Após considerarmos os fundamentos
bíblicos para a Teologia do Trabalho, é mister
considerar aspectos do tomo “O Espírito do
Trabalho”, uma obra do cardeal da Polônia, Stefan
Wyszyński (1901-1981), com o qual Wojtyła se
relacionou estreitamente no seu múnus de bispo
polonês e, certamente, conheceu e recebeu dele a
influência da concepção sobre a espiritualidade
laboral.
Esse livro está organizado em 18
Capítulos. Inicia tratando dos problemas da esfera
trabalhista no seu contexto; em seguida, teologiza
sobre a relação de Deus e de Cristo com o trabalho.
Deus é o princípio de toda a atividade, de todo movimento, do
trabalho. O ‘Faça-se’ divino encerra em si, simultaneamente, o
pensamento criador e a execução. Daquele primeiro impulso,
nasceu todo movimento, sem o qual o homem nada poderia
fazer” (WYSZYNSKI, 1959, p. 19).
Jonas Matheus Sousa da Silva
78
A atividade laboral transcende o fato de
ser mera necessidade natural do homem e um dever
social, tornando-se uma manifestação de amor ao
Criador do mundo, por isso, a fadiga do trabalho
deve ser associada ao mistério da nossa redenção.
Assim, “o trabalho feito por amor de Deus é a
participação humana, não só na obra da criação, mas
também na redenção; [...] Só o trabalho empreendido
por amor a Deus é meritório e fonte de salvação”
(WYSZYNSKI, 1959, pp. 69-70).
Quando o trabalho se torna local de
oração, nele desabrocham os valores espirituais e de
vida social, radicando a paciência, a perseverança e a
constância, bem como o escrúpulo e a prudência na
aplicação laboral, o silêncio, a colaboração e a justa
medida entre tempos de trabalho e descanso, e
também a guarda dos dias consagrados a Deus.
O trabalho é, portanto, amor a Deus e ao próximo. É a resposta
de um ser racional ao amor com que Deus nos convidou, com
ele nos honrando grandemente, a participar na sua atividade
criadora e a fazer de causa segunda no governo divino do
mundo (WYSZYNSKI, 1959, p. 183).
O trabalho é, destarte, participação na
obra criadora de Deus, na transformação do mundo
criado. Nisso, o homem vai participando da obra do
Criador e experimentando, através do trabalho, as
alegrias naturais e também espirituais que elevam o
trabalhador a Deus.
Espiritualidade do Trabalho
79
III.4 - O trabalho a luz da Eucaristia, eleva o
homem a Deus
Após a consideração sobre os
fundamentos bíblicos da espiritualidade do trabalho e
ao sintético aceno ao tomo do cardeal Wyszynski,
sobre o mesmo tema, tomando o pressuposto da
influência dessas bases sobre o pensamento do Papa
Wojtyła, na encíclica Laborem Exercens, passamos a
apresentar a solução da questão da espiritualidade do
trabalho no mundo atual, impostando o mistério da
redenção vinculado ao sacramento da Eucaristia,
conforme o magistério do mesmo pontífice.
Vivenciar o trabalho como elevação do
ser humano a Deus, torna-se possível quando o
trabalhador se deixa iluminar pelo mistério pascal de
Cristo, tomando Jesus Cristo por mestre e Senhor,
considerando o mistério da encarnação do Filho de
Deus que, na sua existência em Nazaré, junto à
Virgem Maria e a São José27, trabalhou com suas
inteligência e mãos humanas, como artesão.
27 O Papa Wojtyla, na exortação apostólica Redemptor Custos n. 22, apresenta São José como educador e modelo da humanidade do Filho Deus, na arte do trabalho, coadjuvando o Redentor na introdução do trabalho humano no mistério da salvação. Assim se exprime tal exortação: “O trabalho humano, em particular o trabalho manual, tem no Evangelho uma acentuação especial. Juntamente com a humanidade do Filho de Deus, ele foi acolhido no mistério da Encarnação, como também foi redimido de maneira particular. Graças ao seu banco de trabalho, junto do qual exercitava o próprio ofício juntamente com Jesus, José aproximou o trabalho humano do mistério da Redenção” (JOÃO PAULO II, 1989).
