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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS
PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM DIREITO
CARLOS ANDRÉ MACIEL PINHEIRO PEREIRA
DEMOCRACIA DELIBERATIVA: A OPINIÃO PÚBLICA E O AMICUS
CURIAE NA ÓTICA DA JURISDIÇÃO PROCEDIMENTAL
NATAL
2017
CARLOS ANDRÉ MACIEL PINHEIRO PEREIRA
DEMOCRACIA DELIBERATIVA: A OPINIÃO PÚBLICA E O AMICUS
CURIAE NA ÓTICA DA JURISDIÇÃO PROCEDIMENTAL
Dissertação apresentada à banca examinadora do
Programa de Pós Graduação em Direito da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte como requisito parcial
para obtenção do grau de Mestre em Direito
Constitucional, sob orientação do Prof. Doutor José
Orlando Ribeiro Rosário.
NATAL
2017
Catalogação da Publicação na Fonte.
UFRN / Biblioteca Setorial do CCSA
Pereira, Carlos André Maciel Pinheiro.
Democracia deliberativa: a opinião pública e o Amicus Curiae na ótica da
jurisdição procedimental / Carlos André Maciel Pinheiro Pereira. - Natal, 2017.
148f.
Orientador: Prof. Dr. José Orlando Ribeiro Rosário.
Dissertação (Mestrado em Direito) - Universidade Federal do Rio Grande do
Norte. Centro de Ciências Sociais Aplicadas. Programa de Pós-graduação em
Direito.
1. Democracia deliberativa - Dissertação. 2. Jürgen Habermas - Dissertação. 3.
Opinião pública procedimental - Dissertação. 4. Amicus Curiae - Dissertação. 5.
Jurisdição procedimental - Dissertação. I. Rosário, José Orlando Ribeiro. II.
Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título.
RN/BS/CCSA CDU 342.57
CARLOS ANDRÉ MACIEL PINHEIRO PEREIRA
DEMOCRACIA DELIBERATIVA: A OPINIÃO PÚBLICA E O AMICUS
CURIAE NA ÓTICA DA JURISDIÇÃO PROCEDIMENTAL
Dissertação apresentada à banca examinadora do
Programa de Pós Graduação em Direito da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte como requisito parcial
para obtenção do grau de Mestre em Direito
Constitucional, sob orientação do Prof. Doutor José
Orlando Ribeiro Rosário.
Aprovado com distinção em 07/12/2017
______________________________________
Prof. Doutor José Orlando Ribeiro Rosário - UFRN
Presidente
______________________________________
Prof. Doutor Pablo Moreno Paiva Capistrano – IFRN
1º Examinador
______________________________________
Prof. Doutor Ricardo Tinôco de Góes – UFRN
2º Examinador
Dedico este trabalho
A minha avó Sônia Maciel de Andrade
Aos meus pais Mário Pereira da Silva e Jayra de Andrade Pinheiro
A minha tia Uyara de Andrade Pinheiro
AGRADECIMENTOS
A minha bisavô Jenny, por todo o amor que tem por mim e por hoje iluminar meu
caminho, seja com seus exemplos e sábias lições de vida, seja com a luz de seu espírito altivo.
A minha querida avó Sônia, por despertar meu interesse no mundo jurídico, por
todos os exemplos e ensinamentos, pelo carinho e por todo amor que marcaram minhas duas
primeiras décadas de vida e são parte responsável do que sou agora.
A minha mãe Jayra e minha tia-irmã Uyara, pelo amor de cada dia e por investirem
sempre nos meus sonhos, apoiando em cada decisão que eu tomo. É um prazer dividir o dia a
dia com vocês e seguir rumo ao amanhã que muito nos há de trazer.
Ao meu pai Mário, por hoje ser parte da minha vida e estar ao meu lado nessa nova
etapa. Alegra-me poder compartilhar um pouco do meu mundo com você e conhecer uma
parcela do seu.
Ao meu primo Felipe Maciel, por ser desde sempre meu mestre, amigo, pai e
professor. Devo lhe agradecer pela paciência infinita, porque eu sempre o perturbei bastante –
e pretendo perturbar ainda mais. E fica dada a largada: quem será o primeiro a ingressar e
concluir o Doutorado?
Ao meu amigo e mentor, Marco Aurélio de Medeiros Jordão, pessoa em nome de
quem agradeço ao grupo de estudos Filosofia, Direito e Sociedade da UNI-RN, por ter me
introduzido ao mundo da filosofia política. Deixo aqui um salve para Marcelo Maurício da
Silva e Fábio Fidelis de Oliveira, cujas contribuições metodológicas e papos etílicos foram de
suma importância.
Aos amigos do Mestrado, pelo ambiente fecundo em sala de aula para provocações e
debates sempre tão construtivos. A dádiva mais importante que recebi do PPGD foi a amizade
de vocês. Deixo um abraço especial para Bruna Agra, Kate Moura, Saulo Torres, Carolina
Maia, Altair Soares, Fabiana Mota, Dandara Fernandes, Amanda Câmara, Guilherme Udré,
Ítalo Rebouças, Leonardo Medeiros, Victor Carvalho, Andréa Flávia e Raiano Tavares.
Tenho de reservar um espaço aqui para as minhas musas inspiradoras, em nome de
quem registro meu agradecimento aos colegas da Linha 2, pelo companheirismo, pela troca de
ideias, pelas fofocas e por tantos risos. Andréa Neiva, Renata Araújo e Nathânia Medeiros:
meninas, obrigado pelo apoio e pelo carinho.
E um agradecimento do coração para Andressa Solon, a melhor geminiana que tive o
prazer de conhecer. Nossos bate-papos aos domingos de noite para debater sobre direito, vida,
vinhos e falar mal dos outros serviram de contraponto para manter minha cabeça funcionando
em meio a essa montanha russa de fortes emoções que é o Mestrado.
Ao meu orientador, Prof. José Orlando Robeiro Rosário, pela liberdade e confiança
em mim depositadas. Ao Prof. Ricardo Tinoco de Góes pelo exemplo de humildade e
brilhantismo, sempre solícito e atencioso. Que nossa parceria acadêmica continue e renda
muitas produções.
A Profª. Cristina Foroni Consani por abrir meus olhos e me ajudar a entender a teoria
de Jürgen Habermas. A Profª. Ana Beatriz Ferreira Rebello Presgrave por me lembrar de que
existe música além do direito e me apresentar ao intricado mundo do direito intertemporal. Ao
Prof. Leonardo Martins pelo enduro acadêmico sobre teoria geral dos direitos fundamentais e
os debates astrológicos.
Aos Prof. Erick Wilson Pereira, ao Prof. Artur Cortez Bonifácio e a Profª. Maria dos
Remédios Fontes Silva, pelas maravilhosas aulas do primeiro semestre e a todos os
funcionários do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFRN, pelo suporte.
Registro um obrigado ainda aos amigos Mário Pereira (UFPE), Marco Aurélio
(Lund-Suíça) e Dayveson Noberto (IFRN), pelas conversas que tivemos sobre a vida
acadêmica, a troca de ideias, os pequenos ajustes e correções ortográficas da pesquisa.
E last, but not least, aos egípcios por terem deixado como legado ao mundo a cerveja
e o vinho, combustíveis que propiciaram boa parte das elucubrações feitas neste estudo.
Domo arigatō
“For millions of years, mankind lived
just like the animals. Then something
happened which unleashed the power
of our imagination. We learned to
talk.”
Stephen Hawking
"Peace cannot be kept by force; it
can only be achieved by
understanding."
Albert Einstein.
RESUMO
A presente dissertação tem como objetivo analisar a conexão entre a opinião pública
construída procedimentalmente, através do discurso, com a legitimidade e racionalidade da
jurisdição constitucional. O exame é feito com método dedutivo, através de pesquisa
qualitativa e viés normativo, com apoio bibliográfico na obra de Jürgen Habermas, tendo na
teoria do agir comunicativo um ponto de partida. No decorrer do estudo são feitas
considerações sobre a formação da opinião pública no contexto da democracia deliberativa e
os seus reflexos na judicatura, tendo no instituto do amicus curiae um canal comunicativo
entre sociedade civil e poder judiciário. Compreende, ainda, que a jurisdição tem sua
legitimidade condicionada a um modelo procedimental, cuja viga mestra é a cooperação
dialógica entre todos os atores processuais envolvidos, sendo esta uma das tônicas adotadas
pelo Código de Processo Civil. Ao fim, conclui que o modelo procedimental baseado em
Jürgen Habermas é aplicável ao Brasil.
Palavras-chave: Democracia Deliberativa. Jürgen Habermas. Opinião Pública
Procedimental. Amicus Curiae. Jurisdição Procedimental.
ABSTRACT
This dissertation aims to analyze the connection between procedurally constructed public
opinion, through discourse, with the legitimacy and rationality of constitutional jurisdiction.
The study is carried from a deductive method, through qualitative research and normative
bias, and bibliographical support on the work of Jürgen Habermas, being the theory of
communicative action the starting point. In the course of the study, considerations about the
formation of public opinion in the context of deliberative democracy and its reflexes in
judicature, being amicus curiae the communicative channel between civil society and the
judiciary branch. Comprehends, moreover, that jurisdiction has its legitimacy conditioned to a
procedural model, whose crossbeam is the dialogical cooperation between all procedural
actors involved, being this one of the tones adopted by the Civil Procedural Law. In the end, it
is concluded that the procedural model based in Jürgen Habermas is applied in Brazil.
Key-words: Deliberative democracy. Jürgen Habermas. Procedural public opinion. Amicus
Curiae. Procedural jurisdiction.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 13
2 DEMOCRACIA DELIBERATIVA: A TEORIA DO DISCURSO EM JÜRGEN
HABERMAS ........................................................................................................................... 18
2.1 Sobre o uso da linguagem .............................................................................................. 19
2.2 Do agir estratégico para o agir comunicativo ................................................................ 22
2.3 Entre o mundo da vida, sistemas e o direito .................................................................. 25
2.4 A dinâmica linguística: discurso e direito como mecanismos de integração ................ 33
2.5 Ainda sobre o direito: princípio do discurso e princípio da democracia ....................... 36
2.6 Autonomia pública, autonomia privada e autonomia política ....................................... 43
2.7 Esfera pública, opinião pública e o modelo circulatório do poder comunicativo .......... 49
3 O AMICUS CURIAE NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO ................... 56
3.1 Antecedentes teóricos: da força normativa da Constituição a sociedade aberta dos
intérpretes ............................................................................................................................. 57
3.2 Um paralelo entre as propostas de Peter Häberle e Jürgen Habermas ........................... 65
3.3 Evolução história do amicus curiae ............................................................................... 68
3.4 As primeiras manifestações do amicus curiae no ordenamento jurídico brasileiro: poder
de política e prestação de informações ................................................................................ 71
3.5 O amicus curiae no controle de constitucionalidade ..................................................... 73
3.5.1 Primeiras manifestações no Supremo Tribunal Federal......................................... 74
3.5.2 As leis nº 9.868/1999 e 9.882/1999 e suas consequências para o controle
concentrado ..................................................................................................................... 77
3.5.3 O amicus curiae no controle incidental de constitucionalidade............................. 85
3.5.4 Outras possibilidades de manifestação .................................................................. 88
3.6 O amicus curiae no Código de Processo Civil: natureza jurídica enquanto intervenção
de terceiro ............................................................................................................................ 89
3.7 Amicus curiae e a opinião pública na perspectiva da abertura comunicativa-processual
............................................................................................................................................. 94
4 O PROCESSO DELIBERATIVO NA ATIVIDADE JURISDICIONAL: UMA
PERSPECTIVA DISCURSIVA ............................................................................................ 97
4.1 O modelo habermasiano de jurisdição ........................................................................... 98
4.2 A teoria dos direitos, o juiz Hércules e o romance em cadeia de Ronald Dworkin .... 101
4.3 A tese do caso especial de Robert Alexy e o modelo da ponderação .......................... 109
4.4 A legitimidade para além de Habermas: uma referência em Ricardo Tinoco de Góes 116
4.5 Discurso jurídico e argumentação no Código de Processo Civil ................................. 120
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 139
REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 145
13
INTRODUÇÃO
Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, uma série de direitos e
garantias fundamentais foram assentados, dispondo sobre os mais variados tópicos das vidas
pública e privada. Esse novo panorama, apesar de seu breve histórico de existência, foi
marcado por diversos eventos de ordem política.
Apesar da insuficiência técnica do eleitor brasileiro, assuntos ligados à economia, à
política e ao direto foram incorporados às conversas cotidianas de milhares. Os
posicionamentos esposados, muitas vezes divergentes e conflitantes, mostraram como cada
brasileiro guarda em si o ímpeto de buscar a concretização daquilo que considera correto e
justo. Essa vasta diversidade de opiniões que foram apresentadas demonstram painel plural
em que o Brasil está inserido.
Todavia, apesar de todo esse interesse e expectativa do cidadão comum perante o
Estado, vários assuntos não encontram guarida na legislação pátria, o que pode ter relação
com a insatisfação pública com os Poderes Legislativo e Executivo, pois tratam-se de duas
instâncias assoladas de forte desconfiança, por parte da população, que se apresenta cada vez
mais indignada com escândalos políticos ligados à corrupção.
Por outro lado, o excesso de burocracia e a inércia desses poderes em prestar as
políticas públicas necessárias e em produzir uma legislação de acordo com a realidade fática
levam a um descontentamento1, cada vez maior, com essas searas.
Nesse cenário, o interesse crescente por tópicos políticos contribuiu para direcionar
os olhos da população aos julgamentos do Supremo Tribunal Federal - STF, cujas sessões são
observadas, em especial quando tratam de matérias que despertam curiosidade e guardam
importância ou influência na coletividade.
Por intermédio do controle de constitucionalidade concentrado, o STF foi
transformado em palco de debate para tópicos inéditos à ordem normativa positivada. Em face
da intensa atuação daquela corte, foram julgados casos emblemáticos, cujos conteúdos
poderiam ter sido debatidos na esfera legislativa.
São exemplos os julgamentos da Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI nº
4.277, cujo objeto gravitou em torno da regularização da união homoafetiva, bem como a
1 De acordo com ICS-Brasil, índice utilizado pelo IBOPE para medir a confiança nas instituições públicas, no
ano de 2015, o Judiciário teve 46 pontos, em uma escala de confiabilidade que vai de 0 até 100. Enquanto isso, o
Congresso Nacional teve somente 22 pontos. Disponível em: http://www.ibope.com.br/pt-
br/noticias/Documents/ics_brasil.pdf Acesso em: 19 abr. 2016
14
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF nº 54, que garantiu a
interrupção terapêutica de fetos anencéfalos.
Ambas temáticas dizem respeito a situações concretas, mas que, por carência de
disposição legal, não foram regulamentadas. Não obstante, na medida em que inexiste
consenso social acerca destas matérias, a sensibilidade da apreciação fica mais evidente e
corrobora a gama plural de juízos. Em ambos os julgados mencionados, houve intensa
participação de diversos setores da sociedade, por meio do instituto denominado amicus
curiae.
Trata-se de um instituto que possibilita a participação de um terceiro que irá
apresentar sua perspectiva da temática em debate para a Corte. Podem ser ofertadas
informações técnicas, bem como defendidos os interesses e posicionamentos de pessoa
natural ou jurídica, bem como de grupos sociais que serão afetados, direta ou indiretamente,
pela decisão a ser tomada.
Tendo em vista os potenciais inclusivo, participativo e pluralizador do instituto
acima mencionado, compete questionar como as formas de participação popular na Corte
Constitucional estão correlacionadas com suposto déficit democrático do STF, dado que esta
não tem a mesma condição do Poder Legislativo, já que seus membros não são eleitos pela via
democrática.
Num Estado capitaneado por uma dita Constituição cidadã é plausível que sejam
estabelecidas as condições necessárias para a participação daqueles membros da sociedade
civil, de forma que a ação recaía aqueles interessados em julgamento. Nesse sentido,
pergunta-se: será que esse processo é efetivamente democrático?
Apesar de esta abertura ter potencial para contribuir com uma possível ampliação da
legitimidade é necessário observar se as decisões do STF realmente exercem a solução dos
conflitos democráticos levando em consideração o papel que a sociedade exerce pela via
procedimental.
Em outras palavras: como se forma a opinião pública? Qual é a maneira pela qual
esse pluralismo influencia o labor da Corte? De que forma os julgamentos formulados na
Corte Suprema possuem traços dos elementos emanados da sociedade, através dos canais
mencionados? Qual é o grau de influência e eficácia do amicus curiae no sentido de uma
jurisdição verdadeiramente procedimental?
Consoante à problemática retroapresentada, é imperiosa a busca de uma solução
viável, com o devido alicerce teórico. Inclusive, é dentro desse contexto que se encontra o
15
objeto do presente projeto de dissertação: analisar a influência de um modelo de democracia
deliberativa e sua aplicação na atividade judicante.
A despeito da função jurisdicional do STF encontrar lastro na Constituição vigente,
evidencia-se a existência, em seus julgados, de um animus de ultrapassar o limiar desta
atividade, adentrando em campos inéditos para a legislação pertinente, com inclusão de
preceitos inovadores. Desta sorte, ao gozar da livre criação do direito, será que a aludida corte
sobressai ao próprio Poder Legislativo? Ou essa invasão é justificada sob o pretexto dos
interesses e necessidades normativas da própria sociedade civil ?
Exemplificando o que foi dito, trazem-se à baila os debates sobre a controvérsia em
torno das já faladas ADI nº 4.277 e ADPF nº 54. Os enunciados contidos nos julgados citados
contêm cristalina invasão à competência legiferante da União, uma vez que somente esta pode
legislar sobre direito civil e penal, nos termos do artigo 22, inciso I, de nossa Carta Magna.
Outras demandas também podem ser mencionadas, como a atuação proativa no
julgamento dos Mandados de Injunção – MI nº 670, 708 e 712, nos quais o desiderato
alcançou um resultado prático inesperado.
Em outro vértice, tem-se a intensa participação do amicus curiae e ocorrência de
audiências públicas nas atividades do STF, notadamente nos seguintes feitos, além daqueles
supra mencionados: ADPF nº 101, que dispõe sobre a importação de pneus; ADI nº 3.510, na
qual foi liberada a pesquisa de células tronco e ADI nº 4.810, ainda em curso, sobre a qual
argumenta-se à cerca de biografias não autorizadas.
Diante do exposto acima, a necessidade de um estudo sobre a atuação do Supremo
Tribunal Federal em correlação dos institutos de participação naquela Corte à luz dos
primados dos incisos II, V e parágrafo único do artigo 1º da Constituição Federal. Tem-se a
necessidade de verificar se as decisões judiciais refletem de, alguma maneira, aquilo que é
projetado da opinião pública para dentro do processo, na forma dos memoriais anexados e
sustentações realizadas, observando se a atuação daquele Tribunal considera as conjecturas
fáticas.
O objetivo deste estudo é fazer uma análise dos pressupostos jurídicos e filosóficos
em torno da atuação de amicus curiae, com intenção de observar as repercussões possíveis
deste instituto nas decisões do Supremo Tribunal Federal e aquilatar a influência da opinião
pública e da sociedade. Com isso será construída uma teoria sustentável que pode determinar
qual o grau de democracia e abertura realmente são efetivados no controle constitucional
pátrio, com a adoção ou não, pelos julgadores, daquilo que é consignado pelos interessados.
16
Para alcançar os objetivos propostos, será realizada investigação através de pesquisa
do tipo bibliográfica, procurando explicar o problema através da análise da literatura já
publicada em forma de livros, revistas, publicações avulsas e imprensa escrita, que envolva o
tema em análise.
O principal autor que será utilizado no decorrer da pesquisa é o filósofo alemão
Jürgen Habermas, consoante a teoria deste tratar sobre os pressupostos da democracia
deliberativa, encaixando tanto a temática da opinião pública quanto as características
procedimentais que devem ser assumidas pela jurisdição2.
Também se lançará mãos da pesquisa do tipo documental, através de projetos, leis,
normas, resoluções, julgados, pesquisas on-line, dentre outros que tratam sobre o tema,
sempre procurando fazer uso de material que ainda não sofreu tratamento analítico.
Na pesquisa jurisprudencial, será dada ênfase ao STF enquanto unidade de
compartimento para casos e exemplos. Serão mencionados julgados observando, de forma
comparada, eventuais argumentos utilizados pelos ministros para fundamentar suas decisões e
o conteúdo das manifestações realizadas pela sociedade civil por intermédio do amicus
curiae.
O método utilizado será o dedutivo, partindo de uma premissa maior para outra
menor, pretendendo-se alcançar uma conclusão verdadeira e dotada de validade científica.
Quantos aos objetivos, a pesquisa será explicativa, buscando compreender fenômenos, o
porque da ocorrência dos fato, sua natureza e suas características, e exploratória, procurando
aprimorar ideias, ajudando na formulação de hipóteses para pesquisas posteriores, além de
buscar maiores informações sobre o tema.
No que toca ao produto final pretendido com este trabalho, tem-se um estudo
normativo, pois irá tratar de situações ideias, traçando um parâmetro de uma atividade
jurisdicional verdadeiramente legítima, democrática e com amparo no discurso jurídico
proveniente da sociedade civil.
Em termos estruturais, o trabalho será dividido em três capítulos, os quais estarão
debruçados sobre a investigação das temáticas necessárias para realizar a empreitada
científica que se pretende. O primeiro capítulo irá examinar, com aporte na teoria de Jürgen
Habermas, qual é o papel desempenhado pela teoria do agir comunicativo na formação do
direito, da opinião pública e como ocorre a relação entre direito e sociedade.
2 O termo jurisdição é utilizado em acepção ampla, designando tanto a judicatura desempenhada pelo Supremo
Tribunal Federal quanto pela justiça comum.
17
No segundo capítulo, o trabalho almejará um apreciação do instituto amicus curiae,
tendo neste um possível instituto que conecta a opinião pública advinda da sociedade civil
com os órgãos jurisdicionais. Com isso, irá palmilhar a evolução do amicus curiae desde sua
origem no direito inglês e norte-americanoo até chegar na sua incorporação pelo direito
brasileiro, pretendendo sacar conclusões quanto as espécies de manifestação e seu potencial
de pluralização do debate jurisdicional.
Para o terceiro e último capítulo, a pesquisa reservará um espaço para dissertar sobre
a teoria do discurso jurídico e a legitimidade da jurisdição, destacando qual tratamento deve
ser dado pela jurisdição aos argumentos que partem da opinião pública e desembarcam pelo
canal possivelmente estabelecido pelo amicus curiae. Será enfatizada a ótica procedimental-
deliberativa, com incursões no Código de Processo Civil3 que demonstrarão de que maneira a
democracia deliberativa poderá ser adotada pelo direito brasileiro.
3 O estudo se refere ao Código de Processo Civil contido na Lei nº 13.105 de março de 2015.
18
2 DEMOCRACIA DELIBERATIVA: A TEORIA DO DISCURSO EM JÜRGEN
HABERMAS
A teoria da ação comunicativa tem como meta transformar a filosofia em uma teoria
crítica da sociedade utilizando-se da racionalidade. A gênese discursiva da atividade humana
leva há distinções no bojo do pensamento: são contrapropostos mecanismos de ação pautados
no interesse dos agentes; sistemas autorregulados e mundo da vida; ordenações morais e
jurídicas.
Habermas se afasta da filosofia da consciência e fundamenta sua obra na filosofia da
linguagem:
Enquanto os conceitos básicos da filosofia da consciência obrigarem a compreender
o saber exclusivamente como um saber sobre algo no mundo objetivo, a
racionalidade é medida pela maneira como o sujeito solitário se orienta pelos
conteúdos de suas representações e de seus enunciados. A razão centrada no sujeito
encontra sua medida nos critérios de verdade e êxito, que regulam as relações do
sujeito que conhece e age segundo fins com o mundo de objetos ou estado de coisas
possíveis. Em contrapartida, assim que concebemos o saber como algo mediado pela
comunicação, a racionalidade encontra sua medida na capacidade de os participantes
responsáveis da interação orientarem-se pelas pretensões de validade que estão
assentadas no reconhecimento intersubjetivo. A razão comunicativa encontra seus
critérios nos procedimentos argumentativos de desempenho diretos e indiretos das
pretensões de verdade proposicional, justeza normativa, veracidade subjetiva e
adequação estética.4
A crença de Habermas no potencial cognitivo ilumina as necessidades dos sujeitos
coletivos de praticarem a dinâmica linguística, dada a ineficiência da sociedade tradicional em
absorver toda a pluralidade e complexidade que permeiam o mundo contemporâneo. É por
esta razão pela qual a dissertação opta por tal teoria.
Neste capítulo serão analisados os pressupostos da teoria da ação comunicativa, no
escopo de compreender os atos comunicativos e sua influência na produção da vontade
política, na legitimidade do direito e, acima de tudo, como os institutos desta teoria podem
contribuir para se perceber o potencial político da opinião pública perante o Estado.
Ademais, a pretensão é elucidar os elementos textuais e palavras-chave para
compreensão do mencionado autor, facilitando a concepção do que vem a ser a democracia
deliberativa e sedimentando conceitos que futuramente serão manejados. Com este enfoque,
4 HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade. Trad. Luiz Sérgio Repa Rodnei Nascimento.
São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 437
19
procede-se a análise do uso da linguagem como porta de entrada no pensamento de Habermas,
observando a tensão entre “facticidade” e “validade”.
2.1 SOBRE O USO DA LINGUAGEM
Os atos de fala, enquanto unidade nuclear da teoria da comunicação, são o ponto de
partida para compreender os conceitos da democracia deliberativa. Portanto, para alcançar o
objetivo proposto neste estudo, é indispensável realizar uma breve pesquisa sobre o tema que
constitui a base da teoria de Jürgen Habermas.
Habermas entende que as ações em sentido estrito são “atividades não-linguísticas5
orientadas para um fim, através das quais um ator intervém no mundo, no escopo de realizar
fins propostos, empregando meios adequados”, enquanto a fala é o “ato através do qual um
falante gostaria de chegar a um entendimento com outro falante sobre algo no mundo”.6
A atividade não-linguística é incapaz de ser interpretada por si mesma, tendo em
vista que não contém elementos suficientes que permitam compreender as razões do agente.
Partindo de uma análise em terceira pessoa, o máximo que é possível é inferir algumas
suposições que não revelam com clareza o plano de ação ou qual o comando lhe deu origem.
Já os atos de fala7 viabilizam identificar com clareza qual o comando se pretende ver
atendido, pois a interpretação do conteúdo semântico é suficiente para despontar a intenção do
falante. A própria ação linguística dita o que deve ser feito de pronto, por isso que “as ações
linguísticas interpretam-se por si mesmas uma vez que possuem uma estrutura auto-
referencial.”8
5 Por atividade não-linguística, entende o autor por aquelas que são expressas na forma de ações no cotidiano,
como por exemplo, uma pessoa que se desloca de um lugar a outro, ou então alguém que utiliza um aparelho
telefônico no meio da rua. Ambos são exemplos que ilustram a impossibilidade de determinar quais as
motivações do agente para praticar tal ato. 6 HABERMAS, Jürgen. Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos. Trad. Flávio Beno Siebeneicheler. Rio
de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990. p. 65. Ainda sobre a distinção entre as ações, Habermas: “No entanto, a
partir do momento em que desejamos fazer uma distinção entre ação de entendimento e atividade orientada para
um fim, temos que levar em conta que a teoria da linguagem e a teoria da ação não atribuem o mesmo sentido ao
jogo teleológico da linguagem, [...] os mesmos conceitos básicos são interpretados de modos diferentes.”
(Ibidem.p. 67) 7 Habermas pontua que os “atos de fala não servem apenas para a representação (ou pressuposição” de estados e
acontecimentos, quando o falante se refere a algo no mundo objetivo. Eles servem ao mesmo tempo para a
produção (ou renovação) de relações interpessoais, quando o falante se refere a algo no mundo social das
interações legitimamente reguladas, bem como para a manifestação de vivências, isto é, para auto-representação,
quando o falante se refere a algo no mundo subjetivo a que tem um acesso privilegiado.” (HABERMAS, Jürgen.
Consciência Moral e Agir Comunicativo. Trad. Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
1989. p. 167) 8 HABERMAS, Jürgen. Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos. Trad. Flávio Beno Siebeneicheler. Rio
de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990. p. 67
20
Ademais, o caráter performático da linguagem depende do ouvinte largar mão da
postura passiva de observador e assumir conduta ativa, pondo em prática aquilo que lhe é dito
– não basta ouvir, é necessário concretizar o que é posto pelo proponente. Para isso é
imprescindível “falar a mesma linguagem” para assim “entrar no mundo da vida” que é
“compartilhado intersubjetivamente por uma comunidade linguística”.9
A linguagem comporta diversas funções de uso, classificadas de acordo com as
pretensões de sua utilização. A orientação dada pelo ator-falante define qual enquadramento é
pertinente ao emprego linguístico, podendo ser tanto comunicativo quanto não comunicativo,
a depender da finalidade almejada pelo ator.
O uso não comunicativo da linguagem está associado a uma pretensão representativa
que desconsidera qualquer assertiva do ouvinte quanto ao juízo de reconhecimento daquilo
que é dito. Necessariamente, o reconhecimento intersubjetivo – aquele em que um sujeito
compreende e aceita o que ouve de outro – requer que a linguagem esteja despida de sua
forma representativa e adentre no campo performático, configurando a forma comunicativa.
Sintetizando:
A racionalidade comunicativa, não se corporifica num processo de entendimento
mútuo fundado sobre pretensões de validade senão quando falante e ouvinte se
entendem (querem se entender) a respeito de algo no mundo numa atitude
perfomativa – voltada para segundas pessoas. A diferença em relação ao uso
linguístico não-comunicativo resulta do acréscimo de uma pretensão de validade
com a qual um falante confronta um ouvinte.10
O fim ilocucionário11
– aquilo que se pretende concretizar com o ato de fala12
–
depende da interpretação racional do ouvinte, cuja compreensão do postulado proferido traduz
o teor da fala como algo verdadeiro. Assim, o meio linguístico influi diretamente na
finalidade pretendida, pois será o condicionante para a efetiva interpretação pelo ouvinte,
tratando-se do único ambiente em que cooperação e assentimento livre são possíveis.
9 HABERMAS, Jürgen. Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos. Trad. Flávio Beno Siebeneicheler. Rio
de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990. p. 67 10
HABERMAS, Jürgen. Verdade e justificação: ensaios filosóficos. Trad. Milton Camargo Mota. São Paulo:
Loyola, 2004. p. 112 11
Diz Habermas que para ocorrência do acordo, o ouvinte precisa praticar o reconhecimento – ou aceitar – uma
pretensão de validez criticável – a qual seja possível manifestar ou não um grau de concordância. É que os fins
ilocucionários somente podem ser alcançados através da cooperação, consoante os ditames da casualidade –
encarada como liberdade de manifestar a aceitação ou não do postulado. (HABERMAS, Jürgen. Pensamento
pós-metafísico: estudos filosóficos. Trad. Flávio Beno Siebeneicheler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990.
p. 68) 12
John Austin conceitua atos locutórios – utilizados quando o falante quer dizer algo – e atos ilocutórios –
empregados por falante e ouvinte para concretizar algo no mundo. Habermas utiliza a terminologia de Austin,
porém, refuta o dualismo no sentido de que os atos ilocutórios possuem um conteúdo proposicional, pois “o
falante o realizada dizendo algo”. (Ibidem. p. 119)
21
Como o cerne dos atos de fala é direcionado ao entendimento mútuo, a análise
teleológica é “transmudana”, acontecendo em uma perspectiva de terceira pessoa perante ator
e ouvinte. O uso comunicativo da linguagem pode ter duas orientações distintas, uma para o
acordo e outra para o entendimento mútuo.
Os envolvidos na comunicação podem chegar a um “acordo no sentido estrito” ao
“aceitar uma pretensão de validade pelas mesmas razões”. Já o entendimento mútuo ocorre
quando “um vê o outro [...] tem sob circunstâncias dadas boas razões para a intenção
declarada”.13
Portanto, o entendimento mútuo encerra em sucesso ilocutório superficial, no qual o
ouvinte aceita a intenção dentro de “razões que são boas para ele”, sem contudo, permitir que
a proposta se sobreponha as suas “próprias preferências”. Noutras palavras, a concordância
decorre de motivos diferentes daquelas propagadas pelo ator-proponente, não havendo total
aceitação da proposta em sua essência.
Em contrapartida, o acordo14
pressupõe uma ampla aquiescência do pronunciamento,
pelas mesmas razões e mesmo ponto de vista do falante. Disso resulta o molde de um
“assentimento racionalmente motivado ao conteúdo de um proferimento” que “assenta-se
sempre em convicções comuns.” A “oferta de ato de fala só terá êxito se o outro aceita a
oferta nele contida”.15
Sobre a diferença entre acordo e entendimento mútuo:
O acordo [...] só é [...] alcançado se os envolvidos podem aceitar uma pretensão de
validade pelas mesmas razões, enquanto um entendimento mútuo acontece mesmo
quando um vê que o outro, à luz de suas preferências, tem sob circunstâncias dadas
boas razões para a intenção declarada, isto é, razões que são boas para ele, sem que
13
“Entendimento” [...] significa a união dos participantes da comunicação sobre a validade de uma
exteriorização; ao passo que “acordo” ou “consenso” [...] tem a ver com o reconhecimento intersubjetivo da
pretensão de validade que o falante une a uma exteriorização.” (HABERMAS, Jürgen. Teoria do agir
comunicativo: sobre a crítica da razão funcionalista. Volume II. Trad. Paulo Astor Soethe. São Paulo: WMF
Martins Fontes, 2016. p. 221) Por outro lado, quando Habermas diz que o entendimento é um conceito
normativo, se quer dizer que “este conceito funciona como uma espécie de “escala ideal” a partir da qual é
possível medir se um entendimento é efetivo/”verdadeiro” ou se é enganoso/”falso”. Os sujeitos capazes de falar
e agir não apenas buscam alcançar um entendimento entre si, mas devem ser capazes de distinguir um
entendimento efetivo ou “verdadeiro” de um entendimento enganoso ou “falso”. (SEGATTO, Antonio Ianni. A
tensão entre facticidade e validade. In: NOBRE, Marcos. TERRA, Ricardo. (Orgs.) Direito e Democracia: um
guia de leitura de Habermas. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 43) 14
“Visto que uma competição discursiva pelo melhor argumento almeja, por razões conceituais, acordo e não
compromisso, o resgate discursivo da pretensão de validade fica suspenso até o momento em que razões
independentes do ator tornam, em princípio, a pretensão de verdade racionalmente aceitável para todos os
envolvidos.” (HABERMAS, Jürgen. Verdade e justificação: ensaios filosóficos. Trad. Milton Camargo Mota.
