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Câmara dos Deputados Praça dos 3 Poderes Consultoria Legislativa Anexo III - Térreo Brasília - DF ENSINO EM CASA NO BRASIL Emile Boudens Consultor Legislativo da Área XV Educação, Desporto, Bens Culturais, Diversões e Espetáculos Públicos ESTUDO JANEIRO/2002

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Câmara dos DeputadosPraça dos 3 PoderesConsultoria LegislativaAnexo III - TérreoBrasília - DF

ENSINO EM CASA NO BRASIL

Emile BoudensConsultor Legislativo da Área XV

Educação, Desporto, Bens Culturais,Diversões e Espetáculos Públicos

ESTUDO JANEIRO/2002

Page 2: ENSINO EM CASA NO BRASIL...4 “Na prática, o ensino em casa é a reedição atualizada de um método antigo, da época em que os filhos da elite tinham seus tutores, que lhes ensinavam

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ÍNDICE

© 2002 Câmara dos Deputados.

Todos os direitos reservados. Este trabalho poderá ser reproduzido ou transmitido na íntegra, desde que

citados o(s) autor(es) e a Consultoria Legislativa da Câmara dos Deputados. São vedadas a venda, a reprodu-

ção parcial e a tradução, sem autorização prévia por escrito da Câmara dos Deputados.

1 - INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 32 - EDUCAÇÃO ESCOLAR2 ....................................................................................................... 53 - ENSINO EM CASA: CRÍTICAS5 ......................................................................................... 16NOTAS DE REFERÊNCIA ........................................................................................................ 274 - BIBLIOGRAFIA ..................................................................................................................... 28

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1 - INTRODUÇÃO

Ensino em casa, entendido como métodoinstrucional substitutivo da educação escolar,parece ser um daqueles temas predestinados

a voltar periodicamente à pauta das discussões na Câmara dosDeputados. De fato, depois de ter sido objeto de debate naComissão de Educação, Cultura e Desporto, em 1994, o ensinoem casa retorna sob a forma do Projeto de Lei nº 6001/2001,do deputado Ricardo Izar, apresentado, possivelmente, na esteirado debate reaberto pelo Correio Braziliense em 14 de janeiro de2001.

De fato, na edição daquele dia, o Correio Brazilienserelatava o caso de um casal, atualmente residente em Anápolis,que não abre mão do direito de educar os filhos fora do sistemaescolar, em casa. Aproximadamente um mês depois, o Jornal deBrasília deu continuidade ao debate em torno do que o própriodiário define como método de ensino “em que as crianças vão àescola somente para fazer as provas de avaliação”.

Em 15 de março, o economista Cláudio de MouraCastro passa a tomar parte na discussão, na forma de umamensagem ao deputado distrital Wilson Lima. “A pergunta legítimanão é se a educação em casa é boa ou má. A pergunta certa é sob quecondições o Estado deve permitir a educação domiciliar. Pela legislação,cabe ao Estado assegurar a integridade da educação básica. Portanto, aeducação domiciliar, tanto quanto a outra, é assunto legítimo de sua atuação.(...) O problema operacional é saber quais as condições mínimas (defuncionamento da escola em casa e como criar um mecanismo para verificarque estão sendo cumpridas”.

Pouco tempo depois, em 25 de abril, foi a vez deVeja, que dizia conhecer outros adeptos do método escola emcasa ou ensino em casa. Segundo a revista, existem pelo paísafora muitos pais que preferem instruir os próprios filhos a confiarna educação escolar. E comentava:

ENSINO EM CASA NO BRASIL

Emile Boudens

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“Na prática, o ensino em casa é a reedição atualizada de um método antigo, da época em que os filhosda elite tinham seus tutores, que lhes ensinavam as disciplinas relevantes da época, como latim, álgebra ecaligrafia. Hoje, nas famílias que adotam o sistema caseiro de ensino, pelo menos um dos cônjuges precisaabrir mão de trabalhar fora. Em geral, é a mulher. Os maridos, no entanto, ajudam no tempo disponível.O problema, de acordo com especialistas, está no afastamento do convívio social com outras crianças. Asfamílias adeptas do ensino em casa discordam”.

Em 16 de julho do mesmo ano, o periódico ‘Consultor Jurídico’ informou que o MinistérioPúblico Federal enviara ao Superior Tribunal de Justiça um parecer sobre a possibilidade de os paiseducarem os filhos em casa. O MP seria favorável à concessão de mandado de segurança paraassegurar aos pais o direito de educar os filhos. “O MP não entende como a educação provida pelos pais, noambiente doméstico, possa implicar em inibição do crescimento social das crianças. Ainda segundo o parecer, aeducação é vista de prismas diferentes pelas autoridades e os pais. Para as autoridades, a educação é tida como deverdo Estado e para os pais seria um encargo pessoal”.

Em agosto do mesmo ano, projeto de lei de autoria do deputado distrital Wilson Lima,sugeriu que fosse instituída no sistema público do Distrito Federal a educação domiciliar, “nos níveisde 1º e 2º graus” . Segundo a proposição, educação domiciliar é a que é ministrada por membros daprópria família ou tutores sob a orientação, administração, supervisão e avaliação de desempenhodas escolas, a opção pelo regime de educação domiciliar seria “por motivo superveniente”, o alunoque se escolariza em casa deve estar matriculado numa escola, os pais serão responsáveis perante aescola pelo desempenho do estudante; o exercício do direito à educação domiciliar está condicionadaà comprovação de formação escolar compatível e de disponibilidade de tempo.

Note-se que toda essa polêmica está acontecendo depois que, o Conselho Nacional deEducação, em parecer da lavra de Ulisses de Oliveira Panisset1 , assim se havia manifestado:

“Salvo melhor juízo, não encontro na Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, Lei de Diretrizese Bases da Educação Nacional, nem na Constituição da República Federativa do Brasil, abertura para quese permita a uma família não cumprir a exigência da matrícula obrigatória na escola de ensino fundamental.‘Matricular’ em escola, pública ou para o exclusivo fim de ‘avaliação de aprendizado’ não tem amparo legal.(...). Sua (= do ensino ministrado no lar) adoção dependeria de manifestação do legislador, que viesse a abrira possibilidade, segundo normas reguladoras específicas”.

Confessava, ainda, o conselheiro que “em trinta e três anos de atuação, como membro do ConselhoEstadual de Minas Gerais, agora acrescidos de cinco anos como integrante do Conselho Nacional de Educação,nunca me deparara com essa questão no Brasil”. (...) Busco refletir, com a minha melhor atenção, sobre o inusitadotema” (grifo nosso).

Inusitado o tema não era para a Consultoria Legislativa da Câmara dos Deputados, que oconhecia pelo menos desde fins de 1993, quando o então Deputado João Teixeira solicitou umparecer sobe a aplicabilidade no Brasil do “estudo em casa, tal como regulamentado nos Estados Unidos”.

A Consultoria Legislativa concluiu pela intempestividade de uma proposição formal.Mesmo assim, seis meses depois, o Deputado apresentou o Projeto de Lei nº 4657/94, queautorizava “a prática do ensino domiciliar de 1º grau”, determinando que o currículo obedecesse àsnormas do MEC, que o grau de desenvolvimento do aluno fosse avaliado semestralmente junto àrede estadual do ensino, que a rede de ensino domiciliar não tivesse fins lucrativos, que os responsáveis(pais) fossem previamente cadastrados no órgão de ensino competente, que o calendário das atividadesde ensino fosse apresentado com antecedência à escola na qual seria prestado o teste e que as aulasfossem ministradas conforme programa escolar (!) aprovado pelo MEC.

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A Comissão de Educação, Cultura e Desporto acompanhou o voto do relator e rejeitouo Projeto de Lei nº 4.657/94 por unanimidade, ainda em 1994. Note-se, porém, que o parecer nãoera contrário à idéia do ensino em casa em si; apenas entendia ser desnecessária uma nova lei.

De fato, segundo o relator, deputado Carlos Lupi, não existe qualquer impedimentoconstitucional ao ensino em casa. Afinal, sob as condições de cumprimento das normas gerais daeducação nacional e da autorização e avaliação de qualidade pelo poder público, o ensino é livre àiniciativa privada (além de ser dever do poder público), não havendo por que considerá-lo monopóliodo sistema escolar.

Demais, argumentava, consoante o art. 64 da Lei nº 5.692/71, à época vigente, osconselhos estaduais de educação podiam “autorizar experiências pedagógicas, com regimes diversos dos prescritosna presente lei, assegurando a validade dos estudos realizados” e o projeto de LDB então em tramitação(PL nº 1258-C/88) admitia expressamente a “matrícula em qualquer série do ensino fundamental e médioindependentemente de escolarização anterior”.

Posteriormente, já em meados de 1997, nova consulta a respeito da viabilidade de umprojeto de lei “legalizando o ensino em casa, como educação alternativa “ foi encaminhado à ConsultoriaLegislativa, dessa feita pelo deputado Salatiel Carvalho. Foi incumbido do trabalho o Dr. Edirualdde Mello, que desaconselhou a apresentação de projeto de lei. Na sua visão, do ponto de vista didático-pedagógico, seria praticamente impossível a casa do educando ser o locus apropriado para a oferta deum currículo pleno. Além disso, havendo mais de um filho em idade escolar, de idades diferentes e,portanto de diferentes níveis de aprendizagem, teríamos uma situação idêntica àquela das escolasrurais unidocentes, de resultados pedagógicos em geral de duvidosa qualidade.

A retomada do debate sobre a viabilidade do reconhecimento e, por conseguinte, daregulamentação do ensino em casa ensejou a atualização e consolidação de estudos feitosanteriormente, bem como a confrontação da proposta com a legislação de ensino hoje em vigor. Tala origem e o objetivo do presente trabalho.

2 - EDUCAÇÃO ESCOLAR2

2.1 LegislaçãoComo nossa Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional disciplina a educação

escolar3 , a busca de referências ao ensino em casa tem que ser pelo avesso, isto é, pela identificaçãodo que o ensino em casa não é, ou seja, pela caracterização da educação escolar.

Pelo art. 208, inciso I e § 3º, da Constituição Federal, respectivamente, o dever doEstado com a educação deve ser efetivada mediante a garantia de ensino fundamental obrigatório egratuito. Compete ao poder público recensear os educandos no ensino fundamental, fazer-lhes achamada e zelar, junto aos pais ou responsáveis, pela freqüência à escola.

O Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, em seusarts. 53 e 55, preceitua que a criança e o adolescente têm direito à educação, visando ao plenodesenvolvimento de sua pessoa, preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho,e que os pais ou responsáveis têm a obrigação de matricular seus filhos ou pupilos na rede regular deensino.

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De acordo com o art 1º da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que fixa as diretrizese bases da educação nacional, a educação abrange os processos formativos que se desenvolvem navida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nosmovimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais. No mesmo artigo,declara-se que a LDB disciplina a educação escolar – aquela que se desenvolve, predominantemente,em instituições próprias.