Jonas Matheus Sousa da Silva
80
Aqui, a fim de compreender que o
trabalho humano foi envolvido pelo mistério da
redenção, pode-se aplicar o ensinamento de São
Gregório Nazianzeno (Capadócia, 330-390), ao
afirmar que apenas foram salvas as realidades que
foram assumidas pelo Verbo encarnado.28 Ainda
mais, o trabalho santificado pela ação do Senhor,
deve ser iluminado pelo mistério pascal do divino
carpinteiro, que redime o ser humano do altar da sua
cruz.29
28 Conforme o Papa Bento XVI, na Audiência Geral de 22 de agosto de 2007: “Gregório pôs em grande relevo a humanidade plena de Cristo: para redimir o homem na sua totalidade de corpo, alma e espírito, Cristo assumiu todas as componentes da natureza humana, porque, de outro modo, o homem não teria sido salvo. Contra a heresia de Apolinário, o qual defendia que Jesus não tinha assumido uma alma racional, Gregório enfrenta o problema à luz do mistério da salvação: "O que não foi assumido, não foi curado (Ep. 101, 32: SC 208, 50), e se Cristo não tivesse sido "dotado de intelecto racional, como teria podido ser homem?" (Ep. 101, 34: SC 208, 50). Era precisamente o nosso intelecto, a nossa razão que tinha e tem necessidade da relação, do encontro com Deus em Cristo. Tornando-se homem, Cristo deu-nos a possibilidade de nos tornarmos por nossa vez como Ele. O Nazianzeno exorta: "Procuremos ser como Cristo, porque também Cristo se tornou como nós: tornar-nos deuses por meio d'Ele, dado que Ele mesmo, através de nós, se tornou homem. Assumiu sobre si o pior, para nos doar o melhor" (Oratio 1, 5: SC 247, 78). ” (BENTO XVI, 2007). 29 A cruz é máquina de elevação do ser humano a Deus, pelas energias do Espírito Santo, rusticamente talhada por mãos humanas marcadas pelo pecado, mas potencialmente abertas ao mistério da salvação a ponto de se consumar. Conforme Santo Inácio de Antioquia (+107), na Sua Carta aos Efésios 9,1: “sois pedras do templo do Pai, preparadas para a construção de Deus Pai, alçadas para as alturas pela alavanca de Jesus Cristo, alavanca que é a Cruz, servindo-vos do Espírito Santo como de um cabo. Vossa fé por um lado é o guia, enquanto a caridade se transforma em caminho que leva para cima, até Deus” (SANTO INÁCIO, 1970, pp.43-44).
Espiritualidade do Trabalho
81
O mistério da nossa redenção está
presente de modo sacramental e real no sacramento
da Eucaristia, pois “há, no evento pascal e na
Eucaristia que o atualiza, ao longo dos séculos, uma
‘capacidade’ realmente imensa, na qual está contida a
história inteira, enquanto destinatária da graça da
redenção” – Ecclesia de Eucharistia n.5. (JOÃO
PAULO II, 2003).
A Eucaristia, como oferta oblativa do
Filho ao Pai, pela nossa salvação, foi o modo
apropriado de Deus para transfigurar a realidade
criada. A ação de Deus como transformação do
homem é sacrifício real, o modo com o qual o
Senhor serviu a humanidade. Seu sacrifício foi em
vista de elevar o humano ao divino. Na Eucaristia,
esse mesmo sacrifício se atualiza nessa mesma
perspectiva, é sempre serviço de Deus para elevação
do homem.
O trabalho humano pode ser
compreendido também nessa dinâmica de oferta pela
transformação do mundo, como sacrifício oblativo,
no qual o homem vai se configurando ao Cristo
eucarístico e passando de uma realidade de baixo,
meramente humana, àquela realidade do alto, divina.
O humano se eleva a Deus. Isso requer compreender
o trabalho como instrumento de purificação,
transformação e configuração a Deus.
