especial vinicius 100 anos

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SALVADOR DOMINGO 13/10/2013 2 ESPECIAL 100 anos Há que ser bem cortês sem cortesia, doce e conciliador sem covardia. Saber ganhar dinheiro com poesia, não ser um ganhador. Mas tudo isso não adianta nada se nesta selva escura e desvairada Não se souber achar a grande amada para viver um grande amor. PARA VIVER UM GRANDE AMOR, Vinicius de Moraes e Toquinho MARIANA PAIVA No contar das páginas viradas na folhinha, o amor de Gesse e Vinicius durou sete anos. Foi o sétimo casamento do poeta e, apesar da referência cabalística do número, o que valeu mesmo foram aqueles versos finais do Soneto de Fidelidade: “Que não seja imortal, posto que é cha- ma/ Mas que seja infinito en- quanto dure”. Gesse e Vinicius nunca se cha- mavam pelos nomes. Ela era “filhinha”; ele, “filhinho”. Só quando o poeta exagerava na bebida é que era acordado pela esposa com um sonoro “Bom dia, Vinicius!”. Aí ele sabia que estava en- crencado. Corria para Dolores, a governanta da casa, a perguntar o que tinha feito de errado. A resposta era quase sempre a mesma: “O uísque”. Vinicius se redimia com poe- sia. “Ele pegava alguma roupa minha que estivesse no quarto e escrevia nela pedindo perdão. Minhas calcinhas eram todas cheias de poemas”, Gesse diz. A chateação acabava aí: com uns versos bonitos escritos com caneta Bic, Gesse sorria e os dois viviam o resto do dia em paz. Para agradar sua amada, Vi- nicius também se arriscava na cozinha (Gesse garante que o tempero era bom). Tal qual es- creveu em Para Viver um Grande Amor, Vinicius fazia comidinhas para depois do amor. As receitas preferidas eram pi- cadinho de carne e o frango as- sado com banana derretida. Até a comida feita por Vinicius tinha lá sua poesia. A banana era cor- tada bem fininha e posta sobre o frango. Derretia como se fosse queijo, e devagar ia emprestan- do seu sabor ao frango. “Aí era comer e ser feliz”, Gesse jura. Ela conta que a gastronomia de Vinicius tinha três objetivos: agradá-la, provar que era bom cozinheiro e facilitar o roubo de comida na geladeira, já que ele era diabético. “Teve uma vez que Vinicius estava cozinhando e cheguei de repente. Quando vi, ele estava roubando um ca- ruru do dia anterior. Falei logo: ‘Bonito, seu Vinicius!’”. Morena Flor Os dois se conheceram em 1969, no Rio de Janeiro, graças à insistência de Maria Bethânia. Gesse não queria ir pra festa de intelectual, mas Bethânia avi- sou que dariam só uma pas- sadinha na pizzaria Pizzaiolo, onde Vinicius de Moraes ia dei- xar sua marca na calçada da fama. De lá, continuariam a noi- tada em outro lugar. O carioca Vinicius de Moraes e a baiana Gesse Gessy se conheceram no Rio de Janeiro, no ano de 1969 Samba de Gesse Vinicius de Moraes Até parece Que eu conhecia sempre você Que me aparece Quando eu não via jeito de ser A gente esquece Que a gente muda de bem-querer Ah, se eu pudesse Tinha esperado só por você Quando amanhece Eu ao meu lado vejo você Eu digo em prece Que a vida é linda como você Eu que era louco Eu que era triste Deixei de ser Até parece Que só existe eu e você Para viver um grande amor ENCONTRO A atriz baiana Gesse Gessy e o poeta Vinicius de Moraes foram apresentados por Maria Bethânia em 1969, no Rio de Janeiro. Foi amor à primeira vista Ao se deparar com Gesse, Vi- nicius começou a armar uma for- ma de ficar a sós com a moça. Quando conseguiu, pegou seu copo de uísque, puxou a cadeira e sentou ao lado de Gesse. “Ele me chamou pra sair, eu disse que não, estava esperando meus amigos. E aí ele disse, ‘eles não vão voltar’”. Desconfiada, Gesse foi com ele, e se sentiu segura ao lem- brar que sabia um pouco de ca- poeira. “Fomos de táxi até a boate Number One. Vinicius su- biu no palco e ficou cantando até de manhã”. A essa altura, ela já estava gostando (e muito) do show particular. Andaram na beira da praia, e quando os raios do dia come- çavam a aparecer, Vinicius a dei- xou em casa, despedindo-se com dois beijos no rosto. De manhã, ela acordou com a casa cheia de flores. “De meia em meia hora, chegava mais. Ele me convidou para jantar na casa dele, fui e fiquei vasculhan- do tudo no banheiro, procuran- do sinais de outras mulheres. Não tinha”. Já em Salvador, Gesse rece- beu um telegrama de Vinicius, do Uruguai: “Estou lhe esperan- do, venha casar comigo”. Ela foi. Pediu quartos separados na re- cepção do hotel, mas depois de meia hora de conversa no sa- guão, já mandou cancelar um. No ano seguinte, Gesse se tor- nou a sétima esposa de Vinicius, numa cerimônia cigana que te- ve como padrinhos Calasans Ne- to e Auta Rosa, Jorge Amado e Zélia Gattai. Reprodução Margarida Neide / Ag. A TARDE Gesse e Vinicius se beijam diante de seus amigos para celebrar o casamento cigano Reprodução Marco Aurélio Martins / Ag. A TARDE Foto inédita de Gesse vestida de índia para Vinicius Reprodução Marco Aurélio Martins / Ag. A TARDE Calasans Neto, Auta Rosa, Zélia Gattai e Jorge Amado posam com os noivos ESPECIAL 100 ANOS VINICIUS DE MORAES Editora-coordenadora: Simone Ribeiro / Edição: Eduardo Bastos / Textos: Mariana Paiva / Coordenador de Arte / Projeto gráfico: Vado Alves / Diagramação: Vado Alves e Marcelo Campos