Prescreve, ainda, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, com destaques datranscrição:

a) que o ensino será ministrado com base nos princípios de liberdade de aprender,ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber; de pluralismo de idéias e deconcepções pedagógicas; e de valorização da experiência extra-escolar (art. 3º);

b) que compete aos Estado e aos Municípios, em regime de colaboração, e com aassistência da União: recensear a população em idade escolar para o ensino fundamental, e os jovense adultos que a ele não tiveram acesso; fazer-lhes a chamada pública; zelar, junto aos pais ouresponsáveis, pela freqüência à escola (art. 5º);

c) que, para garantir o cumprimento da obrigatoriedade de ensino, o poder públicocriará formas alternativas de acesso aos diferentes níveis de ensino, independentemente deescolarização anterior (art. 5º, § 5º);

d) que é dever dos pais ou responsáveis efetuar a matrícula dos menores, a partir dosete anos de idade, no ensino fundamental (art. 6º);

e) que as instituições de ensino dos diferentes níveis classificam-se nas categoriasadministrativas “públicas” (as mantidas e administradas pelo poder público) e “privadas” (as mantidase administradas por pessoas físicas ou jurídicas de direito privado (art. 19);

f) que o ensino é livre à iniciativa privada, desde que sejam cumpridas as normasgerais da educação nacional e as do respectivo sistema de ensino; haja autorização de funcionamentoe avaliação de qualidade pelo poder público; e possa a instituição escolar auto-sustentar-se (art. 6º);

g) que, na educação básica de nível fundamental e médio, a classificação em qualquersérie ou etapa, exceto a primeira do ensino fundamental, pode ser feita independentemente deescolarização anterior, mediante avaliação feita pela escola, que defina o grau de desenvolvimento eexperiência do candidato e permita sua inscrição na série ou etapa adequada, conforma regulamentaçãodo respectivo sistema de ensino (art. 24);

h) que a verificação do rendimento escolar será contínua e cumulativa e observará,entre outros critérios, o do aproveitamento de “estudos concluídos com êxito” (art. 24, V, a);

i) que o controle de freqüência fica a cargo da escola, conforme o disposto no seuregimento e nas normas dos respectivos sistemas de ensino, exigida a freqüência mínima de setenta ecinco por cento do total de horas letivas para aprovação (art. 24, VI);

j) que cabe às instituições de ensino expedir históricos escolares e documentossimilares (art. 24, VII);

k) que o ensino fundamental, com duração mínima de oito anos, obrigatório e gratuitona escola pública, terá por objetivo a formação básica do cidadão e será presencial, sendo o ensinoa distância utilizado como complementação da aprendizagem ou em situações emergenciais (art. 32,§ 4º).

l) que a formação de docentes para atuar na educação básica far-se-á em nível superior,em curso de licenciatura, de graduação plena (art. 62).

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No capítulo dedicado à educação de jovens e adultos, que é a que é destinada aosque não puderam freqüentar a escola na idade própria, a LDB determina que os sistemas de ensinomanterão cursos e exames supletivos, que compreenderão a base nacional comum do currículo,habilitando ao prosseguimento de estudos em caráter regular. Trata-se dos exames supletivos, que serealizam e nível de conclusão do ensino fundamental, para os maiores de quinze anos e, no nível deconclusão do ensino médio, para os maiores de dezoito anos.

Finalmente, pelo art. 246 do Código Penal, está sujeito à pena de detenção dequinze dias e um mês, ou a multa, o pai que deixar, sem justa causa, de prover a instrução primário defilho em idade escolar. A Lei nº 10.287, de 20 de setembro de 2001, por sua vez, inclui nas competênciasdas instituições de ensino, estabelecidas no art. 12 da LDB, a de notificar ao Conselho Tutelar doMunicípio, ao juiz competente da Comarca e ao respectivo representante do Ministério Público arelação dos alunos que apresentem quantidade de faltas acima de cinqüenta por cento do percentualpermitido em lei.

Como se vê, a legislação do ensino admite o ensino em casa (“estudos concluídoscom êxito”, “processos formativos que se desenvolvem na família”, “formas alternativas de acesso”),mas não como regra. A regra, porém, é matrícula na escola, controle de freqüência, avaliaçãocontínua e cumulativa (a cargo da escola)

2.2 Educação escolar: conceituaçãoA escola pode ser definida como “a instituição encarregada de realizar, junto às novas

gerações, aqueles ideais de vida visados pela sociedade como um todo” (Walter E. Garcia). Na legislação deensino vigente em 1994, esses ideais estavam identificados, sob a forma de fins da educação nacional,no art. 1º da Lei nº 4.024/61 (a primeira LDB): o desenvolvimento integral da personalidade humana,a condenação aos preconceitos de raça, a preservação do patrimônio cultural, o respeito às liberdadesfundamentais do homem, entre outros. O art. 2º da LDB em vigor refere-se à educação nacionalcomo instrumento para o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício dacidadania e sua qualificação ara o trabalho.

Se formos ver o que as escolas efetivamente fazem, facilmente constatamos que, no dia-a-dia, os fins que se realizam são muito diferentes dos que são proclamados nas leis e nos discursos,podendo até mesmo com eles conflitar. Assim, a obediência e a submissão como normas básicas deconduta escolar opõem-se à participação espontânea do indivíduo na construção do bem comum; oalto valor que a escola atribui às técnicas de memorização e repetição do já sabido contradiz o idealda compreensão crítica da realidade e da produção do saber; a rigidez da organização escolar, daestrutura do currículo e do regime disciplinar chocam com o ideal da valorização e promoção davida, que, por natureza, é dinâmica; o prestígio do rendimento individual nada têm a ver com asolidariedade e a adesão de cada um ao projeto de bem-estar de todos, que caracterizam a cidadania.

De qualquer forma, a atividade marcante da escola é o ensino e, como observa Esther deFigueiredo Ferraz, a nota característica desse ensino é sua regularidade, ou seja, a sujeição a regrasdeterminadas e preestabelecidas. O ensino regular “apresenta-se como tradicionalmente consagrado, o quelhe tem valido a designação de ensino tradicional. É ministrado em escolas, circunstância que também o faz conhecidocomo ensino escolar. Estrutura-se em graus, de acordo com um escalonamento que leva em conta as fases dedesenvolvimento biopsicológico do aluno. Seus estudos se fazem de maneira intencional e sistemática, obedecidoscertos mínimos de conteúdo e duração fixados pela autoridade competente. A aferição dos resultados se fazobrigatoriamente no processo e pelo próprio estabelecimento. Os atos escolares são disciplinados de maneira a sepoder aferir-lhes, a qualquer tempo, a validade. São autorizados e reconhecidos pela autoridade pública e por elafiscalizados, sendo também reconhecidos os diplomas certificados e atestados expedidos pelas escolas que os ministram”.

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É certo que uma escolaridade básica obrigatória, cuja duração tende a aumentar no mundointeiro, interessa em primeiro lugar à sociedade, e por motivos não necessariamente humanitários epedagógicos. Historicamente, a exigência da freqüência escolar já foi usada como estratégia parapopularizar a leitura da Bíblia, para acabar com o (ab)uso do trabalho infantil nas fábricas e, quasesempre, para veicular ideologias de interesse da classe dominante.

Hoje, pelo menos em tese, a permanência de crianças e adolescentes na escola interessasobretudo, aos pais e aos governos. Aos pais porque, simplesmente, não têm tempo para cuidar daeducação dos filhos ou, se têm, não sabem educá-los para viver numa sociedade em mudança. Aosgovernos, porque não têm outra forma de preencher o tempo da meninada, cuja entrada na vidaadulta (na fila de espera por uma vaga no mercado de trabalho, por casa própria, etc.) importaretardar o mais possível. Para os governos, criança na escola é, sobretudo, um problema a menosna rua, independentemente do rendimento escolar.

O ensino fundamental obrigatório é um produto tanto da Revolução Francesa, com seuideal de promover a igualdade de oportunidades de ascensão social e de acesso ao trabalho produtivo,quanto da Revolução Industrial, com sua necessidade de impor aos indivíduos uma conduta socialpadronizada. Como por outros já foi lembrado, entre nós a freqüência obrigatória da escola básicajamais saiu do papel, ou seja, do plano jurídico-constitucional, para a realidade social concreta. Contudo,em que pese às críticas que a ela se fazem, ainda não se encontrou um instrumento alternativo deajustar as massas à sociedade industrial, antes, e ao mundo globalizado, agora. É por isso que aalfabetização, que é a essência do ensino fundamental, mais do que o domínio neutro e apolítico dastécnicas de ler e escrever, é um “ formidável instrumento de controle das relações sociais” e de transmissão dacultura.

Daí se conclui que, a despeito de todo o prestígio social - verdadeiro ou aparente - que aeducação formal confere, a escola não é exatamente o lugar onde melhor se atendem as necessidadesdas novas gerações. Freqüentemente, a escola parece mais uma forma de se tomar o tempo do educandosem que se saiba exatamente para quê. A exemplo do sistema de ensino como um todo, a escola dáextraordinária importância aos aspectos quantitativos, que são traduzíveis em tabelas, gráficos,horários, números, grades curriculares, calendários, notas, estatísticas, relatórios, etc. Deveria, claro,privilegiar os aspectos qualitativos, como as atitudes, os valores, as disposições interiores. Aindahoje, os responsáveis pelo ensino brasileiro enfatizam os conteúdos programáticos sobre os processos,a informação sobre a formação, a transmissão sobre a transformação.

É precisamente em torno da questão da qualidade da instrução escolar que se abre umespaço para o questionamento da freqüência escolar obrigatória, ou, da escolaridade obrigatória. Se,na prática, a educação escolar não é apenas o processo que visa a promover o desenvolvimento doindivíduo mediante o desencadeamento de todas as suas potencialidades, mas, também, uma importantetécnica social de dominação e arregimentação das massas, é correto continuar a atribuir ao Estado omonopólio da regulamentação da educação formal? Com que direito pode o Estado querer que todasas crianças adquiram um status social comprovadamente associado à tradição e ao ideário conservador?

Se a escola, apesar de sua reconhecida relevância no esquema industrialização-urbanização-modernização, não é o ambiente mais propício ao desenvolvimento pleno daspotencialidades do educando, nem assegura as melhores oportunidades aos mais capazes, por queinsistir em proclamá-la agência de socialização, de aquisição de conhecimentos, de formação para acidadania, de aprendizagem de conceitos éticos e de preparação para o trabalho, por excelência ecom exclusividade?

Na busca de uma resposta para tais questões, convém ler o texto a seguir, de NeidsonRodrigues, bem como os comentários posteriores.

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2.3 Educação escolar: características e tarefas“Em primeiro lugar – ensina Neidson Rodrigues, em página memorável, que merece ser citada na

íntegra - , diria que a educação escolar se caracteriza por ser uma atividade sistemática, intencional eorganizada - organizada do ponto de vista dos conteúdos e sistemática em relação aos seus métodos detransmissão. A educação escolar não se confunde com a educação popular - a educação escolar repassa aquiloque corresponde à herança cultural, política e profissional da sociedade às pessoas que estão ingressando nouniverso social. O saber com que a escola lida é, pois, um saber organizado, é um saber das “elites”, dosgrupos que possuem e produzem um determinado tipo de saber. O saber sistematizado, como parte daherança cultural, não pode ser adquirido espontaneamente. A transmissão para outras pessoas também sefaz de maneira organizada e sistematizada, dado que o produto da atividade educacional se situa nadimensão da produção social e não da natureza. Deixada a sí mesma, a criança poderá aprender a andar,a comer com as mãos, a sorrir, a chorar, olhar, mas não aprende a falar, a escrever, nem adquire conhecimentoscientíficos ou habilidades técnicas necessárias a uma sociedade moderna.

Até o advento da sociedade moderna, três instituições eram, basicamente, responsáveis pela educação: acomunidade, a família e a igreja. A comunidade encarregava-se de realizar a transmissão dos valores éticose permanentes aos novos membros. À igreja atribuía-se a educação moral das crianças, a fim de que elas secomportassem em conformidade com as regras morais e as crenças sociais, enquanto a família, através dapreparação profissional, se encarregava da educação para o trabalho. (...)

O advento da sociedade de classes desarticulou a chamada “sociedade comunitária”, se considerarmos quea sociedade classista não é uma sociedade de comunidade. Assistiu-se, também, à desestruturação da própriaunidade familiar. O que se chama por família hoje se distingue bastante daquilo que se entendia por família,dois ou três séculos atrás, quando ela se compunha de todas as pessoas ligadas por uma relação de sangue.Nos tempos modernos, família é marido, mulher (ocasionalmente um homem e uma mulher) e filhos, semhaver necessidade de relação de sangue entre esses últimos e o primeiro. Igualmente, o homem deixa de ser ocabeça-de-casal, em torno do qual gira toda a vida familiar. O que há, hoje, são pessoas ocupadas com oexercício de atividades fora da relação familiar, o que faz com que desapareça a unidade familiar comounidade educativa e produtiva.