São Paulo: Loyola, 2004. p. 113 15
HABERMAS, Jürgen. Consciência Moral e Agir Comunicativo. Trad. Guido Antônio de Almeida. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989. p. 165
22
o outro precise se apropriar delas à luz de suas próprias preferências.16
Em essência, o acordo depende da aceitação de um argumento pelo fundamento
comum. O motivo de concordância é compartilhado entre todos os agentes de fala, enquanto
que no entendimento mútuo, a adesão depende da ação proposta ser racional, atrelada as
circunstâncias factuais e exequível diante dos meios disponíveis.
O sucesso argumentativo, nesse caso, perpassa pela figura do ator, enquanto
propositor do argumento, já que incumbe a este agregar os ouvintes em torno da racionalidade
finalística daquilo que é sugerido. Assim, Habermas explica:
Para tal entendimento mútuo, a racionalidade teleológica assume um papel
importante. [...] o ouvinte tem boas razões de levar a sério o anúncio, ainda que, não
torne suas ações declaradas [...] se for o caso, aceita o anúncio como proferimento a
ser levado a sério pelas mesmas razões que o ator; mas, como se pressupõe, trata-se
de razões relativas ao autor, as quais demonstram que para ele e de seu ponto de
vista a ação anunciada é racional. [...] O que para o ator são boas razões para
intencionar uma ação são, para o destinatário, boas razões para não duvidar da
intenção dele.17
O que define se o resultado desembocará em um acordo ou um entendimento mútuo
se consubstancia no tipo linguístico a ser utilizado. “As expressões de vontade não incrustadas
em um contexto normativo” levam ao mútuo entendimento; já aqueles “atos ilocucionários
completos” é que estão orientados ao acordo.
2.2 DO AGIR ESTRATÉGICO PARA O AGIR COMUNICATIVO
Além da separação entre ações linguísticas e não linguísticas, Habermas também
diferencia o uso da linguagem pelo caráter finalístico. O agir humano será determinado de
acordo com o papel desempenhado pela linguagem, de modo que se esta for utilizada como
meio de transmissão de informações, se estará diante do agir estratégico18
.
Em contrapartida, se a linguagem servir como fonte de integração social, o agir
comunicativo se fará presente. As duas modalidades surgem quando “o ator só pode realizar
seus planos de ação de modo interativo, isto é, com o auxílio de uma ação (ou da omissão) de
16
HABERMAS, Jürgen. Verdade e justificação: ensaios filosóficos. Trad. Milton Camargo Mota. São Paulo:
Loyola, 2004. p. 113 17
Ibidem. p. 114 18
“No agir estratégico a constelação do agir e do falar modifica-se. Aqui as forças ilocutórias de ligação
enfraquecem; a linguagem encolhe-se, transformando-se num simples meio de informação” (HABERMAS,
Jürgen. Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos. Trad. Flávio Beno Siebeneicheler. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1990. p. 74)
23
um outro ator.”19
No primeiro caso, a coordenação das ações independe da linguagem, enquanto a
segunda operação está alicerçada na força consensual do entendimento linguístico. Deste
modo: “Ações de fala não podem ser realizadas com a dupla intenção de chegar a um acordo
com um destinatário sobre algo e, ao mesmo tempo, produzir algo nele de modo casual20
”.
Sobre o percurso do entendimento, Habermas:
[...] os participantes da interação unem-se através da validade pretendida de suas
ações de fala ou tomam em consideração os dissensos constatados. Através das
ações de fala são levantadas pretensões de validade criticáveis, as quais apontam
para um reconhecimento intersubjetivo. A oferta contida num ato de fala adquire
força obrigatória quando o falante garante, através da sua pretensão de validez, que
está em condições de resgatar essa pretensão, caso exigido, empregando o tipo
correto de argumentos.21
Assim, Habermas sedimenta a distinção entre agir comunicativo e agir estratégico22
.
O ato de fala provoca uma compreensão seguida de aceite no ouvinte, coordenando as ações
subsequentes, enquanto a ação estratégica se volta para a racionalidade teleológica do próprio
plano de ação23
.
No agir comunicativo, é o “consenso de fundo” que possibilita que o entendimento
ocorra nos planos gramatical e pragmático. Isto se dá quando o falante observa quatro
requisitos:
Ele deve expressar-se de uma maneira inteligível, deve querer entender-se com seu
interlocutor sobre algo no mundo, deve querer compartilhar com seu interlocutor
esse entendimento, firmando um compromisso com ele, e deve expressar-se de
maneira veraz. Tais requisitos configuram o que Habermas chama de pretensões de
validade levantadas por enunciado: a pretensão de inteligibilidade, a pretensão de
verdade (quanto ao conteúdo veiculado), a pretensão de justeza normativa (quanto
19
HABERMAS, Jürgen. Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos. Trad. Flávio Beno Siebeneicheler.
Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990. p. 129) 20
Ibidem. p. 71. A casualidade demonstra forte relevância na teoria de Habermas. Se o produto do ato ilocutório
ocorrer casualmente, sem necessidade de um discurso assentado na linguagem, o observador estará diante de um
ato - linguístico ou não - orientado pelo agir estratégico. Por via transversa, estando presente o uso da linguagem
– na via do convencimento – a fala terá projeção no agir comunicativo. Em miúdos, a casualidade é uma
expressão da liberdade que o ouvinte goza para aceitar ou não o pronunciamento do ator-falante. 21
Ibidem. p. 72 22
Uma elucidação sobre como o agir estratégico é operacionalizado pode ser encontrada no seguinte fragmento:
“Na medida em que os atores estão exclusivamente orientados para o sucesso, isto é, para as consequências do
seu agir, eles tendem alcançar os objetivos da sua ação influindo externamente, por meio de armas ou bens,
ameaças ou seduções sobre a definição da situação ou sobre as decisões ou motivos de seus adversários.”
(HABERMAS, Jürgen. Consciência Moral e Agir Comunicativo. Trad. Guido Antônio de Almeida. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989, p. 164) 23
Como diz Habermas, em última análise ambos os casos estão pautados por uma estrutura teleológica que se
resolve na execução de planos, porém, “o modelo estratégico da ação pode se satisfazer com a descrição das
estruturas do agir imediatamente orientado para o sucesso, ao passo que o modelo do agir orientado para o
entendimento mútuo tem de especificar condições para um acordo alcançado comunicativamente”. (Ibidem.
p.165)
24
ao comprometimento do falante com aquilo que enuncia) e a pretensão de
veracidade (quanto às intenções manifestadas pelo falante).24
Ou seja, o agir comunicativo é observado “quando os atores tratam de harmonizar
internamente seus planos de ação e de só perseguir suas respectivas metas sob a condição de
um acordo existente ou a se negociar sobre a situação e as consequências esperadas.”25
Fazendo conexão com a linguagem orientada ao entendimento mútuo e ao acordo, cada uma
desdobra em um tipo diferente de agir comunicativo26
.
Por carecer de pleno aceite, o entendimento mútuo forja o agir comunicativo fraco,
enquanto o acordo resulta em um agir comunicativo forte. Isso leva Habermas a afirmar o
seguinte:
No agir comunicativo em sentido fraco, os agentes se orientam apenas pelas
pretensões de verdade e veracidade; no sentido forte, eles também se orientam por
pretensões de correção intersubjetivamente reconhecidas. Nesse caso, pressupõe-se
não só livre-arbítrio, mas também autonomia no sentido de liberdade de determinar
a vontade própria com base em discernimentos normativos 27
Outra variação importante é entre o sucesso ilocutório e o sucesso perlocutório. O
sucesso ilocutório é restrito ao ouvinte e se caracteriza no “compreender e o aceitar de ações
de fala”28
, representando o ápice do entendimento perseguido pela fala. Por seu turno, o
sucesso perlocutório29
ocorre tanto no agir estratégico quanto no agir comunicativo e diz
respeito aos efeitos que vão para além do sucesso ilocutório e alcançam o mundo dos fatos.
Por fim, o sucesso ilocutório do agir comunicativo depende de que a proposição
esteja contextualizada de tal maneira que é possível ao ouvinte fazer um juízo de validade
normativa, de modo a aceitar ou não o conteúdo previamente proposto. Diferentemente do
agir estratégico, as pretensões de validade e aceitação são substituídas por sanções externas ao
24
SEGATTO, Antonio Ianni. A tensão entre facticidade e validade. In: NOBRE, Marcos. TERRA, Ricardo.
(Orgs.) Direito e Democracia: um guia de leitura de Habermas. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 44 25
HABERMAS, Jürgen. Consciência Moral e Agir Comunicativo. Trad. Guido Antônio de Almeida. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989, p. 165 26
Outra distinção feita por Habermas atine a diferença entre atos comunicativos e discurso: “Nos atos
comunicativos os sujeitos aceitam sem debate, pretensões de validade que formam o consenso básico. No
discurso os sujeitos se colocam comunicativamente, procurando debater e argumentar em torno de fundamentos
para as pretensões de validade”. (POLLI, José Renato. Habermas: agir comunicativo e ética do discurso.
Jundiaí: In House, 2013. p. 19) 27
HABERMAS, Jürgen. Verdade e justificação: ensaios filosóficos. Trad. Milton Camargo Mota. São Paulo:
Loyola, 2004. p. 118 28
HABERMAS, Jürgen. Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos. Trad. Flávio Beno Siebeneicheler.
Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990. p. 72-73 29
Sobre este item, Habermas enumera três formas de sucesso perlocutório: a primeira que resulta “do significado
do ato de fala”; uma segunda, que “não resulta do que é dito [...], mas que se põem de modo contigente,
condicionado através de um sucesso ilocucionário e cujos efeitos “podem ser declarados sem prejudicar o curso
da ação”; a terceira que ao contrário, a declaração do efeito pretendido obsta o curso da ação. (Ibidem. 73)
25
mundo da linguagem que hipoteticamente são capazes de assegurar o sucesso perlocutório
pretendido.
Ademais, o agir comunicativo é indissociável da racionalidade e do plano pragmático
da linguagem, pois as pretensões de validez devem ser resgatadas mediante as posições
assumidas pelo ouvinte e motivadas pela razão30
. No afã de guiar os consensos
comunicativos, a teoria do agir comunicativo resgata o “potencial gerador de entendimento da
linguagem”31
através do discurso para que as pretensões de validade desabrochem em algo
concreto no plano pragmático do mundo social.
Para ser perfectibilizado, o agir comunicativo demanda uma “situação ideal de fala”,
firmada em quatro pressupostos:
(1) Todos os potenciais participantes do discurso devem dispor de iguais chance de
proferir atos de fala, de tal modo que possam colocar questões e oferecer respostas
livremente. (2) Todos devem possuir igual chance de fazer interpretações,
afirmações, sugestões, esclarecimentos e justificações e problematizar as pretensões
de validade das mesmas, de modo que nenhum preconceito permaneça imune a
críticas. (3) São admitidos no discurso apenas os falantes que, enquanto agentes,
possuam igual chance de empregar atos de fala, ou seja, de expressas suas posições,
sentimentos e intenções. (4) São admitidos no discurso apenas os falantes que,
enquanto agentes, possuam igual chance de empregar atos de falas regulativos, ou
seja, de dar e recusar ordens, permitir e proibir, prometer e negar promessas etc.32
Isto posto, é a ação comunicativa que sedimenta o processo de cooperação entre os
sujeitos e verte a relação destes com as responsabilidades perante o mundo sistêmico. De mais
a mais, será analisado, na seção subsequente, como os falantes obtêm substrato interpretativo,
no mundo da vida, para realizar o juízo de validade intersubjetiva.
2.3 ENTRE O MUNDO DA VIDA, SISTEMAS E O DIREITO
Originalmente cunhado por Edmund Husserl, Habermas se apropria do termo
”mundo da vida”. Ao descrever o mundo da vida em Husserl, Habermas identifica a
perspectiva intersubjetiva compartilhada por “sujeitos e marcada por tradições comuns”. Com
efeito, é o mundo da vida que possibilita ao fenomenólogo tecer as suas observações, já cada
pessoa põe em si “o seu próprio eu transcendental” cuja existência só é possível no plural.
É o mundo da vida que rende sentido e validade ao mundo natural. É o comum entre
30
Ibidem. p. 124 31
POLLI, José Renato. Habermas: agir comunicativo e ética do discurso. Jundiaí: In House, 2013. p. 18 32
SEGATTO, Antonio Ianni. A tensão entre facticidade e validade. In: NOBRE, Marcos. TERRA, Ricardo.
(Orgs.) Direito e Democracia: um guia de leitura de Habermas. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 47
26
cultura, história e suas realizações.33
Todavia, Habermas se afasta do viés culturalista dado
pelo primeiro autor, consoante o exposto:
É sabido que Husserl trabalhou durante a sua última fase no conceito “mundo da
vida”, esforçando-se em explorar o solo daquilo que é imediatamente familiar e
inquestionavelmente certo. [...] Não vou me deter aqui no método de Husserl, nem
no contexto que cerca a introdução de seu conceito “mundo da vida”; eu me
aproprio do conteúdo material dessas pesquisas, estribando-me na idéia de que
também o agir comunicativo está embutido num mundo da vida, responsável pela
absorção dos ricos e proteção da retaguarda de um consenso de fundo. 34
Desta sorte, o teor material apreendido por Habermas vem do uso da linguagem que
permeia as interações sociais, de modo a estruturar a “práxis discursiva” que possibilita a
racionalidade intersubjetiva35
, pois: “Na medida em que os sujeitos que agem
comunicativamente se entendem a respeito de algo no mundo objetivo, eles se movem sempre
no horizonte de seu mundo da vida.“36
A introdução do mundo da vida na teoria habermasiana contribui para solucionar o
problema da integração social, pois serve como marco inicial – ou grau zero – da atividade
comunicativa, sendo, aliás, complementar ao próprio agir comunicativo. Como as interações
comunicativas residem no interior da sociedade, isto contribui para a contextualização dos
proponentes no fundo linguístico.37
O mundo da vida é contraposto aos sistemas autorregulados, os quais “prescindem da
interação entre sujeitos que se comunicam e que promovem uma racionalização e colonização
do mundo da vida”. Esses sistemas, então “presos aos interesses de domínio e de dinheiro –
que levam a patologia sociais graves” são responsáveis por privar o sujeito de sua
“individualidade crítica.”38
Sobre o conceito de mundo da vida em Habermas, pontua Marcelo Neves:
O mundo da vida no modelo habermasiano apresenta-se “como o horizonte em que
os agentes comunicativos movimentam-se”. Em outras palavras, consiste [...] no
“pano de fundo” [...] do agir comunicativo. Nesse sentido, o conceito de mundo da
33
HABERMAS, Jürgen. Textos e contextos. Trad. Antonio Ianni Segatto. São Paulo: UNESP, 2015. p. 65-66. 34
HABERMAS, Jürgen. Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos. Trad. Flávio Beno Siebeneicheler.
Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990. p. 86 35
Ao mundo da vida cabe a comunicação entre o “sistema de mundos” que os sujeitos compartilham. É o canal
que conecta o mundo do falante com o do ouvinte. Portanto: “o agir comunicativo depende de contextos
situativos que, de sua parte, representam recortes do mundo da vida concernentes aos participantes da interação”.
(HABERMAS, Jürgen. Teoria do agir comunicativo: racionalidade da ação e racionalização social. Volume I.
Trad. Paulo Astor Soethe. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2016. p. 485) 36
HABERMAS, Jürgen. Verdade e justificação: ensaios filosóficos. Trad. Milton Camargo Mota. São Paulo:
Loyola, 2004. p. 127 37
REPA, Luiz Sérgio. Direito e teoria da ação comunicativa. In: NOBRE, Marcos. TERRA, Ricardo. (Orgs.)
Direito e Democracia: um guia de leitura de Habermas. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 62 38
POLLI, José Renato. Habermas: agir comunicativo e ética do discurso. Jundiaí: In House, 2013. p. 15
27
vida apresenta-se como complementar ao de agir comunicativo. O mundo da vida
reproduz-se mediante a ação comunicativa, orientada para o entendimento
intersubjetivo. 39
É através do entendimento dos sujeitos40
que a abertura mundana advém da
linguagem, formulando o contíguo articulador das “pretensões de conhecimento”. Por
conseguinte: “A abertura linguística ao mundo encontra-se numa relação complementar com
as operações racionais dos sujeitos no mundo, quais são falíveis, mas capazes de
aprendizado.”41
Em Habermas, a abertura linguística é essencial para o mundo da vida, pois é neste
ambiente em que o agente do agir comunicativo está imerso e é “produto de tradições nas
quais ele está inserido, de grupos solidários aos quais ele pertence e de processos de
socialização e de aprendizagem, aos quais ele está submetido.”42
As relações intersubjetivas, tão caras para a vida em sociedade, dependem do mútuo
entendimento possibilitado somente pela linguagem43
, já que uma estrutura social não
consegue se perpetuar exclusivamente pelo agir estratégico sem deturpar sua própria essência.
Dito isso, é através do agir comunicativo que a sociedade se reproduz, ficando o agir
estratégico limitado as comunicações fracassadas.
Enquanto rede comunicativa, a sociedade se espraia pelo mundo da vida alocando na
cultura toda a construção interpretativa produzida. E é no processo de socialização que os
elementos que influenciam mutuamente44
a formação comunicativa - tanto em uma
perspectiva estrutural quanto conteudística – fiam o homem. Assim, “o mundo da vida
construído pelos membros [...] é coextensivo à sociedade. Ele submete todos os fenômenos
39
NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil. 3. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012.
p. 67 40
“A questão de saber em que sentido as formas de vida podem ser “racionais” volta a atenção para o processo
circular que se dá entre, de um lado, o saber de interpretação adiantado pela linguagem, o qual de forma mais ou
menos produtiva abre o acesso do mundo para uma comunidade linguística, e, de outro, os processos
intramundanos de aprendizado, mais ou menos inovadores, possibilitados por esse sabor e pelos quais se amplia
o sabor do mundo e se impulsiona a revisão do saber linguístico prévio.” (HABERMAS, Jürgen. Verdade e
justificação: ensaios filosóficos. Trad. Milton Camargo Mota. São Paulo: Loyola, 2004. p. 128) 41
Ibidem. p. 129 42
HABERMAS, Jürgen. Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos. Trad. Flávio Beno Siebeneicheler.
Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990. p. 95 43
Este papel da linguagem fica claro no seguintes fragmento: “Os atos de fala servem [...] à coordenação,
tornando possível um acordo racionalmente motivado entre vários atores [...] A coordenação da ação em geral
serve à integração social em um mundo da vida compartilhado intersubjetivamente pelos participantes.” (Idem.) 44
Acerca desta ideia de mútua influência, enquanto processo circular, o ator “é o iniciador, que domina as
situações por meio de ações imputáveis; ao mesmo tempo, ele também o produto das tradições nas quais se
encontra, dos grupos solidários aos quais pertence e dos processos de socialização nos quais se cria.”
(HABERMAS, Jürgen. Consciência Moral e Agir Comunicativo. Trad. Guido Antônio de Almeida. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989, p. 166)
28
sociais a uma interpretação cooperativa.”45
Essa construção comunicacional amealha as unidades formadoras da interpretação,
radicadas no processo de reprodução cultural e integração social que moldam as pessoas
enquanto elementos de um substrato social. A concepção do mundo da vida contém três
componentes: a cultura, a sociedade e a personalidade. Nos dizeres de Habermas:
Os componentes do mundo da vida – a cultura, a sociedade e as estruturas da
personalidade – foram conjuntas de sentido complexos e comunicantes, embora
estejam incorporados em substratos diferentes. O saber cultural está encarnado em
formas simbólicas – em objetos de uso e tecnologias, em palavras e teorias, em
livros e documentos, bem como em ações. A sociedade encarna-se nas ordens
institucionais, nas normas do direito ou nas entrançaduras de práticas e costumes
regulados normativamente. As estruturas da personalidade, finalmente, estão
encarnadas literalmente no substrato dos organismos humanos. Os elementos
encarnados desta maneira passam conteúdos semânticos, que também pode ser
dissolvidos e postos em circulação como moeda corrente da linguagem normal. 46
Já a cultura opera através da “reprodução cultural”47
, agindo na “dimensão semântica
de significações e conteúdos”; o que proporciona a “integração social”, enquanto “dimensão
do espaço social”48
e; finda na “socialização”, manifestada na “dimensão do tempo histórico –
da sucessão de gerações”.49
A transmissão cultural50
retroalimenta esse sistema – desenha o
homem e por ele é desenhada. Logo:
Para mim, cultura é o armazém de saber, do qual os participantes da comunicação
extraem interpretações no momento em que se entendem mutuamente sobre algo. A
sociedade compõe-se de ordens legítimas através das quais os participantes da
comunicação regulam sua pertença a grupos sociais e garantem solidariedade. Conto
entre as estruturas da personalidade todos os motivos e habilidades que colocam um
sujeito em condições de falar e de agir, bem como de garantir sua própria identidade.
45
HABERMAS, Jürgen. Teoria do agir comunicativo: sobre a crítica da razão funcionalista. Volume II. Trad.
Paulo Astor Soethe. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2016. p. 270 46
HABERMAS, Jürgen. Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos. Trad. Flávio Beno Siebeneicheler.
Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990. p. 98 47
“Graças à reprodução cultural do mundo da vida, as novas situações que emergem na dimensão semântica
podem ser conectadas aos estados de mundo existentes, pois ela garante a continuidade da tradição e a coerência
do saber, suficientes para a respectiva prática cotidiana.” (HABERMAS, Jürgen. Teoria do agir comunicativo:
sobre a crítica da razão funcionalista. Volume II. Trad. Paulo Astor Soethe. São Paulo: WMF Martins Fontes,
2016. p. 257) 48
“Na dimensão do espaço social, a integração social do mundo da vida assegura a conexão das novas situações
a estados de mundo existentes, ou seja, ela cuida para que haja a coordenação de ações por meio de relações
interpessoais legitimamente reguladas e pereniza a identidade dos grupos numa medida adequada à prática
cotidiana.” (HABERMAS, Jürgen. Teoria do agir comunicativo: sobre a crítica da razão funcionalista. Volume
II. Trad. Paulo Astor Soethe. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2016. p. 257) 49
NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil. 3. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012.
p. 70 50
Este, ademais, é o assento habermasiano: “toda a tradição cultural é simultaneamente um processo de
formação para sujeitos capazes de ação e de fala, os quais se formam no interior dela e que, por seu turno,
mantêm viva a cultura.” (HABERMAS, Jürgen. Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos. Trad. Flávio
Beno Siebeneicheler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990. p. 100)
29
51
A confluência entre os componentes do mundo da vida é feita pela linguagem52
,
fazendo com que cada um daqueles não seja visto como sistemas autônomos ou até mesmo
mutuamente condicionantes. Sobre a interação entre os mencionados elementos:
A reprodução cultural fornece esquemas de interação suscetíveis de consenso
(“saber válido”) no âmbito da cultura, elementos legitimadores para a sociedade e,
no que se refere à personalidade, padrões de comportamento eficazes no processo de
formação e metas educativas. [...] A integração social gera obrigações no âmbito da
cultura, relações interpessoais legitimamente reguladas para a própria sociedade e
pertinência social no que concerne à personalidade. [...] A socialização fornece
interpretações (para a cultura), é motivadora de ações em conformidade com as
normas (na sociedade) e fomenta as capacidades de interação, sendo determinante
para a construção da personalidade.53
Apesar do evidente caráter cíclico, o mundo da vida não fica engessado, afinal, é
possível a revisão das interpretações que nele estão depositadas. A história é fluída no espaço
temporal e constrói o substrato fático dos intérpretes. Pela mediação da linguagem, as
releituras se tornam possíveis no plano intersubjetivo, em que o entendimento sobre as novas
impressões adentra o mundo da vida, lhe renovando o conteúdo.
Portanto, a percepção de Ricardo Tinoco de Góes54
sobre Habermas é válida ao
reconhecer o “alargamento dos horizontes situacionais”. O mundo da vida cresce através das
novas interpretações, nas quais as “estruturas componentes do mundo da vida passam a servir
de base para a nova tematização”.
Como afirma o autor: “O resgate dos valores, tradições, vivências e experiências
contidos no mundo da vida, em sua dimensão cultural, encontra no paradigma da democracia
deliberativa o cenário ideal para uma prática argumentativa que preserve esse projeto de
construção social.“55
O mundo da vida termina sendo a fonte – e foz - da comunicação, tecendo o pano de
fundo que contextualiza as ações comunicativas. Nele toda a fenomenologia cultural e
histórica está depositada, trata-se do plano objetivo que produz as relações interpessoais e de
51
HABERMAS, Jürgen. Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos. Trad. Flávio Beno Siebeneicheler.
Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990. p. 96 52
Nesse sentido, o mundo da vida “se apresenta como um terreno vasto de experiências vividas das quais
surgem as questões, que depois serão tematizadas pelos atores sociais nas relações comunicacionais de que serão
partícipes.” (GÓES, Ricardo Tinoco de. Democracia Deliberativa e Jurisdição: a legitimidade da decisão
judicial a partir e para além de J. Habermas. Curitiba: Juruá, 2013. p. 70) 53
NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil. 3. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012.
p. 73 54
GÓES, Ricardo Tinoco de. Democracia Deliberativa e Jurisdição: a legitimidade da decisão judicial a partir
e para além de J. Habermas. Curitiba: Juruá, 2013. p. 72 55
Ibidem. p. 76
30
onde são extraídas as interpretações dialógicas.
Nele está tudo aquilo que os falantes compreenderam, aceitaram, enfim,
interpretaram dentro de um cenário argumentativo. É o mundo da vida, como afirma
Habermas, que:
[...] constitui, pois, o contexto da situação de ação; ao mesmo tempo, ele fornece os
recursos para os processos de interpretação com os quais os participantes da
comunicação procuram suprir a carência de entendimento mútuo que surgiu em cada
situação da ação.56
Ademais, o acordo dos envolvidos no processo comunicativo é alcançado a partir de
um “sistema de referências composto de exatamente três mundos”. O primeiro trata das
pretensões de validez, representado no “perspectiva do falante”, em que “um destinatário
aceita ou rejeita as pretensões de validez erguidas pelo falante”.
Nesse mundo, o enunciado formulado é avaliado como verdadeiro, o ato de fala
como correto e pertinente ao contexto normativo e a “intenção manifesta do falante é visada
como proferida”. Respectivamente, tem-se aí os pressupostos de “verdade”, “correção” e
“sinceridade”. No campo das pretensões de validade, a rejeição ocorre diante de um desses
três elementos, pelo postulado ser inverídico, incorrendo ou dissimulado. 57
O segundo plano compreende as “perspectivas de mundo”, concernindo aos usos
linguísticos possíveis, onde cada escolha vai apontar para uma perspectiva diferente. O falante
pode escolher os “modos cognitivo, interativo e expressivo do uso linguístico”, além dos
“atos de fala constatativos, regulativos e representativos”. Esta opção deve ser dirigida pela
questão que pretende ser debatida, se tratam de “questões de justiça, do gosto ou da expressão
pessoal”.58
Já o terceiro repousa na “compreensão descentrada de mundo”, que diferencia
mundo da vida e mundo, perfectibilizando a união entre as perspectivas formais dos mundos e
suas vinculações com aquelas dos papéis comunicacionais. É aqui que as “esferas daquilo
sobre o qual se pode alcançar em cada acordo falível” se desprendem do mundo da vida.
Na medida em que a diferença entre mundo da vida e mundo progride, ficam
aparentes a separação entre “obviedades inquestionadas, compartidas intersubjetivamente” e
“aquilo que têm defronte como conteúdos intramundanos constituídos de sua comunicação”.59
56
HABERMAS, Jürgen. Consciência Moral e Agir Comunicativo. Trad. Guido Antônio de Almeida. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989, p. 167 57
Ibidem. p. 167-168 58
Ibidem. p. 168 59
Ibidem. p. 169
31
Enquanto pano de fundo60
para a comunicação, o mundo da vida afasta o risco dos
dissensos que porventura emanem do agir comunicativo, pois demonstra um manto de
consensos61
que servem de norte para falantes e ouvintes. Por outro lado, a gestão deste risco
também é propiciada pelo direito, enquanto mediador do discurso, consoante será abordado
em seção posterior.
Na visão de Habermas, a relação de direito e agir comunicativo:
Em termos da teoria do agir comunicativo, o sistema de ação direito, enquanto
ordem legítima que se tornou reflexiva, faz parte do componente social do mundo da
vida. Ora, como este só se reproduz junto a cultura e as estruturas da personalidade,
através da corrente do agir comunicativo, as ações jurídicas formam o médium
através do qual as instituições do direito se reproduzem junto com as tradições
jurídicas compartilhadas intersubjetivamente e junto com as capacidades subjetivas
da interpretação de regras do direito. 62
E completa:
[...] o código do direito não mantém contato apenas como medium da linguagem
coloquial ordinária pelo qual passam as realizações de entendimento, socialmente
integradoras, do mundo da vida; [...] Nessa medida, a linguagem do direito pode
funcionar como um transformador na circulação da comunicação entre sistema e
mundo da vida, o que não é o caso da comunicação moral, limitada à esfera do
mundo da vida.63
Neste momento preliminar, o apontamento que pode ser feito é quanto ao direito ter
o papel de mediar o discurso, contudo, sem interferir no conteúdo deste. A integração e
estabilidade decorrem do direito atribuir validade às pretensões fáticas dos falantes, de modo
que estes são “autores e intérpretes” das normas.
Outra questão que deve ser mencionada, dentro do presente tópico, é a distinção de
sistema para o mundo da vida, nos termos da doutrina habermasiana. Nem sempre as
integrações sociais são regidas somente pelos discursos de pretensão de validade, pois:
60
Marcelo Neves observa que a construção do discurso passa pelo mundo da vida enquanto pano de fundo, razão
pela qual os agentes apresentam argumentos diante da pretensão de validade do postulado comunicativo, a qual
devem necessariamente fundamentar. Daí adverte que: “a racionalidade do mundo está vinculada à sua
diferenciação externa em relação ao sistema: este, ao tornar-se mais complexo, pode servir à reprodução material
daquele, contribuindo, assim, para a racionalidade do saber, a solidariedade dos membros da sociedade e
autonomia da pessoa.” (NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil. 3. ed. São Paulo: WMF
Martins Fontes, 2012. p. 76 – 77) 61
Habermas demonstra preocupação com esse tópico, como se vê no texto: “Todavia, o alto risco de dissenso,
alimentado a cada passo através de experiências, portanto através de contingências repletas de surpresas, tornaria
a integração social através do uso da linguagem orientado pelo entendimento inteiramente implausível, se o agir
comunicativo não estivesse embutido em contextos do mundo da vida, os quais fornecem apoio através de um
maciço pano de fundo consensual.” (HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade.
Volume I. Trad. de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. p. 40) 62
Ibidem. p. 112 63
Idem.
32
Sociedades modernas são integradas não somente socialmente, através de valores,
normas e processos de entendimento, mas também sistemicamente, através de
mercados e do poder administrativo. Dinheiro e poder administrativo constituem
mecanismos de integração social, formadores de sistema que coordenam as ações de
forma objetiva, como que por trás das costas dos participantes da interação.64
Esses contextos requerem uma estabilização específica e não ficam a sombra da
democracia deliberativa, já que o conflito das influências negativas advindas do sistema65
no
plano do agir comunicativo devem ser amortecidas ou suprimidas pois o sistema trata de
atores cujas pretensões são fundamentadas no agir estratégico, orientando para seu próprio
êxito, independente das consequências para os demais.66
Para Marcelo Neves67
, a diferença entre mundo da vida e sistema, está conectada
com agir comunicativo e agir racional, respectivamente. O agir comunicativo – e portanto o
mundo da vida – está conectado ao “entendimento intersubjetivo”, conquanto o agir
estratégico se direciona para o êxito individual perseguido pelo falante, dividindo-se em ação
instrumental e ação estratégica.
Esta distinção implica na ação instrumental compreender o uso de objetos para
“satisfação de interesses e necessidades humanas”, com base em “regras técnicas”. Por outro
lado, o agir estratégico aplica a “racionalidade instrumental às relações interpessoais”, com o
agente optando dentre os meios possíveis de “influenciar um adversário” em sua decisão.
Pela visão entregue por Habermas, o mundo da vida rege a integração entre cada um
dos falantes, planificando um fértil terreno comum para que a argumentação seja
desenvolvida. Tendo em vista esse elemento, a pesquisa segue para compreender a correlação
64
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Volume I. Trad. de Flávio Beno
Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. p. 61
Na verdade, os subsistemas do dinheiro e poder implicam um “descoplamento entre sistema e mundo da vida”, já
que os primeiros encaram o segundo como mero “ambiente” ou “mundo circundante”. (REPA, Luiz Sérgio.