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A história de amor que levou o poeta Vinicius de Moraes para a Bahia Texto de Mariana Paiva Reprodução de fotos de Marco Aurélio Martins Design de Vado Alves

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Page 1: Especial Vinicius 100 anos

SALVADORDOMINGO13/10/2013

2 ESPECIAL

100anos

Há que ser bem cortês sem cortesia,

doce e conciliador sem covardia.

Saber ganhar dinheiro com poesia,

não ser um ganhador.

Mas tudo isso não adianta nada se

nesta selva escura

e desvairada

Não se souber achar a grande amada

para viver um grande amor.

PARA VIVER UM GRANDE AMOR, Vinicius de Moraes e Toquinho

MARIANA PAIVA

No contar das páginas viradasna folhinha, o amor de Gesse eVinicius durou sete anos. Foi osétimo casamento do poeta e,apesar da referência cabalísticado número, o que valeu mesmoforam aqueles versos finais doSoneto de Fidelidade: “Que nãoseja imortal, posto que é cha-ma/ Mas que seja infinito en-quanto dure”.

Gesse e Vinicius nunca se cha-mavam pelos nomes. Ela era“filhinha”; ele, “filhinho”. Sóquando o poeta exagerava nabebida é que era acordado pelaesposa com um sonoro “Bomdia, Vinicius!”.

Aí ele sabia que estava en-crencado. Corria para Dolores, agovernantadacasa,aperguntaro que tinha feito de errado. Aresposta era quase sempre amesma: “O uísque”.

Vinicius se redimia com poe-sia. “Ele pegava alguma roupaminha que estivesse no quartoe escrevia nela pedindo perdão.Minhas calcinhas eram todascheias de poemas”, Gesse diz.

A chateação acabava aí: comuns versos bonitos escritos comcaneta Bic, Gesse sorria e os doisviviam o resto do dia em paz.

Para agradar sua amada, Vi-nicius também se arriscava nacozinha (Gesse garante que otempero era bom). Tal qual es-creveu em Para Viver um GrandeAmor, Vinicius fazia comidinhaspara depois do amor.