Por tudo isso, a sociedade criou escolas que passaram a assumir as responsabilidades educacionais dosnovos membros. Assim, do ponto de vista dessas funções, aquilo que, era dividido entre igreja, comunidade efamília passou a ser transferido para uma outra instituição, socialmente necessária. E, nesse sentido, aresponsabilidade social pela manutenção da escola deveria ser, prioritariamente, do poder que congrega asexigências sociais. Daí, compreende-se a defesa radical da escola pública como a única capaz de responder aessa ampla necessidade social de forma a mais democrática possível.”

A idéia de que a responsabilidade social pela manutenção da escola é, prioritariamente,do Estado vem sendo ardorosamente combatida, há mais de vinte anos, por Ivan Illich, com suaproposta radical de desescolarização da sociedade. Illich quer um sistema de ensino sem escolas,livre, não-impositivo, capaz de simplesmente assegurar, a quantos desejam instruir-se, em qualquerassunto, o acesso aos conhecimentos adequados. Para ele, o monopólio do ensino público éabsurdamente dispendioso e irracional.

Não é preciso ir tão longe assim para perceber que, pelo menos em casos especiais, devahaver limites à obrigatoriedade da freqüência escolar. Um caso típico é o da Austrália, onde a Escolado Ar e a Escola por Correspondência, ambas oficiais, atendem as crianças que, por força da distânciaque separa suas casas da escola, ficam forçosamente isentas da freqüência compulsória, prevalecendo,em compensação, o princípio de que, se a criança não pode ir à escola, a escola deve ir à criança (aexpensas do Estado, naturalmente). No Brasil, atos normativos especiais instituíram e regulamentam

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regimes de estudo próprios para portadores de incapacidade física relativa, incompatível com afreqüência aos trabalhos escolares normais, e regime de exercícios domiciliares para gestantes, apartir do oitavo mês.

Um caso especial de validação de estudos feitos fora da escola, freqüentemente com aajuda de um curso “livre”, ou seja, de uma modalidade de ensino não regulamentados pela autoridadeeducacional, é o exame supletivo, amparado pelos arts. 37 e 38 da Lei nº 9.394, de 1996, cujoresultado é avaliado em exames próprios, acessíveis a quem não pôde freqüentar a escola obrigatóriana “idade própria”. Como se sabe, o regime de livre freqüência o ensino supletivo é, na prática, umensino regular (ensino escolar) de segunda classe, muito embora tenha sido a marca do ensino brasileiroanterior a 1930, ano em que teve início, tardiamente, a organização de um sistema nacional.

Se é verdade que o preparo para o exercício da cidadania e, conseqüentemente, a educaçãobásica escolar, tem sido elevado à categoria de mandamento constitucional, o Estado brasileiro nãotem encarado com a devida seriedade o dever de garantir a todos o acesso à escola. Não só declinouparte de sua responsabilidade (e dos recursos públicos) à iniciativa privada de fins lucrativos, cujoobjetivo último nada tem a ver com o do Poder Público, mas também deixou, até recentemente,milhões de crianças na mais completa ignorância. Como se a educação do povo brasileiro fosse umproblema de cada um, de interesse individual, e não um problema da coletividade, de interesse público...ou, como se boa educação pública e modernização econômica não fossem variáveis que andamjuntas...

Home schooling seria uma alternativa de educação formal, ou, de ensino intencional esistemático, caracterizada pelo desenvolvimento do currículo escolar fora da escola, em casa, comvalidade legal, desde que cumpridas exigências mínimas respeitantes a dias letivos, carga horária,programas de ensino, critérios de avaliação do rendimento, etc. A autorização seria dada à vista deidéias pedagógicas, políticas, filosóficas ou religiosas divergentes das que inspiram a educação escolarregulamentada pelo Poder Público, delegando-se aos pais a responsabilidade pela instrução dos filhos.

Em outras palavras, ensino em casa seria uma educação básica formal que independe dafreqüência da escola, da presença em sala de aula, laboratórios, oficinas e bibliotecas, do convíviocom crianças da mesma idade, do contato com professores convencionais. Assim, a idéia é que hajaduas modalidades de ensino, equivalentes e oficialmente reconhecidas: a educação formal escolar ea educação formal domiciliar, ou seja, ressalvada a contradição em termos, a educação escolar dadana escola e a educação escolar dada em casa.

2.4 Educação escolar: obrigatoriedadeNa defesa da obrigatoriedade da freqüência à escola, especialmente a que oferece o ensino

fundamental, são freqüentemente invocados princípios do tipo “o ensino fundamental (...) obrigatório(...) terá por objetivo a formação básica do cidadão, mediante (...) o fortalecimento dos vínculos da família, dos laçosde solidariedade humana e de tolerância recíproca em que se assenta a vida social”. É a função de socialização,tradicionalmente atribuída à escola, isolando crianças e adolescentes do ambiente protetor da famíliae expondo-os à troca de experiências e à vivência de situações que “demandam mais que os irmãosapenas, para que reproduzam a sociedade onde a cidadania será exercida” (Prof. Ulisses de Oliveira Panisset).Ou, segundo outro Conselheiro que teria sido ouvido pelo Correio Braziliense, já referido: “É naescola que os jovens aprendem a lidar com as diferenças e situações do dia-a-dia, como a competitividade. Esseespaço, na verdade, funciona como uma minisociedade, onde se aprende a conviver com gente boazinha, chata, boba,mandona”.

Obviamente, trata-se de uma argumentação que tem por pressuposto a idéia de que asocialização ensejada pela freqüência à escola é necessariamente uma experiência única, por si sóválida. Aliás, em toda a polêmica sobre o ensino em casa, há outros pressupostos, como, por exemplo:

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o de que os pais são naturalmente bons educadores e competentes professores; o de que a avaliaçãodo desempenho escolar procede mesmo que não seja um recurso de autocrítica pedagógica; o de quesomente o sistema escolar é capaz de assegurar ao educando a formação indispensável para oexercício da cidadania e fornecer-lhe os meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores; ode que diplomas e certificados atestam qualquer coisa importante; o de que as verbas colocadas àdisposição da educação devem ser destinadas exclusivamente à educação escolar; a de que existeuma relação positiva entre a qualificação do professor e o desempenho do aluno..

Quanto ao caso relatado pelo Correio Braziliense, cabe, preliminarmente, indagar se aíse trata de autêntico homeschooling. De fato, trata-se de crianças estão matriculadas numa escolaregular, sob inspeção da autoridade educacional competente, onde é periodicamente avaliado odesempenho escolar. Diferentemente das crianças ‘comuns’, não freqüentam salas de aula, masesperam receber certificados de conclusão legalmente válidos. A preocupação com a equivalência(sem o ônus da freqüência) transparece em frases como “Eles só tiram boas notas, mesmo sem ir à escola.Por que não têm o direito de se formar como todas as outras crianças?” Nesse raciocínio está embutido outropressuposto: o de que os pais-instrutores podem até saber ensinar, mas são incapazes de aferir oaprendizado dos filhos-alunos

Assim, o problema central aí parece não ser de natureza teórica, caracterizada por umadiscordância substancial em matéria de idéias e concepções pedagógicas, religiosas e políticas. Oproblema é preparar os filhos para uma avaliação de desempenho a cargo de escola ‘comum’, darede regular, isto é, organizada e administrada de acordo com a LDB. Se homeschooling é isto, aregulamentação é bem simples: bastaria dar uma nova redação ao art. 38 da LDB4 , suprimindo“para os maiores de quinze anos” e “para os maiores de dezoito anos”

Em apoio a esta tese, pode-se invocar o art. 23 da LDB (“a educação básica pode organizar-se em séries anuais, períodos semestrais, ciclos, alternância regular de períodos de estudos, grupos não-seriados, combase na idade, na competência e em outros critérios, ou por forma diversas de organização, sempre que o interesse doprocesso de aprendizagem assim o recomendar”) e o art. 24, II, c), que admite classificação em qualquersérie ou etapa do ensino básico “independentemente de escolarização anterior, mediante avaliação feita pelaescola”.

A Constituição Federal estabelece que a educação é direito de todos e dever do Estado eda família e que deve ser promovida com a colaboração da sociedade, visando ao plenodesenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para otrabalho (art. 205).

A exemplo da maioria das nações civilizadas, pois, o Brasil conhece uma escolaridadecompulsória, própria de certa faixa etária, evidentemente, aquela em que se desenvolvem osfundamentos da personalidade (infância + adolescência). Consta do art. 6º da Lei nº 9.394, de 1996,que é dever dos pais ou responsáveis efetuar a matrícula dos menores, a partir dos sete anos, noensino fundamental, que tem a duração mínima de oito anos.

Há obrigatoriedade legal por parte do Poder Público, que deve oferecer escola e instrução,e por parte do cidadão, que deve estudar. Quanto ao Poder Público, porém, não basta agir passivamente,abrindo escolas e contratando professores, e, no mais, cruzando os braços, à espera dos alunos. Temque chama-los, zelar junto aos pais ou responsáveis pela freqüência, eliminar os empecilhos à freqüênciae ao aproveitamento escolar mediante transporte, material didático, assistência médica e alimentação(art. 208).

Quanto à obrigatoriedade, comenta o professor Valnir Chagas (107, 108):“A obrigatoriedade é o máximo de terminalidade e o mínimo de continuidade a exigir na escolarização

do indivíduo, segundo as condições de cada país.

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A obrigatoriedade representa fenômeno característico deste século. Enquanto a educação era encaradacomo simples polimento de classe, não havia motivo para dela cogitar em termos de povo. Pouco a pouco, foi setornando patente a importância econômica, social e política de sua universalização e, a partir de certomomento, já não puderam os governos deixá-la entregue ao espontaneísmo das iniciativas pessoais que geravamum autêntico círculo vicioso. Na situação do primitivismo em que se encontrava, o indivíduo não percebia asvantagens da instrução e, ainda que as percebesse, não dispunha de recursos para estudar; por isto não seeducava. Como não se educava, continuava a mais tarde não alcançar aquelas vantagens em relação aos seusfilhos e, se já então as alcançava, também não tinha meios de levá-los à escola. As primeiras tentativaspúblicas foram recebidas como verdadeiro constrangimento à liberdade; mas tal foi a mudança de atitudeverificada que, a esta altura, a oferta de oportunidades educacionais pelo Estado se converteu num dever e oconstrangimento se fez um direito ativamente reivindicado.

A exigência geral de um mínimo de educação popular que não se limite ao adestramento nas técnicasbásicas de ler, escrever e contar é um fator essencial de progresso. Além de tornar o potencial humano de umanação rapidamente mobilizável para o crescimento econômico e a segurança, cria nos indivíduos um senso maisagudo de ‘disciplina, eficiência, ordem e precisão’; eleva o quadro geral de higiene e saúde pública; aumenta afiscalização indireta do consumo, aperfeiçoando por esta forma a qualidade da produção; faz crescer aclientela indispensável ao incremento das ciências, das letras e das artes; eleva, em conseqüência, o nível da‘produção cultural’, sobretudo em áreas que disso tanto carecem, como o rádio e a televisão; prepara-o ao usointeligente das horas de lazer que tendem a ampliar-se; e assim por diante.”

Como já foi dito, o art. 20 da Lei nº 5.692/71 dispõe que o ensino de 1º grau (de 8 séries)é obrigatório e que o Poder Público tem o dever de, anualmente, promover o levantamento dapopulação escolar, bem como proceder à sua chamada para matrícula. Assim sendo, para cumprir seudever, não basta o Estado construir salas de aula e contratar professores. O que dele se espera é queassuma a liderança da universalização da escola e exerça um papel ativo, incentivando a freqüência,fiscalizando a escolarização básica obrigatória, zelando pelo padrão de qualidade.