Trabalhar à luz do mistério contido no
sacramento da Eucaristia é o modo mais eficaz de
elevar-se nesta ação criativa e estafante a Deus,
através de Cristo e do Espírito Santo, que concedem
Jonas Matheus Sousa da Silva
82
ao trabalhador que, crendo, abra-se a graça divina e
aja imbuído das virtudes teologais – fé, esperança e
caridade. Conforme a primeira encíclica do Papa
Wojtyła, Redemptor Hominis n.20:
Ao celebrarmos e, conjuntamente, ao participarmos na
Eucaristia, nós unimo-nos a Cristo terrestre e celeste, que
intercede por nós junto do Pai; mas unimo-nos sempre através
do ato redentor do seu sacrifício, por meio do qual Ele nos
remiu, de modo que fomos ‘comprados por um preço elevado’.
O ‘preço elevado’ da nossa redenção comprova, também ele, o
valor que o mesmo Deus atribui ao homem, comprova a nossa
dignidade em Cristo. (JOÃO PAULO II, 1979).
De fato, no pão e no vinho, através da
Palavra e do Espírito Santo no sacramento da
Eucaristia, transubstanciados na presença real do
Cristo crucificado-ressuscitado, os frutos da natureza
e do trabalho levados ao altar30, através do ministério
30 Esta doutrina, essencialmente ligada à liturgia desde o I século, figura em textos como a Didaqué e no Missal Romano, conforme as citações: a) “Celebrem a Eucaristia deste modo [...] digam sobre o pão partido: ‘... Do mesmo modo como este pão partido tinha sido semeado sobre as colinas, e depois recolhido para se tornar um, assim também a tua Igreja seja reunida desde os confins da terra no teu reino, porque tua é a glória e o poder, por meio de Jesus Cristo, para sempre’” (DIDAQUÉ IX, 1989, p.21); b) “Bendito sejais, Senhor, Deus do universo, pelo pão que recebemos de vossa bondade, fruto da terra e do trabalho humano, que agora vos apresentamos, e para nós se vai tornar pão da vida” (MISSAL ROMANO,1992, p.402); c) “Bendito sejais, Senhor, Deus do universo, pelo vinho que recebemos de vossa bondade, fruto da videira e do trabalho humano, que agora vos apresentamos, e para nós se vai tornar vinho da salvação” (MISSAL ROMANO,1992, p.403).
Espiritualidade do Trabalho
83
do sacerdote ordenado que é “representação
sacramental de Jesus Cristo Cabeça e Pastor” –
Pastores dabo vobis31 n.15 (JOÃO PAULO II, 1992),
tornam-se alimento de vida eterna e bebida de
salvação.
Assumido por Cristo no Espírito, o
trabalho humano é redimido e transfigurado,
perpassado pela graça do Espírito que, conforme são
Boaventura (1983, p. 203), é “fogo que tudo inflama
e transfere a Deus com uma unção que arrebata e um
afeto que devora. Este fogo é Deus e sua fornalha
está em Jerusalém. É Jesus Cristo que o acende com
o fervor de Sua ardentíssima Paixão”.
As semeaduras do trigo e da uva,
passando pela colheita e vindima, a panificação, a
fabricação do vinho, o comércio desses produtos,
como meios de cultura e sustento de vários
trabalhadores, é divinizado por Cristo e pelo
Espírito, desde a última ceia que o Senhor celebrou
com os seus apóstolos, em cada Eucaristia celebrada
por eles e seus sucessores, até que se cumpra o
banquete escatológico, na transfiguração escatológica
da história e de toda a criação32.
31 Exortação apostólica pós-sinodal sobre a formação dos sacerdotes. 32 Conforme o Papa Wojtyla, na carta encíclica Ecclesia de Eucharistia n. 20: “Consequência significativa da tensão escatológica presente na Eucaristia é o estímulo que dá à nossa caminhada na história, lançando uma semente de ativa esperança na dedicação diária de cada um aos seus próprios deveres. De fato, se a visão cristã leva a olhar para o ‘novo céu’ e a ‘nova terra’ (Apocalipse 21, 1), isso não enfraquece, antes estimula o nosso sentido de responsabilidade pela terra presente. Desejo reafirmá-lo com vigor ao início do novo milênio, para que os cristãos se sintam ainda mais decididos a não descurar os seus deveres
Jonas Matheus Sousa da Silva
84
de cidadãos terrenos. Têm o dever de contribuir com a luz do Evangelho para a edificação de um mundo à medida do homem e plenamente conforme o desígnio de Deus. ” (JOÃO PAULO II, 2003).