Direito e teoria da ação comunicativa. In: NOBRE, Marcos. TERRA, Ricardo. (Orgs.) Direito e Democracia:
um guia de leitura de Habermas. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 67) 65
É curiosa a ponderação de Habermas sobre a teoria dos sistemas: “Na medida em que a teoria de sistemas não
presta sua contribuição específica de disciplina somente no interior do sistema científico, mas como suas
pretensões de universalidade ainda penetra no mundo da vida, ela substitui as convicções metafisicas de fundo
pelas metabiológicas. [...] Talvez a intersubjetividade linguisticamente gerada e o sistema fechado de modo auto-
referencial constituam temas para uma controvérsia que tome o lugar da desvalorizada problemática sobre a
relação espírito-corpo. (HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade. Trad. Luiz Sérgio Repa
Rodnei Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 534) 66
Além de pensar no direito como médium – figura a ser estudada no próximo item, Luiz Sérgio Repa pondera
um retorno a teoria hobbesiana para consolidar uma estabilidade entre mundo da vida e sistemas: “Uma solução,
até hoje paradigmática, seria aquela de Hobbes, em que o cálculo estratégico dos atores em um estado de luta de
todos contra todos levaria ao pacto social e, consequentemente, à submissão, de todos ao poder absoluto de um
só. Mas nesse caso se poderiam levantar as objeções de que, em primeiro lugar, se pressupõe nos atores uma
racionalidade que vai além daquela racionalidade com respeito a fins, já que toma como referência a satisfação
os interesses de todos os envolvidos, e que, em segundo lugar, é muito pouco provável que tal ordem artificial,
mantida exclusivamente por meio de sanções externas, se mantenha por muito tempo.” (Ibidem. p. 66) 67
NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil. 3. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012.
p. 75 - 76
33
entre discurso, direito e a formação da vontade política.
2.4 A DINÂMICA LINGUÍSTICA: DISCURSO E DIREITO COMO MECANISMOS DE
INTEGRAÇÃO
O mundo da vida, por si só, é incapaz de absorver todos os dissensos conteudísticos
que ocorrem em uma sociedades complexas, marcadas pelo pluralismo68
. Com isso:
o fardo da integração social se transfere cada vez mais para realizações de
entendimento de atores para os quais a facticidade (coação de sanções exteriores) e a
validade (força ligadora de convicções racionalmente motivadas) são incompatíveis,
ao menos fora dos domínios de ação regulados pela tradição e pelos costumes.69
Esse panorama pode levar tanto a uma ruptura da comunicação quanto ao retorno do
agir estratégico. Ao invés de valorar os fatos a partir de uma pretensão intersubjetiva comum,
há o risco dos atores optarem em interpretar os fatos por intermédio de experiências próprias,
deteriorando a comunicação perante a ausência de entendimento. Isto ocorre por conta do
percurso comunicativo, assim descrito por Neves:
Quando [...] as pretensões de validade sustentadas implicitamente em ações ou atos
de fala são problematizadas na interação concreta e exige-se justificação do
respectivo agente ou falante, entra-se no plano do discurso, no qual, [...] há
intercâmbio de argumentos. Então as próprias pretensões de validade que foram
problematizadas tornam-se o objeto ou tema da discussão e precisam ser
fundamentadas. 70
A passagem do nível da ação para o nível do discurso ocorre no momento em que as
pretensões de validade são rejeitadas e se procede a deliberação sobre as premissas racionais
adotadas pelo ouvinte para tanto. Tendo em vista a amplitude do mundo da vida, os dissensos
podem persistir até mesmo no plano argumentativo, já que cada proponente pode adotar
premissas ou visões de mundo diferentes.
Com o fito de mediar tais dissensos, Habermas aponta o direito, cujo “papel [...] é
[...] buscar compatibilizar num só nível de normatização mundos da vida fortemente
pluralizados e profanizados, nos quais há uma nítida tensão entre a facticidade e a validade de
68
“Quanto maior for a complexidade da sociedade e quanto mais se ampliar a perspectiva restringida
etnocentricamente, tanto maior será a pluralização de formas de vida e a individualização de histórias de vida, as
quais inibem as zonas de sobreposição ou de convergência de convicções que se encontram na base do mundo da
vida” (HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Volume I. Trad. de Flávio
Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. p. 44) 69
Ibidem. p. 45 70
NEVES, Marcelo. Entre Hidra e Hércules: princípios e regras constitucionais como diferença paradoxal do
sistema jurídico. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2014. p. 96
34
suas normas.”71
Na verdade, a dita tensão ocorre desde o âmbito linguístico, tendo em vista que os
fenômenos subjetivos são comparáveis aos objetos materiais quanto a sua objetividade. Ou
seja, os pensamentos são inalteráveis pela consciência – no sentido de força mental – da
mesma maneira que os objetos o são quando apreendidos pelo sujeito.
Ora: “pensamentos são objetivos, na medida em que apreendê-los não implica
reproduzir representações; mas eles não possuem realidade efetiva, na medida em que não
podemos ter deles percepções sensíveis”72
. É que as “condições de verdade” são destacadas
do contexto factual em que o proponente está situado, o que não quer dizer uma negativa
desta vinculação, pois a interpretação está condicionada às pretensões de validade, todavia, os
pensamentos são transcendentais e “verdadeiras para além do espaço, do tempo e da
consciência.”73
Partindo para além do conceito de Kant74
sobre o direito, Habermas identifica que a
legitimidade do direito decorre de um “processo legislativo racional” e que a validade social
depende da “fé dos membros da comunidade de direito na legitimidade”. Quando a norma
lança mão de sanções ou ameaças, tem-se uma “facticidade artificial” e sua legitimidade
depende da capacidade impositiva daquela.75
Aliás, as normas servem de baliza para o comportamento dos atores, na medida em
que “a regra constitui um empecilho fático na expectativa da imposição do mandamento
jurídico”, ficando claro para aquele que está orientado pelo sucesso próprio. Já quando a
intenção é o entendimento mútuo, a norma “amarra a “vontade livre” através de uma
pretensão de validade deontológica.”76
Por isso que as normas abrem dois caminhos linguísticos possíveis: objetivador, para
a primeira hipótese; ou performativo para a segunda. Como diz Habermas:
71
GÓES, Ricardo Tinoco de. Democracia Deliberativa e Jurisdição: a legitimidade da decisão judicial a partir
e para além de J. Habermas. Curitiba: Juruá, 2013. p. 82 – 83. 72
SEGATTO, Antonio Ianni. A tensão entre facticidade e validade. In: NOBRE, Marcos. TERRA, Ricardo.
(Orgs.) Direito e Democracia: um guia de leitura de Habermas. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 40 73
Ibidem. p. 41 74
Habermas faz seu corte metodológico a partir dos postulados de Kant, para quem a tensão entre facticidade e
validade é resolvida no âmbito da validade jurídica, com as normas sendo dotadas de coerção, cuja utilização
somente é autorizada para desobstruir o exercício da liberdade. Ademais, a integração social é provida por uma
lei geral de liberdade que serve de motivação racional para os destinatários do direito. (HABERMAS, Jürgen.
Direito e democracia: entre facticidade e validade. Volume I. Trad. de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. p. 48 – 49) 75
Ibidem. p. 50 76
Ibidem. p. 51
35
[...] para o que age estrategicamente, ela [a norma] se encontra no nível de fatos
sociais que limitam externamente o seu espaço de opções; para o que age
comunicativamente, porém, ela se situa no nível de expectativas obrigatórias de
comportamento, em relação as quais se supõe um acordo racionalmente motivado
entre parceiros jurídicos.77
Compete às “leis morais” 78
dar lastro às garantias de liberdades iguais de cada
indivíduo, condicionado a legitimidade do direito e a integração social ao processo de
legislação em que “os participantes [...] saem do papel de sujeitos privados do direito e
assumem, através de seu papel de cidadãos, a perspectiva de membros de uma comunidade
jurídica”79
. Pois a “positividade do direito vem acompanhada da expectativa de que o
processo democrático da legislação fundamente a suposição de aceitabilidade racional das
normas estatuídas.”80
O direito estabiliza os dissensos81
e proporciona a integração por meio das normas
que substituem “as convicções através das sanções, na medida em que libera os motivos que
acompanham a obediência às regras, porém impõe respeito.”82
Os destinatários ficam
impedidos de questionar a validade das normas, apesar de poder impor mudanças no próprio
processo de validação.
Partindo disto, Habermas diverge da ideia de uma “autonomia sistêmica do direito”
pois Niklas Luhmann não se preocupa com a obtenção de consenso, mas sim em transformar
as expectativas normativas dos atores em “meras exigências subjetivas”. É que elas vão
constituir uma “imagem exterior de aceitação geral”, neutralizando – e absorvendo assim – os
dissensos.83
Daí que os sujeitos se veem obrigados a aceitar o consenso procedimental sem terem
participado, efetivamente, da deliberação que contribuiu para sua formação. Isso se deve ao
fato de Luhmann compreender que a argumentação, por si só, não é uma “força racionalmente
77
Ibidem. p. 51 – 52 78
Marcelo Neves acerca do pensamento habermasiano: “No âmbito da tensão entre “faticidade” e “validade”, a
instrumentabilidade política do direito tem como contraponto a sua indisponibilidade moral. [...] o direito precisa
ser legitimado por procedimentos racionais, moralmente justificáveis. Esse modelo pode ser concebido como um
modelo de fundamentação. (NEVES, Marcelo. Entre Hidra e Hércules: princípios e regras constitucionais
como diferença paradoxal do sistema jurídico. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2014. p. 114) 79
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Volume I. Trad. de Flávio Beno
Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. p. 52 -53 80
Ibidem. p. 54 81
Habermas identifica duas estratégias comunicativas para lidar com o dissenso. A primeira é a circunscrição do
discurso em um plano inferior à abertura do agir comunicativo, no qual figuram as “certezas intuitivas
inquestionáveis por si mesmas. Assim ocorre uma “frenagem da mobilização comunicativa” e o “silenciamento
da crítica”. O segundo caminho é o da não-circunscrição ou liberação, que prolonga o discurso e depende do
auxílio do direito para obter êxito na “domesticação dos dissensos”. (Ibidem. p. 58 - 59) 82
Ibidem. p. 59 83
HABERMAS, Jürgen. Direito e Moral. Trad. Sandra Lippert. Lisboa: Instituto Piaget, 1999. p. 77
36
motivadora”, servindo tão somente para criar, para o jurista, uma “ilusão de não decidir
aleatoriamente.” 84
De outra banda, por adentrarem no código dos sistema jurídico, “conteúdos do
código da moral e do poder [...], o sistema jurídico não se encontra fechado.”85
Além disso, a
auto-referência, na apreciação de Habermas não evita que “interesses jurídicos”
insignificantes e “meras racionalização de interesses” penetrem a atividade jurisdicional.86
Com efeito, a “aceitação da ordem jurídica é distinta da aceitabilidade dos
argumentos sobre os quais ela apoia a sua pretensão de legitimidade.87
” Isto porque os
próprios cidadãos que participam da formação do direito, eis que “autorizam as regras
criadas” por meio da “formação livre de opinião e da vontade política”. Portanto:
O direito funciona como uma espécie de transformador, o qual impede, em primeiro
lugar, que a rede geral da comunicação, socialmente integradora se rompa.
Mensagens normativas só conseguem circular em toda a amplidão da sociedade
através da linguagem do direito; sem a tradução para o código do direito, que é
complexo, porém aberto tanto ao mundo da vida como ao sistema, estes não
encontrariam eco nos universos de ação dirigidos por meio.88
Tal ponto será aprofundado em momento posterior, porém, é possível sintetizar o
seguinte: o direito não obsta a comunicação, mantendo-a livre na formação de opiniões que
terão reflexo no campo político. A democracia e a legitimidade estão ligadas ao direito, que
não só media os discursos como também rege a tensão entre facticidade e validade. Dito isso,
a dissertação segue para as cenas do próximo item, tratando dos princípios do discurso e da
democracia.
2.5 AINDA SOBRE O DIREITO: PRINCÍPIO DO DISCURSO E PRINCÍPIO DA
DEMOCRACIA
Consoante o direito realizar a mediação dos discursos, aplacando assim os efeitos dos
dissensos, a próxima etapa deste percurso determina uma reflexão sobre a legitimidade do
direito e a operacionalização da democracia habermasiana. Inicialmente, Habermas refuta as
projeções de Rousseau quanto à legitimidade ser decorrente das “qualidades lógico-
semânticas das leis”, já que a “forma gramatical de mandamentos universais nada diz sobre
84
Ibidem. p. 78 – 79. 85
Ibidem. 86. 86
Ibidem. 86 – 87. 87
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Volume I. Trad. de Flávio Beno
Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. p. 59 88
Ibidem. p. 82
37
sua validade.”89
A partir disso, o discurso depende do direito – e o legitima – a partir da
institucionalização jurídica de um arranjo comunicativo que possibilite aos “parceiros do
direito” examinar as normas controvertidas ou obtenham a aquiescência dos demais. Isto
pressupõe que as “intuições normativas” não sejam reduzidas em interpretações de cunho
moral ou ético, devendo se afastar da “forma não reduzida” de sistemas dos direitos. De mais
a mais: “se discursos [...] constituem o lugar no qual se pode formar uma vontade racional, a
legitimidade do direito apoia-se, em última instância, num arranjo comunicativo.“90
Esse sistema é baseado em uma complementariedade91
entre a moral racional e o
direito positivo. Novamente, Habermas diverge de Kant, para quem o direito, por ser referir
ao “arbítrio dos destinatários; abrange a relação externa de uma pessoa com outra; e recebe a
autorização para a coerção, que um está autorizado a usar contra o outro, em caso de abuso”92
,
limita a moral nesses respectivos pontos93
.
Nesse prisma, Habermas nega a conjugação proposta por Kant de que o direito e
moral se copiam e defende uma “relação de complementação recíproca”. Ambos os campos
trazem questões que se debruçam sobre problemáticas semelhantes a partir de lentes distintas,
além de se separam nos níveis cultural e institucional: O direito opera no campo institucional,
enquanto a moral atine aos saberes culturais.94
A mencionada relação – quase que cíclica – se mostra relevante na medida que os
conteúdos morais podem apresentar tantas manifestações quanto forem comportadas por uma
sociedade pluralista, enquanto o direito, para realizar efetivamente a mediação, parte de uma
89
A justificativa dada por Habermas é que nem Kant e nem Rousseau conseguem revelar o paralelo entre
soberania do povo e o exercício da autonomia política, pois: “A pretensão segundo a qual uma norma é do
interesse simétrico de todos tem o sentido de uma aceitabilidade racional – todos os possíveis envolvidos
deveriam poder dar a ela o seu assentimento, apoiados em boas razões. E isso só pode evidenciar-se sob as
condições pragmáticas de discursos nos quais prevalece apenas a coerção do melhor argumento, apoiado nas
respectivas informações.” (Ibidem. p. 137) Ademais, “Ambas as concepções [de Kant e Rousseau] passam ao
largo da força de legitimação de uma formação discursiva da opinião e da vontade, na qual são utilizadas as
forças ilocucionárias do uso da linguagem orientada pelo entendimento, a fim de aproximar razão e vontade – e
para chegar a convicções nas quais todos os sujeitos singulares podem concordar entre si sem coerção. (Ibidem.
p. 138) 90
Idem. 91
“Eu penso que no nível de fundamentação pós-metafísico, tanto as regras como morais como as jurídicas
diferenciam-se da eticidade tradicional, colocando-se como dois tipos diferentes de normas de ação, que surgem
lado a lado, complementando-se.” (Ibidem. p.139) 92
Ibidem. p. 140 93
“A partir dessa limitação, a legislação moral reflete-se na jurídica, a moralidade na legalidade, os deveres
éticos nos deveres jurídicos, etc. Subjaz a essa construção a idéia platônica segundo a qual a ordem jurídica
copia, e ao mesmo tempo, concretiza no mundo fenomenal a ordem inteligível de um “reino dos fins”. (Idem.) 94
“No nível do saber cultural, as questões jurídicas separam-se das normas e éticas. No nível institucional, o
direito positivo separa-se dos usos e costumes, desvalorizados como simples convenções”. (Ibidem. p. 141)
38
construção distinta para garantir a lisura de suas normas.
Por isso que Habermas arremata com a máxima do princípio do discurso95
: “São
válidas as normas de ação às quais todos os possíveis atingidos poderiam dar o seu
assentimento, na qualidade de participantes de discursos racionais”96
.
Sobre o teor do postulado, “válidas” é referente a validade normativa – feita pelo
ouvinte – e “indiferente em relação à [...] moralidade e legitimidade.” “As normas de ação”
dizem respeito aos comportamentos projetados nos planos temporal e social. Por “atingindo”,
Habermas entende que são todos aqueles que serão provavelmente afetados pelas
consequências daquela norma. Já “discurso racional” é a prática discursiva realizadas sob
condições de livre comunicação, sem a influência de argumentos externos aos atos
ilocucionários.97
Habermas dita que “uma suposta república dos cidadãos forma o sistema de
referência para a fundamentação de regulamentações que são do interesse simétrico de todos”.
A participação de todos no processo construtivo das normas, sejam elas morais ou jurídicas, é
indispensável à legitimidade do direito e correção dos dissensos no mundo da vida.
Aliás, a própria comunidade política, a partir de suas particularidades, vai orientar o
“sistema de referência para a fundamentação de regulamentações que valem como expressão
de um auto-entendimento coletivo consciente.” O aceite dos argumentos tende a ocorrer na
medida em que aquela comunidade compartilha “tradições e valorações fortes”, pois:
[...] a totalidade dos grupos sociais ou subculturais imediatamente envolvidos forma
o sistema de referência para a negociação de compromissos. Esses têm que ser
aceitáveis, em princípio, e na medida em que se realizem sob condições de
negociação equitativas, por todos partidos e, em certos casos, levando em conta até
argumentos diferentes.98
Graças ao princípio do discurso99
, as questões cotidianas podem ser resolvidas
95
A função do princípio do discurso é explicar o ponto de vista em que as normas de ação podem ser
fundamentadas imparcialmente, já que há uma estrutura comunicativa de reconhecimento mútuo as formas de
vida. (Ibidem. p. 143). 96
Aqui, normas de ação gerais podem ser divididas em “regras morais e jurídicas”. Como diz Habermas: “Esse
princípio [...] tem, certamente, um conteúdo normativo, uma vez que explicita o sentido de imparcialidade de
juízos práticos. Porém ele se encontram num nível de abstração, o qual, apesar de conteúdo moral, ainda é
neutro em relação ao direito e à moral.” (Ibidem. p. 142) 97
Idem. 98
Ibidem. p. 143 99
Marcelo Neves identifica as diversas facetas assumidas pelo princípio do discurso quanto ao seu campo de
aplicação – moral, ético-político, pragmático e jurídico: “O discurso moral refere-se ao dever-ser universal. A
questão central diz respeito à aceitabilidade racional de uma norma por toda e qualquer pessoa [...] O discurso
pragmático destina-se a justificar os fins e os meios adequados à sua consecução. [...] O discurso ético-político
diz respeito à justificação do modo de vida que é “bom” para uma comunidade determinada. [...] A questão
ético-política refere-se a uma forma particular de vida; os participantes não têm, portanto, pretensão de
39
racionalmente, já que estarão sistematizadas da comunicação e arranjadas sob regras
argumentativas, a depender do nível – pragmático, ético ou moral – que a questão alcançar. 100
Para o campo jurídico101
, o princípio do discurso se desdobra no princípio da democracia e
provê substrato a este, pois o segundo “significa, com efeito, que somente podem pretender
validade legítima as leis jurídicas capazes de encontrar o assentimento de todos os parceiros
do direito, num processo jurídico de normatização discursiva.”102
Nos entremeios do princípio do discurso – então projetado como princípio da
democracia – que a formação do sistema de direitos é consolidada, consoante:
[...] o princípio da democracia deve apenas estabelecer um processo legítimo de
normatização, mas também orientar a produção do próprio medium do direito. Na
visão do princípio do discurso, é necessário estabelecer as condições às quais os
direitos em geral devem satisfazer para se adequarem à constituição de uma
comunidade de direito e possam servir como medium da auto-organização desta
comunidade. Por isso é preciso criar não somente o sistema dos direitos, mas
também a linguagem que permite à comunidade entender-se enquanto associação
voluntárias de membros do direito iguais e livres.103
Assim, a estrutura de direitos torna-se fundamentada pelo discurso na forma do
princípio da democracia consagra a realização discursiva, retirando o peso moral das
deliberações.
Não obstante, esse sistema implica em reconhecer as pessoas como portadoras de
“direitos em geral”, formulados nos termos da liberdade individual de cada um dos atores.
Isto significa que as “liberdades subjetivas inimputáveis individualmente”104
são
compatibilizadas pela lei pois assimilam a “liberdade comunicativa” que garante ao indivíduo
se posicionar quanto aos “proferimentos de um oponente e às pretensões de validade [...]
levantadas, que dependem de um reconhecimento intersubjetivo”105
.
universalidade, tal como ocorre no discurso moral”. (NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: uma relação
difícil. 3. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012. p. 119) 100
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Volume I. Trad. de Flávio Beno
Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. p. 144 101
No campo da moral, o princípio do discurso se apresenta na forma de um princípio de universalização,
preenchendo, enquanto princípio moral, o “papel de uma regra de argumentação”. Diferencia-se, pois, do campo
do direito, por operar em um patamar diferenciado e tratar do sentido performático, indo além de mera “regra de
argumentação para decisão racional morais” e pressupondo as possibilidades de “todas as fundamentações” de
“decisões racionais de questões práticas” serem realizadas discursivamente e na dependência da “legitimidade
das leis”. Por isso que o princípio moral está na faceta interna do jogo argumentativo, enquanto o da democracia
repousa na face externa, no nível de institucionalização que efetiva a “participação simétrica” no discurso. Não
obstante, a própria forma jurídica das leis requer um tratamento procedimental diferenciado, eis que são “normas
aplicáveis a si mesmas.” (Ibidem. p. 144 – 146) 102
Ibidem. p. 145 103
Ibidem. p. 146 104
De acordo com a autonomia privada, persiste até mesmo a liberdade do participante de se eximir da atividade
argumentativa, retirando-se do espaço público das “obrigações ilocucionárias recíprocas”. (Ibidem. p. 156) 105
Ibidem. p. 155
40
São as liberdades comunicativas que ensejam a vitória do melhor argumento, cujo
alicerce reside na “força racionalmente motivadora” intrínseca às pretensões de validade
deduzidas. Por outro lado, disto se forma um sistema de proteção às liberdades, de modo que
as liberdades subjetivas sejam iguais para todos: “A liberdade de cada um deve poder
conviver com a igual liberdade de todos, segundo uma lei geral.”106
Na verdade, “a teoria do discurso [...] simula um estado inicial que serve de ponto de
partida” no qual “pessoas [...] resolvem entrar, por si mesmas, numa prática constituinte”. É a
“liberdade do arbítrio” de cada cidadão que enseja a “igualdade originária” para formação da
tela de direitos. Daí existirem três condições essenciais: a) o interesse em regular
legitimamente a convivência pelo direito positivo; b) participação em discursos práticos
argumentativos; c) refletir sobre as tarefas que pressupõe o ato constituinte, transformando os
recursos performáticos em um tópico. 107
Com efeito, o direito positivo requer uma “gênese lógica de direitos” no sentido de
assegurar a legitimação do “processo de normatização” – ou elaboração de normas. Habermas
elucida que o princípio da democracia, enquanto concomitância do “princípio do discurso” e a
“forma jurídica” orienta o mencionado processo que inicia na institucionalização, pelo direito,
das condições necessárias para o exercício do discurso e encerra na “equiparação retroativa”
da autonomia privada, findando o dado princípio como “núcleo de um sistema de direitos”108
.
Dito isso:
[...] para se assegurar uma gêneses democrática aos direitos exige-se a interligação
do princípio do discurso com o que chamamos de forma jurídica, a conclusão inicial
é que existem direitos básicos que são originados dessa só interligação, isto é, do só
fato de reconhecer-se, previamente, que o princípio do discurso associado à forma
jurídica de base kantiana, é constitutivo de direitos que sempre estarão presentes,
independente do tipo de consenso a ser alcançado, ao final, pelo procedimento
discursivo.109
Os direitos básicos que compõem o núcleo do “código jurídico” resultam de uma
“base procedimental”, enquanto alguns dispensam a “formação consensual de uma vontade
posterior”110
. Tratam-se de direitos que nascem do discurso e servem de fonte para futuras
criações normativas, quadrando o marco regulatório para a regulação de convivência dos
cidadãos.
106
Ibidem. p. 157 107
Ibidem. p. 168 108
Ibidem. p. 158 109
GÓES, Ricardo Tinoco de. Democracia Deliberativa e Jurisdição: a legitimidade da decisão judicial a
partir e para além de J. Habermas. Curitiba: Juruá, 2013. p. 89 110
Idem.
41
Para o direito lograr êxito na integração social, é indispensável o sentimento pelo
cidadãos de reconhecimento mútuo enquanto destinatários da lei, capazes de obterem e
fazerem valer os direitos obtidos no procedimento discursivo.
Assim, Habermas identifica a existência das seguintes categorias de direitos111
:
(1) Direitos fundamentais que resultam da configuração politicamente autônoma do
direito à maior medida possível de iguais liberdades subjetivas de ação. (2) Direitos
fundamentais que resultam da configuração politicamente autônoma de status de um
membro numa associação voluntária de parceiros do direito; (3) Direitos
fundamentais que resultam imediatamente da possibilidade de postulação judicial de
direitos e da configuração politicamente autônoma da proteção jurídica individual.
(4) Direitos fundamentais à participação, em igualdade de chances, em processos de
formação da opinião e da vontade, nos quais os civis exercitam sua autonomia
política e através dos quais criam direito legítimo. (5) Direitos fundamentais a
condições de vida garantidas social, técnica e ecologicamente, na medida em que
isso for necessário para um aproveitamento, em igualdade de chances, dos direitos
elencados de (1) até (4). 112
São esses direitos que servem como viga para os demais direitos fundamentais, de
modo que “não existe nenhum direito legítimo sem esses direitos.” 113
A gênese dos demais
direitos perpassa pela interpretação pelo “legislador político”. Ademais, para Habermas, a
ideia de uma autonomia política suscita a liberdade e igualdade dos cidadãos, de modo que se
destaca “o nexo interno entre direitos humanos114
e soberania do povo115
”, bem como a
“legitimidade que surge da legalidade”.116
111
Acerca da estrutura desses direitos básicos: “não há uma diferença estrutural entre generalidade moral e
jurídica, pois do fato do direito se endereçar a um número indeterminado de pessoas, ainda que a membros
pertencentes a uma comunidade de um Estado, e da moral se endereçar a todos, não se segue que haja uma
diferença essencial, visto que tanto um quanto outra remetem à igualdade. O importante é que a justificação de
uma norma pela generalidade moral não lhe retira o caráter jurídico, não a transforma estruturalmente em norma
moral. Ou seja, a forma legal é preservada independentemente das razões que justificam as normas.” (DUTRA,
Delamar José Volpato. O conteúdo moral dos direitos básicos segundo Habermas. In: PINZANI, Alessandro;
LIMA, Clóvis Ricardo Montenegro de; DUTRA, Delamar José Volpatto. (Coord.). O pensamento vivo de
Habermas: uma visão interdisciplinar. Florianópolis: NEFIPO, 2009. p. 167) 112
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Volume I. Trad. de Flávio Beno
Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. p. 159 - 160 113
Ibidem. p. 162 114
Luiz Sérgio Repa identifica duas acepções possíveis para direitos humanos: “Ora a expressão diz respeito aos
produtos legais de uma codificação constitucional de direitos fundamentais, ora não se refere senão a pretensões
apenas moralmente fundamentadas, cuja obediência ou não no entanto, cabe somente à consciência moral
individual. É na primeira acepção que se deve contar a definição habermasiana de direito.” (REPA, Luiz Sérgio.
Direito e teoria da ação comunicativa. In: NOBRE, Marcos. TERRA, Ricardo. (Orgs.) Direito e Democracia:
um guia de leitura de Habermas. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 55) 115
No que toca a soberania, cabe às regras do direito – através do código jurídico – estabelecer quem são os
parceiros jurídicos e de que maneira vão exercitar a participação no Estado, já que “o status de membro forma a
base para a atribuição das posições jurídicas materiais que perfazem o status de um civil no sentido da cidadania.
Da aplicação do princípio do discurso resulta que cada um deve ser protegido da subtração unilateral dos direitos
de pertença; porém ele deve ter o direito de renunciar ao status de membro.” (HABERMAS, Jürgen. Direito e
democracia: entre facticidade e validade. Volume I. Trad. de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1997. p. 161) 116
Ibidem. p. 160
42
Não obstante, toda essa produção decorre – retornando ao ponto mencionado acima –
da relação co-originária117
entre direito e moral:
Entendemos [...] que o conteúdo moral presente nas normas de direito não lhe serve
como condicionamento prévio, que o subordina no sentido de sua validade. Do
contrário, esse conteúdo – o moral – é uma decorrência do discurso que se
desenvolve numa perspectiva universalista, destinada a estender seus efeitos a todos
os interessados e atingidos e, ao mesmo tempo, é uma resultante da participação,
sem coação, nos processos de discussão horizontalmente desencadeados, que
culminam na formação legítima de uma normatização discursiva.118
Sintetizando tudo exposto até o momento:
Na argumentação de Habermas está em questão a dificuldade de como conciliar os
seguintes elementos: o conteúdo moral dos direitos humanos, a democracia e a
forma jurídica. Sua tese é de que os direitos humanos passam a ser condições
formais da forma jurídica, a qual é o verso da medalha da coerção, já que o
característico do direito é o caráter positivo e impositivo.119
Outrossim, o exercício do princípio do discurso pelos cidadãos pressupõe a utilização
do código jurídico como parâmetro quanto a legitimidade do direito a ser criado no processo
de “auto-legislação”, sendo esta a função dos “direitos fundamentais legítimos à participação
nos processos de formação da opinião e da vontade do legislador”. Nestes trilhos, os direitos
políticos precisam certificar a “participação em todos os processos de deliberação e de decisão
relevantes para a legislação, de modo que a liberdade comunicativa de cada um possa vir
simetricamente à tona”120
.
O processo de juridificação das liberdades comunicativas, enquanto uso público da
fala, molda a formação da vontade política e da opinião, assegurando a legitimidade
procedimental daquilo que é pactuado. A plausibilidade é reposta na simetria dos direitos
políticos fundamentais que exigem a concepção discursiva da autonomia política e a
interligam com a autonomia privada.
Habermas destaca a necessidade de reciprocidade nas deliberações, sob pena de ruir
todo o sistema jurídico. As esferas liberdades são idênticas e asseguradas a todos pelo direito
117
Novamente a distinção entre Direito e Moral para Kant e Habermas: “[...] não há uma igualdade que
condicione, pela só forma jurídica, a previsão desses direitos de liberdade. Definitivamente, essa é uma diferença
drástica entre o pensamento de Habermas e o de Kant, pois a vinculação que este último realiza da liberdade
permitida à forma jurídica traz como efetivo inevitável a subordinação do Direito à Moral, algo que em
Habermas é absolutamente impossível de ser cogitado.” (GÓES, Ricardo Tinoco de. Democracia Deliberativa e
Jurisdição: a legitimidade da decisão judicial a partir e para além de J. Habermas. Curitiba: Juruá, 2013. p. 90) 118
Ibidem. p. 91 119
DUTRA, Delamar José Volpato. O conteúdo moral dos direitos básicos segundo Habermas. In:
PINZANI, Alessandro; LIMA, Clóvis Ricardo Montenegro de; DUTRA, Delamar José Volpatto. (Coord.). O
pensamento vivo de Habermas: uma visão interdisciplinar. Florianópolis: NEFIPO, 2009. p. 165 120
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Volume I. Trad. de Flávio Beno
Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. p. 164
43
e atêm as condições necessárias para garantia da liberdade e integridade dos cidadãos. Ora, a
reciprocidade é que contribui para a mediação das interpretações e (re)estruturações dos
direitos.
O uso performativo da autonomia política, canalizada nos sistemas de direito, resulta
no balanceamento entre as autonomias pública e privada121
, bem como da “tensão entre
facticidade e validade122
”, consoante depreende-se da reflexão abaixo:
Na explicitação da tese da co-originariedade entre liberdade pública e privada é
bastante patente a inter-relação e mesmo dependência daquela em relação a esta,
visto que esta cumpre a função de condição de possibilidade daquela quando se
estrutura a democracia sob a forma do direito. No entanto, não é flagrante a conexão
da liberdade privada em relação à pública, pois parece que a liberdade privada
conservaria um valor intrínseco, independente de possibilitar a formulação jurídica
da democracia. A dependência da liberdade privada em relação à pública concerne
mais à explicitação daquela e não propriamente à sua condição de possibilidade,
como parece ser o caso da liberdade pública que tem a liberdade privada como sua
condição de possibilidade. Assim, a necessidade da soberania popular decorre da
necessidade de formular adequadamente os direitos individuais e de distribuir
igualmente os direitos.123
O próximo tópico irá aprofundar a questão das autonomias pública e privada,
conforme será visto em sequência.
2.6 AUTONOMIA PÚBLICA, AUTONOMIA PRIVADA E AUTONOMIA POLÍTICA
A legitimidade do direito depende da equalização entre autonomia pública e privada,
já que o procedimento democrático expressa o pensamento intersubjetivo dos cidadãos. No
caso da obra habermasiana, o sistema de direitos “apresenta-se como conexão entre
autonomia interna e autonomia pública, ou seja, como direitos humanos e princípio da
soberania.”124
Mediante o discurso jurídico se interligam ambas as autonomias, dado que a garantia
dos direitos humanos depende de que a vontade estatal seja condicionada ao procedimento
democrático, o que implica na atenção ao princípio do discurso.