Em decorrência, é oportuna a leitura do disposto no art. 41 da mesma lei, caput e parágrafo.Ali se determina que a educação é dever do Poder Público em todas as instâncias, das empresas, dafamília e da comunidade em geral, “que entrosarão recursos e esforços para promovê-la e incentivá-la”.Determina-se, mais, que respondem, na forma da lei (inexistente, até hoje!), solidariamente com oPoder Público, pelo cumprimento do preceito constitucional da obrigatoriedade escolar, os pais ouresponsáveis e os empregadores de toda natureza de que os mesmos sejam dependentes.

Cumpre, ainda, recordar, mais pelo espírito que pela letra, a Lei nº 4.024/61, quevigeu até 20 de dezembro de 1996, cujo art. 30 prescrevia que não poderia exercer função pública,nem ocupar emprego em sociedade de economia mista ou concessionária de serviço público, o pai defamília ou responsável por criança em idade escolar sem fazer prova de matrícula desta, emestabelecimento de ensino, ou de que lhe estava sendo ministrada educação no lar.

O “fazer prova de que lhe está sendo ministrada educação no lar”, aliás, poderia serinterpretado como reconhecimento oficial da home school brasileira, não fosse clara a intenção deeximir o Poder Público de suas responsabilidades para com a educação básica. Essa intenção ficairremediavelmente patente no parágrafo único do artigo, que inclui nos casos de isenção a insuficiênciade escolas (que o Estado tem obrigação de oferecer).

2.4 Tentativa de sínteseAo que parece, homeschooling conta com apoio oficial e legislação própria nos seguintes

países: Austrália, Japão, Nova Zelândia, Canadá, África do Sul, Reino Unido e Estados Unidos.Entretanto, até momento, exceção feita dos Estados Unidos, não obtivemos melhores informaçõesem matéria de legislação (supondo-se, claro, que exista).

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Quanto aos Estados Unidos, como se sabe, nem a Constituição Federal, nem a Declaraçãodos Direitos cuidam da educação, que é considerada assunto de competência dos Estados federados.Um artigo publicado em ‘Policy Analysis’ de 7 de janeiro de 1998, informa que homeschooling é legalmentepermitido em todos os cinqüenta Estados. Contudo em alguns Estados leis e regulamentos sãomuito mais favoráveis do que em outros, indo da mais ampla liberdade de ação à rígida regulamentaçãode currículos, carga horária, qualificação profissional dos pais, inspeção e aferição de rendimento.

A impressão que se tem é que, pelo menos nos Estados Unidos, o homeschooling existemuito mais em razão do respeito ao princípio de que “cabe aos pais escolher o tipo de educação queserá dado a seus filhos” do que em razão de uma legislação educacional positiva. Num textorecentemente divulgado na Internet, um dos responsáveis pelo crescimento do homeschooling nosEstados Unidos, John Holt, escreve que, em muitos casos, o homeschooling é contemplado com leisvagas, que refletem a má vontade com que é encarada pelas autoridades e pela opinião pública. Holtnão quer que o homeschooling seja apenas tolerado e conclama os homeschoolers à luta por leis queefetivamente reconheçam e regulem o método.

De acordo com legislação educacional brasileira, o ensino em casa será, quando muito,uma exceção, jamais uma regra. O debate sobre os prós e os contras do homeschooling, pois, é meramenteespeculativo. Entretanto, algumas questões mereceriam ser examinadas em maior profundidade.

Em primeiro lugar, parece fundamental que o homeschooling não seja apenas um pretextopara privar a criança do direito à convivência com outras crianças, do direito de ter contato comidéias e concepções pedagógicas que não sejam as de seus pais e do direito de contestar a orientaçãodidático-pedagógica dada pelos pais-professores, do direito ao desenvolvimento livre de valoreséticos, religiosos e artísticos próprios.

Além disso, é preciso lembrar a importância que a legislação de ensino atribui à articulaçãoda escola com a família, aos processos de integração da sociedade com a escola, à participação dacomunidade em conselhos escolares. Para alguns, a defesa do direito à instrução em casa convémàqueles que, sob o pretexto da liberdade de ensinar e do direito de se defender da socializaçãonegativa, não querem ter o trabalho de prestar sua colaboração para a construção de uma educaçãoescolar de boa qualidade para todos.

Em segundo lugar, é recomendável que se examine com toda a seriedade em que medidaa escola é, de fato, mais do que locus privilegiado de educação para a cidadania, transmissão doconhecimento historicamente acumulado e socialização, ou seja, um importante mecanismo decontrole político e de seleção social, de doutrinação, de retardamento da entrada dos jovens nomercado de trabalho, de preparação para vencer (os outros) na vida, de transferência de poder socialna forma de diplomas e certificados, de inculcação da crença de que, na sociedade moderna, fora daescola não há educação que valha a pena.

Em terceiro lugar, é preciso melhor avaliar o que crianças e adolescentes escolarizadosem casa perdem em razão da privação do contato diário com educadores profissionais, principalmenteos professores. Vale a pensa lembrar o sempre atual Émile Chartier, “A família instrui mal e mesmo educamal. (...) Quando a família vive sobre si mesma como uma planta, sem o ar saudável dos amigos, dos cooperadorese dos indiferentes, surge nela um fantasma sem igual.” e “Todos nós sabemos que os pais, quando se imiscuem,instruem muito mal os seus filhos. (...) O amor não tem paciência”.

Em quarto lugar, cumpre confrontar a) a proposta de avaliação do homeschooling pelosistema escolar com o seguinte critério básico da verificação do rendimento escolar prescrito paratodo o País no art. 24, V, da LDB: “avaliação contínua e cumulativa do desempenho do aluno, com prevalência

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dos aspectos qualitativos sobre os quantitativos e dos resultados ao longo do período sobre os de eventuais provasfinais”; b) a permissão do ensino sob a responsabilidade dos pais com a exigência da formação emnível superior dos docentes para atuar na educação básica (LDB, art. 62).

Em quinto lugar, não se pode olvidar que toda regulamentação requer acompanhamento,controle e fiscalização. Assim, autorização de funcionamento de escola domiciliar, cadastro de“professores” de escola domiciliar, aprovação de programas de atividades de ensino, adequação doensino em casa às diretrizes e parâmetros curriculares oficiais, aferição do rendimento “escolar” emestabelecimento da rede regular e outras regras exigirão considerável investimento na criação emanutenção de estruturas burocráticas específicas.

Finalmente, é nossa convicção pessoal que, por princípio, regulamentar o homeschoolingnão pode nem deve ser regulamentado pelo poder público. É tipicamente uma escolha do cidadão,que não deve depender nem de autorização nem de interferência do Estado. Do contrário, não serálivre, mas, apenas consentida, concessão e não direito. De qualquer forma, trata-se de temasuficientemente denso para merecer uma abordagem mais ampla, quem sabe em seminário específico,cuja realização poderá ser requerida, oportunamente e na forma regimental, à Comissão de Educação,Cultura e Desporto.

2.4 ConclusõesO que pode concluir, ao final deste capítulo, é que, entre nós, nos últimos 70 anos, a

partir do regime de livre matrícula e freqüência que caracterizou a Primeira República, o ensinobásico tem evoluído no sentido da universalização e da compulsoriedade. Daí as crescentes restriçõesao ensino supletivo, que tem por finalidade suprir a escolarização regular para os adolescentes eadultos que não a tenham seguido ou concluído na idade própria e que, praticamente, está condenadoà extinção, em razão do Projeto de Lei nº 1.258/88 (LDB em tramitação). Demais:

1 - De acordo com a Constituição Federal, a educação é dever do Estado e da família(art. 205). O dever do Estado com a educação se efetiva, em caráter obrigatório, mediante ooferecimento de ensino fundamental gratuito, além de outras garantias escolares (art. 208). Daí ser agratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais um dos princípios com base em que seráministrado o ensino (art. 206).

2 - A Constituição preceitua que “serão fixados conteúdos mínimos para o ensinofundamental, de maneira a assegurar formação básica comum” (art. 210) e que as escolas, sem exceção,devem cumprir as normas gerais da educação (art. 209), que cabe à União fixar privativamente (art.22, XXIV).

3  -  O  conjunto das disposições constitucionais precedentemente referidas é por muitosconsiderado essencial à implementação de uma política educacional democrática que pretenda a)extinguir o analfabetismo, b) universalizar o atendimento escolar e, c) melhorar a qualidade do ensino(art. 214), numa sociedade complexa que se propõe garantir o desenvolvimento nacional, erradicar apobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais (CF art. 3º).

4 - A formação básica comum compulsória (CF, art. 210, ‘caput’) é indispensável àconstrução da noção de cidadania e à superação do subdesenvolvimento, que são a seiva vital dademocracia. Donde a defesa intransigente da escolaridade obrigatória e da formação básica comum,como instrumentos privilegiados de atendimento das demandas populares por educação.

5 - Já outros ponderam que o fato de o Estado ter o dever de, com ou sem a colaboraçãoda iniciativa privada, oferecer escola para todos não significa que a escola deva ter o monopólio doensino. Afinal, se o Estado cumpre seu dever com a educação ensinando, porque sua parceira, afamília, não pode fazê-lo? Em outras palavras, porque reconhecer legitimidade à formação básicacomum adquirida na escola e negá-la à formação básica comum adquirida em casa?

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6 - A primeira impressão que se tem é que, em tese, o pleito do estudo em casa temamparo jurídico (que difere de “amparo político”). Como se viu, a leitura da Constituição não permiteconcluir que a escola possui o monopólio de sua transmissão. A legislação de ensino em vigor admitee até incentiva o estudo extra-escolar, na forma do ensino supletivo, que pode ser validado medianteexames. A legislação de ensino que está sendo proposta enfatiza o ensino regular, mas promete oaproveitamento da experiência extra-escolar.

7 - Em favor do estudo em casa, pode-se até mesmo invocar, como foi feito em 1925, ocapítulo constitucional que trata dos direitos e deveres individuais e coletivos. De fato, razões deEstado à parte, a obrigatoriedade da freqüência escolar conflita com o direito de ir e vir e amonipolização do saber pela instituição escolar fere o direito à livre manifestação do pensamento e àlivre expressão da atividade intelectual, artística, científica de comunicação, independentemente delicença.

8 - Desconhece-se algum dispositivo legal explícito que torne obrigatória a escolaridadebásica, de forma a não haver dúvida quanto às sanções que decorrerão do descumprimento da norma.Então, como alguém pode ser obrigado a instruir-se numa escola? Como impedir que o pai instrua ofilho em casa, segundo suas convicções religiosas, filosóficas e pedagógicas?

9 - De qualquer forma, desde quando se criou o Conselho Federal de Educação, tem sidoatribuição desse órgão normativo autorizar o funcionamento de instituições de ensino, validar atosescolares praticados à revelia dos ‘regulamentos’, interpretar a legislação de diretrizes e bases daeducação nacional e, talvez, futuramente, “estabelecer diretrizes para validação e reconhecimento,pelos sistemas de ensino, das experiências adquiridas nos processos educativos extra-escolares”(Projeto de Lei nº 1.258/88, art .23, X).

10 - A argumentação contrária à oficialização do estudo em casa não será, pois, de naturezajurídica, mas de natureza política. Realmente, a educação escolar - muitos defendem - é socialmentenecessária aos indivíduos, hoje. “Não há como a sociedade preparar os indivíduos para a vida sociale política, para a incorporação dos valores morais e culturais, para a aquisição de uma profissãoadequada às necessidades de sobrevivência e bem-estar, de modo isolado ou informal, seja no seioda família, seja no de pequenos grupos comunitários, por exemplo” (Neidson Rodrigues, 53).