Asreceitaspreferidaserampi-cadinho de carne e o frango as-sado com banana derretida. Até

a comida feita por Vinicius tinhalá sua poesia. A banana era cor-tada bem fininha e posta sobreo frango. Derretia como se fossequeijo, e devagar ia emprestan-do seu sabor ao frango. “Aí eracomer e ser feliz”, Gesse jura.

Ela conta que a gastronomiade Vinicius tinha três objetivos:agradá-la, provar que era bomcozinheiro e facilitar o roubo decomida na geladeira, já que eleera diabético. “Teve uma vezque Vinicius estava cozinhandoe cheguei de repente. Quandovi, ele estava roubando um ca-ruru do dia anterior. Falei logo:‘Bonito, seu Vinicius!’”.

Morena FlorOs dois se conheceram em1969, no Rio de Janeiro, graçasà insistência de Maria Bethânia.Gesse não queria ir pra festa deintelectual, mas Bethânia avi-sou que dariam só uma pas-sadinha na pizzaria Pizzaiolo,onde Vinicius de Moraes ia dei-xar sua marca na calçada dafama. De lá, continuariam a noi-tada em outro lugar.

O carioca Viniciusde Moraes e abaiana Gesse Gessyse conheceram noRio de Janeiro, noano de 1969

Samba de GesseVinicius de Moraes

Até pareceQue eu conhecia sempre vocêQue me apareceQuando eu não via jeito de serA gente esqueceQue a gente muda de bem-quererAh, se eu pudesseTinha esperado só por vocêQuando amanheceEu ao meu lado vejo vocêEu digo em preceQue a vida é linda como vocêEu que era loucoEu que era tristeDeixei de serAté pareceQue só existe eu e você

Para viverum grandeamor ENCONTRO A atriz baiana Gesse

Gessy e o poeta Vinicius de Moraesforam apresentados por MariaBethânia em 1969, no Rio deJaneiro. Foi amor à primeira vista

Ao se deparar com Gesse, Vi-niciuscomeçouaarmarumafor-ma de ficar a sós com a moça.Quando conseguiu, pegou seucopo de uísque, puxou a cadeirae sentou ao lado de Gesse. “Eleme chamou pra sair, eu disseque não, estava esperandomeusamigos.Eaíeledisse, ‘elesnão vão voltar’”.

Desconfiada, Gesse foi comele, e se sentiu segura ao lem-brar que sabia um pouco de ca-poeira. “Fomos de táxi até aboate Number One. Vinicius su-biunopalcoe ficoucantandoatéde manhã”. A essa altura, ela jáestava gostando (e muito) doshow particular.

Andaram na beira da praia, equando os raios do dia come-çavam a aparecer, Vinicius a dei-xou em casa, despedindo-se

com dois beijos no rosto.De manhã, ela acordou com a

casa cheia de flores. “De meiaem meia hora, chegava mais.Ele me convidou para jantar nacasa dele, fui e fiquei vasculhan-do tudo no banheiro, procuran-do sinais de outras mulheres.Não tinha”.

Já em Salvador, Gesse rece-beu um telegrama de Vinicius,do Uruguai: “Estou lhe esperan-do, venha casar comigo”. Ela foi.Pediu quartos separados na re-cepção do hotel, mas depois demeia hora de conversa no sa-guão, já mandou cancelar um.

Noanoseguinte,Gessesetor-nou a sétima esposa de Vinicius,numa cerimônia cigana que te-ve como padrinhos Calasans Ne-to e Auta Rosa, Jorge Amado eZélia Gattai.

Reprodução Margarida Neide / Ag. A TARDE

Gesse e Viniciusse beijam diantede seus amigospara celebrar ocasamentocigano

Reprodução Marco Aurélio Martins / Ag. A TARDE

Foto inédita de Gesse vestida de índia para Vinicius

Reprodução Marco Aurélio Martins / Ag. A TARDE

Calasans Neto, Auta Rosa, Zélia Gattai e Jorge Amado posam com os noivos

ESPECIAL 100 ANOS VINICIUS DE MORAES Editora-coordenadora: Simone Ribeiro / Edição: Eduardo Bastos / Textos: Mariana Paiva / Coordenador de Arte / Projeto gráfico: Vado Alves / Diagramação: Vado Alves e Marcelo Campos