121
“De um lado, os sistema de direitos conduz o arbítrio dos interesses de sujeitos singulares que se orientam
pelo sucesso para os trilhos de leis cogentes, que tornam compatíveis iguais liberdades subjetivas de ação; de
outro lado, esse sistema mobiliza e reúne as liberdades comunicativas de civis, presumivelmente orientandos
pelo bem comum, na prática da legislação.” (Ibidem. p. 167) 122
Ibidem. p. 166 123
DUTRA, Delamar José Volpato. O conteúdo moral dos direitos básicos segundo Habermas. In:
PINZANI, Alessandro; LIMA, Clóvis Ricardo Montenegro de; DUTRA, Delamar José Volpatto. (Coord.). O
pensamento vivo de Habermas: uma visão interdisciplinar. Florianópolis: NEFIPO, 2009. p. 168 - 169 124
NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil. 3. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012.
p. 114 - 115
44
No campo semântico, a autonomia tanto pode dizer respeito a legitimidade do direito
enquanto a capacidade de autogoverno e auto-limitação da comunidade. A primeira trata da
interpretação liberal da autonomia, tida como materialização da proteção da vida privada dos
indivíduos, impondo limites de intervenção ao Estado nas vontades individuais. Góes afirma a
justificativa dessa “forma especial de conceber a autonomia é a necessidade de blindar a
esfera de atuação individual, suas escolhas e objetivos, contra uma tendência de
uniformização das forças de vida”. 125
Conquanto a segunda consubstancia a abordagem republicana, a qual se afasta da
noção que a liberdade individual pode sobrepujar o sentimento comunitário e as necessidades
coletivas. Por isso a liberdade individual é mitigada, neste contexto, em prol de uma
“exigência insista de solidariedade e de cooperação mútua entre as pessoas, de sorte a
escoimar qualquer possibilidade de que se comportem ao alvedrio do interesse alheio”126
.
A despeito da autonomia fundamentar o Estado Democrático de Direito, o conflito
que advém da tensão entre as interpretações liberais e republicanas do que vem a ser
autonomia leva Habermas a propor uma “reinterpretação” do termo, adequando-o a teoria do
discurso. Por isso que o autor não identifica uma concorrência per si ou uma possível
superioridade, em que uma visão se sobrepõe a outra.
Como identifica Felipe Gonçalves Silva:
Segundo Habermas, o liberalismo político se compromete a proteger uma esfera
privada da vida social na qual o sujeito deve ter a permissão de fazer o que deseja
sem interferência do Estado ou outras pessoas. [...] Caso não fosse permitido ao
sujeito individual viver como bem pretendesse em esferas de sua vida que
interessam somente a si mesmo, a diversidade de crenças e opiniões, os esforços e
iniciativas pessoais, a originalidade e espontaneidade correriam o risco de serem
sufocadas por uma homogeneidade forçada e pela adaptação passiva.127
Em percepção semelhante, Góes reconhece a proteção exclusiva à esfera privada,
pois persiste:
[...] a necessidade de blindar a esfera de atuação individual, suas escolhas e
objetivos, contra uma tendência de uniformização de vida, muitas vezes ditadas com
o beneplácito do poder público para atender interesses não conectados com o sentido
de liberdade pertencente a cada um.128
125
GÓES, Ricardo Tinoco de. Democracia Deliberativa e Jurisdição: a legitimidade da decisão judicial a
partir e para além de J. Habermas. Curitiba: Juruá, 2013. p. 93 126
Idem. 127
SILVA, Felipe Gonçalves. A solidariedade entre público e privado. In: NOBRE, Marcos. TERRA, Ricardo.
(Orgs.) Direito e Democracia: um guia de leitura de Habermas. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 95 128
GÓES, Ricardo Tinoco de. Democracia Deliberativa e Jurisdição: a legitimidade da decisão judicial a
partir e para além de J. Habermas. Curitiba: Juruá, 2013. p. 93
45
Daí que a teoria liberal clássica129
insiste na preservação da autonomia de vontade
individual, a qual deve ser blindada das intervenções estatais ilegítimas e abusivas. Em outras
palavras se estabelece uma “capa protetora” que divide o público do privado130
. Olhando pelo
prisma da história, tratou-se de uma época em que era inadmissível a interferência do Estado
na vida social tendo em vista os abusos outrora cometidos pelo absolutismo.
Felipe Gonçalves Silva assevera:
Segundo Habermas, a primazia dada pelos liberais à autonomia privada e a sua
consideração como esferas de liberdade afastadas do escrutínio público prejudicaria
diretamente a pretensão de autogoverno e atribuiria à autoridade política um papel
reduzido de vigilância contra eventuais intervenções nas relações privadas
existentes.131
De outra banda, a corrente republicana encastela a vontade coletiva como
desdobramento da soberania popular, de modo que se formam relações de interdependência
entre cada membro da comunidade. A liberdade sai de cena para ceder o palco a “participação
ativa no governo” e as “normas de ação a serem respeitadas coletivamente”.132
Isto posto, o pensamento liberal é rejeitado pelos republicanos, privilegiando a
coletividade, a solidariedade e a cooperação mútua em detrimento do individualismo: “O fato
constitutivo dessa comunidade já indica a impossibilidade mesma de que as vontades
individuais se consolidem sem uma direta interferência na vida do grupo”.133
Em outras palavras, a autonomia plena, para os republicanos, depende do interesse
nos assuntos políticos e engajamento nos processos formadores de vontade coletiva:
Para Habermas, o conceito de autonomia pública nasce da exigência republicana de
autogoverno, expressando a liberdade para a autodeterminação da vontade coletiva
por meio da qual uma comunidade política pode conceber de forma independente
suas próprias metas e aplica-las. Tal exigência se dirige ao combate de todo tipo de
coerção contra a soberania da vontade popular, a qual pode ser ameaçada tanto
externamente [...] como também internamente [...]134
Diante deste contexto, Habermas aponta para o conflito entre as correntes, que
129
A ênfase protetiva dos liberais fora direcionada a família e ao mercado enquanto “esferas da vida social
fundamentais à autoconservação do indivíduo”. A família incumbia proporcionar os “atributos físicos e
psicológicos da natureza humana” enquanto o mercado – e a propriedade privada – forneciam os meios de
subsistência através do trabalho humano. (SILVA, Felipe Gonçalves. A solidariedade entre público e privado. In:
NOBRE, Marcos. TERRA, Ricardo. (Orgs.) Direito e Democracia: um guia de leitura de Habermas. São Paulo:
Malheiros, 2008. p. 94 – 95) 130
Ibidem. p. 94 131
Ibidem. p. 96 132
Idem. 133
GÓES, Ricardo Tinoco de. Democracia Deliberativa e Jurisdição: a legitimidade da decisão judicial a
partir e para além de J. Habermas. Curitiba: Juruá, 2013. p. 93 134
SILVA, Felipe Gonçalves. A solidariedade entre público e privado. In: NOBRE, Marcos. TERRA, Ricardo.
(Orgs.) Direito e Democracia: um guia de leitura de Habermas. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 96 - 97
46
insistem em hierarquizar as autonomias como motivo de duas formas de autoritarismo: o
paternalismo das leis135
e a ditadura da maioria136
. Por isso que Habermas opta pela
compatibilização entre ambas as autonomias através do discurso já que o jogo de forças pode
ser encerrado com o reconhecimento da origem137
e dos fundamentos de cada uma:
O autor defende que é no discurso que as autonomias encontram suas origens, pois
não há como afastar da esfera da interlocução mediada pela linguagem o caráter
constitutivo dos dois tipos de liberdade especificamente protegidos, de parte a parte,
por cada uma delas.138
Consoante a ação comunicativa priorizar argumentação, participação discursiva e a
assertiva dos destinatários das normas, o exercício da comunicação no contexto de uma
situação ideal de fala, livre de influências extralinguísticas ajusta as vontades de todos os
participantes, pois todos contribuem para formação tanto da opinião quanto da vontade.
Segundo a teoria do discurso, a autonomia privada “implica na absorção da ideia de
igualdade como pressuposto para a liberdade comunicativa, ou seja, todos os participantes do
discurso devem contar com iguais oportunidades de participação discursiva”139
. Isso se reflete
na possibilidade do sujeito participar ou não dos debates e até mesmo agir estrategicamente.
É que na perspectiva habermasiana, a autonomia privada vai comportar uma
“liberdade de arbítrio” e outra “liberdade ética”. O arbítrio de “agir sem precisar prestar
contas ou justificar-se publicamente” ou a faculdade de “escolher as circunstâncias em que
fará um uso da linguagem voltado ao entendimento intersubjetivo acerca dos modos de vida
mais justificáveis para si mesmo”.
135
O paternalismo das leis decorrer da preponderância da autonomia privada defendida pelos liberais. O
paternalismo decorre da legislação “conhecer melhor que os próprios destinatários os espaços de ação
necessários à condução autônoma de suas vidas”. Em miúdos, fumina-se a vontade popular em prol da
privacidade em um viés conservador. (Ibidem. p. 98) 136
Já a ditadura da maioria é caracterizada pela exacerbação da autonomia pública, nos moldes republicanos,
que suprime a vontade das minorias, as quais são ignoradas no processo de formação da opinião política:
“Quando a defesa da liberdade de autogoverno vai tão longe a ponto de suprimir as liberdades de opinião e
vontade individuais, a autonomia pública acaba com a possibilidade de serem mantidas posições divergentes no
interior de uma mesma comunidade e obriga todos os seus membros a assimilar coercitivamente as posições
assumidas pela maioria vencedora dos embates políticos.” (Ibidem. p. 99) 137
Quanto a origem histórica, no vértice da filosofia, dita Habermas: “Os liberais acentuaram “as liberdades dos
modernos”, em primeira linha a liberdade de crença e consciência, bem como a defesa da vida, da liberdade e
propriedade pessoal, ou seja, o cerne dos direitos civis subjetivos; em face disso, o republicanismo defendeu as
“liberdades dos antigos”, quais sejam os direitos políticos de participação e comunicação que possibilitaram a
práxis autodeterminante dos cidadãos.” Naquilo que toca a compatibilização, complementa o autor: “Rousseau e
Kant tinham a ambição de derivar os dois elementos de uma mesma raiz, ambos como primordiais: nem se pode
simplesmente abafar os direitos básicos liberais da práxis autodeterminadora como sendo restrições externas,
nem se pode instrumentalizá-los em prol dessas mesmas restrições.” (HABERMAS, Jürgen. A inclusão do
outro: estudos de teoria política. Trad. George Sperber e Paulo Astor Soerthe. São Paulo: Loyola, 2002. p. 83) 138
GÓES, Ricardo Tinoco de. Democracia Deliberativa e Jurisdição: a legitimidade da decisão judicial a
partir e para além de J. Habermas. Curitiba: Juruá, 2013. p. 95 139
Idem.
47
Já a liberdade ética caracteriza a “liberdade para o indivíduo formular suas próprias
concepções de bem e integrá-las em narrativas pessoais tendentes à formação de sua
identidade”. 140
Em miúdos, a liberdade ética pode ser lida como a livre interação com os
elementos formadores do mundo da vida – cultura, sociedade e personalidade.
Ademais, quando se fala na autonomia privada orientando os três primeiros direitos
fundamentais previstos por Habermas e mencionados no tópico anterior, é também dessa
mesma autonomia que os valores morais são pinçados, de sorte que os constituintes
conseguem determinar o projeto estatal em torno daqueles, tendo a lume a essência humana e
sua dignidade.
São tais direitos que representam a “absorção da autonomia privada pelo plano
discursivo, sendo esta, por assim dizer, um pressuposto constitutivo da autonomia pública,
base conceitual prévia para a estruturação do conceito de autonomia política.”141
Em outro pórtico, a autonomia pública retrata a:
[...] dimensão de liberdade que complementa o sentido e o conceito de autonomia
privada, de modo a assegurar o ambiente de autogoverno, necessário à instituição de
garantias formais para a tutela dos direitos individuais a que se reporta a autonomia
privada.142
A autonomia pública faz a dita complementação pois conecta-se à necessidade de
consentimento dos destinatários das normas, pois irá dar substrato para liberar a comunicação
de qualquer ônus extralinguístico, formando assim a capacidade de autogoverno de um dado
povo. Assim, tem-se a reformulação da soberania popular como uma expressão procedimental
da autonomia pública. Como ilustra Felipe Gonçalves da Silva:
A “vontade popular” não pode ser tomada como uma grandeza empírica ante a qual
se testa a legitimidade de normas sociais pela sua capacidade em apresentar
correspondência ou adequações. Ao contrário, a legitimidade de normas jurídicas
aloja-se em procedimentos deliberativos nos quais as vozes de todos os concernidos
possam ser igualmente consideradas e a gênese da vontade coletiva possa ser
produzida segundo a livre aceitação dos melhores argumentos.143
Portanto, o sujeito de direito habermasiano compartilha suas experiências privadas
através do discurso, que por intermédio da autonomia pública formam a vontade popular,
prevalecendo as disposições que atenderem ao procedimento comunicativo e tiverem o aceite
140
SILVA, Felipe Gonçalves. A solidariedade entre público e privado. In: NOBRE, Marcos. TERRA, Ricardo.
(Orgs.) Direito e Democracia: um guia de leitura de Habermas. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 103 141
GÓES, Ricardo Tinoco de. Democracia Deliberativa e Jurisdição: a legitimidade da decisão judicial a
partir e para além de J. Habermas. Curitiba: Juruá, 2013. p. 96 142
Ibidem. p. 97 143
SILVA, Felipe Gonçalves. A solidariedade entre público e privado. In: NOBRE, Marcos. TERRA, Ricardo.
(Orgs.) Direito e Democracia: um guia de leitura de Habermas. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 108
48
de seus endereçados. Aliás, Habermas pondera justamente sobre as qualidades da cidadania e
relação entre as autonomias:
Os cidadãos são politicamente autônomos tão-somente quando podem compreender-
se em conjunto como autores das leis às quais se submetem como destinatários. A
relação dialética entre autonomia privada e pública só se torna clara por meio da
possibilidade de institucionalização do status de um cidadão como esse, democrático
e dotado de competências para o estabelecimento do Direito, e isso somente com o
auxílio do direito coercitivo. No entanto, porque esse direito se direciona a pessoa
que, sem direitos civis subjetivos, não podem assumir de forma alguma o status de
pessoas juridicamente aptas, as autonomias privada e pública dos cidadãos
pressupõe-se reciprocamente.144
É essa reciprocidade que leva a relação de complementariedade e co-originalidade
entre ambas autonomias: no ponto de vista do agir comunicativo, a autonomia privada origina,
através do discurso, os direitos fundamentais básicos, cujo conteúdo é desenhado pela
autonomia pública que guarnece a participação dos cidadãos no procedimento deliberativo.
Não obstante a teoria do discurso – e o direito – compatibilizarem ambas
autonomias, é por intermédio da fase “pré-constitucional” que os limites de cada um dos
âmbitos é esboçado e os princípios morais sãoelencados para, após submissão ao princípio da
democracia, formular os direitos que formarão toda a ordem jurídica.145
Ou seja, a autonomia política do cidadão decorre da co-originalidade entre
autonomias privada e pública. É como afirma Felipe Gonçalves Silva:
Caso os cidadãos pretendam regular legitimamente suas vidas por meio do direito, a
proteção da privacidade não pode ser produzida sem o devido esclarecimento e
convencimento públicos. E, igualmente, as decisões da vontade coletiva não pode
suprimir a livre formação da vontade individual, permitindo que toda configuração
concreta dos direitos que definem historicamente a autonomia pública e privada dos
cidadãos permaneça continuamente aberta a percepções críticas e reformulações
reflexivas.146
Tendo cumprido o caminho até agora percorrido, é possível perceber, a título de
conclusão parcial, que o direito guarnece as condições argumentativas essenciais ao agir
comunicativo, conciliando, neste arranjo comunicacional o direito de participar do Estado,
144
HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro: estudos de teoria política. Trad. George Sperber e Paulo Astor
Soerthe. São Paulo: Loyola, 2002. p. 86 – 87. 145
“A idéia da autonomia jurídica dos cidadãos exige [...] que os destinatários do direito possam ao mesmo
tempo ver-se como seus autores. E se o legislador constitucional democrático simplesmente encontrasse os
direitos humanos como fatos morais previamente dados, para então positiva-los e nada mais, isso estaria em
contradição com essa idéia. Não há como ignorar, por outro lado, que não cabe mais aos cidadãos a livre escolha
do medium em que eles mesmo podem tornar efetiva sua autonomia, no papel de co-legisladores. No processo
legislativo, os cidadãos só podem tomar parte na condição de sujeitos do direito; não podem mais decidir, para
tanto, sobre a linguagem de que se devem servir. A idéia democrática da autolegislação não tem opção senão
validar-se a si mesma no medium do direito.” (Ibidem. p. 293) 146
SILVA, Felipe Gonçalves. A solidariedade entre público e privado. In: NOBRE, Marcos. TERRA, Ricardo.
(Orgs.) Direito e Democracia: um guia de leitura de Habermas. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 112
49
bem como delimita os invólucros de proteção à esfera particular, de modo que um âmbito não
sobressaia o outro.
Ainda, o princípio da democracia provê legitimidade e validade para as normas
jurídicas elaboradas discursivamente, já que o direito instrumentaliza o próprio discurso, ao
conectá-lo com a soberania popular e os direitos humanos, o que aduz a reciprocidade das
autonomias pública, privada e política.
De posse das premissas acima, é chegada a hora de observar como a esfera pública
exerce sua práxis discursiva, de modo a identificar a processo de formação dos argumentos
projetados pelo mundo da vida.
2.7 ESFERA PÚBLICA, OPINIÃO PÚBLICA E O MODELO CIRCULATÓRIO DO
PODER COMUNICATIVO
O conceito de esfera pública realiza o fechamento de toda sequência estudada neste
capítulo. Trata-se de um elemento de significado variável, com origem no pensamento
iluminista. De acordo com Ricardo Tinoco de Góes, a esfera pública inicialmente representa a
“tutela ao princípio da liberdade a promover, segundo o seu lídimo expoente, o salto
qualitativo da menoridade para o que nomina de esclarecimento.”147
A noção de cidadania em Habermas é indissociável da concepção de uma “esfera
pública” enquanto arena de debates e deliberações políticas, na medida em que aquela funda
uma rede apta a transmitir os fluxos comunicacionais a partir da tomada de posições e
sedimentação argumentativa advinda do agir comunicativo e do entendimento mútuo.148
Neste sentido, a esfera pública reflete as mudanças e tensões ocorridas na sociedade,
servindo de força-motriz para influenciar a atividade parlamentar e a criação do próprio
direito. Com o surgimento de problemas e questões que afetam as conjecturas sociais, cabe
aos cidadãos, a partir da esfera pública, traduzirem esses temas de relevância política,
147
O mencionado autor promove um resgate da evolução histórica do termo. Consigna que para Immanuel Kant,
a esfera pública finda representando os “costumes privados de uma sociedade burguesa considerada
empiricamente que, por ser assim, afirmam-se ainda como essências de sua própria autonomia.” Em Rousseau, a
opinião pública advém de uma vontade geral, indissociável da relação entre sociedade civil e Estado, a despeito
de não ser fruto de vontades individuais. Por Hegel, a esfera pública nasce da “institucionalização promovida
pela burocracia reinante nesse mesmo universo. Habermas absorve todas essas influências para “contextualizá-la
no ambiente político predominante nas democracias ocidentais”. (GÓES, Ricardo Tinoco de. Democracia
Deliberativa e Jurisdição: a legitimidade da decisão judicial a partir e para além de J. Habermas. Curitiba:
Juruá, 2013. p. 99 – 101) 148
Deve ser tomada a seguinte advertência: ”A esfera pública [...] tem a ver com o espaço social gerado no agir
comunicativo, não com as funções nem com os conteúdos da comunicação cotidiana.” (HABERMAS, Jürgen.
Direito e democracia: entre facticidade e validade. Volume II. Trad. de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. p. 92.)
50
abrindo-se ao diálogo para a busca de uma solução concreta.
Deste modo, a “esfera pública retira seus impulsos da assimilação privada de
problemas sociais que repercutem nas biografias particulares”, eis que trata-se de um sistema
de negociação cooperativa alicerçado tanto nas interpretações pluralísticas possíveis para o
tópico quanto na tomada de posições, sejam favoráveis ou não. 149
Como explica Habermas, a esfera pública não é uma instituição ou organização per
si, tendo em vista que não corresponde a nenhuma estrutura normativa que faça a diferença
entre as competências dos falantes. Na verdade, aquele termo designa uma estrutura espacial
de encontros, geralmente identificadas pelas suas “metáforas arquitetônicas”, constituída pela
linguagem e aberta aos “parceiros potenciais do diálogo”.150
De outra banda, a esfera pública também não pode ser descrita como um sistema,
pois, os limites externos estão abertos ao horizonte do mundo da vida151
, pois como este, se
reproduz com o agir comunicativo, da linguagem natural e da compreensão comunicativa.152
Em outras palavras, a esfera pública é uma manifestação pública, baseada em um
processo comunicativo que conduz o assentimento acerca de uma determinada temática.
Enquanto processo público de comunicação, a esfera pública vai para além da simples
colheita de expressões individuais:
O assentimento a temas e contribuições só se forma como resultado de uma
controvérsia mais ou menos ampla, na qual propostas, informações e argumentos,
podem ser elaborados de forma mais ou menos racional. Com esse “mais ou menos”
em termos de elaboração “racional” de propostas, de informações e argumentos, há
geralmente uma variação no nível discursivo da formação da opinião e na
“qualidade” do resultado.153
149
Ibidem. p. 98 150
De acordo com Habermas, as metáforas arquitetônicas que podem ser empregadas: foros, palcos, arenas e etc.
Ademais, consigna o autor: “Além disso, as esferas públicas ainda estão muito ligadas aos espaços concretos de
um público presente. Quanto mais elas se desligam de sua presença física, integrando também [...] a presença
virtual de leitores situados em lugares distantes, de ouvintes ou espectadores, o que é possível através da mídia,
tanto mais clara se torna a abstração que acompanha a passagem da estrutura espacial das interações simples para
a generalização.” (Ibidem. p. 93) 151
No que cinge as correlações entre mundo da vida e esfera pública, Habermas pondera: “o mundo da vida é
um reservatório para interações simples; e os sistemas de ação de saber especializados, que se formam no
interior do mundo da vida, continuam vinculados a ele. Eles se ligam a funções gerais de reprodução do mundo
da vida (como é o caso da religião, da escolha e da família), ou a diferentes aspectos de validade do saber
comunicativo através da linguagem comum (como é o caso da ciência, da mortal, da arte). Todavia, a esfera
pública não se especializa em nenhuma destas direções; por isso quando abrange questões politicamente
relevantes, ela deixa ao cargo do sistema político a elaboração especializada. A esfera pública constitui
principalmente uma estrutura comunicacional do agir orientado pelo entendimento, a qual tem a ver com o
espaço social gerado no agir comunicativo, não com as funções nem com os conteúdos da comunicação
cotidiana.” Ou seja, a esfera pública é a expressão política das interpretações coletivas colhidas do mundo da
vida, advindas das situações ideais de fala e sob a égide das obrigações ilocutórias. (Ibidem. p. 92) 152
Idem. 153
Ibidem. p. 94
51
É neste instituto que a formação de uma vontade política154
irá ocorrer, servindo
como desdobramento para a autonomia política: se discutirão o conteúdo dos direitos a partir
da configuração discursiva, cujo produto cristalizado na esfera pública, será alavancado para o
crivo dos entes autorizados à produção normativa pela ordem jurídica.
Resgatando o princípio do discurso, é por intermédio da esfera pública que os
afetados pelas normas dão seu assento ao direito que se pretende legítimo. Se na fase pré-
constitucional o exercício da autonomia política é que dimensiona o conteúdo dos direitos
fundamentais, a produção legislativa infraconstitucional passará pelo filtro da esfera pública.
Enquanto “caixa de ressonância onde os problemas a serem elaborados pelo sistema
político encontram eco”, a esfera pública deve ser encarada como um “sistema de alarme
dotado de sensores não especializados, porém sensíveis no âmbito de toda a sociedade.” 155
É como observa Marcelo Neves:
De maneira mais abrangente, pode-se falar que, em Habermas, destaca-se a conexão
complementar e problemática de “poder comunicativo” e “poder administrativo”. O
poder comunicativo manifesta-se nos procedimentos democráticos de formação da
vontade estatal, que, além de incluir o processo eleitoral e legislativo, abrange o
discurso em vários níveis da esfera pública. Trata-se da tomada de decisões
vinculantes e da produção de normas jurídicas entre sujeitos orientados na busca do
entendimento. O poder administrativo corresponde à dominação legal-racional no
sentido weberiano. Habermas propõe que “o direito seja compreendido como o meio
de conversão do poder comunicativo em poder administrativo”. 156
O modelo de circulação de poder acima descrito coloca em contato os dois lados que
estão envolvidos na ação comunicativa: o núcleo do sistema político e as organizações
formadoras de opinião. O sistema político é composto pelo aparato estatal que preconiza a
formação democrática da opinião e vontade políticas – então manifestadas pelos
desdobramentos da soberania popular – a partir de mecanismos decisórios cujo processo
segue aberto às tematizações, questionamentos e fundamentações normativas.157
O sobredito sistema é organizado pelo direito, que regulamenta a incidência do poder
estatal, pois: “ele estabelece as competências normativas, as funções e atribuições dos entes
154
Vale a pena transcrever a descrição de Marcelo Neves: “O processo de formação racional da vontade política
implica uma conexão complexa entre o discurso pragmático, o ético-político, o moral, o jurídico e as
negociações reguladas procedimentalmente. Esse processo complexo explica “a aceitabilidade racional dos
resultados alcançados conforme o procedimento”. (NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: uma relação
difícil. 3. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012. p. 120) 155
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Volume II. Trad. de Flávio Beno
Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. p. 91 156
NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil. 3. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012.
p. 118 – 119. 157
NEVES, Raphael; LUBENOW, Jorge. Entre promessas e desenganos: lutas sociais, esfera pública e direito.
In: NOBRE, Marcos. TERRA, Ricardo. (Orgs.) Direito e Democracia: um guia de leitura de Habermas. São
Paulo: Malheiros, 2008. p. 252
52
governamentais, o processo de elaboração e aplicação das leis e a organização do aparelho
coercitivo do Estado.”158
Por sua vez, as organizações e associações formadoras de opinião reportam-se à
periferia da esfera pública e que possui o condão de “influir na formulação e implantação de
políticas”. São esferas públicas informais, estruturadas no mundo da vida e que absorvem as
demandas que podem ser levadas ao crivo do sistema político. Neste campo a importância do
direito consiste em assegurar as garantias fundamentais159
que proporcionam o exercício do
livre pensamento e das manifestações políticas.
O fluxo comunicativo parte da periferia das esferas públicas informais e desemboca
no sistema político, pois, como afirma Habermas:
[...] as decisões impositivas, para serem legítimas, têm que ser reguladas por fluxos
comunicacionais que partem da periferia e atravessam as comportas dos
procedimentos próprios à democracia e ao Estado de direito, antes de passar pela
porta de entrada do complexo parlamentar ou dos tribunais (e às vezes antes de
voltar pelo caminho da administração implementadora). Somente então é possível
evitar que o poder do complexo administrativo ou o poder social das estruturas
intermediárias que têm influência no núcleo central se tornem independentes em
relação ao poder comunicativo que se forma no complexo parlamentar.160
Complementando o fragmento acima:
Isso implica que o direito legitimamente produzido não é tão-somente o meio fático
de organização de poder, mas o médium através do qual o poder comunicativo se
transforma em poder administrativo. Os fluxos comunicativos que são gerados nas
esferas públicas informais da sociedade civil buscam formar uma opinião pública a
respeito de algum problema ou polêmica levantada inda no nível da periferia. Graças
à eclusas dos procedimentos próprios à democracia e ao Estado de direito, aquela
opinião pública pode tentar lutar por influência na esfera pública política e buscar
interferir no comportamento eleitoral das pessoas, na formação da vontade dos
complexos parlamentares, governos e tribunais.161
Em síntese, a esfera pública manifesta, através dos fluxos comunicacionais162
, o
158
Ibidem. p. 253 159
“Nesse nível, o direito é um elemento importante uma vez que são necessários direitos fundamentais, tais
como liberdade de reunião e de associação, liberdade de pensamento, incluindo-se aí liberdades de crença,
opinião, expressão, informação e imprensa, liberdades de locomoção, de sigilo de comunicação, dentre outros
direitos básicos, para que questionamentos e problematizações possam surgir dos grupos informais e associações
voluntárias da sociedade civil.” (Ibidem. p. 254) 160
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Volume II. Trad. de Flávio Beno
Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. p. 88 - 89 161
NEVES, Raphael; LUBENOW, Jorge. Entre promessas e desenganos: lutas sociais, esfera pública e direito.
In: NOBRE, Marcos. TERRA, Ricardo. (Orgs.) Direito e Democracia: um guia de leitura de Habermas. São
Paulo: Malheiros, 2008. p. 254 162
Além do fluxo comunicativo normal, Habermas prevê que situações extraordinária podem mudar as rotinas
do sistema político, de modo que as rotinas devem prevalecer aberta aos “impulsos renovadores oriundos da
periferia” e, em caso de conflito, um novo ditame operacional deve buscar uma solução para a problematização
imposta, sob os auspícios da atenção pública e nos limites do Estado de direito, preservando a relação entre os
poderes comunicativo, social e administrativo. (HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e
53
poder comunicativo, que entrelaça toda a sociedade civil, ligando-a ao sistema político,
fazendo com que a opinião seja formada pela vitória do melhor argumento, desenvolvido
procedimental e racionalmente.
Na teoria de Habermas, a esfera pública plural “é formada por setores politizados da
sociedade civil, em total afinidade com a discussão afeita às questões políticas, recebe
também [...] a transmissão dessa influência dissipada na sociedade civil.”163
Esse
pluralismo164
é marcado pela luta de influência política por diversos setores, tendo em vista
que por vezes surgem dissensos quanto às expectativas normativas de cada segmento.
Assim, existe uma diferença entre os papéis desempenhados pelos atores, enquanto
agentes racionais da comunicação pública, aptos a convencer a sociedade daquilo que deve
ser alcançado com a norma, fazendo-o na forma argumentativa. Outrossim, convém a
distinção entre os atores que ocupam uma esfera pública e aquelas que ingressam e participam
da negociação comunicativa.
Habermas vislumbra que grupos de interesse podem se apropriar de esferas públicas
para pressionar o sistema político, fazendo um agir estratégico orientado pelo sistema
poder/dinheiro, daquelas. A despeito de sua força transacional ser mitigada, tais grupos
podem, através das esferas públicas, realizar campanha em prol de seus interesses,
influenciando a convicção dos atores.165
Portanto, estão sujeitos às críticas, afinal, “as opiniões públicas podem ser
manipuladas, porém não compradas publicamente e nem obtidas a força”166
. Como a função
da esfera somente é realizada quando as experiências biográficas de cada uma das pessoas
privadas atingidas pelo alcance normativo, as manifestações daqueles grupos podem ser
validade. Volume II. Trad. de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. p. 89 – 90)
Nesse sentido: “é importante que a periferia disponha da capacidade de identificar e efetivamente tematizar
problemas latentes de integração social a fim de introduzi-los no sistema público pelas eclusas do parlamento ou
dos tribunais, quebrando a rotina.” (NEVES, Raphael; LUBENOW, Jorge. Entre promessas e desenganos: lutas
sociais, esfera pública e direito. In: NOBRE, Marcos. TERRA, Ricardo. (Orgs.) Direito e Democracia: um guia
de leitura de Habermas. São Paulo: Malheiros, 2008. p.255) 163
GÓES, Ricardo Tinoco de. Democracia Deliberativa e Jurisdição: a legitimidade da decisão judicial a
partir e para além de J. Habermas. Curitiba: Juruá, 2013. p. 103 164
“Além de plural, porque composta de diversas espécies de organizações predispostas ao debate e à
deliberação, a esfera pública caracteriza-se por sua heterogeneidade, tanto com referências àqueles que
diretamente participam da interlocução, enquanto falantes e ouvintes, como em sua relação de distintas naturezas
e origens, todos indistintamente contribuindo para a formação de uma opinião sujeita sempre a revisitações. Isso
se dá com a liberdade de articulação argumentativa, jamais restrita ao interior do grupo ou organização de que
partiram tais argumentos, aspecto que, em sentido inverso, poderia acarretar o apelo às iniciativas mais
compatíveis com o agir estratégico, típico dos movimentos intrassistêmicos.” (Ibidem. p. 103) 165
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Volume II. Trad. de Flávio Beno
Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. p. 96 - 97 166
Ibidem. p. 97
54
desviadas, fazendo prevalecer à verdadeira fundamentação argumentativa.167
Estruturalmente, a esfera pública habermasiana é composta pela sociedade civil,
localizada no pano de fundo do mundo da vida racionalizado, enquanto o Estado fica situado
no plano do poder e o mercado no da economia. A sociedade civil é formada por “associações
e organizações livres, não estatais e não econômicas, as quais ancoram as estruturas de
comunicação da esfera pública nos componentes sociais do mundo da vida”, dando “eco aos
problemas sociais que ressoam nas esferas privadas” e institucionalizando os “discursos
capazes de solucionar problemas, transformando-os em questões de interesse geral no quadro
das esferas públicas” e por fim, lançando-os para a “esfera pública política”.168
Para definir a estrutura interna da sociedade civil, Habermas adota o agrupamento
proposto por Jean Cohen e Andrew Arato:
(1) Pluralidade: famílias, grupos informais e associações voluntárias cuja
pluralidade e autonomia levam em conta uma variedade de formas de vida; (2)
Publicidade: instituições de cultura e comunicação; (3) Privacidade: um domínio de
autodesenvolvimento individual e escolha moral e (4) Legalidade: estruturas
necessárias de leis gerais e direitos básicos para demarcar a pluralidade, privacidade
e publicidade ao menos em relação ao Estado em certa medida, à economia. Juntas,
essas estruturas asseguram a existência institucional de uma sociedade civil
modernamente diferenciada.169
Toda a produção170
da esfera pública, enquanto sistema de negociação cooperativa,
provoca a construção argumentativa que, por intermédio da negociação cooperativa-
deliberativa, desenha um consenso cristalizado na opinião pública. Diz Habermas que a
opinião pública representa a síntese dos fluxos comunicacionais, que se condensam em
“opiniões públicas enfeixadas em temas específicos”171
167
Habermas pondera que além da religião, da arte e da literatura, são as esferas públicas privadas que possuem
estrutura e linguagem própria, o que contribui para sua disseminação e equilíbrio dos problemas sociais: “Os
problemas tematizados na esfera pública política transparecem inicialmente na pressão social exercida pelo
sofrimento que se reflete no espelho de experiências pessoais de vida. E, na medida em que essas experiências
encontram sua expressão na linguagem da religião, da arte e da literatura,a esfera pública “literária”,
especializada na articulação e na descoberta do mundo, entrelaça-se com a política”. (Idem.) 168
Ibidem. p. 99 169
NEVES, Raphael; LUBENOW, Jorge. Entre promessas e desenganos: lutas sociais, esfera pública e direito.