11 - A educação escolar não é apenas um direito, mas também um dever do indivíduo.Por ser um instrumento privilegiado de desenvolvimento social e econômico, de progresso científicoe tecnológico, de integração da população à cultura nacional, “a escola tem de ser protegida contratodo o esforço de apossamento de sua competência, por parte de qualquer grupo que a queira aliadade seus interesses particulares. Por conseguinte, a escola não pode pertencer a nenhuma camadasocial privilegiada, mas há de ser pública na sua constituição, organização e na escolha de seus fins”(Neidson Rodrigues).

12 - A educação escolar é um assunto de interesse público, tanto que os políticos sempretentaram regulamentá-la e nela incluir disposições de ordem prática que não são necessariamente denatureza didático-pedagógica, nem visam necessariamente a resolver problemas cotidianos da escola.Neste sentido, o Poder Público deve e pode elaborar e executar uma política educacional referida aoensino escolar. A educação não deve ser promovida a fator de isolamento, de discriminação social, desectarismo, mas, sim, a fator de integração, abertura e democratização.

13 - Segundo alguns estudiosos, a ideologia do comunitarismo (crença na excelêncianatural da pequena comunidade como agente político e educacional) é essencialmente prejudicial àconstrução da democracia. Isto porque a) as pequenas comunidades procuram sempre evitar as ações

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e pensamentos divergentes (busca da identidade comum) e b) não se dispõem a correr o risco desubmeter suas crenças, seus valores e seus hábitos ao confronto dos estranhos, dos diferentes (buscada homogeneidade) [ver: Luiz A. Cunha, 386/387].

14 - Em contrapartida, se a escola se limitasse a instruir, a transmitir conhecimento,menos mal. Concretamente, porém, a escola transmite idéias e valores, modos de ver e de ser. E o fazde maneira implícita, por sua estrutura e seu funcionamento; de maneira explícita, pelos conteúdos“educativos” do currículo: educação moral, educação artística, educação sexual, educação física,educação religiosa - sem qualquer participação significativa e institucionalizada dos pais. Estaconstatação nos leva, novamente, às questões essenciais para uma ação política objetiva: Qual éexatamente o problema? Quais as alternativas de solução? Há necessidade de uma nova lei? Etc.

15 - A falta de informações seguras sobre o que ocorre em outros países, em matéria deestudo em casa é, por si só, motivo suficiente para o legislador proceder com a devida cautela epropor a realização de novos estudos. Aliás, o fato de o estudo em casa ser uma instituição existenteem países chamados desenvolvidos não assegura a aplicabilidade da idéia entre nós. No fundo, atrásde cada proposta pedagógica ou institucional está toda uma cultura, que não pode ser transferida,indisciplinada e acriticamente, a outras realidades culturais.

3 - ENSINO EM CASA: CRÍTICAS5

3.1 Ensino em casa: identificaçãoEnsino em casa (home instruction, home learning, education at home) é o que o próprio nome

está a indicar: instrução no lar, naturalmente sob a responsabilidade direta dos pais. Ensino em casaé educação extra-escolar ou, como alguns querem, alternativa de educação escolar. Como tal, aliás, éadmitido ou, pelo menos, tolerado em praticamente todos os Estados norte-americanos.

De vez que, em decorrência do princípio federativo, a educação de lá não está disciplinadaem lei federal, o tratamento jurídico dado ao ensino em casa e as condições de sua autorização efuncionamento variam de Estado para Estado e, até mesmo, de distrito educacional para distritoeducacional. Os regulamentos, onde existam, cuidam de organização de ensino, de número de diasletivos, de calendário escolar, de currículo, de qualificação do professor, de avaliação, de controle ede registro de resultados, de validação de estudos e assuntos afins.

A reivindicação e a concessão do direito de instruir os filhos em casa ganha o devidorealce quanto contrastadas com a freqüência escolar compulsória, estabelecida em lei. Permissãopara o ensino em casa significa, concretamente, dispensa do dever de participar das atividades escolares,com exceção das avaliações periódicas do rendimento escolar. Na medida em que a vida escolar serestringe à aferição de conhecimentos, o método do ensino em casa traduz uma concepção de educaçãobásica que nada tem a ver com o que, há anos, o Professor Florestan Fernandes chamou de “fatorsocial construtivo”, ou seja, a educação como requisito indispensável ao exercício da cidadania e àdistribuição de renda (em sentido amplo).

Pesquisas feitas nos Estados Unidos revelam o seguinte perfil da família que ensina emcasa (home schooler family): classe média, branca, evangélica, pelo menos um dos pais com formaçãouniversitária, ensino predominantemente a cargo da mãe (parent instructor), permanência no programapor um período médio de 2 a 3 anos. Entre as razões profundas que fazem decidir pelo “ensino emcasa” destacam-se: a) a crença de que a responsabilidade direta e intransferível dos pais pela instrução

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dos filhos é um mandamento divino (ver: Deuteronômio); b) a insatisfação com o ensino escolar,cuja deterioração é visível em todos os níveis, tanto do ponto de vista acadêmico quanto do ponto devista moral, especialmente nas instituições públicas.

Apesar de que, na origem, o movimento pela defesa do ensino em casa tivesse porobjetivos próximos: a) o retorno do ensino da religião à escola; b) a revitalização dos valorestradicionais da família norte-americana e c) o reforço das posições políticas e econômicasconservadoras, com o tempo, a escola domiciliar (family school, home school) passou a interessar, também,a famílias que não buscavam alcançar, prioritariamente, objetivos ideológicos. Por exemplo, às famíliascujo arrimo financeiro exerce uma atividade itinerante, como diplomatas, artistas de espetáculo,missionários, algumas categorias de servidores públicos e a cujas crianças a lei brasileira,tradicionalmente,

Sob o aspecto jurídico, o movimento pela defesa da escolarização em casa visa arestabelecer o direito de os pais dirigirem e controlarem pessoalmente a educação dos filhos, com ummínimo de ingerência estatal, como “antigamente”. Um dos argumentos básicos em defesa da “escoladomiciliar”, ao lado da escola pública e da escola privada, seria que ao Estado não deve interessar oprocesso educativo em si, mas, sim, o resultado. Em outras palavras, o sentido da escolarizaçãocompulsória deveria ser que as crianças recebam uma instrução básica comum e não que recebamessa instrução da maneira que a escola convencional propõe.

Desenvolvendo um pouco mais tal tese, argumenta-se que o legítimo interesse do Estadona educação deve ser o de que o cidadão domine as técnicas de leitura, de escrita e de cálculonecessários ao exercício do voto, à participação ativa no sistema de governo democrático, ao usufrutodos benefícios da civilização tecnológica e à sobrevivência na sociedade de consumo. E, do ponto devista sócio-econômico, que a pessoa se torne capaz de prover o próprio sustento e não seja um pesopara a coletividade. Estariam aí, precisamente, os limites da ingerência estatal em assuntos de educação.Ultrapassá-los caracterizaria abuso de poder e restrição indevida do direito ao livre exercício dopensamento e da crença religiosa e à liberdade de ir e vir.

Nas Emendas 1 e 14, respectivamente, a Constituição dos Estados Unidos dispõe que:a) o Congresso não pode fazer lei relativa ao estabelecimento de religião ou impedir o livre exercíciodesta e b) que nenhum estado federado pode fazer ou executar leis que restrinjam os privilégios ouas imunidades dos cidadãos. Destes princípios extraem-se: a) o dever do Poder Público de proteger asfamílias, no sentido de conferir-lhes o controle sobre métodos de ensino e conteúdos - o que éessencial para o livre exercício das convicções religiosas e b) o direito fundamental de os pais instruíremos próprios filhos, desobrigando-os da freqüência à escola6 .

O ensino em casa teria sido a regra até aproximadamente 1920. Havia poucas escolas, apopulação era rarefeita e as crianças tinham que aprender em casa mesmo, sob a orientação dos pais,algumas vezes com a ajuda de professores devidamente habilitados. Vieram, então, as leis que tornaramcompulsória a escolarização de todas as crianças em instituições públicas, ou, posteriormente, também,em instituições privadas legalmente equiparadas.

Contudo, depois de quase sessenta anos de reinado quase absoluto do ensino público,laico e gratuito, renasce a consciência de que o ensino deve ser livre da ingerência estatal, de que oprincípio da variedade de concepções pedagógicas precisa de um espaço para concretizar-se e de queinstrução desprovida de formação moral e religiosa é como comida sem tempero. Ressurge o ensinoprivado; readquire força a idéia de que o Estado não pode impor um padrão de educação básica, etc.

No que diretamente nos interessa, organizou-se, em apoio a essas idéias, a Associação deDefesa Legal da Escola Domiciliar e promovem-se, anualmente, congressos, seminários, workshops efeiras de ensino (ensino em casa, naturalmente). Surge até uma autêntica “indústria do ensino em

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casa”, responsável pela produção de material de apoio, como vídeos, jogos, recursos audio-visuais,livros didáticos, módulos de ensino (instrução programada), cursos por correspondência. O setorgráfico cuida de abastecer com periódicos especializados um mercado em franca expansão.Paralelamente ao home school movement, desenvolve-se o home business movement, supostamente paragarantir trabalho aos indivíduos que forem escolarizados em casa (home schooled children, home schooledstudents). Quanto ao currículo, o ensino em casa é um verdadeiro self service : cada família organiza seucardápio educacional - o que, em se tratando dos Estados Unidos, não é nenhuma novidade.

Uma publicação do Serviço do Lar (1992, The Home Educator; Brasília - Edição especialsobre o ensino em casa) assinala que estudar em casa é bom porque, no lar, as crianças ficam livres datensão negativa e da pressão social dos colegas e, desta forma, a vida readquire a devida importância.“Pesquisas têm revelado que as crianças que são ensinadas em casa têm uma alimentação melhor, são fisicamentemais saudáveis, exercitam-se e brincam mais, envolvem-se menos em delinqüência juvenil e drogas, têm uma média desuicídios menor e são mental e emocionalmente mais estáveis do que as crianças educadas em estabelecimentos deensino”.

As vantagens do ensino em casa seriam de natureza moral e pedagógica. Ensino em casaseria sinônimo de abstenção de álcool e drogas; proteção contra violência, facadas e tiros; imunizaçãocontra as más influências de colegas de estudo; preservação das perversões sexuais, da AIDS e dosatanismo. Numa outra vertente, o ensino em casa melhoraria a capacidade de ler e escrever, permitiriaadequar o ensino às necessidades pessoais da criança, ensejaria que os alunos se ajustem na sociedadede uma forma positiva, promoveria a coesão familiar, impregnaria o ensino de preceitos morais everdades religiosas.

Na ótica dos home schoolers, a matrícula em qualquer escola significa a aceitação antecipadae, por isso, de certa forma, inquestionável, dos valores implícita e explicitamente assumidos pelosistema de ensino, entre os quais: o espírito de competição, o sucesso profissional, a capacitaçãotecnológica e científica. Além disso, para sobreviver na escola convencional, é indispensável que oadolescente aceite a moral do grupo e regule sua conduta pelas regras por este estabelecidas.

Como se vê, o ensino em casa pretende oferecer uma educação asséptica e um ambientede estudo livre do que se poderia chamar de infecção escolar.

Algumas cortes de justiça norte-americanas têm reconhecido que, em certas circunstâncias,a freqüência compulsória à escola tradicional pode ferir direitos constitucionalmente protegidos,sobretudo em se tratando de famílias que acreditam na inseparabilidade e interdependência de religiãoe vida e que, neste sentido, no dia-a-dia, associam à teoria a prática. As cortes, é claro, não julgam omérito das convicções religiosas, nem se pronunciam sobre a validade das políticas públicas na áreade educação. Apenas tentam determinar quando e quanto o interesse público (as “razões de Estado”)pode sobrepor-se aos interesses individuais e vice-versa.