Espiritualidade do Trabalho
85
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Viver o trabalho como disciplina, e
neste, experimentar a presença de Deus, colaboração
com sua obra criadora e, ao mesmo tempo, também,
com sua obra redentora e santificadora, realizar o
trabalho com amor e gratuidade, oferecendo-o como
sacrifício a Deus em prol da Igreja e de tantas
intenções. A partir dessa compreensão hermenêutica,
o trabalho se torna, de fato, graça, elevação do ser
humano a Deus.
Por mais que as condições do trabalho
sejam aviltantes, se movido pela fé, o trabalhador há
de erguer a cabeça e buscar condições mais dignas de
exercer seu ofício; há de ter em seu ser a expressão
da sua dignidade, por ser feito “à imagem e
semelhança de Deus” (cf. Genesis 1). Assim, é
direito do trabalhador lutar por evoluir no trabalho,
galgando melhores patamares de qualidade de vida,
para si, para os seus e para a sociedade.
Nisso, a inteligência criativa e o vigor,
unidos às Virtudes Teologais e morais, farão o
homem do trabalho transformar todas as condições
hostis ao seu desempenho, para executar sua tarefa e
produzir com eficácia e eficiência, de modo grato e
generoso, movido pelo amor a Deus, aos seus e ao
bem comum da humanidade.
Jonas Matheus Sousa da Silva
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O operário, movido pelas Virtudes
infusas e adquiridas, toma nas suas mãos o projeto
da sua vida, com responsabilidade para receber, em
espírito de gratuidade, a felicidade por ser autor de
sua história, inserindo-a com o assentimento de fé e
com a ação, no projeto salvífico de Deus.
Desse modo, o trabalhador exerce sua
espiritualidade criativa e se eleva exercendo o
trabalho, cuidando e transformando o mundo e a
sociedade como co-criador, assemelhando-se a Deus
e O honrando, bem como cooperando para o bem
comum.
Nesse sentido, se o trabalho é visto e
exercido a partir da espiritualidade pascal do
cristianismo, e dentro de condições dignas, torna-se
uma senda que Deus dispõe para elevar o homem a
Si, fazendo-o viver o mandamento universal do amor
pelo trabalho. Nisso, que é contínua ação do nosso
Redentor, o ser humano, ao exercer dignamente o
seu trabalho, participa das graças que Deus lhe
concede, abrindo-se para acolher a salvação, dado
que Jesus Cristo trabalhou com as próprias mãos e,
conforme a doutrina dos Padres da Igreja, só foi
salvo aquilo que foi assumido pelo Verbo.
Portanto, o homem do trabalho (Homo
Faber), que é sempre Homo Viator, nó de pulsões e
relações, está aberto à transcendência. Se está unido
ao Cristo trabalhador e redentor, presente no
Sacramento da Eucaristia, memorial da Sua páscoa,
recebe as energias e virtudes necessárias para re-
significar as atuais condições do seu trabalho. Assim,
Espiritualidade do Trabalho
87
empenha-se de modo autorresponsável33 na
transfiguração da sua própria realidade, como fruto
da espiritualidade eucarística do trabalho34, que,
como genuína abertura ao transcendente, torna-se –
também no contexto atual – meio de elevação do
homem a Deus.
33 “Autorresponsabilidade é a crença de que você é o único responsável pela vida que tem levado; sendo assim, é o único que pode mudá-la” (VIEIRA, 2015, p.28). 34 Para o Papa Wojtyla, nos nn. 24-25 da carta apostólica Mane Nobiscum Domine: “A despedida no final de cada Missa constitui um mandato, que impele o cristão para o dever de propagação do Evangelho e de animação cristã da sociedade. Para tal missão, a Eucaristia oferece não apenas a força interior, mas também, em determinado sentido, o projeto. Na realidade, aquele é um modo de ser que passa de Jesus para o cristão e, através do seu testemunho, tende a irradiar-se na sociedade e na cultura. Para que isso aconteça, é necessário que cada fiel assimile, na meditação pessoal e comunitária, os valores que a Eucaristia exprime, as atitudes que ela inspira, os propósitos de vida que suscita. ” (JOÃO PAULO II, 2004).
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Espiritualidade do Trabalho
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