In: NOBRE, Marcos. TERRA, Ricardo. (Orgs.) Direito e Democracia: um guia de leitura de Habermas. São
Paulo: Malheiros, 2008. p. 256 - 257 170
Por tratar exclusivamente o presente estudo sobre os efeitos da opinião pública no âmbito jurisdicional, não
há necessidade de pormenorizar o funcionamento da esfera pública quanto à estrutura de negociação e as
eventuais barreiras. 171
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Volume II. Trad. de Flávio Beno
Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. p. 92
Além deste conceito, Habermas propõe ainda os seguintes desdobramentos: “A opinião pública assume
significados diferentes, dependendo de ser reivindicada como uma instância crítica em relação com a pluralidade
do exercício do poder político e social, exigida normativamente, ou ser colocada a serviço de pessoas e
instituições, bens de consumo e programas, como instância receptiva na relação com a publicidade difundida de
55
As opiniões enfeixadas advindas da esfera pública, nas palavras do autor, são
transformadas na opinião pública por meio do assentimento amplo. Portanto, se faz a
diferença entre opinião pública comunicativa daquela estática. A segunda espécie deriva do
agregado de opiniões individuais, manifestadas no âmbito privado dos sujeitos, enquanto a
primeira é fruto da formação de opinião e é precedida do processo deliberativo em um amplo
espaço público mobilizado.172
Em suma, a opinião pública legitima a influência do cidadão no sistema político, de
tal sorte que permite aos setores da sociedade civil informar qual a expectativa normativa
possuem, fornecendo uma previsão de suas necessidades. Ocorre que trata-se também do
âmbito material da norma, já que os argumentos indicam as nuances do tema que revestem a
convulsão social.
A opinião pública contribui para a manutenção do Estado e a legitimidade de sua
produção – legiferante e jurisdicional – de modo que as esperanças e ânsias do cidadão sejam
atendidas, respeitados os limites dos próprios direitos fundamentais, razão pela qual o fluxo
de poder comunicativo é indissociável do Estado Democrático de Direito.
Daí a importância de estudar o canal comunicativo entre opinião pública – em sua
faceta procedimental – e a jurisdição constitucional, nos termos do que é feito pelo instituto
denominado amicus curiae, objeto de estudo do próximo capítulo.173
modo demonstrativo e manipulador. Ambas as formas de publicidade competem na esfera pública, porém “a”
opinião pública é seu destinatário comum”. (HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural na esfera pública:
investigações sobre uma categoria da sociedade burguesa. Trad. Denilson Luís Werle. São Paulo: UNESP, 2014.
p. 487) 172
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Volume II. Trad. de Flávio Beno
Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. p. 94 173
Além disso, é importante jamais desistir do influxo comunicativo. Para Habermas os consensos não são
obrigatórios ou perpétuos – existe a mutabilidade interpretativa que decorre da retroalimentação do mundo da
vida. Porém, isto não é justificativa para que os falantes desistam de se entender. Por outro lado, ainda que a
teoria habermasiana encontre óbices de aplicação no Brasil, consoante a hipossuficiência do cidadão, também
não deve ser visto como um empecilho para que as comunicações comecem a ser realizadas. Trata-se muito mais
de um desejo do que uma simples crença. Como diz a música “Keep Talking “ do Pink Floyd: a sociedade só irá
chegar a algum lugar se começar a falar e souber manter o diálogo aberto.
56
3 O AMICUS CURIAE NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
Identificado o mecanismo de formação da opinião pública, a importância das esferas
públicas e a dinâmica argumentativa que acontece no mundo da vida, o estudo agora se
debruça sobre o instituto do amicus curiae, observado enquanto canal comunicativo que pode
ser feito entre a sociedade civil e os tribunais.
De início, será ofertada a doutrina de Peter Häberle, como antecedente teórico, a
partir da qual se falara sobre a abertura procedimental da jurisdição constitucional e do
paralelo existente entre este autor e o pensamento esboçado por Habermas. Após, será feita
uma breve análise do contexto histórico em que os amicii curiae passaram a intervir nas
cortes e como isto ocorreu nos sistemas jurídicos inglês e norte americano.
Fechado este momento introdutório, o trabalho passa a discorrer sobre o amicus
curiae no ordenamento jurídico brasileiro, elencando as primeiras formas de intervenção
processual até chegar à disposição dada pelo Código de Processo Civil. Aí serão elucidadas
questões de ordem técnica e processual, atinente à função, aos poderes, os deveres e ao ônus
que esta forma deve assumir para lograr êxito enquanto ator processual.
Vale salientar que são diversas as hipóteses de intervenção para o amicus curiae na
dinâmica processual brasileira, com as previsões espraiadas por várias legislações174
: Pela
Comissão de Valores Mobiliários – CVM - Lei nº 6.385/1976; no Controle de
Constitucionalidade – Lei nº 9.868/1999; no Incidente de Uniformização de Jurisprudência
dos Juizados Especiais – Lei nº 10.259/2001; pelas Pessoas Jurídicas de Direito Público da
União – Lei nº 9.469/1997; pelo Instituto Nacional de Propriedade Intelectual- IPNI – Lei nº
9.279/1996; Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE – Lei nº 12.529/2011;
pela Ordem dos Advogados do Brasil – OAB – Lei nº 8.906/1994; no Processo
Administrativo – Lei nº 9.784/1999; nas proposições de Súmula Vinculante – Lei nº
11.417/2006; no Incidente de Inconstitucionalidade, na Repercussão Geral dos Recursos
Extraordinários e nos Recursos Repetitivos – Lei nº 13.105/2015 (Código de Processo Civil).
174
Essas hipóteses são listadas por Fernando Gabriel de Carvalho e Silva. (SILVA, Fernando Gabriel de
Carvalho e. Amicus Curiae no novo código de processo civil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016. p. 26 – 32)
De igual maneira, a obra de Cássio Scarpinella Bueno contém farto rol de hipóteses interventivas, contudo, o
presente trabalho não pretende exaurir todas as hipóteses previstas em lei e nem as detalhar, se servindo das que
foram elencadas como exemplos. A despeito disto, algumas das possibilidades de intervenção do amicus curiae
serão brevemente estudadas no decorrer do capítulo.
57
3.1 ANTECEDÊNTES TEÓRICOS: DA FORÇA NORMATIVA DA CONSTITUIÇÃO A
SOCIEDADE ABERTA DOS INTÉRPRETES
A temática da sociedade aberta tem como ponto de partida os conceitos de Konrad
Hesse, servindo a obra de Peter Häberle como continuidade das proposições daquele autor. Já
a proposta de Hesse, no que tange a força normativa da Constituição, tem sua gênese em um
diálogo deste autor com Ferdinad Lassale.
Assim, para dar mais consistência ao estudo, será iniciada uma breve passagem,
dando um panorama sobre as obras de ambos os autores acima mencionados. Iniciando com
Ferndinad Lassale, é necessário atentar para a termologia utilizada naquilo que é denominado
de análise sociológica da Constituição sob a ótica dos fatores reais de poder.
O termo “fatores reais de poder” representa todos os fragmentos e estratos sociais
cuja presença é indispensável para a Constituição, guiando a produção legislativa para que
fique condizente com as próprias nuances da sociedade. Trata-se da base que fundamenta o
direito público: “Os fatores reais do poder que regulam no seio de cada sociedade são essa
força ativa e eficaz que informa todas as leis e instituições jurídicas da sociedade em apreço,
determinando que não possam ser, em substância, a não ser tal como elas são.”175
Ao observar a sociedade prussiana de seu tempo, Lassale enumera os fatores reais de
poder como sendo a monarquia, a aristocracia, a grande burguesia, os banqueiros, a pequena
burguesa e a classe operária. Cada um desses grupos tem uma força política que impõe
condições particulares que devem ser respeitadas pela Constituição.
Na verdade, a função da Constituição, em seu viés sociológico, seria o de transcrever
os fatores reais de poder, transformando-os em fatores jurídicos:
Essa é, em síntese, em essência, a Constituição de um país: a soma dos fatores reais
do poder que regem um país. [...] Juntam-se esses fatores reais do poder, escrevemo-
los em uma folha de papel, dá-se-lhes expressão escrita e a partir desse momento,
incorporados a um papel, não são simples fatores reais do poder, mas sim verdadeiro
direito, nas instituições jurídicas e quem atentar contra eles atenta contra a lei, e por
conseguinte é punido.176
175
LASSALE, Ferdinand. O que é uma Constituição? Trad. Walter Stönner. São Paulo: Edições e Publicações
Brasil, 1933. p. 17 176
Ibidem. p. 30
58
Ao serem escritos na folha de papel, os fatores reais de poder são afirmados como o
verdadeiro direito, cuja força ativa sublima e subjuga toda a produção legal, já que tais
instituições edificaram a civilização em análise como tal.177
Lassale compreende a existência de duas Constituições: uma real e outra escrita. A
primeira é consubstanciada em todos os fatores reais de poder que são responsáveis por
governar os rumos políticos de uma sociedade, enquanto a segunda é uma folha de papel que
deve corresponder aos fatores reais de poder, sob pena de não ter valor algum.178
A concepção da Constituição real não é definida por um poder estático, mas sim pela
capacidade de organização. Daí que qualquer poder, mesmo que fraco, ao se organizar, é
capaz de controlar um outro poder desorganizado, ainda que este segundo seja mais forte que
o primeiro.179
A durabilidade da Constituição escrita se liga à correspondência das nuances
impostas pela Constituição real. Qualquer divergência implica na perda da eficácia jurídica
por parte da Constituição escrita, o que leva a eficácia desta depender de “raízes nos fatores
de poder que regem o país”180
.
O epítome do pensamento exposto por Lassale culmina na impossibilidade de existir
partidos políticos que preguem o respeito à Constituição, tendo em vista esta ser invulnerável.
Caso isso ocorra, significa a decadência do texto constitucional, havendo de resultar na
liquidação da constituição escrita, prevalecendo, novamente, os fatores reais de poder.181
Fazendo um contraponto a teoria de Lassale, Konrad Hesse disserta que a realidade
fática não pode se sobrepor ao texto constitucional, sob pena de negar a própria Constituição.
Situado em um período histórico diverso, Hesse complementa a teoria de Lassale, tendo em
vista que partem de substratos fáticos distintas.
Em Hesse, a Constituição não se resume a um mero texto jurídico distante da
realidade concreta. Se Lassale alega que a Constituição se torna uma folha de papel na medida
em que a norma constitucional se afasta da realidade, Hesse compreende que texto e
sociedade são indissociáveis, e complementares entre si, já que não é consagrado a nenhum
desses dois elementos autonomia suficiente para serem separados.182
177
LASSALE, Ferdinand. O que é uma Constituição? Trad. Walter Stönner. São Paulo: Edições e Publicações
Brasil, 1933. p. 19 178
Ibidem. p. 39 179
Idem 180
Ibidem. p. 52 181
Ibidem. p. 61 182
HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio
Antonio Fabris Editor, 1991. p. 14
59
A manutenção da uma unidade política por intermédio do estabelecimento de uma
ordem jurídica é a principal tarefa da Constituição:
[...] Estado e poder estatal não podem ser pressupostos como algo encontrado. Eles
ganham realidade somente na medida em que dê certo unir a pluralidade de
interesses, aspirações e modos de comportar-se, existentes na realidade da vida
humana, para atuação e atividade uniforme, formar unidade política.183
A unidade política e o Estado nascem da “atuação humana, então a dação dessa
atuação inclui a necessidade de organizar a colaboração que deve conduzir a formação da
unidade política e na qual deverão ser cumpridas tarefas estatais.”184
Como essa necessidade é perene, se torna imprescindível que a organização seja feita
a partir de um procedimento não discricionário, sendo esta a função da ordem jurídica:
ordenar – e possibilitar – a vida em sociedade.
Apesar de não se confundir com o processo cultural a ponto de influencia-lo, a
Constituição detém uma função integradora a fim de orientar o percurso e o desenvolvimento
cooperativo, evitando assim o esfacelamento da unidade social em face das divergências
políticas.185
Em outro vértice, a organização estatal pela Constituição dá-se com o fito de prover a
mínima normatização para que o Estado desempenhe suas funções, tendo o direito como
parâmetro, até mesmo para impedir o abuso das competências.
Ademais, a Constituição detém uma função de diretriz jurídica, eis que dota os
direitos fundamentais de força vinculante, visando tanto à união em torno de um valor quanto
delinear o marco moral186
a ser seguido pelo ordenamento:
Não se trata tanto de limitar um poder estatal absoluto, que viesse historicamente
dado, mas de constituir um poder previamente limitado, democraticamente legítimo,
e de manter sua virtualidade e sua eficiência no processo político regulado. Trata-se,
ademais, de garantir eficazmente, sob as condições atuais, a liberdade e uma vida
digna. Para isso, junto a normas de organização, necessita-se também na
Democracia dos direitos fundamentais como direitos de defesa frente às
intervenções estatais.187
183
HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha. 20 ed. Trad.
Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998. p. 29 184
Ibidem. p. 35 185
A função da Constituição, fazendo uma habermasiana, é aplacar os dissensos culturais, emanados do mundo
da vida, enquanto matriz comum a todos. Antes de assumir uma identidade cultural própria, o sujeito detém um
papel como cidadão, razão pela qual ele está em relação de co-originalidade com o texto constitucional. 186
O fato da Constituição conter os postulados morais tem a ver com a atividade da autonomia política dos
cidadãos, tratada no item 2.6. É possível pensar o conteúdo da Constituição como fruto direto do acordo feito
entre os cidadãos quanto aos direitos essenciais que devem regem sua sociedade, daí falar na função de
integração da Constituição: ela condensa o máximo de consenso comunicativo que pode ser alcançado em uma
sociedade racional. 187
HESSE, Konrad. Temas fundamentais do Direito Constitucional. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. São
Paulo: Saraiva, 2009. p. 44
60
E mais:
Faz-se cada vez mais necessário coordenar as distintas esferas de liberdade
suscetíveis de entrar em conflito. E, finalmente, dependerá de que a liberdade fique
protegida frente ao exercício do poder social ou econômico que, em todo caso, exige
a ação estatal. Portanto, uma ordem justa e eficiente em liberdade já não surge sem
mais – como pretendia a doutrina clássica– da divisão dos poderes do Estado e de
sua abstenção a respeito de esferas sociais autônomas, e sim de que atue
positivamente num mundo cada vez mais complexo.188
Hesse aventa a existência de duas Constituições, adotando a terminologia de
“Constituição jurídica” e “Constituição real”. A justificativa para tanto se encontra no fato da
Constituição expressar tanto um “ser” quanto um “dever ser”, que atuam de forma
coordenada, sendo o primeiro item a realidade social que determina a “condição fática de
vigência” para a Constituição, enquanto o segundo anota a eficácia jurídico-política da
Constituição, devendo produzir a conformação da realidade social.189
Por Constituição real, Hesse entende algo semelhante aquilo que Lassale chamou
anteriormente de fatores reais de poder, sendo aquela consubstanciada como a realidade
histórica concreta em seus mais diversos patamares, englobando as questões sociais, culturais
e econômicas190
.
Seguindo essa trilha, a Constituição jurídica tem sua eficácia condicionada pela
atenção da “realidade histórica”, a qual deve “levar em conta”, necessitando ligar-se a
correlação do “ser” e “dever ser”.191
Em miúdos, a eficácia da Constituição não pode ser
dissociada da realidade fática, sob pena de perder seu foco de incidência.
Desta maneira, a solução das controvérsias em torno da Constituição, enquanto
questões jurídicas caberá à Corte Constitucional que, no âmbito de suas atribuições, fará as
conformações necessárias para assegurar o equilíbrio da força normativa da Constituição, por
intermédio da concretização interpretativa:
Interpretação constitucional é concretização. Exatamente aquilo que, como conteúdo
da Constituição, ainda não é unívoco deve ser determinado sob inclusão da
“realidade” a ser ordenada. Nesse aspecto, interpretação jurídica tem caráter criador:
o conteúdo da norma, interpretada conclui-se primeiro na interpretação;
188
Ibidem. p. 46 189
HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio
Antonio Fabris Editor, 1991. p. 15 190
Novamente, traçando um paralelo com o que foi descrito até o momento, a ideia de Constituição real pode ser
vista como o mundo da vida em que ocorrem as relações humanas. Sobre o mundo da vida, ver o que foi exposto
no item 2.3. 191
Ibidem. p. 24
61
naturalmente, ela tem também somente nesse aspecto criador: a atividade
interpretativa permanece vinculada à norma.192
Para tanto, Hesse propõe dois parâmetros denominados de “pressupostos
realizáveis” e “vontade de Constituição”, os quais devem orientar a Corte Constitucional na
equalização dos conflitos entre as Constituições reais e jurídicas.193
Como cabe a Constituição
jurídica manter-se vinculada à realidade concreta do seu tempo, as mudanças decorrentes da
alteração dos fatores reais de poder devem ser realizadas nos limites dos institutos
mencionados.
A principal diferença entre Lassale e Hesse reside na concepção do que vem a ser a
Constituição. Enquanto Lassale compreende um viés sociológico da Constituição, Hesse
entende que trata-se de uma ordem jurídica fundamental. O pensamento de Hesse proporciona
uma complementação ao de Lassale, fazendo, de certa maneira, uma atualização do fator
sociológico para as ordens jurídicas do século 21.
Ademais, as contribuições de Hesse servem para juridicizar as exposições de Lassale,
uma vez que a Constituição não pode negar a sociologia, mas, ao mesmo tempo, não pode ser
reduzida tão somente a uma projeção social desvalida de qualquer caráter jurídico.
Com a sistemática proposta por Hesse, é possível chegar a um consenso entre
realidade social e norma constitucional, já que a eficácia da segunda depende da primeira.
Portanto, deve a Constituição se manifestar na realidade e não representar uma mera
reprodução escrita, como outrora Lassale discursou.
Esta noção é imprescindível para compreender o pensamento de Peter Häberle, pois
este autor tenta estabelecer uma nova forma de hermenêutica possibilitando que o intérprete
entre em contato com uma Constituição aberta permita que a sociedade manifestem os
elementos que compõem a Constituição real. A participação social é vista como um meio de
levar ao julgador os dizeres da vontade popular e da realidade concreta.
A justiça deverá vincular sua produção jurisdicional, no momento de realizar a
adequação constitucional, aos elementos fáticos apresentados pelos interpretes, sob pena de
afastar a Constituição do que verdadeiramente deve ser considerado. Este é o contraponto
feito por Pablo Verdú:
192
HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha. 20 ed. Trad.
Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998. p. 61 193
HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio
Antonio Fabris Editor, 1991. p. 25
É possível ventilar os pressupostos realizáveis e a vontade de Constituição como sendo os direitos fundamentais
e os princípios morais e jurídicos que compõem o texto constitucional.
62
Toda política constitucional repousa não só em ter e estar em Constituição, senão
também em senti-la como algo próprio, estimado por sua forma originária e seus
desenvolvimentos expressos e tácitos. Em definitivo, para que uma Constituição
dure e seja efetiva, deve impor respeito, e isto se aplica, naturalmente, à sua revisão,
que há de fazer-se com regularidade, evidentemente, mas considerando o grau de
aceitação por ela suscitado junto a seus destinatários.194
Tendo em vista a constitucionalização dos fatores reais de poder pela teoria de Hesse,
que sacramenta o amarro da realização da Constituição jurídica à realidade concreta; cabe
estudar como Peter Häberle, por sua vez, oferta um procedimento a servir como caminho de
participação destes nos jogos de poder e conflito constitucional.
O ponto inicial da teoria de Peter Häberle propõe a ruptura do paradigma que
permeia a antiga interpretação constitucional, cujos agentes são restritos a uma “sociedade
fechada”. No prisma da hermenêutica clássica, a atividade interpretativa é restrita àqueles
legitimados pelo texto legal, o qual aponta para a figura do juiz.
Nesse sentido, para alcançar uma interpretação constitucional plena, devem ser
invocadas todas as “potências públicas participantes materiais do processo social”, com o
intuito de equacionar o grau de pluralidade daquela sociedade com a abertura interpretativa
necessária.195
Impõe-se que a interpretação constitucional preserve os elementos constitutivos da
sociedade, outrora estabelecidos pela Constituição e que estruturam a institucionalização da
história humana. E é por isso que a interpretação constitucional difere da mera interpretação
política, uma vez que enxerga o caráter jurídico das proposições e conotações materiais,
aferidas diretamente pela sociedade aberta.
Häberle afirma que o alargamento do rol de interpretes é instrumentalizado na
ampliação do conceito de hermenêutica, fazendo incluir todas as “potências públicas”
contidas de força para produzir uma “pré-interpretação”, sendo este o fator que conota um
caráter democrático à jurisdição constitucional. Logo, as interpretações jurisdicionais devem
considerar a importância da opinião pública.196
Sobre a interpretação constitucional, afirma:
[...] pretende ésta crear puentes entre la ciudadanía y los juristas especializados en el
ámbito científico, es decir, entre las actuaciones y actitudes más relevantes del
ámbito jurídico --que no son sino interpretación viva de la ciudadanía- [... l resultado
194
VERDÚ, Pablo Lucas. O Sentimento Constitucional: aproximação ao estudo constitucional como modo de
integração política. Trad. Agassiz Almeia Filho. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 139 195
HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional - a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição:
contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da constituição Trad. de Gilmar Ferreira Mendes.
Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002. p. 13 196
Ibidem. p. 14
63
final de todo ello es lo que podemos llamar «interpretación constitucional o exégesis
pluralista».197
A justificativa desta teoria paira na necessidade de dar vida a uma realidade
constitucional que atenda ao bem estar geral e garanta que a sociedade, na condição de
destinatária final do produtivo normativo, tenha participação assegurada no processo
interpretativo, consoante serem os próprios integrantes do seio social a vivenciar os reais
efeitos da norma produzida198
, como o mencionado autor afirma:
Todo aquele que vive no contexto regulado por uma norma e que vive com esse
contexto é, indireta ou, até mesmo diretamente, um intérprete dessa norma. O
destinatário da norma é participante ativo, muito mais ativo do que pode supor
tradicionalmente, do processo hermenêutico. Como não são apenas os interpretes
jurídicos da Constituição que vivem a norma, não detém eles o monopólio da
interpretação da Constituição.199
Complementando o posicionamento acima transcrito:
Experts e “pessoas interessadas” da sociedade pluralista também se convertem em
intérpretes do direito estatal. Isto significa que não apenas o processo de formação,
mas também o desenvolvimento posterior revela-se pluralista: a teoria da ciência, da
democracia, uma teoria da Constituição e da hermenêutica propiciam aqui uma
mediação específica entre Estado e sociedade!200
Dessa forma, a pedra de toque da nova hermenêutica subsiste na interpretação
configurar um elemento objetivo dos direitos fundamentais e que deve considerar a natureza
particular da concepção que estiver sendo avaliada. Assim, no momento em que a Corte
Constitucional desnuda sua práxis, estimulando a interpretação pelos próprios destinatários
dos direitos fundamentais, assegura a estes uma realização concreta e de máxima eficácia.
Na medida em que a “esfera pública pluralista”201
consigna suas opiniões em juízo,
pode ser verificado o grau de conformação do poder público à realidade social, através da
margem de vinculação do que é disposto pela Corte. Em miúdos, através da interpretação
197
Tradução livre: pretende esta criar pontes entre a cidadania e os juristas especializados no âmbito científico,
quer dizer, entre as atuações e atitudes mais relevantes do âmbito jurídico – que são nada além da interpretação
viva da cidadania – [...] o resultado final é o que podemos chamar de “interpretação constitucional ou exegese
pluralista” (HÄBERLE, Peter. Pluralismo y Constitución. Trad. Emílio Mikunda. Madrid: Tecnos, 2013. p. 89
– 90) 198
Sobre o princípio da democracia habermasiano, ver item 2.5. 199
HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional - a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição:
contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da constituição Trad. de Gilmar Ferreira Mendes.
Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002. p. 15 200
Ibidem. p. 18 201
Häberle não trata de um conceito explícito de esfera pública. Todavia, salta aos olhos a preocupação do autor
com as dinâmicas discursivas da sociedade, tendo em vista que a mesma possui opiniões e que necessariamente
precisam encontrar guarida no jogo argumentativo da Corte Constitucional. Para o conceito de esfera pública em
Habermas, reportar ao item 2.7.
64
constitucional é que se averigua o nível de democracia da sociedade aberta, já que se torna
possível conformar a Constituição com a realidade fática vigente.
No que trata da vinculação dos poderes legislativo202
e judiciário à sociedade aberta,
Häberle compreende ser o processo político uma manifestação da interpretação constitucional,
servindo de força motriz a esta. Assim, criam-se “realidades públicas”203
e amplia-se a esfera
pública diretamente a partir da interpretação realizada pela subsunção do legislador à Carta
Magna, pincelando parte da realidade da Constituição.204
A legitimidade da sociedade aberta surge da própria Constituição, uma vez que a
realidade pública é parte desta, caracterizando, assim, sua autorização interpretativa. Dito isto,
de acordo com o pensamento de Peter Häberle, a principal motivação está nas disposições da
própria Constituição, que prescreve elementos de organização social, da vida pública e
privada, os quais não devem ser vistos como “meros objetivos”, mas sim “forças sociais” à
serem integradas como “sujeitos ativos” da hermenêutica constitucional.205
Para Häberle é essa gama de interpretações que se vinculam a coisa pública e
demonstram a verdadeira Constituição:
la exégesis constitucional como proceso público significa, en parte, «programa» y,
en parte, también «realidad y actualidaci» de los intérpretes constitucionales de toda
sociedad aberta [...] Esta forma de comprensión normativa procesal y pluralista de
dicha exégesis permite un derecho relativo que se completa con un espectro mucho
más rico y con todo un instrumentário de exégesis pública orientada ai bien común y
a la pluralidade de opciones sociales.206
Com efeito, uma Constituição democrática, com capacidade de expandir o leque de
intérpretes, parte de um conceito de “democracia do cidadão”, cuja premissa inicial é fincada
202
Ao legislador, cumpre traçar o parâmetro norte para interpretações posteriores, com base nos princípios
constitucionais. Por outro lado, o juiz fica contido à argumentação e ao caráter técnico da decisão, cuja
fundamentação deve expressar quantitativa e qualitativamente a opinião da esfera pública. 203
A despeito de Haberle não fechar um conceito específico, muito menos apresentar o que entende por esfera
pública, é lúcido fazer uma correlação da teoria de Habermas neste ponto. Ora, realidades públicas seriam as
impressões argumentativas da esfera pública, manifestando aquilo que Habermas entende por opinião pública, só
que, tais argumentos estariam dispostos ao crivo do julgador – ou do legislador -, seja para o exercício da
atividade jurisdicional, seja para o da atividade parlamentar. O que importa, em essência é o quão precioso é,
para ambos os autores citados, a rede comunicativa da sociedade, a ponto de que se repensa a democracia não
mais para uma simples representação por um político legitimado, mas verdadeiramente pela participação social
no bojo argumentativo. 204
HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional - a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição:
contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da constituição Trad. de Gilmar Ferreira Mendes.
Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002. p. 27 205
Ibidem.. p. 33 206
Tradução livre: a exegese constitucional como processo público significa, em parte, “programa” e, em parte,
também, “realidade e atualidade” dos interpretes constitucionais de toda a sociedade aberta [...] Esta forma de
compreensão processual normativa e pluralista da dita exegese permite um direito relativo que se completa com
um aspecto bem mais rico e com todo um instrumentário de exegese pública orientada ao bem comum e
pluralidade de opiniões sociais. (HÄBERLE, Peter. Pluralismo y Constitución. Trad. Emílio Mikunda. Madrid:
Tecnos, 2013. p. 102)
65
na identidade, a partir dos direitos fundamentais, afastando-se de uma teoria de soberania
estrita.
A justificativa apresentada é a seguinte: “A democracia do cidadão é mais realista do
que a democracia popular.” Com isso, o referido autor pontua: “Alcança-se uma parte
significativa da democracia dos cidadãos (Bürgerdemokratie) com o desenvolvimento
interpretativo das normas constitucionais.”207
.
O instituto do “amicus curiae” possibilita a concretização desta teoria – assim como a
de Habermas – pois é que através dele, que a Corte é capaz de refletir o interesse público e
dos demais terceiros que serão atingidos, direta ou indiretamente, pela decisão, enquadrando-
se na teoria da sociedade aberta de Häberle:
O raio de interpretação normativa amplia-se graças aos ‘intérpretes da Constituição
da sociedade aberta’. Eles são os participantes fundamentais no processo de ‘trail
and error’, de descoberta e de obtenção do direito. A sociedade torna-se aberta e
livre, por todos estão potencial e atualmente aptos a oferecer alternativas para a
interpretação constitucional. A interpretação constitucional jurídica traduz (Apenas a
pluralidade da esfera pública e da realidade (die pluralistische Öffentlichkeit und
Wirklichkeit) as necessidades e possibilidades da comunidade, que constado do
texto, que antecedem os textos constitucionais ou subjazem a eles.208
O instituto será analisado com mais detalhes em ocasião posterior, passando-se, no
momento, para a correlação entre sociedade aberta e fatores reais de poder. Portanto, a Corte
Constitucional, ao dialogar com os fatores reais de poder, manifestado devidamente nas pré-
interpretações e procedendo à decantação da vontade da Constituição, avaliza uma decisão
judicial que atende a concretude fática e permite um fiel e digno cumprimento aos direitos
fundamentais.
3.2 UM PARALELO ENTRE AS PROPOSTAS DE PETER HÄBERLE E JÜRGEN
HABERMAS
Diante de tudo que foi dito, a teoria de Habermas tem pontos de contato com os
dizeres de Häberle, quando ambos falam que de uma sociedade plural pode ser depreendida a
pré-interpretação – ou aceita, por parte da esfera pública, como um caminho a ser tomado no
207
HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional - a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição:
contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da constituição Trad. de Gilmar Ferreira Mendes.
Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002. p. 38 - 39 208
Ibidem. p. 42 - 43
66
âmbito da hermenêutica constitucional.209
A influência da vontade da sociedade deve estar
sempre na ótica dos instrumentos jurídicos e políticos, já que todo o ordenamento emana do
corpo social e deve incidir neste.
Por conseguinte, os conceitos de mundo da vida e esfera pública podem ser
emoldurado na Constituição real anotada por Konrad Hesse. Na medida em que a
Constituição real representa os fatores reais de poder, o mundo da vida capta e fomenta as
destes e busca as respostas compatíveis com cada uma das hipóteses, que então são manifestas
pelas diversas esferas públicas. Trata-se de uma orientação para a produção normativa e são
relevantes para a atuação da Corte Constitucional.
Assim, a convergência dos autores reside no interesse pela força constitucional e
jurídica que os fenômenos do cotidiano social atingem, a ponto de refletir livremente a
pluralidade. Se para Häberle a verdadeira hermenêutica mora na pré-interpretação dos
destinatários, para Habermas, a soberania é encarada como uma construção de argumentos
plurais através do diálogo, em que as opiniões da sociedade constitucional e que, assim como
no primeiro autor, tem grande valor na construção jurídico-política.
Com efeito, a estima atribuída às esferas públicas de opinião, capazes de contribuir na
pré-interpretação, aponta para a importância dos fatores reais de poder, sendo este o ponto de
toque com a obra de Konrad Hesse, dado ficar explícita a relação entre as teorias faladas e a
força da Constituição real na construção das decisões judiciais.
O exercício funcional de uma Corte Constitucional depende da presença dos
elementos contidos na Constituição real, devido à dosimetria que deve ser feita entre o que
marca a realidade e quais são as vontades e pressupostos realizáveis da Constituição jurídica.
Daí é interessante lembrar que a teoria habermasiana não só pode ser aplicada no
momento anterior a formação da ordem constitucional, mas também para fases além
adentrando, como discutido, nos momentos da criação legislativa e produção jurisprudencial
pela Corte Constitucional:
O papel do legislador o processo político não difere em essência do que se
reconhece pertencer ao juiz, isso em relação à interpretação constitucional. [...] Daí
que se o legislador não traduz em seu atuar o que legitimamente a esfera pública, no
processo público, tenciona fazer vivificar em normas legais, impõe a democracia que
a Jurisdição assim o faça! E deve fazê-lo juntamente com a sociedade aberta dos
intérpretes da Constituição, exatamente aquela que ouvida não foi pelo Parlamento
quando este deixou de editar a regra jurídica adequada ou quando editando a única
209
Ainda que ambas teorias sejam complementares entre si, há de se destacar que Habermas parte do
pressuposto, em seu projeto emancipatório, que a sociedade é capaz do diálogo, enquanto Häberle alcança isso
como uma conclusão dentro da proposta da abertura procedimental que faz ao concretismo de Konrad Hesse.
67
regra aplicável ao caso, assim o fez em total descompasso com a expectativa que a
cidadania nutria a seu respeito.210
Dessa maneira, ao abrir um canal comunicativo, permitindo aos fatores reais de poder
deliberar junto a Corte Constitucional – ou qualquer outro órgão jurisdicional, se permite que
a decisão judicial fique revestida pelo espírito da democracia. Diante de fatores reais de poder
antagônicos e plurais, aquele que for vencido terá tido o direito de registrar sua marca e tê-la
apreciada jurisdicionalmente, produzindo uma decisão que efetivamente congrega ambas as
formas de Constituição e ainda prevê o respeito às liberdades levantadas pelo fator preterido.
Nesses termos, os ditames da democracia deliberativa, ao fazer o exame das questões,
a jurisdição não pode se afastar da sociedade, buscando nesta os determinantes para a temática
em julgamento. Essencialmente, da esfera pública emana a Constituição real que exala as
alterações dos fatores reais de poder.