O vocabulário educacional brasileiro não registra o método instrucional denominada“ensino em casa”. A legislação de ensino admite, em situações especiais de caráter temporário, comocompensação da ausência às aulas, exercícios domiciliares, com acompanhamento da escola (Decreto-Lei nº 1.044/69 e Lei nº 6.202/75). O art. 64 da Lei nº 5.692/71 dispõe que os conselhos de educaçãopodem autorizar experiências pedagógicas com regimes diversos dos prescritos na lei, assegurando avalidade dos estudos assim realizados. Não há informação, porém, se tal preceito tem sido aplicadoà escola domiciliar.

3.2 Ensino em casa: objeções3.2.1 - É dever do Estado oferecer a todos educação básica gratuita, incentivar a matrícula,

zelar pela freqüência e pelo êxito escolar.

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A Constituição Federal, em seu art. 205, dispõe que a educação, direito de todos e deverdo Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade. No art. 227,estabelece que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente,com absoluta prioridade, o direito à educação. Qual a abrangência do dever de cada um dessesagentes da educação?

O art. 1º, caput e § 1º da nova LDB fornece uma pista: “A educação abrange os processosformativos que se desenvolvem na convivência humana, na vida familiar, nas instituições de pesquisa, nos movimentossociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais. A presente lei (de Diretrizes e Bases daEducação Nacional) disciplina a educação escolar, que se desenvolve, predominantemente, através do ensino”.

Note-se que, com exclusão do 213, é exatamente do ensino que cuidam os artigos quecompõem a seção DA EDUCAÇÃO da Constituição Federal. O art. 208, especialmente, determinaque o dever do Estado com a educação será efetivado mediante a oferta de ensino, em seus diversosníveis e modalidades. Implicitamente, as outras dimensões educativas constituem o objetivo principaldos agentes educativos que não sejam o poder público e sua rede de instituições de ensino: igreja,família, associação, meios de comunicação de massa, comunidade.

Com todo o respeito pelo milenar e, de alguma forma, insubstituível, papel educativo dafamília, não há como desconhecer que, presentemente, são pouquíssimos os pais que dispõem detempo, capacidade e, até mesmo, de espaço físico para ensinar aos filhos tudo que precisam saber. Jánão se pode educar como antigamente: a escola surgiu para assumir a instrução e, em que pese a suasdeficiências, não há indícios de que esteja prestes a caducar como mecanismo indispensável àorganização da sociedade urbano-industrial. Sem educação escolar obrigatória não pode havercidadania. Sem educação escolar pública e obrigatória os pobres ficarão irremediavelmente maispobres.

Se considerarmos que a Constituição é a lei fundamental e suprema do Estado, e não dafamília ou da sociedade, merecem pelo menos alguma atenção os comentaristas7 que interpretam asreferências constitucionais à família e à sociedade como uma tentativa velada de atenuar o dever doEstado. Em sua análise, “família” e “sociedade” são, no caso, formas eufemísticas, que ocultam asentidades realmente interessadas na participação da livre iniciativa: as empresas de ensino e asdenominações religiosas, que, para conseguir seus objetivos, usam como estratégia exatamente acampanha de desmoralização da escola pública.

Em apoio a essa tese pode-se aduzir que, no inciso em que a Constituição acolhe oprincípio universal do pluralismo de idéias e concepções pedagógicas, há menção, também, de uma“coexistência de instituições públicas e privadas de ensino” (que, aliás, não é nenhum princípio),como se uma coisa fosse conseqüência da outra, como se o ensino privado, inclusive o de finslucrativos, fosse a coisa mais natural do mundo, como se a escola pública e a escola particularcumprissem equivalente função social.

Importa destacar que a iniciativa privada - categoria a que, no âmbito do tema que nosocupa, pertence a família - ensina se quiser, quando quiser e onde quiser, pois é tal o significado de “oensino é livre à iniciativa privada”. Para o poder público, porém, o ensino é uma obrigação, devendoofertá-lo se, quando e onde necessário. É o que dizia a Lei nº 5.692/71: “O ensino ... será ministradopelos poderes públicos”. A Constituição de 1969 também não deixava dúvida: “A educação ... é direito detodos e dever do Estado, e será dada no lar e na escola”.

A propósito, não deixa de chamar a atenção o empenho com que os defensores doensino em casa buscam alicerçar um discurso basicamente de inspiração religiosa em dispositivoslegais e constitucionais, como se a mera existência de fundamentação jurídica fosse razão suficientepara justificar a implementação de políticas públicas explícitas de apoio à escola domiciliar. De fato,

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pelo menos quanto aos Estados Unidos, onde a escolarização compulsória é tratada com absolutaseriedade, restaria saber com que ânimo as autoridades encarregadas de zelar pela freqüência à escolavêem a proliferação de escolas domiciliares, que pode ser juridicamente correta, mas politicamenteerrada.

No Brasil, a universalização da educação básica ainda é um ideal, a própria autoridadeainda não tomou consciência de seu papel de agente educativo por excelência, a prioridade políticaainda é erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais. Umapolítica educacional afinada com tais objetivos só pode centrar-se no ensino público e na escolarizaçãocompulsória, que é o que interessa à expressiva maioria do povo brasileiro. A criação de mais umarede de “escolas”, a das escolas em casa, altamente seletiva, por natureza e propósito, não resolveráo problema do ensino no Brasil. Poderá, isto sim, incrementar o descompromisso político com aeducação do povo.

A Constituição não dá margem à dúvida: cabe ao Poder Público oferecer o ensinoobrigatório, recensear os educandos no ensino fundamental, fazer-lhes a chamada e zelar, junto aospais ou responsáveis, pela freqüência à escola (art. 208, §§ 1º, 2º e 3º), facilitar de todas as maneiraso cumprimento da escolaridade obrigatória (208, VII).

3.2.2 - O que é bom para os Estados Unidos da América não é necessariamente bompara o Brasil.

Alguns textos sobre homeschooling tentam passar a imagem de que os Estados Unidos daAmérica, além de berço, são também o paraíso da escola domiciliar. Contudo, o entusiasmo quealguns ostentam pelo método deve ser encarado com bastante cautela: o reconhecimento da validadeda escolarização em casa como alternativa da escolarização formal não parece tão tranqüilo assim.Se fosse, por exemplo, não haveria precisão de uma Associação de Defesa Legal da Escola em Casaque, caso necessário, está em condições de contratar advogados especializados para defender, nostribunais, o direito de os pais instruírem os filhos em casa. Além disso, os textos a que tivemos acessosão omissos no que se refere ao ponto de vista das autoridades educacionais incumbidas de implementara escolaridade obrigatória, não havendo porque pressupor que seja um ponto de vista meramentefuncional e burocrático.

O mínimo que se pode dizer é que é sempre arriscado avaliar as atitudes, as instituiçõese os valores de uma sociedade fora do contexto histórico e cultural em que deitam raízes. Sem dúvida,é de se presumir que o ensino em casa, mais de que fruto de uma teoria educacional cientificamentedefensável, é o resultado da dinâmica social norte-americana, a qual, por seu turno, não é possívelisolar do ideário dos Pioneiros, da tradição jurídica do País e das bases comunitárias em que o processoeducacional norte-americano está ancorado. Vale recordar as repetidas frustrações que nos tem causadoa importação acrítica de modelos estrangeiros, tanto na área da educação quanto em outras áreas.

Arnaldo Niskier enfatiza que a escolarização compulsória, imposta pelo Estado, repugnaa toda uma tradição puritana. De fato, os Pioneiros tinham em alta conta a liberdade de expressão dasidéias políticas e religiosas, razão por que vieram para a América. Essa tradição era contrária àingerência governamental na educação de seus filhos, mesmo que democratização da educação fossesinônimo de desenvolvimento. Contudo, segundo o autor, era inconcebível que o Estado assumissetodas as responsabilidades em matéria de educação e, ao mesmo tempo, permitisse aos pais a decisãode deixar seus filhos ignorantes ou de instruí-los exclusivamente segundo seus próprios critérios. Dequalquer forma, importa repetir que, nos Estados Unidos, a escolarização compulsória é para valer.Lá, pai que deixa de mandar o filho para a escola pode ser preso ou multado.

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No que se refere às demandas judiciais pelo reconhecimento do direito de ensinar osfilhos em casa, vale esclarecer que, nos Estados Unidos, as decisões dos tribunais são importantefonte de direito educacional, ao lado das leis (estaduais e distritais) e das normas administrativas. Jáa educação brasileira se notabiliza pela reduzida interferência do Poder Judiciário, pela forteregulamentação em nível nacional e pelo prestígio da doutrina, consubstanciada nos pareceres dosConselhos de Educação. Na verdade a fonte primária do direito educacional brasileiro é a lei oriundado Poder Legislativo. A partir dela, porém, os conflitos, os desdobramentos e as dúvidas são resolvidose decididos pelos conselhos que, embora vinculados ao Poder Executivo, têm competência judiciária.

Na legislação de ensino precedente, a obrigatoriedade da freqüência escolar estavaestabelecida no art. 20, “caput”, e parágrafo único, da Lei nº 5.692/71: “O ensino de 1º grau seráobrigatório dos 7 (sete) aos 14 (quatorze) anos de idade ... . A administração do ensino (deverá) fiscalizar ocumprimento da obrigatoriedade escolar e incentivar a freqüência dos alunos”. O mandamento, porém, não temsido levado muito a sério: pai algum recebeu voz de prisão por não ter matriculado o filho na escolae nunca ninguém viu funcionário de prefeitura recolher na rua os meninos que deveriam estar na salade aula. Contudo, não se pode desprezar a força das sanções indiretas, na medida em que a alfabetizaçãoé uma exigência para o exercício de certos direitos e para o engajamento profissional.

No que se refere à obrigatoriedade da freqüência escolar, a realidade educacional brasileiraesteve por muito tempo retratada no art. 30 da Lei nº 4.024/61, que só foi revogado pela Lei nº9.394, de 20 de dezembro de 1996. Entre os casos de isenção figuravam: a) comprovado estado depobreza dos pais; b) insuficiência de escola; e c) matrícula encerrada. Ainda segundo essa normalegal, a prova de que está sendo ministrada educação no lar equivale à prova de matrícula no ensinoregular.

Em nosso País, uma lei de obrigatoriedade da escolarização básica penalizaria sobretudoa população pobre, cujas crianças não teriam mais tempo para ajudar em casa. Ademais, graças àinegável criatividade de nossos legisladores e autoridades educacionais, existe sempre a possibilidade,já institucionalizada, de validar estudos feitos livremente (!), isto é, fora da escola e fora da faixaetária própria, mediante a prestação de exames de suficiência, popularmente conhecidos como “examesde madureza”, “artigo 91”, exames supletivos, etc.

Para concluir este capítulo, nunca é demais lembrar que os grandes problemas da educaçãobrasileira têm origem numa sociedade dilacerada por gritantes desigualdades, cuja estrutura exclui emarginaliza um número de cidadãos cada vez maior. Enquanto isso, os norte-americanos podem dar-se ao luxo de reivindicar “direitos”, defender “liberdades”, opor ao “tudo pelo social” o “tudo peloindividual”. É, pois, fundamentado o receio de que um eventual apoio da Câmara dos Deputados aohome school movement brasileiro venha a patrocinar a importação não só de mais um modelo pedagógicoestrangeiro, mas também de toda uma problemática educacional que não é nossa. Na verdade, aescola domiciliar brasileira poderá não passar de um indesejável núcleo de colonização cultural, emvários sentidos.

3.2.3 - É fantasiosa e elitista a idéia de que a família é o agente educativo ideal.Não há dúvida de que as crianças só aprendem bem e amadurecem plenamente em

ambientes saudáveis. Contudo, as opiniões divergem quando se trata de definir o que é um ambientesaudável.