Afinal, como afirma Verdú: “A Constituição não é compreensível como um texto
isolado, pois guarda conexão com o ordenamento jurídico subsconstitucional”211
. Já, que “é
necessário ajustar a raio da Constituição aos requerimentos populares para cumprir o telos ou
finalidade inerente ao texto fundamental”212
É nesse sentido que o pensamento daquele autor evolui:
A fissura entre o Direito Constitucional e a realidade constitucional não só implica
um abismo entre a normatividade e a normalidade. Supõe, além disso, uma
defeituosa interiorização do desenvolvimento constitucional pelo cidadão, de sorte
que pode ameaçar o Estado enquanto processo vital básico.213
Devemos pensar nos canais comunicativos entre opinião pública, em sua faceta de
Constituição real e a jurisdição constitucional, de tal maneira que haja a efetivação do
princípio da democracia. No sentido da participação cidadã e da legitimidade da jurisdição,
Maria Emília Naves Nunes:
A remontagem dos signos pelos atores sociais no contexto do processo judicial é a
aplicabilidade da democracia. No diálogo que é o processo, é preciso haver
partícipes que possam compreender, interpretar e diagnosticar as mensagens
advindas dos discursos. A manipulação dos signos exclui a racionalidade discursiva
e transforma em balela a existência do devido processo legal. E é hora de grupos
sociais constituídos participarem ativamente na solução de conflitos e [...] há
mecanismos já previstos e mais acentuados no novo diploma legal como, por
210
GÓES, Ricardo Tinoco de. Democracia Deliberativa e Jurisdição: a legitimidade da decisão judicial a partir
e para além de J. Habermas. Curitiba: Juruá, 2013 p. 214 211
VERDÚ, Pablo Lucas. O Sentimento Constitucional: aproximação ao estudo constitucional como modo de
integração política. Trad. Agassiz Almeia Filho. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 136 212
Ibidem. p. 139 213
Ibidem. p. 137
68
exemplo, o amicus curiae e a transformação de uma demanda individual em
coletiva.214
Com a plena satisfação desta proposta teórica, serão analisados os elementos
históricos e as questões processuais em torno do amicus curiae.
3.3 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO AMICUS CURIAE
A origem do amicus curiae é comumente associada ao common law inglês, tendo
como papel o auxílio das Cortes, seja apresentando novas informações ou precedentes
desconhecidos pelo julgador, seja apontando erros nos julgamentos.
Para Isabel da Cunha Bisch, é possível encontrar indícios no direito romano de
conselheiros que auxiliavam os magistrados judiciários e os juízes populares. Esses
conselheiros eram verdadeiros assessores, que dotados de prestígio, emitiam pareceres e
opiniões que auxiliavam na resolução das controvérsias. Apesar desta função, os estudos de
direito romano não fazem menção específica ao amicus curiae ou amici curiae. 215
Já Carlos Gustavo Rodrigues Del Prá, apesar de reconhecer a possível raiz no direito
romano, pela maneira que o instituto fora tratado, opta por remeter à previsão contida nos
Years Books dos séculos XIV a XVI:
O amicus curiae, nesse período, participava do processo apontando precedentes
jurisprudenciais não mencionados pelas partes ou ignorados pelo julgador, atuando
em benefício de menores, chamando a atenção do juízo para certos fatos, como o
erro manifesto, a morte de uma das partes, o descumprimento do procedimento
correto ou a existência de norma específica regulando a matéria. Cumpria um papel
meramente informativo e supletivo, mas de clara importância para a corte.216
214
NUNES, Maria Emília Naves. A efetividade da tutela jurisdicional através da participação do amicus curiae e
da conversão da demanda individual em coletiva. In: DIDIER JÚNIOR, Fredie et al. (Orgs.) Novas tendências
do processo civil: estudos sobre o projeto de Código de Processo Civil. Salvador: Juspodivm, 2013. p. 162 215
BISCH, Isabel da Cunha. O amicus curiae, as tradições jurídicas e o controle de constitucionalidade: um
estudo comparado à luz das experiências americana, europeia e brasileira. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2010. p. 18 – 19
Somado ao argumento desta autora, Cassio Scarpinela Bueno menciona o ceticismo de Giovanni Criscuoli: “Para
ele, o que pode ser sustentando é que o amicus curiae teria derivado do consilliarius romano e que foi a partir
dela que o sistema inglês incorporou e desenvolveu a figura, adaptando-a para suas próprias necessidades de
acordo com as características, ainda que em evolução, de seu próprio sistema jurídico.” (BUENO, Cassio
Scarpinella. Amicus curiae no processo civil brasileiro: um terceiro enigmático. 3. ed. São Paulo: Saraiva,
2012. p. 112) 216
DEL PRÁ, Carlos Gustavo Rodrigues. Amicus curiae: instrumento de participação democrática e de
aperfeiçoamento da prestação jurisdicional. Curitiba: Juruá, 2011. p. 25
69
Mesmo com a possibilidade de atuar no processo, não havia nenhuma previsão
específica para quais hipóteses o amicus curiae seria admitido e quais os limites de suas
atribuições, ficando ao crivo do julgador permitir ou não o ingresso do terceiro217
.
Além da função informativa quanto aos precedentes (cases) e leis (statutes), com a
evolução jurisprudencial, a intervenção do terceiro também era possível para indicar a
ocorrência de intenções fraudulentas218
. Dois são os exemplos trazidos por Bueno:
[...] em 1686, Sir George Treby atuou, devidamente autorizado pela corte, como
amicus, dando detalhes das alterações de uma específica lei, considerando que era
membro do Parlamento e, consequentemente, tinha conhecimento pessoal de toda a
evolução dos trabalhos legislativos. Também que, em 1736, admitiu-se, no caso
“Coxe vs. Phillips”, a presença de um amicus que advertiu a corte de que a demanda
era fraudulenta.219
No panorama atual do direito inglês, a intervenção do amicus somente é admitida nos
casos em que há interesses públicos ou da coroa, ou ainda quando é necessário o
esclarecimento de alguma questão de fato ou de direito. O exemplo trazido por Bueno é o de
entidades de classe que se manifestem nos casos que envolvem interesses por elas
tutelados.220
O verdadeiro desenvolvimento do amicus curiae, se assemelhando ao instituto que
hoje é objeto deste estudo, advém da reverberação do direito inglês no sistema norte-
americano. A primeira intervenção que se tem nota no direito americano foi realizada pelo
senador Henry Clay no julgamento do caso Green vs. Biddle, no qual a Suprema Corte
217
Nos dizeres de Bueno: “O que a doutrina sublinha a respeito das primeiras manifestações do instituto no
direito Inês é que os tribunais possuíam ampla liberdade (discretion) para admitir a participação do amicus e,
consequentemente, para definir as possibilidades e os limites de sua atuação concreta.” (BUENO, Cassio
Scarpinella. Amicus curiae no processo civil brasileiro: um terceiro enigmático. 3. ed. São Paulo: Saraiva,
2012. p. 115) 218
Para o caso das intenções fraudulentas, o sistema processual inglês, chamado de “adversary system”,
consigna ampla discricionariedade para as partes litigarem, de tal forma que muitas vezes as cortes se deparam
com casos colusivos, daí ser importante a participação de um terceiro: “E foi exatamente nesse ponto que a
função amicus curiae passou a ganhar maior importância para a própria administração da justiça.” (DEL PRÁ,
Carlos Gustavo Rodrigues. Amicus curiae: instrumento de participação democrática e de aperfeiçoamento da
prestação jurisdicional. Curitiba: Juruá, 2011. p. 26)
Complementando essa linha de pensamento, Bisch: “o amicus curiae ganhou espaço na Inglaterra, por
questionar essa visão excessivamente bipolar do processo – sem, contudo, deixar de estar à margem da discussão
entre as partes. Não é só: o instituto teria se mantido no Direito Inglês por auxiliar os Juízes ingleses a aprimorar
seu convencimento, aperfeiçoando ou corrigindo o conjunto probatório elaborado” (BISCH, Isabel da Cunha. O
amicus curiae, as tradições jurídicas e o controle de constitucionalidade: um estudo comparado à luz das
experiências americana, europeia e brasileira. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. p. 29) 219
BUENO, Cassio Scarpinella. Amicus curiae no processo civil brasileiro: um terceiro enigmático. 3. ed. São
Paulo: Saraiva, 2012. p. 114 220
Ibidem. p. 115
70
declarou inconstitucional uma lei do Estado do Kentucky. Henry Clay solicitou uma
audiência, na condição de representante do Kentucky e teve seu pedido atendido.221
Mesmo sendo um caso emblemático, na tradição americana ainda tardou para que o
instituto tivesse a projeção de interessado na demanda, como descreve Bisch:
Essa primeira participação, porém, não representou o perfil de atuação adotado e
aceito nos anos seguintes, já que se passou a exigir da figura do amicus curiae uma
exata imparcialidade: seu agir processual não deveria ser em defesa de uma das
partes, mas guardar, isso sim, o mero papel de informamente e auxiliar dos
julgadores. Todavia, não demorou para se descobrir na atuação do friend of the
Court outros fins oportunos. Partes em feitos judiciais semelhantes, com decisões
pendentes nas jurisdições inferiores, eram então aceitas pela Suprema Corte para
apresentar suas visões por petição, como amici curiae.222
A migração do amicus curiae para o polo ativo das demandas segue ao longo do
século XX nos Estados Unidos, tendo por marco a regulação pela Suprema Corte Norte-
Americana em 1938, na forma da Rule 27(9), a qual exigia o consentimento prévio das partes
quanto à intervenção.223
Ademais, também é no sistema americano que surgem os “amicii
privados”, que representavam seus próprios direitos e interesses em juízo:
É em função dessa evolução do amicus curiae no direito norte-americano que,a te os
dias de hoje, é referida pela doutrina e pela jurisprudência norte-maericanas a
existência de dois grandes grupos de amicus curiae: os “amicii governamentais” e
os “amicii privados” ou particulares. A distinção é pertinente porque aos amicii
governamentais é reconhecida maior gama de poderes de atuação em juízo, a bem da
verdade, praticamente todas as possibilidades de atuação que são reconhecidas a
uma parte processual. Os amicii privados, por seu turno, têm poderes de atuação
mais tênues, o que se justifica, lê-se, para que nãos e rompa com as grandes
categorias processuais das partes e das modalidades interventivas de terceiro do
direito norte-americano.224
Atualmente o amicus curiae tem regulamentação na Rule 37 da Suprema Corte, que
dita, na visão de Del Prá, a admissibilidade da intervenção quando trouxer “matéria relevante,
ainda não ventilada pelas partes”, tendo por função “ajudar a corte.” Ressalta o autor que no
221
BISCH, Isabel da Cunha. O amicus curiae, as tradições jurídicas e o controle de constitucionalidade: um
estudo comparado à luz das experiências americana, europeia e brasileira. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2010. p. 49 222
Ibidem. p. 50
Para ilustrar o papel do amicus curiae no jogo de poder, a autora levanta vários casos em que o protagonismo
dos interventores influenciou no julgamento, dentre eles: Muller vs. Oregon de 1908, Pacific St. Tel. & Tel. Co.
vs. Oregon de 1912 e Hamilton vs. Kentucky Distil. Co. de 1919. 223
Bueno adverte que mesmo com essa necessidade, nunca fora negada a possibilidade de intervenção, assim
como eram dispensados os entes governamentais de expressar a prévia concordância, pois são representantes do
interesse público. (BUENO, Cassio Scarpinella. Amicus curiae no processo civil brasileiro: um terceiro
enigmático. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 117) 224
BUENO, Cassio Scarpinella. Amicus curiae no processo civil brasileiro: um terceiro enigmático. 3. ed. São
Paulo: Saraiva, 2012. p. 118
71
sistema norte-americano, a participação dos amicii é restrita para nas Supremas Cortes,
federal e estaduais e nos tribunais de apelação.
Sem pretensões de exaurir o tema, somente pincelar um painel histórico que pretende
situar a origem do instituto estudado, eis que o assunto é objeto de vários doutrinadores225
que
verticalizam a fundo o resgate histórico, se encerra aqui a digressão histórica e se parte agora
para a análise do amicus curiae no ordenamento jurídico brasileiro, com a certeza de que o
instituto tem dupla função: a prestação de informações ao juízo e como mecanismo
participação ativa da sociedade civil no processo judicial.
3.4 AS PRIMEIRAS MANIFESTAÇÕES DO AMICUS CURIAE NO ORDENAMENTO
JURÍDICO BRASILEIRO: PODER DE POLÍCIA E PRESTAÇÃO DE INFORMAÇÕES
Quando estudado pela doutrina nacional, até o advento do Código de Processo Civil
de 2015, a natureza jurídica do amicus curiae era objeto de divergência, tendo em vista que as
hipóteses de intervenção se dividem em ocorrências bastante características. Por um lado, se
tem a intervenção como auxiliar do juízo e noutro pórtico, a participação ativa enquanto
interessado no processo. A despeito disto, ambas as hipóteses implicam no benefício da corte
com as manifestações advindas deste instituto.226
Em termos históricos227
, a primeira vez que a figura intervencionista apareceu teve
abrigo na possibilidade de manifestação da Comissão de Valores Mobiliários – CVM,
hipótese incluída pela Lei nº 6.616/1978, que modificou o art. 31 da Lei nº 6.385/1976:
Art. 31 - Nos processos judiciários que tenham por objetivo matéria incluída na
competência da Comissão de Valores Mobiliários, será esta sempre intimada para,
querendo, oferecer parecer ou prestar esclarecimentos, no prazo de quinze dias a
contar da intimação.
225
As obras referenciadas de Cassio Scarpinella Bueno e Isabel da Cunha Bisch tratam com profundidade a
evolução do amicus curiae, inclusive fazendo menção do instituto nos ordenamentos europeus e supracionais. O
presente trabalho não pretende lançar esforços nesta empreitada, tendo em vista que foge ao escopo de estudo,
eis que a ênfase que pretende ser dada é na correlação das intervenções em si com a teoria habermasiana. 226
DEL PRÁ, Carlos Gustavo Rodrigues. Amicus curiae: instrumento de participação democrática e de
aperfeiçoamento da prestação jurisdicional. Curitiba: Juruá, 2011. p. 57 227
“Interessante destacar, a esse propósito, que grande parte dos textos que, mais recentemente, voltaram-se ao
tema apontou a Comissão de Valores Mobiilários como a pioneira dos amici curiae no nosso direito. Não
obstante, convém que afirmemos, o legislador não tenha empregado nesse texto de lei – como de resto, em
nenhum outro – aquele nomem iuris.” (BUENO, Cassio Scarpinella. Amicus curiae no processo civil
brasileiro: um terceiro enigmático. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 269)
Deve ser feita a ressalva que a nomeclatura amicus curiae apareceu pela primeira vez no Novo Código de
Processo Civil. A obra de Cassio Scarpinella Bueno não fez menção a esta ocorrência pois é anterior a lavratura
da dita legislação.
72
§ 1º - A intimação far-se-á, logo após a contestação, por mandado ou por carta com
aviso de recebimento, conforme a Comissão tenha, ou não, sede ou representação na
comarca em que tenha sido proposta a ação.
§ 2º - Se a comissão oferecer parecer ou prestar esclarecimentos, será intimada de
todos os atos processuais subseqüentes, pelo jornal oficial que publica expedientes
forense ou por carta com aviso de recebimento, nos termos do parágrafo anterior
§ 3º - A comissão é atribuída legitimidade para interpor recursos, quando as partes
não o fizeram.
§ 4º - O prazo para os efeitos do parágrafo anterior começará a correr,
independentemente de nova intimação, no dia imediato aquele em que findar o das
partes.
O intento do legislador, como afirma Del Prá é:
[...] possibilitar que o juízo obtenha as informações e os esclarecimentos que, pela
própria formação média do magistrado, provavelmente escapariam à sua apreciação,
tudo sempre com vistas a proporcionar uma solução segura e consciente da real
abrangência e influência de seus efeitos sobre o mercado de valores.228
A CVM atua como tradutora de fatos específicos e extrajurídicos, sendo verdadeiro
instrumento de informação para as cortes. Elementos do mercado financeiro são transcritos
em uma linguagem acessível ao magistrado, ficando delimitado os institutos próprios do
mercado de valores e quais os efeitos pragmáticos a decisão irá proporcionar.
Daí se falar em intervenção de amicus curiae nesta hipótese229
, já que a CVM
intervém voluntariamente, enquanto terceiro ao processo, para prestação de informações.
Mesmo que não assuma o viés democrático de participação ativa, é seguro apontar como a
hipótese prevista na legislação brasileira.
A outra hipótese de intervenção para prestação é a do Conselho Administrativo de
Defesa Econômica – CADE, que pode se manifestar que discutam a aplicação da Lei nº
12.529/2011, consoante determina o art. 118: “Nos processos judiciais em que se discuta a
aplicação desta Lei, o Cade deverá ser intimado para, querendo, intervir no feito na qualidade
de assistente.” Trata-se de um órgão que exerce poder de polícia na atividade econômica,
garantindo a livre concorrência, nos termos dos incisos I e XII do art. 7º da lei retro.230
Outro órgão que também possui manifestação obrigatória231
, quando a demanda
versar sobre nulidade de patente, é o Instituto Nacional de Propriedade Industrial – INPI, em
que sua intimação dar-se por força dos art. 175 da Lei nº 9.279/1996:
228
DEL PRÁ, Carlos Gustavo Rodrigues. Amicus curiae: instrumento de participação democrática e de
aperfeiçoamento da prestação jurisdicional. Curitiba: Juruá, 2011. p. 58 229
Del Prá afirma que a CVM também pode intervir enquanto assistente simples ou qualificado quando possuir
interesse temático na demanda, já que em essência, se trata de uma autarquia cuja função é fiscalizar o mercado
financeiro. (Ibidem. p. 59 – 60) 230
Assim como ocorre com a CVM, o CADE também pode intervir em processos individuais quando existir
interesse na fundamentação da decisão. (Ibidem. p. 62 – 63) 231
Deve ser registrada a divergência sobre o INPI ser verdadeiro amicus curiae: “Apesar de bastante debatida,
ainda não há consenso sobre essa questão, havendo quem afirme que o INPI ingressa no processo alheio como
73
Art. 175. A ação de nulidade do registro será ajuizada no foro da justiça federal e o
INPI, quando não for autor, intervirá no feito. § 1º O prazo para resposta do réu titular do registro será de 60 (sessenta) dias. § 2º Transitada em julgado a decisão da ação de nulidade, o INPI publicará
anotação, para ciência de terceiros.
As três instituições se manifestam por decorrência de seu poder de polícia, enquanto
órgãos fiscalizadores, já que a lei determina a intimação destes, a despeito da manifestação ser
voluntária.232
Tais hipóteses, apontadas como as primeiras manifestações do amicus curiae na
ordem brasileira, demonstram a faceta informativa do instituto, que presta ao juízo todas as
informações e esclarecimentos necessários para uma cognição adequada.
Na verdade, o silêncio ou a omissão destas informações acarretaria nulidade, além de
danos não só as partes litigantes, mas a toda a sociedade, uma vez que se tratam de órgãos que
lidam diretamente com setores estratégicos. É neste sentido, Del Prá afirma que “ o auxilio
das informações trazidas pela CVM, pelo CADE e pelo INPI possibilita ao juiz obter melhor
desempenho na construção da decisão”.233
Todavia, tais possibilidades interventivas não exaurem a participação do amicii
curiae, existindo também aquelas que estão voltadas a participação democrática, cuja origem
é reportada ao controle de constitucionalidade, objeto do próximo item.
3.5 O AMICUS CURIAE NO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE
A despeito de existir a possibilidade de intervenção dos mencionados entes, é na
jurisdição constitucional que o amicus curiae aflora o potencial pluralista e democrático, de
sorte que se visualiza a aplicação da sistemática da pré-interpretação de Peter Häberle quanto
o princípio da democracia proposto por Jürgen Habermas.
litisconsorte necessário, como assistente, ou ainda, como “interveniente especial”. O dissenso, em parte, parece
decorrer da redação dos dispositivos legais (Lei 9.279/96, arts. 57 e 175), que não define a qualidade assumida
pelo órgão ao ingressar no processo.” (Ibidem. p. 66) 232
“Já há hipóteses expressas em que se autoriza a participação do amicus curiae em razão da especificidade do
tema objeto da demanda, como ocorre com a CVM, o CADE e o INPI. Contudo, nestes casos, não é apenas a
especificidade do objeto que impõe a participação desses sujeitos, mas principalmente o fato de haver “evidente
interesse público no controle dessas atividades, eleito pelo legislador como relevante e digno de proteção”, “cuja
defesa lhes foi outorgada pela lei”. Isto é considerando a função institucional desses sujeitos (CVM, CADE e
INPI) e considerando a função institucional a especificidade do objeto da demanda, o legislador houve por bem
em prever a sua intervenção como amicus curiae. (DEL PRÁ, Carlos Gustavo Rodrigues. Intervenção de
terceiros: extinção e novas figuras. In: ROSSI, Fernando et al. (Coord.). O futuro do processo civil no Brasil:
uma análise crítica ao Projeto do Novo CPC. Belo Horizonte: Fórum, 2011. p. 662) 233
DEL PRÁ, Carlos Gustavo Rodrigues. Amicus curiae: instrumento de participação democrática e de
aperfeiçoamento da prestação jurisdicional. Curitiba: Juruá, 2011. p. 71
74
Se a intervenção das autarquias estatais oferta ao juízo elementos informativos para a
decisão, quando abarcarem elementos externos à formação do julgador, a outra faceta do
amicus curiae permite que a sociedade civil direcione toda a produção argumentativa advinda
das esferas públicas – consubstanciando a opinião pública procedimental.
3.5.1 Primeiras manifestações no Supremo Tribunal Federal
A intervenção do amicii curiae no Supremo Tribunal Federal – STF é resultado da
impossibilidade de participação de terceiros nas ações do controle concentrado. A despeito de
um farto rol de legitimados234
para propositura de demandas que objetivem a análise abstrata
de constitucionalidade, foi necessário levar para além, permitindo o ingresso da sociedade
civil, enquanto destinatária das normas constitucionais.235
Essa proposta de abertura jurisdicional contrasta com a noção de “processo
objetivo”, a qual dita “que o Supremo Tribunal Federal, no exercício do controle concentrado
de constitucionalidade, não “julga” nenhum interesse ou direito subjetivo” que seja
“concretizado em uma específica relação jurídica que dá ensejo, por definição, ao nascimento
de pretensões concretas”.236
Com efeito, por não ter um interesse individual ligado diretamente a causa, não
haveria de se falar em um terceiro interveniente. A perspectiva do amicus curiae, em seu
trilho pluralizador – lembrando que também há possibilidade da intervenção somente ofertar
subsídios para decisão do julgador – rompe com esta perspectiva de que, pelo fato de o
234
Del Prá rememora que a abertura promovida pela Constituição Federal de 1988 foi tamanha que ocorreu tanto
“em nível quantitativo (mais legitimados) como em um nível qualitativo (mais instrumentos)” com o objetivo de
“ampliar a participação da sociedade civil no controle judicial dos casos em que há violação à ordem
constitucional.” (DEL PRÁ, Carlos Gustavo Rodrigues. Amicus curiae: instrumento de participação democrática
e de aperfeiçoamento da prestação jurisdicional. Curitiba: Juruá, 2011. p. 74)
Visão semelhante é a de Damares Medina: “Ora, democratizar significa ampliar as condições objetivas de
acesso. Foi o que se deu com a Constituição de 1988 e a ampliação do rol de legitimados para inaugurar o
controle concentrado de constitucionalidade. Desde então, novos atores sociais foram alçados à condição de
protagonistas do controle de constitucionalidade em sua modalidade concentrada.” (MEDINA, Damares. Amicus
curiae: amigo da corte ou amigo da parte? São Paulo: Saraiva, 2010. p. 75 – 76) 235
Del Prá faz relação entre a incorporação do amicus curiae e a teoria de Peter Häberle, na mesma esteira que
este trabalho defende. A visão deste autor é a seguinte: “Trata-se de sintoma cada vez mais presente nos regimes
democráticos de todo mundo [a abertura da jurisdição], e que consiste em constatar (e implementar) uma
“sociedade aberta de intérpretes da constituição”, na feliz expressão de Peter Häberle. Ora, com efeito, o
alargamento subjetivo da via do controle de constitucionalidade é manifesta concretização de uma tendência
mundial – em grande parte iniciada e desenvolvida a partir da obra de Häberle, em 1975 – de reconhecer que as
normas constitucionais necessitam ser integradas no tempo e na realidade socioeconômica-cultural, tarefa
incumbida não só aos juízes, mas a todos aqueles que, de qualquer forma, vivenciam a Constituição.” (DEL
PRÁ, Carlos Gustavo Rodrigues. Amicus curiae: instrumento de participação democrática e de aperfeiçoamento
da prestação jurisdicional. Curitiba: Juruá, 2011. p. 74) 236
BUENO, Cassio Scarpinella. Amicus curiae no processo civil brasileiro: um terceiro enigmático. 3. ed. São
Paulo: Saraiva, 2012. p. 152
75
julgamento debater subjetivamente a constitucionalidade de uma lei, não seria cabível a
inserção de um interesse concreto, eis que não há lide.
Trata-se de reconhecer que a sociedade tem um interesse direto e concreto no
controle de constitucionalidade, tendo em mira que aquela é destinatária das normas
constitucionais e como já foi dito anteriormente, a Constituição que pretende manter sua força
normativa não pode perder de vista os predicados da sociedade que pretende ordenar. Quando
a corte constitucional se presta a conformar Constituição e realidade, não pode deixar de
considerar a segunda, sob pena de fazer sucumbir a própria essência de suas atividades.
É como julga Del Prá:
Ademais, essa tendência vai ao encontro da idéia de que o controle abstrato da
constitucionalidade não configura (ou não deveria configurar) “simples questão
jurídica de aferição de legitimidade da lei em face da Constituição”, devendo, de
fato, envolver “a investigação integrada de elementos fáticos e jurídicos”,
elementos esses que só podem ser trazidos de forma mais profícua mediante a
participação de outros atores da cena social.237
Retomando ao panorama histórico, a primeira participação de amicus curiae após a
Constituição de 1988 ocorreu antes do advento do marco regulatório quanto ao procedimento
de intervenção e manifestação. O julgado em questão é o Agravo Regimental na Ação Direita
de Inconstitucionalidade nº 748/RS238
, que admitiu a participação da Comissão de
Constituição e Justiça da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, visando o
esclarecimento de fatos ainda não trazidos pelas partes.
A comissão ofertou ao STF um estudo técnico sobre as consequências do calendário
rotativo escolar no estado do Rio Grande do Sul, perfilhando um alinhamento com a hipótese
de auxilio técnico para a decisão dos magistrados. Sobre admissibilidade da participação do
ente, o Min. Celso de Mello consignou o seguinte:
Não se pode desconhecer nesse ponto – e nem há possibilidade de confusão
conceitual com o instituto – que o órgão da Assembléia gaúcha claramente atuou, na
237
DEL PRÁ, Carlos Gustavo Rodrigues. Amicus curiae: instrumento de participação democrática e de
aperfeiçoamento da prestação jurisdicional. Curitiba: Juruá, 2011. p. 80 238
A ementa do agravo é a seguinte: “Ação Direita de Inconstitucionalidade. Intervenção Assistencial.
Impossibilidade. Ato judicial que determina a juntada, por linha, de peças documentais. Despacho de
mero expediente. Irrecorribilidade. Agravo regimental não conhecido. O processo de controle normativo
abstrato instaurado perante o Supremo Tribunal Federal não admite a intervenção assistencial de terceiros.
Precedentes. Simples juntada, por linha, de peças documentais apresentadas por órgão estatal que, sem integrar
a relação processual, agiu, em sede de ação direta de inconstitucionalidade, como colaborador informal da
Corte (amicus curiae): situação que não configura, tecnicamente, hipótese de intervenção ad coadjuvandum.
Os depashcos de mero expeidente – como aqueles que ordenam juntada, por linha, de simples memorial
expositivo -, por não se revestirem de qualquer conteúdo decisório, não são passíveis de impugnação meidante
agravo regimental (CPC, art. 504).” (Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental na Ação Direita de
Inconstitucionalidade nº 748/RS. Tribunal Pleno. Relator Ministro Celso de Mello. Julgamento: 01 de agosto
de 1994. Publicação: 18 de novembro de 1994)
76
espécie, como verdadeiro amicus curiae, vale dizer, produzir informalmente, sem
ingresso regular na relação processual instaurada, e sem assumir a condição jurídica
de sujeito do processo de controle normativo abstrato, peças documentais que,
desvestidas de qualquer conteúdo jurídico, veiculam simples informações ou meros
subsídios destinados a esclarecer as repercussões que, no plano social, no domínio
pedagógico e na esfera do convívio familiar, tem representado, no Estado do Rio
Grande do Sul, experiência de implantação do Calendário Rotativo Escolar.239
Após o caso240
mencionado, diversas foram as ações241
que tiveram participação
interventiva. Todavia, o aspecto pluralizador do debate, com a transposição da barreira
simples oferta de memórias para a intensificação da participação dos amicii no jogo
argumentativo, a partir da sustentação oral em juízo.
Foi isto que ocorreu nos julgamentos das ADI 2.675 e 2.777, que tiveram por
relatores os Min. Carlos Veloso e Cezar Peluso, respectivamente. Diz Medina que, após este
precedente, foi incluída a possibilidade de sustentação oral pela Emenda Regimental nº
15/2004, que alterou o Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, para acrescentar o
parágrafo 3º no Art. 131242
:
Art. 131. Nos julgamentos, o Presidente do Plenário ou da Turma, feito o relatório,
dará a palavra, sucessivamente, ao autor, recorrente, peticionário ou impetrante, e
ao réu, recorrido ou impetrado, para sustentação oral.
[...]
§ 3 º Admitida a intervenção de terceiros no processo de controle concentrado de
constitucionalidade, fica-lhes facultado produzir sustentação oral, aplicando se,
quando for o caso, a regra do § 2º do art. 132 deste Regimento.
Em termos numéricos, Medina faz a seguinte análise: “Desde 1999 até 2005, as
associações de classe (39,9%), as associações sem fins lucrativos – ONG (20,25%), as
associações de empresas (10.9%) e as empresas (1,7%) representam 72,75% de todos os
pedidos de ingresso de amicus curiae.”243
E completa com o seguinte:
Essa composição contribui para a ideologização acerca da intervenção do amicus
curiae no Brasil e o seu suposto papel democratizador: um terceiro desinteressado
239
Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental na Ação Direita de Inconstitucionalidade nº 748/RS.
Tribunal Pleno. Relator Ministro Celso de Mello. Julgamento: 01 de agosto de 1994. Publicação: 18 de
novembro de 1994 240
Scarpinella Bueno traça as seguintes observações quanto aquele julgado: “A importância desse julgado é
tanto maior porque, como acabamos de acentuar, desde a alteração do Regimento Interno do Supremo Tribunal
Federal, em 1985, era “vedada a intervenção de terceiros” na ação direita de inconstitucionalidade (art. 169, §
2º). Daí como a própria ementa revela, a discussão travada entre os Ministros sobre a natureza jurídica do
interveniente para discernir uma hipótese da outra.” (BUENO, Cassio Scarpinella. Amicus curiae no processo
civil brasileiro: um terceiro enigmático. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 148 – 149) 241
A relação de ações pode ser encontrada nos anexos da obra de Damares Medina, que promove uma análise
quantitativa, lançando mão de ferramentas estatísticas para precisar a participação do amicus curiae no STF. 242
MEDINA, Damares. Amicus curiae: amigo da corte ou amigo da parte? São Paulo: Saraiva, 2010. p. 76 - 77 243
Ibidem. p. 75
77
que irá promover a democratização da jurisdição constitucional, a partir da defesa de
um interesse público, institucional.244
Assim, cabe estudar os instrumentos legais de absorção da opinião pública
canalizada pelo amicus curiae, os quais estão contidos nas leis nº 9.868 e 9.882, ambas de
1999.
3.5.2 As leis nº 9.868/1999 e 9.882/1999 e suas consequências para o controle concentrado
Através das leis nº 9.868/1999 e 9.882/1999 que a hipótese de intervenção pelo
amicus curiae ficou autorizado para atuar perante as ações do controle de constitucionalidade,
ofertando sua interpretação sobre os dispositivos legais sob julgamento. O escopo da
legislação dita legislação resultou na ampliação dos canais comunicativos entre sociedade e
tribunal.
Ora, o fomento ao debate e o ingresso de pré-interpretações e manifestação de
assentimento dos destinatários das normas. Ademais, a importância de positivar a abertura245
da comunicação confere segurança jurídica a própria sociedade, eis que o ingresso do amicus
curiae deixa de ser mera discrionariedade do julgador e se torna algo palpável, com critérios
bem delineados.
A prescrição legal repousa nos arts. 7º e 9º da Lei nº 9.868/1999, responsável por
regulamentar o curso das ADIN e ADC, bem como no art. 6º da Lei nº 9.882/1999 que trata
da ADPF. Sobre a primeira lei:
Art. 7o Não se admitirá intervenção de terceiros no processo de ação direta de
inconstitucionalidade.
[...]
§ 2o O relator, considerando a relevância da matéria e a representatividade dos
postulantes, poderá, por despacho irrecorrível, admitir, observado o prazo fixado no
parágrafo anterior, a manifestação de outros órgãos ou entidades.