Como foi visto anteriormente, os defensores da escola em casa argumentam, em seufavor, com o baixo padrão de qualidade da educação oferecida na escola convencional. Sobretudo aescola pública não passaria de um autêntico antro de depravação intelectual e de corrupção moral demenores. A crítica, contudo, não se dirige especificamente ao estado atual do ensino público, masatinge a instituição escolar como tal. Afinal, o lar é apresentado como sistema original (e, portanto,

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puro) de educação; a família é erigida à condição de agência educativa natural, acima de qualquersuspeita; os pais seriam educadores por vocação e índole, de competência pedagógica e didáticaindiscutíveis. Causa até estranheza a desenvoltura com que usam as expressões “escola familiar”,“escolarizar em casa”, “ensino escolar em casa”, quando o simples senso comum entende por educaçãoescolar a que se dá na escola e por educação não-escolar a que se dá fora da escola.

Em oposição à visão romântica e idealizada da família-educadora, há quem questiona,com absoluta seriedade, o mito dos fluidos positivos que emanariam da intimidade familiar para aaprendizagem infantil. O sempre respeitado professor e pensador francês Emile Chartier, por exemplo,sustentava que a família instrui mal e educa pior. Para ele, a escola é que é o ambiente natural dacriança, uma instituição feita sob medida, verdadeira “oficina da humanidade”, conforme queria osempre atual João Amós Comênio.

Chartier era o tipo de professor que tratava os alunos na palma da mão, embora de maneiraestritamente profissional, sem qualquer familiaridade. Fazia-se respeitar porque, reconhecendo aspróprias limitações, sabia exigir. Achava que educar é ajudar a criança a moldar em si a personalidadelivre e disciplinada que é o ente moral; que a criança quer ser desafiada e gosta de superar-se, desdeque seja de dificuldade em dificuldade; que o que a criança mais quer é deixar de ser criança; que nãose educa prometendo o prazer, mas o problema resolvido; que cumpre dar a mais alta educação atodos, especialmente aos menos dotados intelectualmente.

Educador severo porque justo, Chartier costumava dizer que não se educa bem com ocoração, mas com a razão. Assim como Freud, criticava os pais-educadores porque agem sob a pressãodo sentimento, do “amor”, da chantagem emocional. Segundo ele, no lar não há justiça. As coisascostumam ser feitas ou deixar de ser feitas em razão de um “dever filial”, porque “senão vou contara papai”, porque senão “mamãe vai ficar triste”, porque “papai e mamãe se sacrificam tanto”, porque“nós só desejamos a felicidade de vocês”, etc.

Na escola, ao contrário, predomina a regra, a relação racional e objetiva, ajustada àmentalidade infantil, num clima de respeito à individualidade da criança. Na escola, pode-se errarsem machucar, subverter a ordem das coisas sem qualquer prejuízo para quem quer que seja, decomporsem desintegrar. É nesse mundo-de-faz-de-conta, livre de terror pedagógico, que a criança está bem.É nele que a criança consegue descobrir-se, desenvolver-se, libertar-se, tornar-se adulto, auto-realizar-se, humanizar-se, descobrir-se na descoberta do outro, exercitar-se na construção coletiva do saber,superar o individualismo, a arrogância, a auto-suficiência, o radicalismo.

Assim, na concepção de muitos educadores, a idéia de reivindicar o direito de instruir osfilhos em casa brilha, antes de mais nada, por sua índole romântica. A verdade seria que não háprovas científicas de que a educação dada na família é por princípio melhor que a educação dada naescola, nem de que os pais sabem “naturalmente” melhor que os professores o que convém aos filhosem matéria de educação, saúde, segurança, moral, civismo, formação intelectual.

Aliás, se a intenção é demonstrar a excelência do método, o argumento de que, em testesde verificação de aprendizagem, crianças instruídas em casa evidenciam desempenho igual ou superiorao das crianças escolarizadas de forma convencional, não resiste à crítica. Apenas serve para,açodadamente, concluir que a exigência de docentes com formação específica e habilitação legal éum despropósito e, conseqüentemente, para desprofissionalizar o magistério.

Não é só. A família-que-ensina-em-casa deseja manter-se propositadamente isolada doque chamam “focos de tensão da época”, sendo difícil acreditar, mesmo que por hipótese, que consigapor os filhos ao abrigo de todas as influências externas, em caráter duradouro. Mas o problema real ése convém o Estado estimular o isolamento de crianças e adolescentes através da legitimação daescola domiciliar, em consideração a razões de natureza religiosa, filosófica, política, etc. Afinal, é

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bem provável que, no restrito círculo familiar, se crie nas crianças um mundo de imagens que emnada se parece com a realidade da vida e, conseqüentemente, se coloque em risco a formação docidadão, que é a razão suprema da ingerência estatal na educação.

O ideal pedagógico da família-que-ensina-em-casa pode ter tido valor numa época emque as virtudes e as verdades praticadas e aceitas pelos pais eram naturalmente assimiladas pelosfilhos, em que o cultivo da capacidade de perdoar e o espírito de renúncia não tinham limites, em queo pai era o chefe da família e a mãe, mulher de prendas do lar. No mundo que se anuncia, a prioridadeserão as crianças e os jovens, cujo interesse será o critério pelo qual se avaliará a ação dos pais. Aexperiência, a sabedoria e a cultura já consolidadas pouco ajudarão. A verdade surgirá exatamente doconfronto das idéias; o conhecimento, da construção coletiva do saber.

Hoje, a tarefa principal dos pais -desde que não desejem filhos despreparados para umacivilização cuja marca registrada é a mudança- não pode consistir em transmitir verdades acabadas,impor regras indiscutíveis, ensinar qualquer coisa em caráter definitivo. “Ao invés de ensinar algo, aposição dos pais deveria ser a de aprenderem juntos a viver num mundo que eles também não conhecem. A criaçãodesse ambiente implica num recusa a ensinar o que os mais novos devem aprender, para indicar-lhes como eles devemaprender. Ao invés de ensinar verdades, a família passaria a basear-se na criação de condições para que crianças eadolescentes encontrassem suas verdades” (Garcia 92).

A propósito, o direito de educar os próprios filhos certamente não é absoluto (no sentidode que o “padrão métrico” da abrangência e da intensidade de seu exercício é o interesse dessesmesmos filhos), nem exclusivo dos pais. Por isso mesmo, os princípios a) da liberdade de aprender eensinar (art. 206, II), b) do pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas (art. 206, III), c) dainviolabilidade da liberdade de consciência e de crença (art. 5º, VI) e d) da não-privação de direitospor motivo de crença religiosa e de convicção filosófica ou política, devem, no caso, subordinar-se ànorma estabelecida no art. 227, caput, da Constituição Federal:

“É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e adolescente, com absoluta prioridade,o direito (...) à educação, (...) e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda formade (...) discriminação, (...)”.

3.2.4 - Num país em que a integração é um dos fins da educação, não convém incentivara prática da segregação

Obviamente, propor o reconhecimento oficial do ensino em casa é mais do que sugerira adoção de um método qualquer: é propor certa maneira de pensar a ação educativa e, assim, deveser examinada sob diversos ângulos. Só depois de submetê-la a rigorosa crítica é que se pode avaliá-la à luz da política e quanto ao interesse público.

Do ponto de vista teórico, o movimento pela escolarização em casa pode ser interpretadocomo uma manifestação do chamado comunitarismo, ideologia que Richard Sennet (Cunha, 387)qualificou como essencialmente prejudicial à democracia. Entende-se por comunitarismo a crençasegundo a qual as comunidades constituem a estrutura elementar da sociedade, à qual deveriamservir de padrão organizatório. A própria sociedade seria um artifício, não teria vida própria.

Sem dúvida, as comunidades são importantes como mecanismo de renovação da estruturainterna da sociedade, de prática da cidadania, de aprofundamento das relações entre as pessoas.Contudo, a elevação da comunidade à categoria de agente político por excelência tem algunsinconvenientes (Cunha, 387), entre os quais convém destacar a preocupação sistemática em evitarações e pensamentos divergentes, de que resultam o sectarismo, a intolerância, o fanatismo e a idéiade que somente é bom o próximo, o familiar. “Nada mais anti-educativo do que proteger as crianças e osjovens na ‘redoma comunitária’, que os dispensa de correr o risco de confrontar suas convicções, seus valores, seushábitos e até sua linguagem com os dos estranhos, dos diferentes”.

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Ao ensejo, é mesmo de estranhar a reação à descoberta de que a escola pública vai mal(embora o diabo não seja tão feio quanto o pintam): tirar os filhos da escola e instruí-los em casa.Como se os problemas do ensino público brasileiro fossem dos filhos dos outros... Porque não ajudara resolvê-los, participando de colegiados, assembléias e conselhos, valorizando a democratização dagestão do ensino público e, assim, resgatando o antigo padrão de qualidade, que é do interesse detodos? Afinal, pelo art. 53, do Estatuto da Criança e do Adolescente, “é direito dos pais ter ciênciado processo pedagógico, bem como participar da definição das propostas educacionais”8 .

Como se não bastassem as precedentes objeções, há poucos dias, a Gazeta Mercantilpublicou um comentário sobre a “cultura da acomodação”, que convém registrar. Analisando ocomportamento do brasileiro diante da inflação, observou-se que, ao invés de atacar a inflação pelassuas causas, convive com ela por meio de um mecanismo que ajusta os salários e os ativos de acordocom a inflação. Então, a preocupação centra-se nas conseqüências, ou seja, no mecanismo que perpetuao problema original. A cultura da acomodação se manifesta em todas as áreas: “De preferência, aenfrentar os problemas, os brasileiros encontram modos para evitá-los, justificá-los, ou mesmobeneficiar-se com eles. Interesses pessoais ou paroquiais predominam sobre os coletivos e impedemas reformas”.

É preciso examinar, também, até que ponto uma corrida ao homeschooling seria expressãoda chamada cultura da acomodação, que consiste em evitar ou justificar os problemas, em vez deenfrentá-los de frente. “Nossa escola está muito pouco preparada para aprender com seus próprios erros, porqueo espírito imitativo que preside nossas preocupações educacionais, nos leva a buscar o que é funcionalmente bom paraos outros como solução para a incapacidade que revelamos em encontrar as melhores soluções para a incapacidade querevelamos em encontrar as melhores soluções para a fase que atravessamos” (Garcia, 152).

Finalmente, o entendimento de que ao Estado interessa apenas o produto da educação enão o processo educativo não pode ser endossado sem restrições. De alguma forma, foi assim que ascoisas funcionaram no tempo das “aulas avulsas”, das “escolas isoladas” e dos “preparatórios”, até1925, aproximadamente, ano da reforma de ensino chamada “João Luiz Alves”, que se inspirou,segundo o então Presidente da República, “no desejo de moralizar e tornar eficiente o ensino, pelaampliação dos estudos propedêuticos de humanidades, pelo rigor nos exames, pela freqüênciaobrigatória e pelo rejuvenescimento e seleção do professorado”.

Muito embora o ensino seja a tarefa típica da escola, a freqüência compulsória não temapenas uma função didático-pedagógica, qual seja a de assegurar a seqüência e o ordenamento, apermanência e a regularidade dos processos de aprendizagem. Em certa época, a freqüênciacompulsória foi usada para impedir a exploração da mão-de-obra infantil. Em outra, para formar ocapital humano necessário ao desenvolvimento econômico. Nos dias em que a escola é certamente oprincipal meio de ascensão das massas populares, em que estudar é um direito e não mais um privilégio,uma necessidade e não apenas uma opção, a freqüência compulsória interessa ao Estado por razõesnão exclusivamente pedagógicas, como, por exemplo: por preencher o tempo do educando, por diminuira procura por novos empregos, por ajudar na preparação do contribuinte de amanhã, por induzir asubstituição de práticas individualistas por ações solidárias, por assegurar lealdade ao governo(educação cívica), por aprimorar a saúde da população (educação física, programas de saúde).