Art. 9o Vencidos os prazos do artigo anterior, o relator lançará o relatório, com cópia
a todos os Ministros, e pedirá dia para julgamento. § 1
o Em caso de necessidade de esclarecimento de matéria ou circunstância de fato
ou de notória insuficiência das informações existentes nos autos, poderá o relator
requisitar informações adicionais, designar perito ou comissão de peritos para que
244
Idem 245
“Além da “positivação” expressa dessa figura, a Lei n. 9.868/99 traz outros dispositivos que representam,
claramente, uma abertura do processo do controle concentrado de constitucionalidade. Não abertura no sentido
de subjetivá-la para localizar os “Caios” e os Tícios”, os ujeitos, que a ele dizem respeito, transformando em
concreto o que, por definição, não é. Mas abertura no sentido de o relator poder (e dever) buscar elementos
seguros sobre os fatos subjacentes à lei cuja constitucionalidade é questionada, que viabilizem a formação de seu
convencimento sobre a tese daquele que postulada a declaração de nulidade da norma questionada perante o
Supremo Tribunal Federal.” (BUENO, Cassio Scarpinella. Amicus curiae no processo civil brasileiro: um
terceiro enigmático. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 153)
78
emita parecer sobre a questão, ou fixar data para, em audiência pública, ouvir
depoimentos de pessoas com experiência e autoridade na matéria. § 2
o O relator poderá, ainda, solicitar informações aos Tribunais Superiores, aos
Tribunais federais e aos Tribunais estaduais acerca da aplicação da norma
impugnada no âmbito de sua jurisdição. § 3
o As informações, perícias e audiências a que se referem os parágrafos anteriores
serão realizadas no prazo de trinta dias, contado da solicitação do relator.
E a segunda:
Art. 6o Apreciado o pedido de liminar, o relator solicitará as informações às
autoridades responsáveis pela prática do ato questionado, no prazo de dez dias. § 1
o Se entender necessário, poderá o relator ouvir as partes nos processos que
ensejaram a argüição, requisitar informações adicionais, designar perito ou comissão
de peritos para que emita parecer sobre a questão, ou ainda, fixar data para
declarações, em audiência pública, de pessoas com experiência e autoridade na
matéria. § 2
o Poderão ser autorizadas, a critério do relator, sustentação oral e juntada de
memoriais, por requerimento dos interessados no processo.
Ao fazer um exame do primeiro dispositivo, salta aos olhos a diferença entre alguns
elementos do enunciado prescritivo: o disposição de duas modalidades de participação, uma
voluntaria e outra por requisição do juiz, as quais se afeiçoam com as duas possibilidades
interventivas já mencionadas neste trabalho.
O empenho deste estudo é voltado para a participação voluntária, já que é a que
permite a abertura procedimental. Quando se debruça sobre o assunto, Del Prá levanta três
características que se entrelaçam na forma de requisitos: voluntariedade, legitimidade e o
binômio relevância da matéria-representatividade dos postulantes.246
A voluntariedade se traduz na iniciativa do terceiro em pleitear ao relator247
que
defira sua participação, seja na oferta de memoriais ou realização de sustentação oral,
246
DEL PRÁ, Carlos Gustavo Rodrigues. Amicus curiae: instrumento de participação democrática e de
aperfeiçoamento da prestação jurisdicional. Curitiba: Juruá, 2011. p. 83 - 84 247
A cerca dos poderes do relator ao tratar se deparar com a manifestação de um amicus curiae e crítica da
argumentação jurídica desempenhada pela jurisprudência brasileira: “Seja no controle difuso seja no concentrado
o Relator da ação tem o poder de aceitar ou não a participação do “amicus curiae”. A questão que se coloca é
que nessa avaliação o magistrado há que considerar se há um interesse para o processo que seja maior –
exclusiva ou predominantemente – do que o interesse somente de uma das partes envolvidas. É dizer, ao faz
sentido a aceitação do “amicus” se sua contribuição não for nem “desejável” nem “útil” ao aporte de um maior
número de diferentes teses (jurídicas ou não) sobre o caso. Perceba-se, no entanto, que essa ideia – de que trazer
o máximo de contribuições para o processo gera um “plus” na decisão – somente subsiste se o órgão julgador
realmente levar a sério todas as teses “ventiladas”, o que, segundo a jurisprudência atualmente dominante, não é
um requisito nem frente às teses das partes. Se nem aos argumentos trazidos pelas partes é dado o status de
merecer consideração integral pelo órgão julgador, haver-se-ia de conferir maior destaque a quem sequer possui
interesse na causa?” (BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco. O crescimento do papel do amicus curiae no
novo CPC: perspectivas sobre a jurisprudência atual do STF. In: DIDIER JÚNIOR, Fredie et al. (Orgs.) Novas
tendências do processo civil: estudos sobre o projeto de Código de Processo Civil. Salvador: Juspodivm, 2013.
p. 268)
De fato, é uma crítica válida, a despeito deste estudo divergir quanto a inexistência de um interesse dos amicii,
há de se buscar mecanismos para favorecer uma teoria de decisão que comporte todas as manifestações
possíveis. Esta é a razão pela qual o presente escrito posiciona-se no âmbito do dever ser da filosofia normativa.
79
devendo destacar, em seu pedido, o atendimento das duas outras características mencionadas.
Nas palavras daquele autor, a simples possibilidade de ingressar em juízo reveste uma nova
forma de pensar a democracia: “Podemos, sem medo, citar dentre as manifestações do
princípio democrático, não só o direito a voto ou a iniciativa popular, mas agora também a
participação voluntária no processo jurisdicional de consolidação da ordem constitucional.”248
Já a legitimidade decorre do permissivo, inscrito na norma, de outros órgãos e
entidades pleitearem o ingresso no feito, desde que satisfação o binômio dito como última
característica. Essa legitimidade decorre, em suma, do “interesse institucional” do amicus
curiae no processo, item este a ser contemplado no item 4.6.
Considerando a adoção do binômio “relevância da matéria-representatividade dos
postulantes”, sobressai a necessidade do postulante demonstrar elementos comprobatórios de
que será afetado pelo julgamento, o que é possível pela conexão entre “a norma questionada e
os valores dispersos pela sociedade civil, ou até mesmo, com outros entes governamentais”.249
Outrossim, no tocante a representatividade do postulante, se tem um mecanismo do
relator avaliar quais outras entidades além daquelas listadas no art. 103 da Constituição
Federal tem admissibilidade no processo constitucional. Com efeito, a representatividade
alude a “toda aquela pessoa, grupo de pessoas ou entidade, de direito público ou de direito
privado, que conseguir demonstrar que tem um específico interesse institucional na causa, e
justamente em função disso, tem condições de contribuir para o debate da matéria”.250
Este comando objetiva excluir manifestações contaminadas pelo sistema
poder/dinheiro251
, o que repele como afina Scarpinella Bueno, o “ingresso de interesses
corporativos de uma determinada entidade”252
. Se tem aqui um mecanismo sadio para
preservar o poder comunicativo que ingressa no manancial argumentativo da Corte253
,
trazendo para esta verdadeira função “contra-colonizadora”254
.
248
Ibidem. p. 84 249
BUENO, Cassio Scarpinella. Amicus curiae no processo civil brasileiro: um terceiro enigmático. 3. ed. São
Paulo: Saraiva, 2012. p. 156 250
Ibidem. p. 161 251
Estes conceitos foram debatidos com profundidade no item 2.7 252
BUENO, Cassio Scarpinella. Amicus curiae no processo civil brasileiro: um terceiro enigmático. 3. ed. São
Paulo: Saraiva, 2012. p. 161 253
Entre as páginas 162 e 169, Cassio Scarpinella Bueno elenca um farto rol de julgados que contaram com
participação de amicus curiae, destacando as entidades participantes. 254
Este termo é uma contribuição desta pesquisa, ao ligar a teoria habermasiana com a disposição legal sobre o
amicus curiae. Para a situação mencionada, a corte constitucional pode formar uma barreira que impeça a
colonização da rede comunicativa e poder administrativo. Ainda que eventuais argumentos viciados pelo sistema
poder/dinheiro ingressem no jogo argumentativo, poderão ser facilmente derrotados pela racionalidade dos
argumentos formados comunicativamente.
80
Sobre o manejo da representatividade pelo STF, Bisch se utilizando da pesquisa de
Medina aponta os seguintes dados:
[...] sobre os requisitos relevância da matéria-representatividade dos postulantes, o
STF tem sido bastante generoso, adotando política de ampla aceitação dos mais
diversos órgãos e entidades como amigos da Corte. Aliás, em recente estudo sobre a
questão, foram identificados 469 processos nos quais houve pedido de ingresso de
terceiros interessados na causa; e dos 1.440 pedidos feitos nestes processos, o STF
acolheu 1.235 (85,8%) e rejeitou 205 (14,25%). De fato, não é exagero apontar que
os deferimentos têm se dado de modo demasiadamente sucinto, quase mecânico,
havendo geralmente a breve constatação de que “há nexo de causalidade entre o
diploma atacado e a representatividade do requerente”.255
Outro ponto que merece destaque alcança a possibilidade de assistente litisconsorcial
entre os co-legitimados pelo art. 103 da Constituição Federal. De acordo com Del Prá, o
projeto original continua previsão expressa favorável à assistência, redigida no § 1º do art. 7º
da 9.866/1999. Todavia, foi objeto de veto presidencial pelo receio de prejudicar a celeridade
processual.256
Para não prejudicar a legitimidade de sua decisão e ampliar o foro argumentativo,
mesmo com a vedação mencionada, o STF no curso da ADIN 2.999/RJ admitiu257
a
participação de co-legitimado como amicus curiae e não como assistente litisconsorcial.
Tratou-se de um marco quanto ao assunto, já que abre alas para uma pluralidade de amicii
intervirem.
Nesse sentido, Del Prá afirma o seguinte:
Portanto, entendemos que os co-legitimados poderão sim intervir como assistentes
litisconsoricais, entretanto, somente no caso de pretenderem auxiliar o assistido em
sua vitória, ou seja, desde pretendem defender a tese da inconstitucionalidade (se
ADIN) ou da constitucionalidade (se Adecon) da norma impugnada, aditando ou não
o pedido. Caso contrário, não poderão ingressar nessa qualidade. E é exatamente
nesse ponto que se insere a vantagem do seu ingresso como amicus curiae. De fato,
255
Ibidem. p. 110 256
DEL PRÁ, Carlos Gustavo Rodrigues. Amicus curiae: instrumento de participação democrática e de
aperfeiçoamento da prestação jurisdicional. Curitiba: Juruá, 2011. p. 85 - 86 257
Deve ser observado que o verbo admitir tem uma carga semântica que deixa transparecer uma postura
solipsista do julgador, que retira o julgamento de suas próprias entranhas e que se reporta aos amicii por mera
formalidade. Por uma ótica puramente habermasiana, em tese, não deveria haver um juízo de admissibilidade
quanto ao ingresso do amicus curiae no feito, consoante tratar-se de um direito dialógico do próprio cidadão.
Todavia, entra-se aqui em um problema: é possível limitar o número de participantes em prol da celeridade
processual? Ao que parece, o ideal seria buscar na própria argumentação desempenhada pelos intervenientes um
mecanismo para delimitar a aceitação ou não daquele argumento – cabendo até mesmo, em caso de argumentos
que fujam ao espectro da temática sob exame, indeferir a participação.
Por outro lado, o juízo de admissibilidade pode ter um efeito positivo que será tratado em momento posterior e
será conectado a função contra-colonizadora que o relator pode vir a ter. O que cabe, neste momento, é propor a
reflexão – para além de Habermas – de qual é o papel ideal do relator e quais poderes lhe podem ser conferidos.
Ainda que esse problema seja abordado nesta ocasião, o estudo não pretende realizar digressões aprofundadas,
eis que aborda em um panorama generalista a relação entre amicus curiae, sociedade civil e poder judiciário.
81
como amicus curiae sua atuação é desvinculada, podendo defender qualquer das
teses, independentemente da tese defendida pelo autor.258
Ainda, a ocorrência de uma pluralidade de intervenções não encontra vedação na
legislação estudada. Ao acatar os argumentos contrários a manifestação de diversos amicii
curiae, sob a alegação que o Supremo Tribunal Federal ficaria sobrecarregado, se tem, por via
transversa, a inviabilidade do desempenho da função institucional da própria corte. Portanto,
não há como determinar um número ideal de intervenções, o que deve ser avaliada pelo
relator diante do caso concreto.259
De mais a mais, no que diz respeito à Ação Declaratória de Constitucionalidade –
Adecon, há aplicação simétrica de todos os elementos mencionados. Por seu turno, a Lei nº
9.882/1999 rege o processamento das Arguições de Descumprimento de Preceito
Fundamental – ADPF, razão pela qual apresenta alguns elementos próprios e que diferem das
demais espécies de ações.
A outra face do controle concentrado está delineada pela ADPF. O permissivo do art.
6º, em seus §§ 1º e 2º - Lei nº 8.882/1999 formam o canal do terceiro para o processo, sendo o
primeiro parágrafo corresponde a prestação de informações por uma atitude ativa do relator,
enquanto a segunda trata de atitude passiva, com apreciação do requerimento do interveniente
interessado260
em participar do processo.261
258
Ibidem. p. 88 – 89
A justificativa do autor para admitir que haja intervenção como assistente litisconsorcial é uma releitura
princípio da unitariedade que impede um assistente de pleitear a improcedência da ação, uma vez que age em
defesa de interesse próprio através da assistência a umas das partes. Trata-se de um argumento mediato, pois se a
assistência fosse nesse sentido, implicaria de fato em prejuízos para o bom andamento processual. (Ibidem. p. 86
– 89) 259
BUENO, Cassio Scarpinella. Amicus curiae no processo civil brasileiro: um terceiro enigmático. 3. ed. São
Paulo: Saraiva, 2012. p. 179 – 180
De outra banda, ao que parece a sobrecarga comunicativa da Corte Constitucional – ou de qualquer tribunal –
não é algo desejável, dado que vai ampliar os riscos de dissensos e a dificuldade de alcançar um patamar
razoável quanto à legitimidade e a validade da decisão. Todavia, a questão é regular os argumentos dentro das
próprias esferas públicas para que a construção procedimental consiga racionalizar todas as propostas e
expectativas normativas. Somente aí é que elas ingressariam através do amicus curiae. Assim, o problema está
mais no campo da moral comunicativa do que na institucionalização comunicativa do direito. O que deve ser
visto é a seletividade do juízo de admissibilidade, que deverá analisar sucintamente se há similitude nas
expectativas e pré-interpretações, para construir aí o consenso procedimental. 260
Sobre o interesse na ADPF, Del Prá consigna: “Há de se reconhecer, ademais, que a expressão “interessados
no processo” não significa que a norma exija a demonstração, pelo terceiro, de que seria titular de um interesse
subjetivo da causa. Ora , como já dissemos, o processo das ações para o controle concentrando da
constitucionalidade (e dentre essas, o da ADPF) é objetivo, não comportando, pois a discussão de interesses
subjetivos. O interesse referido no art. 6º, § 2º, parece ser o mesmo interesse que autoria a intervenção do amicus
curiae na ADIN e na Adecon: interesse público de controle de constitucionalidade.” (DEL PRÁ, Carlos Gustavo
Rodrigues. Amicus curiae: instrumento de participação democrática e de aperfeiçoamento da prestação
jurisdicional. Curitiba: Juruá, 2011. p. 93) 261
Scarpinella Bueno expõe que mesmo com toda a construção dogmática e doutrinária sobre o amicus curiae já
ocorreu rejeição de intervenção em sede de ADPF: “Na ADPF 54, proposta pela Confederação Nacional dos
Trabalhadores na Saúde, que cuida da licitude ou não do aborto de fetos sem cérebro (anencefalia), o relator,
82
A principal diferença entre as legislações tratadas neste tópico é o tratamento da
representatividade difere entre o regramento da ADIN e ADC para o da ADPF, o que implica
um alargamento da participação voluntária, conforme alude Bisch:
Observe-se, contudo, que o STF aponta ser necessária a distinção do instituto,
quando se tratar de ADIN e de ADC, e quando se tratar de ADPF. Nas primeiras
ações, há a previsão de participação de órgãos ou entidades. Por conseguinte, não
poderão intervir voluntariamente pessoas físicas (cientistas, experts, advogados,
professores, etc.) a não ser que haja requisição do juiz para sua manifestação. E, já
que a lei da ADPF admite a manifestação de todos aqueles interessados no processo,
os legitimados a atuarem como amicus curiae formariam rol mais extenso. 262
Em uníssono ao exposto, Del Prá:
Outrossim, diferentemente do que ocorre na ADIN e na Adecon quanto à
legitimidade, na ADPF a participação voluntária é autorizada a “quaisquer
interessados” e não se restringe a determinada qualidade do sujeito (v.g. o que ocorre
naquelas ações, nas quais só poderão manifestar-se voluntariamente como amicus
curiae os co-legitimados e “outros órgãos ou entidades”).263
Por derradeiro, deve ser ventilada a manifestação através de audiência pública no
controle concentrado.264
Trata-se de uma forma de intervenção com caráter mais instrutório
do que postulatório265
na qual é designada uma data para oitiva de certas entidades, pessoas
ou órgãos que satisfaçam o binômio relevância da matéria-representatividade dos postulantes,
que pode ser voluntária quanto fruto de requisição do relator. A previsão legal é encontrada
Ministro Marco Aurélio, entendeu ser o caso de indeferir o ingresso da Confederação Nacional dos Bispos do
Brasil na qualidade de amicus curiae. Negou, para tanto, a possibilidade de aplicação, por analogia do
dispositivo no art. 7º, §2º, da Lei n. 9.868/99 para a ação direta de inconstitucionalidade e ao procedimento da
arguição de descumprimento de preceito fundamental e, mais que isso, salientou que a admissão do amicus
curiae dependeria de reputar o relator, a seu critério exclusivo, oportuna a oitiva.” (BUENO, Cassio Scarpinella.
Amicus curiae no processo civil brasileiro: um terceiro enigmático. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 192) 262
BISCH, Isabel da Cunha. O amicus curiae, as tradições jurídicas e o controle de constitucionalidade: um
estudo comparado à luz das experiências americana, europeia e brasileira. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2010. p. 109 263
DEL PRÁ, Carlos Gustavo Rodrigues. Amicus curiae: instrumento de participação democrática e de
aperfeiçoamento da prestação jurisdicional. Curitiba: Juruá, 2011. p. 94 264
E sobre o reflexo da decisão mencionada na nota 82, o Relator encontrou a seguinte solução: “Entendeu,
contudo, determinar, ele próprio, a oitiva de diversos segmentos da sociedade brasileira sobre a questão, dada a
patente polêmica que o tema envolvia e todos os valores nele representados, que extrapolam – e em muito – o
campo exclusivamente jurídico. Evito, é certo, tratar essa convocação com o nome amicus curiae, preferindo o
nome de “audiência pública”. Não há como negar, entretanto, a similaridade tem capacidade de assumir para o
julgamento da causa.” (BUENO, Cassio Scarpinella. Amicus curiae no processo civil brasileiro: um terceiro
enigmático. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 192) 265
“Destarte, não obstante o silêncio da Lei n. 9882/99, não há como recusar a possibilidade de intervenção de
amicus curiae também nas arguições de descumprimento de preceito fundamental perante o Supremo Tribunal
Federal. Nem que seja, na linha como a essa intervenção se referiu o Ministro Marco Aurélio na ADPF 54, mais
como ato instrutório do que como ato postulatório.” (Ibidem. p. 200)
83
na conjugação dos arts. 9º, § 1º e 20, § 1º266
da Lei 9.868/1999 para o caso da ADIN e ADC267
e do já citado art. 6º, § 1º, da Lei 9.882/1999 para ADPF.268
Tal instrumento de participação colmata as preocupações quanto à abertura da
legitimidade ativa finde obstruindo a celeridade processual, inviabilizando assim os
julgamentos do Supremo Tribunal Federal.269
Por tal razão, a faceta instrutória possibilita uma
conexão mais direta com o feito, subsidiando o jogo argumentativo com as impressões dos
destinatários do julgamento.
Daí se pensar a audiência pública como uma das possibilidades interventivas do
amicus curiae. Diferentemente do anexo de memoriais ou o requerimento da sustentação oral,
a audiência pública possibilita ao juízo um contato mais intimo com a expectativa normativa,
tendo elucidada particularidades intrínsecas ao caso. É nesse sentido que Del Prá arremata:
“Em qualquer hipótese, esses terceiros estarão cumprindo função assemelhada à do amicus
curiae, muito embora guarde estreita similitude com a figura do perito ou da testemunha.”270
266
Art. 20. Vencido o prazo do artigo anterior, o relator lançará o relatório, com cópia a todos os Ministros, e
pedirá dia para julgamento. § 1o Em caso de necessidade de esclarecimento de matéria ou circunstância de fato
ou de notória insuficiência das informações existentes nos autos, poderá o relator requisitar informações
adicionais, designar perito ou comissão de peritos para que emita parecer sobre a questão ou fixar data para, em
audiência pública, ouvir depoimentos de pessoas com experiência e autoridade na matéria. 267
No prisma histórico, a primeira audiência pública nos termos da Lei 9.868/1999 ocorreu no julgamento da
ADI nº 3.510, que tratou da Lei de Biossegurança. A audiência foi convocada pelo relator, Ministro Carlos
Ayres Britto. 268
Em termos de Regimento Interno, o arts 13, inciso XVII e 21, inciso XVII tratam da audiência pública,
conferindo ao Presidente ou ao Relator a competência para convocar a oitiva de pessoas com experiência ou
autoridade em determinada questão. A prescrição ocorreu por força da Emenda Regimental nº 29/2009. O
procedimento a ser seguido é tratado no inciso III e no parágrafo único do art. 154 do Regimento Interno: Art.
154. Serão públicas as audiências: iii – para ouvir o depoimento das pessoas de que tratam os arts. 13, inciso
XVII, e 21, inciso XVII, deste Regimento. Parágrafo único. A audiência prevista no inciso III observará o
seguinte procedimento: i – o despacho que a convocar será amplamente divulgado e fixará prazo para a
indicação das pessoas a serem ouvidas; ii – havendo defensores e opositores relativamente à matéria objeto da
audiência, será garantida a participação das diversas correntes de opinião; iii – caberá ao Ministro que presidir a
audiência pública selecionar as pessoas que serão ouvidas, divulgar a lista dos habilitados, determinando a ordem
dos trabalhos e fixando o tempo que cada um disporá para se manifestar; iv – o depoente deverá limitar-se ao
tema ou questão em debate; v – a audiência pública será transmitida pela TV Justiça e pela Rádio Justiça; vi – os
trabalhos da audiência pública serão registrados e juntados aos autos do processo, quando for o caso, ou
arquivados no âmbito da Presidência; vii – os casos omissos serão resolvidos pelo Ministro que convocar a
audiência. Art. 155. O Ministro que presidir a audiência deliberará sobre o que lhe for requerido. § 1º Respeitada
a prerrogativa dos advogados, nenhum dos presentes se dirigirá ao Presidente da audiência, a não ser de pé e com
sua licença. § 2º O secretário da audiência fará constar em ata o que nela ocorrer. 269
Scarpinella Bueno deixa esta preocupação bem clara ao transcrever o veto presidencial ao art. 2º, II, da Lei nº
9.882/1999. Para este autor, o fato da legislação facultar a qualquer pessoa representar está interligada com a
função institucional desempenhada pelo STF, razão pela qual a participação é imprescindível para satisfazer a
legitimidade daquela corte. (Ibidem. p. 197 - 199)
Complementando, o pensamento de Del Prá sobre a função do relator: “Poderá, para tanto e para fins de evitar
desnecessário tumulto, impor restrições, seja quanto à qualidade dos interessados, seja quanto ao seu número. O
que importa reconhecer é que essa possibilidade não pode ser excluída, porquanto a lei não fixa o procedimento
a ser observado pelo relator. Assim, ficará ao seu critério, levando-se em conta as peculiaridades de cada caso.”
(DEL PRÁ, Carlos Gustavo Rodrigues. Amicus curiae: instrumento de participação democrática e de
aperfeiçoamento da prestação jurisdicional. Curitiba: Juruá, 2011. p. 96) 270
Idem.
84
É seguro afirmar que a audiência pública é uma espécie de intervenção possível,
dentre aquelas intituladas como amicus curiae, tendo como escopo a instrução processual e a
manutenção da celeridade processual, enquanto as outras detêm caráter postulatório e são
manifestadas no anexo de memoriais e da sustentação oral.271
Diante do caso concreto, caberá ao relator, após manifestação de todos os
interessados, definir qual rito interventivo é mais adequado para o processamento da
demanda: se fará a manifestação tradicional através do anexo de memoriais, sendo facultada a
sustentação oral; se designará data para audiência pública ou ainda a possibilidade de
combinar ambas as hipóteses, já que o silêncio legal não implica em exclusões de uma ou
outra forma.
Com efeito, pensar a audiência pública como espécie de amicus curiae é reforçar a
proposta deste estudo, já que nela se enxerga forte essência habermasiana. Quando a
audiência pública ocorre, há um nivelamento racional – ou a paridade de armas, visto em uma
perspectiva endoprocessual – que enfeixa os argumentos pluralistas rumo a vitória daquele
que for melhor na construção compartilhada das essências que compõem a vontade cidadã e a
opinião pública procedimental.
Corrobrando o exposto, Alexandre Melo Franco Bahia e Amanda Melilo de Matos:
Estes institutos correspondem, então, a intermediadores entre a sociedade e o
Judiciário, o que é de suma importância para a efetivação de jurisdição
constitucional democrática e para que nenhuma decisão seja tomada com a exclusão
de algum plano de vida individual ou de forma parcial, sem considerar as
preferências de todos os envolvidos. Com isto, pode-se afirmar que a importância
deles se dá por idealmente promoverem a democracia discursiva de Jürgen
Habermas e a sociedade aberta de intérpretes de Peter Härberle.272
271
Que também sustenta esta tese é Mônia Clarissa Hennig Leal: “propõe-se, pois, uma nova classificação do
amicus curiae no âmbito do controle concentrado de constitucionalidade, esta não por forma de intervenção, mas
sim por critério de finalidade e de natureza de intervenção, em que se pode identificar um amicus curiae gênero,
ou seja, que constitui elemento comum de informação do juízo e que se divide em outras duas espécies: amicus
curiae em sentido estrito, que se refere ao artigo 7º, §2º, da Lei 9.868/99 (que permite a sua manifestação
voluntária e espontânea, proporcionando uma pluralização do debate constitucional ao trazer ao órgão julgador
mais pontos de vistas e condições para o julgamento) e amicus curiae em sentido lato, que compreende as suas
demais formas de intervenção no controle concentrado de constitucionalidade, como no caso do artigo 9º, §1º,
Lei 9.868/99, que constitui forma de intervenção por iniciativa do relator, trazendo elementos técnicos e
informativos ao processo, como ocorre no caso das informações adicionais apresentadas por requisição do relator
e da audiência pública com a oitiva de pessoas com experiência e autoridade da matéria.” (LEAL, Mônia
Clarissa Hennig. Ativismo judicial e participação democracia: a audiência pública como espécie de amicus
curiae e de abertura da jurisdição constitucional – a experiência do Supremo Tribunal Federal brasileiro na
audiência pública da saúde. In: LEAL, Rogério Gesta. LEAL, Mônia Clarissa Hennig (Orgs.) Ativismo judicial
e déficts democráticos: algumas experiências latino-americanas e européias. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.
p. 231 – 232) 272
BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco. MATOS, Amanda Melilo. A figura do “amicus curiae” como um
instrumento de participação de minorias na jurisdição constitucional brasileira. In: BUSTAMENTE, Thomas.
SAMÁPAIO, José Adércio Leite. SILVA, Adriana Campos. MOREIRA, Ana Luísa Navarro. (Orgs.) Separação
de poderes, democracia e constitucionalismo: anais do II Congresso Internacional de Direito Constitucional e
Filosofia Política. Volume I. Belo Horizonte: Initia Via, 2016. p. 182
85
É a chance para que a sociedade debata, além de instruir o feito, em uma “situação
ideal de fala”, o que transparece o caráter procedimental que as audiências públicas podem
assumir, reforçando assim as cortes como fóruns discursivos, em que a própria sociedade
pode discutir tanto o conteúdo quanto o aceite da norma jurídica a ser cunhada.
Encerrado este ponto, o texto se debruça sobre a intervenção no bojo do controle
incidental de constitucionalidade, ventilando tanto a hipótese do incidente de
inconstitucionalidade quanto à intervenção no julgamento dos recursos extraordinários.
3.5.3 O amicus curiae no controle incidental de constitucionalidade
A Lei nº 9.868/1999273
não restringiu seus efeitos ao controle concentrado, lançando
vistas também ao controle incidental274
. Na época da edição, a lei produziu alterações no art.
482 do antigo Código de Processo Civil. Com a edição do Código de Processo Civil em 2015,
o art. 482 teve sua disposição transposta para o art. 950, abaixo transcrito:
Art. 950. Remetida cópia do acórdão a todos os juízes, o presidente do tribunal
designará a sessão de julgamento.
§ 1o As pessoas jurídicas de direito público responsáveis pela edição do ato
questionado poderão manifestar-se no incidente de inconstitucionalidade se assim o
requererem, observados os prazos e as condições previstos no regimento interno do
tribunal.
§ 2o A parte legitimada à propositura das ações previstas no art. 103 da Constituição
Federal poderá manifestar-se, por escrito, sobre a questão constitucional objeto de
apreciação, no prazo previsto pelo regimento interno, sendo-lhe assegurado o direito
de apresentar memoriais ou de requerer a juntada de documentos.
§ 3o Considerando a relevância da matéria e a representatividade dos postulantes, o
relator poderá admitir, por despacho irrecorrível, a manifestação de outros órgãos ou
entidades.
273
Scarpinella Bueno sustenta que mesmo que o dispositivo não mencione expressamente o termo amicus
curiae, trata-se de verdadeira hipótese amoldada a este instituto, tendo em vista as características interventivas
que podem ser depreendidas da legislação. (BUENO, Cassio Scarpinella. Amicus curiae no processo civil
brasileiro: um terceiro enigmático. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 202) 274
Sobre o controle incidental, André Ramos Tavares leciona o seguinte: “Nesse contexto, convém lembrar
proposta de emenda constitucional objetivando criar o chamado “incidente de (in)constitucionalidade”, buscando
acrescentar um novo parágrafo ao art. 103: “§ 5º O Supremo Tribunal Federal poderá, acolhendo incidente de
constitucionalidade proposto pelas pessoas e entidades referidas no caput, admitida a relevância, determinar a
suspensão de processos em curso perante qualquer juízo ou tribunal, para proferir decisão, com eficácia e efeito
previstos no § 2º do artigo anterior, que verse exclusivamente sobre a matéria constitucional suscitada”. Apesar
de não ter sido incorporada essa proposta, o sistema brasileiro de combinação de modelos sofreu mudanças que,
nitidamente, impuseram uma certa “objetivização” ao controle de constitucionalidade realizado em âmbito de
processo subjetivo (não sem uma certa contradição teórica, mas com grande alcance prático). “Objetivização”
justamente no sentido de converter um processo tipicamente subjetivo em processo de características e
elementos inegavelmente “objetivos”. Assim, considere-se, aqui, a ideia de “objetivização” como uma
aproximação entre as regras do controle abstrato-concentrado e as regras do controle difuso-concreto, com
ascendência daquelas nestas, ou seja, com o predomínio do que seria um processo objetivo. A abstrativização é,
contudo, apenas parte do fenômeno da objetivização.” (TAVARES, André Ramos. Curso de direito
constitucional. 10. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 309)
86
Na visão de Del Prá, a extensão da abertura do controle de constitucionalidade tem
como pressuposto:
A opção do legislador foi claramente no sentido de possibilitar ao Pleno ou o órgão
do Tribunal, quando do julgamento da questão constitucional, a absorção dos
elementos importantes e relevantes que podem ser trazidos pelas pessoas jurídicas
que editaram o ato questionado. Não houvesse a previsão, o controle incidental
sofreria enorme perda em relação ao controle concentrado, porque aqui, essas
informações sempre deverão ser prestadas (Ladin, art. 6º).275
Ainda que o controle incidental tenha sido exposto as intervenções, diversas foram as
negativas de participação de amicus curiae alheios ao incidente de inconstitucionalidade. No
caso, as manifestações pleiteadas no HC 48.375/GO, no MS 27.098/DF, no MS 26.552
AgR/DF, no MS. 26.150/DF e no RE 591.648/BA foram negadas, pois tratavam os feitos de
questões meramente subjetivos.276
De outra banda, existem julgados, a exemplo do HC 82.424/RS, em que a Corte
solicitou, de ofício, a prestação de informações por terceiros. Como se tratava de um
julgamento que questionava a definição dos crimes de racismo e antissemitismo, foram
chamados diversos juristas para contribuir a uma definição da expressão “raça”.277
Outrossim, contribuindo para reforçar a importância do controle incidental perante o
corpo social, a Emenda Constitucional nº 45/2004 adicionou a necessidade de repecurssão
geral para admissibilidade dos Recursos Extraordinários, dirigidos ao STF. A regulamentação
infraconstitucional da repercussão geral está situada no art. 1035 do Código de Processo
Civil:
Art. 1.035. O Supremo Tribunal Federal, em decisão irrecorrível, não conhecerá do
recurso extraordinário quando a questão constitucional nele versada não tiver
repercussão geral, nos termos deste artigo.
§ 1o Para efeito de repercussão geral, será considerada a existência ou não de
questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico que
ultrapassem os interesses subjetivos do processo.
§ 2o O recorrente deverá demonstrar a existência de repercussão geral para
apreciação exclusiva pelo Supremo Tribunal Federal.
§ 3o Haverá repercussão geral sempre que o recurso impugnar acórdão que:
I - contrarie súmula ou jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal;
II – (Revogado);
III - tenha reconhecido a inconstitucionalidade de tratado ou de lei federal, nos
termos do art. 97 da Constituição Federal.
275
DEL PRÁ, Carlos Gustavo Rodrigues. Amicus curiae: instrumento de participação democrática e de
aperfeiçoamento da prestação jurisdicional. Curitiba: Juruá, 2011. p. 98 276
BISCH, Isabel da Cunha. O amicus curiae, as tradições jurídicas e o controle de constitucionalidade: um
estudo comparado à luz das experiências americana, europeia e brasileira. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2010. p. 114 277
Ibidem. p. 115
87
§ 4o O relator poderá admitir, na análise da repercussão geral, a manifestação de
terceiros, subscrita por procurador habilitado, nos termos do Regimento Interno do
Supremo Tribunal Federal.