3.3 - Conclusões3.3.1 - O “problema” da família-que-quer-ensinar-em-casa pode ser assim sintetizado:Em razão do mandamento da escolaridade obrigatória, os pais têm o dever legal de

matricular os filhos em estabelecimento de ensino da rede regular, ou seja, em escola que funcione deacordo com as leis do ensino, sob a fiscalização do Governo;

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A escolarização obrigatória em instituição de ensino regulada e controlada pelo Governo,não importa que seja pública ou particular, implica necessariamente o aprendizado de conhecimentose a assimilação de valores que podem estar em desacordo com as crenças religiosas, as convicçõesfilosóficas, políticas ou estéticas e as concepções pedagógicas de uma ou mais famílias;

Assim sendo, o mandamento da escolaridade obrigatória em estabelecimento de ensinoregular é uma violência à liberdade de consciência e de crença e uma restrição à liberdade de aprender,ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber, vale dizer: o mandamento da escolaridadeobrigatória é inconstitucional;

A solução que sugerem é a de restituir aos pais o direito de instruir os próprios filhos, emcasa, como teria sido feito antigamente, com um mínimo de ingerência estatal, cabendo ao PoderPúblico estabelecer as condições e requisitos de validação dos estudos assim realizados e, pois,reconhecê-los como alternativa do ensino escolar convencional;

Coincidência ou não, tal solução é muito conveniente aos que interpretam ao pé da letrao Deuteronômio 6-7 (“Tu as inculcarás aos teus filhos, e delas falarás sentado em tua casa e andandoem teu caminho, deitado e de pé”) e aos pais que, por exercerem alguma atividade itinerante(missionários, antropólogos, pesquisadores de campo, militares, diplomatas), não podem garantircontinuidade ao processo de escolarização formal de seus filhos.

3.3.2 - À luz da teoria educacional e da evolução do pensamento pedagógico, as propostasde “oficialização” do ensino-em-casa, sobretudo quando apresentadas e justificadas como uma questãode princípio, são contrárias ao interesse público.

De fato, reconhecer o ensino em casa como alternativa de ensino convencional é negar aespecificidade da educação escolar formal e o papel peculiar da escola na sociedade moderna. Porextensão, defender o ensino em casa com base em princípios de liberdade civil e política é recusarlimitação do pátrio poder pela autoridade do Estado, amparo jurídico à obrigatoriedade da freqüênciaà escola e legitimidade ao atendimento preferencial da demanda por educação na rede de ensinoregular. Em outras palavras, reivindicar o direito à educação escolar em casa é negar à educação acondição de direito social e ao poder público a possibilidade de intervenção.

A defesa do ensino em casa tenta nos confundir com um conflito que existiria entre osdireitos do educando, as responsabilidades da família e os interesses do Estado, conflito esse quefazem renascer das cinzas da sociedade patriarcal, embora tenha sido inteiramente superado pelaevolução da família e do poder político como instituições e como valores. De fato, família hoje érespeito à individualidade e à autonomia espiritual, aceitação da rebeldia e da capacidade de correrriscos como elementos necessários ao processo de maturação da pessoa, repartição dasresponsabilidades educativas com outras agências, subordinação dos direitos civis e políticos aosdireitos sociais.

Quanto à especificidade da educação escolar, cabe lembrar que, por exemplo, há mais deduzentos anos, Pestalozzi já sabia (e ensinava) que o fundamento de todo o processo educativo é olar paterno, mas que à escola incumbe a educação social e política em sentido mais amplo. À escola,segundo Pestalozzi, cabe preparar o educando para a autodeterminação, a autonomia moral, o ser umadulto livre. Note-se que a negação de especificidade à educação escolar implica o esvaziamentojurídico-institucional da iniciativa governamental na área do ensino.

Em defesa da tese de que todas as crianças devem freqüentar uma instituição escolar darede regular de ensino, convém, finalmente, citar Thomas Randsom (27, 28): “Cabe à escola o primeirocomplemento da função educativa da família. É ela que, em sentido mais abrangente, deve levar avante esse processovisando à integração da pessoa numa realidade diante da qual deve desenvolver a capacidade de avaliar e fazeropções vitais. Esse objetivo, por sua vez, supõe a possibilidade de participar ativamente no ambiente social, contribuindo

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para modificar situações não condizentes com o ideal do ser humano. Essa tarefa da escola já amplia o conceito‘educar’ e faz que ele ultrapasse a simples função de transmitir conhecimentos, pois assume outra feição: a decapacitar a pessoa para que possa assumir o papel ativo e responsável da coletividade. Neste sentido, a escolaprolonga e aprofunda o papel educativo da família. A escola vai além da função educativa da família, pois é ela queformaliza o papel educativo da própria coletividade, a fonte mais ampla de onde procede a imagem-ideal que seimprime no processo educativo”.

3.3.3 - Demonstrada a impertinência da oficialização do “ensino em casa” à luz da teoriaeducacional, falta examinar a matéria à luz da legislação do ensino.

As leis brasileiras não privam os pais do direito de educar os filhos. Pelo contrário, dispõemque eles têm o dever de assisti-los e criá-los e de, juntamente com a sociedade e o Estado, assegurarà criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à educação. A Constituição estabeleceque a família é a base da sociedade e tem especial proteção do Estado (art. 226)

As leis não proíbem que os pais dêem instrução a seus filhos, seja em casa (se tiveremcasa), seja fora de casa. Também não há restrição legal à liberdade de aprender, ensinar, pesquisar edivulgar o pensamento, a arte e o saber. Agora, o que a lei deixa claro é que a educação escolar seráministrada pelo Estado, incondicionalmente, sendo livre à iniciativa privada sob certas condições(CF, art. 209).

Público ou privado, ensino escolar é o que é ministrado em instituições próprias(comumente chamadas estabelecimentos de ensino, escolas, colégios, etc.) e de forma regular, querdizer, segundo regras estatuídas na Constituição, nas leis de ensino e nos atos normativos dasautoridades educacionais. Pessoa física ou jurídica de direito privado que pretenda ministrar ensinoregular só pode fazê-lo com autorização do poder público.

Não resta dúvida de que é obrigação dos pais matricular os filhos menores emestabelecimentos de ensino regular e de que é dever do Poder Público zelar, junto aos pais, pelafreqüência (CF, art 208, § 3º). Se os pais não cumprirem a obrigação de matricular o filho na escola ede acompanhar a freqüência e o aproveitamento, a autoridade competente poderá fazê-lo. Oatendimento preferencial na rede regular de ensino é princípio constitucional e tem por objetivoacolher os que eram, voluntária ou involuntariamente, excluídos da escola “comum”: os superdotados,os portadores de deficiência, os que não puderam ir à escola na idade própria, os jovens trabalhadores,as crianças da zona rural.

Se, por hipótese, a Justiça eximisse uma família da obrigação de matricular os filhos naescola regular (e não importaria se em razão de princípios de liberdade de consciência, de crençareligiosa, de convicção política ou filosófica), nem por isso seria o ensino em casa promovido acategoria administrativa especial, ao lado da escola pública e da escola privada. Família-que-ensina-em-casa não quer nada com a educação escolar e não poderia, até por uma questão de coerência,aspirar à regularização daquilo que não quer que seja regular.

Ensino escolar em casa é uma contradição em termos. Quem ensina em casa, ou ofereceeducação escolar -e, neste caso, deve providenciar uma organização administrativa, didática edisciplinar de acordo com a legislação de ensino, como qualquer outra instituição de ensino regular-, ou pratica educação extra-escolar, quer dizer, não sujeita à legislação de ensino. A educação extra-escolar é a verdadeira alternativa da educação escolar. O fato de imitar a escola não transforma umlar em estabelecimento de ensino, assim como “comida caseira” no cardápio não transforma umrestaurante em casa de família.

O que a lei brasileira estabelece é que a educação nacional deve ser organizada de formasistêmica, tendo por princípio, entre outros, o da integração entre a educação escolarizada formal eas ações educativas produzidas fora dos sistemas de ensino (LDB, 8º e 9º). Como já foi mostrado, o

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ensino em casa foi concebido para ser uma terceira via, nem escola pública, nem escola privada -precisamente as instituições de ensino que, juntamente com os serviços públicos de caráter normativo,administrativo e de apoio técnico, compõem um sistema de ensino (LDB, 16 a 18). Assim sendo, sópode ser qualificado como uma ação educativa fora dos sistemas de ensino. Por conseguinte, cabe aoConselho Nacional de Educação, se for o caso, estabelecer as condições de validação, reconhecimento,etc.

À luz da legislação de ensino, a escola em casa, caso esteja funcionando de fato e emsubstituição à escola convencional, é, a rigor, uma instituição clandestina, com pais se arvorando deprofessores e especialistas de educação, usurpando o dever de educar, arrogando a si como que umdireito de posse exclusiva sobre a educação dos filhos. Se apesar de todas as objeções ainda houverquem se disponha a defender a causa da oficialização do ensino em casa (seja lá o que isso venha asignificar), convém que saiba que nossa legislação de ensino é suficientemente flexível para quecasos concretos possam ser encaminhados à apreciação do competente Conselho de Educação.

Em que pese a esta abertura, não se pode deixar de reconhecer que a legislação de ensino,o planejamento setorial e a administração educacional evoluem firmemente no sentido dauniversalização da educação básica obrigatória na rede regular de ensino, da valorização dosprofissionais do ensino, do fortalecimento das unidades escolares e da explicitação de que é dever doPoder Público assegurar a todos o direito à educação escolar. Como já foi lembrado, é este o espíritocom que foi elaborada a LDB vigente: “A presente lei disciplina a educação escolar, que se desenvolve,predominantemente, através do ensino, em instituições próprias” (art. 1º, § 1º) e “para garantir a obrigatoriedadede ensino, a poder público criará formas alternativas de acesso aos diferentes níveis de ensino, independentemente daescolarização anterior (art. 5º, § 5º).

Como no tempo do deputado Carlos Lupi, as leis não proíbem o ensino em casa. Apreocupação com a regulamentação, de parte (pais) a parte (autoridades educacionais) revela apenaso velho vezo da administração cartorial que ainda é a marca registrada da educação brasileira: épreciso reconhecer, validar, autenticar, registrar, certificar, chancelar. A educação é livre, desde quetenha o dedo do poder público, desde que o Estado estabeleça as condições, desde que a autoridadeponha o seu carimbo. Em tal contexto, tanto é difícil sustentar a desnecessidade da regulamentação,quanto fazer uma proposta concreta de disciplinamento.

Em que pese à indiscutível prerrogativa do Estado de estabelecer as condições em ainiciativa privada exercerá a liberdade de ensinar - e não há dúvida de que aí se insere a educaçãobásica dada pelos pais -, o ensino em casa é, antes de mais nada, um caso de política.

NOTAS DE REFERÊNCIA

1 Parecer nº 34, de 4 de dezembro de 2000, homologado em 15 de dezembro de 2000.2 Capítulo escrito em 1993, reescrito em 2001.3 Lei nº 9.394, de 1996, art. 1º, § 1º: “Esta lei disciplina a educação escolar, que se

desenvolve, predominantemente, por meio do ensino, em instituições próprias.”4 Reza o art. 38: “Os sistemas de ensino manterão cursos e exames supletivos, que

compreenderão a base nacional comum do currículo, habilitando ao prosseguimento de estudos emcaráter regular. § 1º Os exames a que se refere este artigo realizar-se-ão: I – no nível de conclusão do

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ensino fundamental, para os maiores de quinze anos; II – no nível de conclusão do ensino médio,para os maiores de dezoito anos. § 2º Os conhecimentos e habilidades adquiridos pelos educandospor meios informais serão aferidos e reconhecidos mediante exames”.

5 Capítulo escrito em maio de 1994, revisto em 2001.6 A propósito, fica patente, mais uma vez, que a doutrina da separação de religião e

política, característica do liberalismo republicano, só é viável mediante uma aliança entre Igreja eEstado, precisamente as entidades que mais a defendem no plano teórico!

7 Ver, por exemplo, Luiz Antônio Cunha.8 Ver também a LDB, arts. 12 a 15.

4 - BIBLIOGRAFIA

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