§ 5o Reconhecida a repercussão geral, o relator no Supremo Tribunal Federal
determinará a suspensão do processamento de todos os processos pendentes,
individuais ou coletivos, que versem sobre a questão e tramitem no território
nacional.
§ 6o O interessado pode requerer, ao presidente ou ao vice-presidente do tribunal de
origem, que exclua da decisão de sobrestamento e inadmita o recurso extraordinário
que tenha sido interposto intempestivamente, tendo o recorrente o prazo de 5 (cinco)
dias para manifestar-se sobre esse requerimento.
§ 7º Da decisão que indeferir o requerimento referido no § 6º ou que aplicar
entendimento firmado em regime de repercussão geral ou em julgamento de
recursos repetitivos caberá agravo interno.
§ 8o Negada a repercussão geral, o presidente ou o vice-presidente do tribunal de
origem negará seguimento aos recursos extraordinários sobrestados na origem que
versem sobre matéria idêntica.
§ 9o O recurso que tiver a repercussão geral reconhecida deverá ser julgado no prazo
de 1 (um) ano e terá preferência sobre os demais feitos, ressalvados os que
envolvam réu preso e os pedidos de habeas corpus.
§ 10. (Revogado).
§ 11. A súmula da decisão sobre a repercussão geral constará de ata, que será
publicada no diário oficial e valerá como acórdão.
A repercussão geral contribui para que a Corte filtre as demandas que tenham maior
relevância, que transcenda o interesse individual, razão pela qual é admitida a manifestação de
amicus curiae, como se vê no § 4º do artigo acima transcrito. Nesse sentido, foi justificada a
manifestação da Confederação Nacional da Industria no julgamento do Recurso
Extraordinário 565.714/SP, que versou sobre a base de cálculo do adicional de
insalubridade.278
Ademais, o amicus curiae também pode intervir na edição, revisão e cancelamento
de enunciado de súmula vinculante, como ventila o art. 3º, §2º da Lei nº 11.417/2006: “§ 2o
No procedimento de edição, revisão ou cancelamento de enunciado da súmula vinculante, o
relator poderá admitir, por decisão irrecorrível, a manifestação de terceiros na questão, nos
termos do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal.”
278
Sobre o paralelo de amicus curiae e repercussão geral: “O tema da repercussão geral como via de economia e
celeridade processuais, além de “boa gestão judiciária”, impõe ao Supremo Tribunal Federal o dever de permitir
e dar ênfase às deliberações e discussões públicas. Mesmo porque a essência do requisito da repercussão reside
na superação dos limites da própria lide – i.e., na transcendência da controvérsias constitucional nele suscitada.
O recurso extraordinário leading case nada mais é que um conflito particular ab initio em cujo deslinde estará a
solução de muitos outros casos similares. A própria noção de repercussão geral exige que assim seja. (FONTE,
Felipe de Melo. CASTRO, Natália Goulart. Amicus curiae, repercussão geral e o projeto de código de processo
civil. In: DIDIER JÚNIOR, Fredie et al. (Orgs.) Novas tendências do processo civil: estudos sobre o projeto de
Código de Processo Civil. Salvador: Juspodivm, 2013. p. 879)
88
3.5.4 Outras possibilidades de manifestação
Por derradeiro, destaca-se que a participação do amicus curiae não fica retida no
âmbito da jurisdição constitucional, pois já foram elencadas circunstâncias interventivas de
órgãos oficiais no primeiro capítulo. Ainda que, que não estejam no âmbito deste estudo, se
consigna as previsões do art. 14, § 7º da Lei nº 10.259/2001279
que dispõe sobre a participação
de terceiros no Procedimento de Uniformização de Jurisprudência e dos Juizados Especiais,
além dos incisos I e II do art. 1.038280
do Código de Processo Civil que faculta a intervenção
de terceiros quando ocorrer pluralidade de recursos especiais versando sobre uma mesma
questão de direito, perante o Superior Tribunal de Justiça.
Outra oportunidade de intervenção é a intervenção no incidente de resolução de
demandas repetitivas – IRDR, cujo intento é preservar a integridade e coesão da ordem
jurídica, nos termos do art. 976281
do Código de Processo Civil. Tal instituto282
unifica o
julgamento de uma mesma situação jurídica, evitando que esta seja julgada de forma diferente
pelos diversos juízos que compõe o poder judiciário.
Por fim, um último exemplo que pode ser enquadrado como amicus curiae - no
formato de oferta de informações ao juízo - são os Núcleos de Apoio Técnico ao Poder
Judiciário – “NAT-Jus”. Tratam-se de órgãos com previsão administrativa que oferecem aos
que aos magistrados pareceres técnicos relativos a medicamentos e tratamentos médicos,
provendo subsídio para as decisões que envolvem questões do direito à saúde.
279
Art. 14. Caberá pedido de uniformização de interpretação de lei federal quando houver divergência entre
decisões sobre questões de direito material proferidas por Turmas Recursais na interpretação da lei. § 7o Se
necessário, o relator pedirá informações ao Presidente da Turma Recursal ou Coordenador da Turma de
Uniformização e ouvirá o Ministério Público, no prazo de cinco dias. Eventuais interessados, ainda que não
sejam partes no processo, poderão se manifestar, no prazo de trinta dias. 280
Art. 1.038. O relator poderá: I - solicitar ou admitir manifestação de pessoas, órgãos ou entidades com
interesse na controvérsia, considerando a relevância da matéria e consoante dispuser o regimento interno; II -
fixar data para, em audiência pública, ouvir depoimentos de pessoas com experiência e conhecimento na matéria,
com a finalidade de instruir o procedimento; 281
Art. 976. É cabível a instauração do incidente de resolução de demandas repetitivas quando houver,
simultaneamente: I - efetiva repetição de processos que contenham controvérsia sobre a mesma questão
unicamente de direito; II - risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica. § 1o A desistência ou o abandono do
processo não impede o exame de mérito do incidente. § 2o Se não for o requerente, o Ministério Público intervirá
obrigatoriamente no incidente e deverá assumir sua titularidade em caso de desistência ou de abandono. § 3o A
inadmissão do incidente de resolução de demandas repetitivas por ausência de qualquer de seus pressupostos de
admissibilidade não impede que, uma vez satisfeito o requisito, seja o incidente novamente suscitado. § 4o É
incabível o incidente de resolução de demandas repetitivas quando um dos tribunais superiores, no âmbito de sua
respectiva competência, já tiver afetado recurso para definição de tese sobre questão de direito material ou
processual repetitiva. § 5o Não serão exigidas custas processuais no incidente de resolução de demandas
repetitivas. 282
O IRDR é verdadeira inovação do Novo Código Civil, que ressalta a necessidade de uma argumentação
jurídica, pois o confronto das teses jurídicas dependerá dos fundamentos apresentados pelos atores processuais.
Daí a importância do amicus curiae: contribuir para que o máximo de argumentos possíveis para aquela questão
– sejam eles de ordem fática ou jurídica – adentrem o processo e sejam submetidos ao crivo da corte.
89
A origem destes órgãos está ligada à Jornada da Saúde, promovida pelo Conselho
Nacional de Justiça - CNJ283
:
A partir dos resultados da Audiência Pública nº 4, realizada pelo STF em maio e
abril de 2009, o CNJ constituiu um grupo de trabalho (Portaria n. 650, de 20 de
novembro de 2009). Os trabalhos do grupo culminaram na aprovação da
Recomendação n. 31, de 30 de março de 2010, pelo Plenário do CNJ que traça
diretrizes aos magistrados quanto às demandas judiciais que envolvem a assistência
à saúde. Em 6 de abril de 2010, o CNJ publicou a Resolução n. 107, que instituiu o
Fórum Nacional do Judiciário para monitoramento e resolução das demandas de
assistência à Saúde – Fórum da Saúde. O Fórum da Saúde é coordenado por um
Comitê Executivo Nacional (Portaria n. 8 de 2 de fevereiro de 2016) e constituído
por Comitês Estaduais. A fim de subsidiar com informações estatísticas os trabalhos
do Fórum, foi instituído, por meio da Resolução 107 do CNJ, um sistema eletrônico
de acompanhamento das ações judiciais que envolvem a assistência à saúde,
chamado Sistema Resolução 107. Após realizar dois encontros nacionais, o Fórum
da Saúde ampliou sua área de atuação para incluir a saúde suplementar e as ações
resultantes das relações de consumo.
Os NAT-Jus consistem em uma parceria firmada pelo Ministério da Saúde e o CNJ
ofertando aos juízes um banco de dados alimentado pelo Hospital Sírio-Libanês, com
evidências científicas sobre o funcionamento de substâncias e fármacos. Na compilação vão
constar pareceres emitidos pelo NAT-Jus e outras entidades conveniadas.284
3.6 O AMICUS CURIAE NO CÓDIGO DE PROCESSO: NATUREZA JURÍDICA
ENQUANTO INTERVENÇÃO DE TERCEIRO
Sob a égide do Código de Processo Civil de 2015, o amicus curiae foi alçado a
posição de verdadeira intervenção de terceiro, constando no Título III – Da intervenção de
terceiros, Capítulo V da dita legislação. Isto posto, é lúcido pensar o enquadramento deste
instituto a luz da novel codificação, de modo a promover uma sistematização apta a descrever
as particularidades que lhe são intrínsecas.
Hoje há o enquadramento do amicus curiae como um verdadeiro terceiro, a despeito
que no passado não havia consenso na doutrina se era uma intervenção de terceiro ou simples
auxiliar do juízo. Cassio Scarpinella Bueno diz que o amicus curiae é um sujeito
283
Disponível em: http://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/forum-da-saude Acesso em: 13 mar 2017 284
Disponível em: http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/83779-decisoes-judiciais-na-area-da-saude-terao-suporte-
tecnico-de-especialistas Acesso em: 13 mar 2017
90
processual285
, com legitimidade para “praticar os atos correlatos à sua própria existência de
estar no processo.”286
Daí a existência do art. 138 do Código de Processo Civil:
Art. 138. O juiz ou o relator, considerando a relevância da matéria, a especificidade
do tema objeto da demanda ou a repercussão social da controvérsia, poderá, por
decisão irrecorrível, de ofício ou a requerimento das partes ou de quem pretenda
manifestar-se, solicitar ou admitir a participação de pessoa natural ou jurídica, órgão
ou entidade especializada, com representatividade adequada, no prazo de 15
(quinze) dias de sua intimação.
§ 1o A intervenção de que trata o caput não implica alteração de competência nem
autoriza a interposição de recursos, ressalvadas a oposição de embargos de
declaração e a hipótese do § 3o.
§ 2o Caberá ao juiz ou ao relator, na decisão que solicitar ou admitir a intervenção,
definir os poderes do amicus curiae.287
§ 3o O amicus curiae pode recorrer da decisão que julgar o incidente de resolução de
demandas repetitivas.
Enquanto terceiro, o amicus curiae tem uma natureza jurídica própria288
, uma
identidade que o diferencia dos demais terceiros e das partes processuais. Daí o instituto ter
sido elevado a uma categoria própria, consoante depreende-se da localização deste no Código
de Processo Civil. Ainda, o amicus curiae se diferencia de três institutos principais:
assistência, custos legis e do perito. Existem aproximações dos amicii com essas três figuras,
sem que elas sejam confundidas, já que suas atividades findam se diferenciando em
determinado momento da relação processual.
A aproximação com o custos legis ocorre quando um órgão público, a exemplo da
CVM, CADE ou INPI intervém no feito para “fiscalizar” a aplicação da lei. Obviamente que a
função de custos legis está ligada ao Ministério Público, com competências definidas pela
própria Constituição Fedaral. Mesmo assim, persiste uma similitude nas atividades quando
pensados os vetores ilocutórios.
Com a palavra para justificar o exposto, Bueno:
Não vemos como olvidar a circunstância que todo o papel que, entre nós, é
reservado tradicionalmente ao Ministério Público para atuar na qualidade de fiscal
da lei, é no direito norte-americano – em que o amicus curiae é da tradição -,
285
Em que pese Cassio Scarpinella Bueno utilizar do termo “sujeito processual”, esta investigação aponta que a
nomenclatura mais adequada para a proposta aqui defendida é “ator processual”, pois esta segunda se alinha com
os pressupostos dialógicos reportados ao longo do texto. 286
BUENO, Cassio Scarpinella. Amicus curiae no processo civil brasileiro: um terceiro enigmático. 3. ed. São
Paulo: Saraiva, 2012. p. 395 287
Não obstante, o caráter dialógico da atividade dos amicii pode ser conferido como um poder processual pelo
juiz ou relator, nos termos do parágrafo 2º. 288
“Ser terceiro, aqui, quer significar, apenas, que o amicus não é parte. Também são terceiros os assistentes, os
oponentes, os nomeados, os denunciados e os chamados. Mas também são terceiros os peritos, os intérpretes e o
próprio Ministério Público quando atuante na qualidade de fiscal da lei. Essa circunstância, não aproxima, por si
só, os amicii daquelas outras figuras. Apenas revelam um traço em comum.” (Ibidem. p. 396)
91
reservado para o amicus. É do amicus curiae, justamente pelo seu alto grau de
expertise e conhecimento m determinas áreas mais específicas do direito, que se
espera uma manifestação sobre a escorreita aplicação da lei no caso concreto.
Quando menos, para secundar a atuação do juiz, usualmente muito dependente às
declarações das partes, em função do adversary system, que, como o nosso princípio
dispositivo, marca a tradição da jurisdição civil.289
Nesta visão, as entidades que possuem algum grau de expertise sobre a matéria
podem auxiliar o juízo na tutela dos direitos que passem ao largo de sua missão institucional.
Ao promover uma “equiparação” destas funções, fica claro o interesse dos terceiros na correta
aplicação da lei, não se diferenciando, neste ponto, do Ministério Público, enquanto auxiliar
do juízo.
Complementando o exposto:
Ressalta-se, entretanto, que ambos ajudam na elucidação da questão por parte do
magistrado, principalmente em relação às questões técnicas, e aumentam a
participação democrática na jurisdição, tendo em vista que ambos [Ministério
Público e amicus curiae] são representantes da sociedade.290
Em que pese haver a aproximação, ela fica restrita para os casos em que a
intervenção é feita por órgão oficial, com atribuição legal atinente a matéria em análise, não
sendo estendida para as manifestações da sociedade civil. Daí que encerra aqui a aproximação
dos dois institutos, afora a existência de ônus processuais e poderes diferentes, quando a
atuação do Ministério Público é pensada de forma sistêmica.291
Dada às devidas proporções, se o amicus curiae lembra o custos legis quando oferta
informações ao juízo, a produção probatória desempenhada pelos amicii pode ser semelhante
a do perito. Ora, na medida em que o amicus curiae atua como vetor para que as expectativas
normativas que envolvam um caso que comporte grande abertura interpretativa e decisória,
convém pensar os amicii como tradutores da realidade.
Talvez a aproximação com o perito seja aquela que mais acolha as teses aqui
sustentadas, quanto à pré-interpretação manifestada no assentimento de determinada
conjectura jurídica. Com efeito, o amicus curiae entrega ao juízo uma interpretação possível
289
Ibidem. p. 399 290
SILVA, Fernando Gabriel de Carvalho e. Amicus Curiae no novo código de processo civil. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2016. p. 38 291
Em harmonia com o que foi dito, Scarpinella Bueno também compreende que os demais casos de intervenção
do amicus curiae fogem ao espectro do custo legis, pois a função desempenhada é ligada a elementos de
produção probatória e não informativos. Ademais, o autor consigna o seguinte: “Dada a gravidade dessa figura
entre nós, é preferível que seja reservada, com exclusividade, aos entes que são criados pela própria lei para dada
e específica finalidade e que, não por acaso, são destacados para assim atuar também em juízo. Para as demais
hipóteses, o amicus curiae é muito bem-vindo. Mas dele nãos e espera que se apresente como “guardião do
direito objetivo” que caracteriza, frisamos o seu “ser institucional”. O seu ser é um pouco menos. Que contribua
com a sua voz, seus valores, suas reflexões e seus anseios para a produção de melhor decisão jurisdicional.”
(BUENO, Cassio Scarpinella. Amicus curiae no processo civil brasileiro: um terceiro enigmático. 3. ed. São
Paulo: Saraiva, 2012. p. 402 – 403)
92
para o caso concreto, devendo ser submetida ao procedimento argumentativo racional que é
intrínseco a atividade jurisdicional. Essa equiparação é nítida quando se tem a ocorrência de
audiências públicas.
Por fim, cabe a ressalva:
É nesse sentido, pensamentos que o amicus curiae [...] equipara-se ao perito. Não
para substituí-lo em sua função, repetimos, mas para conviver com ele e com todos
os demais sujeitos do processo, com os olhos, comuns, voltados a um só objetivo: o
proferimento da melhor decisão judicial. É o sentido comum, no vernáculo, da
cooperação.292
A última figura que tangencia a atuação do amicus curiae é o assistente. Ambos
atuam com um interesse jurídico próprio e podem ser afetados pelos efeitos pragmáticos da
decisão judicial. Entretanto, como o assistente postula uma vitória conjunta com a do
assistido, os atores processuais se afastam, uma vez que o amicus curiae tem um interesse
direcionado as consequências do feito e não o objeto da ação per si.
A grande afinidade entre os dois sujeitos é quanto ao modelo interventivo em sua
forma do que necessariamente com o conteúdo ou postulados realizados no bojo da
intervenção. Daí se reputar um afastamento entre amicus curiae e assistência, uma vez que
cada uma terá atuação específica.293
De mais a mais, fica claro neste ponto a natureza própria do amicus curiae: se trata
de uma intervenção de um terceiro ator processual; que pode tanto auxiliar o juízo na devida
aplicação da lei quanto produzir provas, indicando qual será o efeito da decisão; e que tem
interesse conexo ao resultado final do julgamento e não com as causas que lhe deram origem;
buscando em todas as hipóteses a decisão mais adequada e procedimentalmente correta para o
caso concreto.
Por outro lado, é importante destacar que o interesse do amicus curiae é um interesse
institucional294
, que aduz uma co-originalidade entre os interesses jurídico e público.
Scarpinella Bueno leciona sobre este ponto com as seguintes elucubrações: “O interesse
292
Ibidem. p. 406 293
“Nesse sentido, a qualidade do interesse que legitima a intervenção do amicus curiae em juízo afasta-o do
assistente. Embora seja um interesse jurídico que dá, em ambos os casos, ensejo à intervenção, seu diferente
contorno é suficiente para distinguir as duas hipóteses. Nessas condições, o referencial do assistente (simples ou
litisconsorcial) para o amicus curiae é muito mais de “forma”, de “modelo” de intervenção do que,
propriamente, de substância, de conteúdo. As motivações subjacentes à intervenção de um e de outro são
diversas.” (Ibidem. p. 410) 294
Para os fins adotados neste estudo, é preciso diferenciar a acepção dada ao termo “institucional”. Trata-se de
um sentido que irá reportar-se aos agrupamentos sociais que atuam discursivamente no bojo da esfera pública. O
interesse institucional não se reporta – somente - ao poder judiciário, mas sim a todos aqueles grupos que
guardem pertinência temática com o tópico sob exame e que possam contribuir para o feito a partir de suas
percepções enquanto destinatários das normas.
93
institucional, contudo, é interesse jurídico, especialmente qualificado, porque transcende o
interesse individual das partes. E é jurídico no sentido de estar previsto pelo sistema, a ele
pertencer, e merecedor, por isso mesmo, de especial proteção ou salvaguarda.”295
De outra banda, o interesse institucional também se molda como público, pois:
[...] o é justamente porque transcende o interesse individual de cada uma das partes
litigantes, que para nós é mais saliente, porque transcende o próprio ‘interesse”
eventualmente titularizado pelo próprio amicus curiae. O interesse institucional é
público no sentido de que deve valer em juízo pelo que ele diz respeito às
instituições que ele próprio amicus pode, eventualmente, possuir e os possuirá, não
há como negar isso, legitimamente.296
Os poderes processuais297
do amicus curiae compreendem as faculdades processuais
que podem ser exercidas pelo interventor e “decorrem do grau de interesse que justifica sua
intervenção e de acordo com a própria razão de ser de sua finalidade.” Esses poderes formam
“poderes-meio”, de caráter instrumental para influenciar no mérito da decisão, dando a esta e
ao “direito material conflituoso” os ‘”contornos que justificam” a própria intervenção do
amicus curiae, “contribuindo necessariamente, com novas informações, novos elementos,
novas indagações” para ampliar a legitimidade da decisão.298
Destes poderes-meio que se desdobram a possibilidade de apresentar informações,
memoriais e produzir provas, praticando os atos instrutórios que se fizerem necessários para
alcançar o objetivo da intervenção. Tais poderes processuais são bastante claros e estão
intrínsecos à atuação interventiva em juízo. Por isso que o § 2º do art. 138 determina que cabe
ao julgador definir os poderes do amicus curiae na decisão que admite o ingresso deste.
Vale destacar que a intervenção dos amicii não possui o condão, por si só, de
deslocar a competência, quando o terceiro for autarquia federal, a exemplo do que ocorre com
o CADE ou CVM nas ações em curso na justiça estadual. Há previsão299
sobre o tema no § 3º
do art. 138 do Código de Processo Civil.
Nos dizeres de Luiz Rodrigues Wambier e Teresa Arruda Alvim Wambier:
A rigor, deve-se manter o processo na Justiça Estadual, eis que a competência da
Justiça Federal, nos termos que dispõe a regra do art. 109 da CF/1988, é estabelecida
em função das pessoas que integram a relação jurídica processual e não da matéria
295
Ibidem. p. 460 296
Ibidem. p. 460 - 461 297
O trabalho oferta este conceito para a natureza jurídica do instituto, contudo, como o objeto de estudo é
voltado para o amicus curiae enquanto coletor da opinião pública, não será feito um aprofundamento quanto aos
poderes processuais, tendo em vista que sairia da abrangência desta pesquisa. 298
Ibidem. p. 505 - 506 299
Antes da existência do Novo Código de Processo Civil, o tema foi objeto do Recurso Especial de nº
1.212.661/RS, interposto perante o Superior Tribunal de Justiça e que findou no reconhecimento da
impossibilidade recursal do amicus curiae.
94
sob julgamento. O amicus curiae não integra a relação jurídica processual, nem
como parte “principal”, nem como parte “secundária”, não se justificando, portanto,
que seu ingresso no processo seja fator determinante para a transferência da
competência, da esfera estadual para a federal.300
De outra banda, também existe mudança no Código de Processo Civil quanto a
legitimidade recursal301
do amicus curiae, consoante a leitura conjunta dos parágrafos 1º e 3º
do art. 138. Como aduz Wambier, existem um temor de que assegurar a recorribilidade ampla
aos amicii findaria em uma sobrecarga dos tribunais, o que é claramente indesejável. Porém,
se deve tomar nota da seguinte observação:
O que, ao que parece, pode suprimira falta de recurso do amicus curiae é a
possibilidade de ele se manifestar em 1.º grau, em 2.º grau e nos Tribunais
Superiores, tendo prevalecido (ou não – caso em que recorria, se pudesse fazê-lo) a
solução jurídica da controvérsia, que lhe parece a mais adequada. Assim a
intervenção do amicus curiae continua ocorrendo em suas sucessivas manifestações,
tendo as partes recorrido para levar o processo da 1.ª à 2ª. Instância, e de lá aos
Tribunais Superiores.302
3.7 AMICUS CURIAE E A OPINIÃO PÚBLICA NA PERSPECTIVA DA ABERTURA
COMUNICATIVA-PROCESSUAL
O amicus curiae é muito mais que um “amigo da corte” ou “amigo da parte”, tendo
em vista não só os interesses institucionais do terceiro-interveniente e da própria sociedade
civil, mas também judiciário em apresentar uma decisão legitimada procedimentalmente para
a sociedade. O desacoplamento disto implica na ruptura da própria função de guarda
constitucional, já que haverá total ignorância do julgador quanto à Constituição real.
Isto pode levar a uma deterioração da força normativa constitucional e, em última
instância, a decisão política que finde na elaboração de um novo documento, razão pela qual a
nomenclatura “amigo da corte” aparenta ser mais adequada.
300
WAMBIER, Luiz Rodrigues. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Tratado jurisprudencial e doutrinário:
direito processual civil. Volume I. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 528 301
É válida citar a observação de Marinoni: “Na verdade, o legislador parte de uma pressuposição de: que a
decisão do incidente de resolução de demandas repetitivas pode gerar um precedente. É sem dúvida correto
imaginar que o debate gerado no incidente e a sua decisão podem gerar um caldo de razões que deve ser levado
em consideração pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça, em sendo o caso, para a
decisão da questão – a partir da qual se pode obter um precedente. No entanto, a formação de precedentes no
direito brasileiro não está de modo nenhum vinculada a uma forma específica: é incorreto supor que precedentes
só podem advir e só interessam em termos de causas repetitivas. Essa é a razão pela qual o amicus curiae poderá
interpor recurso sempre que do exame da questão pelo órgão ad quem possa advir um precedente. Esse é o
significado normativo do art. 138 § 3º. (MARINONI, Luiz Guilherme. ARENHART, Sérgio Cruz. MITIDIERO,
Daniel. Novo curso de processo civil: teoria do processo civil, volume I. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2015. p. 99) 302
WAMBIER, Luiz Rodrigues. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Tratado jurisprudencial e doutrinário:
direito processual civil. Volume I. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 544
95
A justificativa para ser um amigo da corte navega pelo imperativo que supre a
legitimidade procedimental, pois o instituto é que forma o canal comunicativo entre as esferas
públicas e a jurisdição constitucional, através do qual os argumentos da sociedade civil são
apreciados dialogicamente pelo órgão julgador. 303
Deve ser lembrado que o amicii pode assumir funções distintas: uma de oferta de
informações alheias à ou formação ou ao conhecimento do magistrado e outra de participação
democrática, seja no viés de Peter Häberle – com a sociedade ofertando sua pré-interpretação
- ou na ótica de Jürgen Habermas – com a efetivação dos princípios do discurso e da
democracia.
Daí ser importante pluralizar o debate: os setores não colonizados podem trazer à
baila os argumentos moralmente adequados e fazer o contraponto com os argumentos
viciados, sendo a participação do amicus curiae a raiz de uma função anticolonizadora, já que
torna possível combater a influência dos sistemas poder e dinheiro no poder comunicativo.304
Isto ressalta a importância de manter abertos os canais comunicativos, pois não se
trata de um simples acesso ao tribunal, mas sim uma verdadeira forma de fomentar as
mudanças necessárias pela sociedade civil, o que pode ser feito tanto no judiciário, como
palco político para concretização das mudanças, quanto como uma maneira de demonstrar ao
poder administrativo os argumentos que vem sendo lançados pela esfera pública.
Deve ser ressaltado que as conjecturas ofertadas acima não implicam em transformar
o judiciário em uma esfera pública, mas sim permitir que as esferas públicas ingressem em
juízo. A diferença por uma ou outra perspectiva cinge aos danos ao próprio acesso à justiça. É
que no momento que o judiciário se transformar numa esfera pública, o processo será
303
No momento que o judiciário julga contra a sociedade, ele fomenta a desobediência civil que pode escalar em
eventual conflito bélico. Há um pressuposto de racionalidade que implica o ônus argumentativo, até mesmo
como um cânone utilitarista: as consequências da não atenção à devida argumentação pode levar a consequências
nefastas, as quais vão da desobediência civil até mesmo sanções - ou quissá intervenções - no plano do Direito
Internacional, pois há prevalência do sistema de proteção aos Direitos Humanos. Não obstante isto, existe a
função de filtragem, já que tem a possibilidade de discursos comunicativos romperem com a própria raiz de
direitos inscritos na Constituição, e por outro lado, tal mecanismo também permite identificar se o judiciário é a
instituição mais indicada para efetivação daquele debate, na forma de questionamentos a serem respondidos
pelos julgadores: isto pode ser decidido pelo STF sem prejuízos da separação dos poderes ou existe uma lacuna
para ser preenchida? Existe alguma justificativa nos fatores reais de poder, na pré-interpretação da sociedade ou
na manifestação de aceite do princípio da democracia? Há indícios que é uma questão madura ou se trata de uma
perturbação momentânea? 304
A abertura procedimental através do amicus curiae no viés contracolonizador consegue suprir o niilismo que
está por trás da atividade jurisdicional. Essa visão pessimista é tratada na música “And Justice for All” do
Metallica, a qual versa sobre a contaminação da jurisdição pelo dinheiro, levando a excessos de poder que
esmagam a sociedade. Dar vez e voz a sociedade civil permite se afastar dessa justiça paternalista para um outro
modelo, calcado na supremacia do cidadão e da Constituição e que revive a crença na justiça como uma
construção de valores comuns e eleitos comunicativamente pela autonomia política. E também é preciso saber
ouvir o que é dito – a jurisdição deve estar realmente aberta, não sendo o procedimento uma mera formalidade a
ser cumprida.
96
inundado por um influxo comunicativo de tal porte que o aparato judicante não terá como
absorver tamanha complexidade.
Por outro lado, no momento que se propugna pela esfera pública como ente ativo na
dinâmica processual, está sendo colocado um marco legitimador para a própria atividade do
poder judiciário. E aqui não se trata de um simples direito de petição que deve ser conferido
aos amicii, mas sim a derradeira condição de agente condutor da realidade normativa, que irá
saborear na própria pele os efeitos do julgado.
Em outras palavras: o debate principal deve acontecer no âmbito da sociedade civil e
os argumentos resultantes é que são submetidos ao crivo judicial.305
Portanto, esse primado
reproduz a concepção de autonomia política - outrora trabalhada no item 2.6 – dentro do
processo civil, consignando à sociedade civil a condição de escolher o conteúdo dos direitos e
discuti-los publicamente no fórum adequado.
Se os atos processuais podem ser encarados como atos fala - pois sempre há um viés
ilocutório por traz de cada proposição deduzida em juízo - é necessário estudar a
racionalidade da jurisdição sob o prisma da teoria comunicativa, como será visto no próximo
capítulo, indicando de que maneira as manifestações do amicus curiae são tratadas pela
jurisdição.
305
Em considerando a natureza espontânea das esferas públicas identificada por Habermas, é lúcido afirmar que
é possível que os debates ocorram na sociedade em paralelo com a apreciação do tema pelo poder judiciário.
97
4 O PROCESSO DELIBERATIVO NA ATIVIDADE JURISDICIONAL: UMA
PERSPECTIVA DISCURSIVA
Este capítulo está debruçado sobre a temática da jurisdição constitucional. Para que
seja possível a discussão, parte-se dos conhecimentos de como a opinião pública é formada e
de que maneira ela é canalizada através do amicus curiae e das eclusas processuais,
inicialmente, até desembocar na própria atividade jurisdicional.
Em um primeiro momento, serão observadas as proposições habermasianas quanto à
atividade judicante, com o diálogo de Habermas com outros teóricos que tratam sobre a
racionalidade da jurisdição. Em seguida, serão tecidos paralelos da proposta de Habermas
com o Código de Processo Civil.
A visão deste estudo pretende se enraizar em uma teoria da decisão judicial perene,
de sorte que se atrela à legitimidade do próprio Tribunal, destacando a influência do poder
comunicativo oriundo da opinião pública na práxis constitucional. Não obstante, as conexões
e os contrapontos que serão feitas a seguir são necessários para encaixar o pensamento de
Habermas quanto à deliberação procedimental no contexto do neoconstitucionalismo.
Em outras palavras: não se pretende seguir nos trilhos de Habermas contra
Habermas, ou a partir e para além. A observação das conexões essenciais para descrever o
fenômeno da opinião pública em juízo e sua correlação com a legitimidade da decisão judicial
é o que se almeja.
O cerne da questão está que a teoria de Habermas não direciona necessariamente a
aplicação do modelo discursivo para o Judiciário, razão pela qual é necessário se escorar em
uma visão mais ampla do modelo deliberativo, o que será feito com um breve aporte em
Ricardo Tinoco de Góes.
Nesta senda, também não será aprofundado um debate sobre o ativismo ou
conservadorismo, pois as pretensões teóricas passam ao largo destes polos, que constituem
verdadeiros extremos da atividade que a jurisdição pode assumir e que carece de uma
experiência empírica, no panorama brasileiro, de uma normalidade institucional que permita
observar outro arranjo dos poderes. De igual maneira, o estudo não fará observação quanto ao
mecanismo de composição da corte, consoante estar fora do marco teórico estabelecido.
Feitas tais considerações de ordem teórico-metodológica, segue a análise do modelo
de jurisdição inicialmente proposto por Habermas.
98
4.1 O MODELO HABERMASIANO DE JURISDIÇÃO
Na perspectiva da teoria do discurso, a legitimidade das normas depende da
participação de todos aqueles que forem – direta ou indiretamente – afetados pelas suas
consequências, de modo que tenham elas a oportunidade de expressar sua concordância. Todo
o sistema do direito pressupõe que o princípio da democracia – na condição de face jurídica
do princípio do discurso – realize a mediação dos dissensos morais, através da construção de
consensos procedimentais, alicerçados na vitória de argumentos racionais e livres de coação.
Apesar de estarem em um patamar abstrato, os princípios e os direitos fundamentais
são interpretados e incorporados por intermédio do direito constitucional e nele incorporados.
Sua função maior é servir de plataforma para as atividades integrativas. A sociedade elege
discursivamente aqueles direitos que considera importantes, harmonizando as autonomias
públicas e privadas de cada indivíduo.
A inserção dos princípios e dos direitos fundamentais perpassa pela evolução dos
modelos de direito adotados no curso da história. No caso, a teoria do discurso apresenta um
terceiro paradigma além do direito formal burguês306
e do Estado social e requer uma dupla
visão sobre o papel do direito.
Sob essa ótica, o sistema jurídico é enxergado para além de um sentido amplo
“sistema social parcial, especializado na estabilização de expectativas de comportamento,”307
pois, em sentido mais estrito, o direito engloba a institucionalização de interações308
outrora
não reguladas pelo próprio e que necessitam de regras secundárias para constituir e transmitir
as competências da dinâmica jurídica.
Ao realizar o corte metodológico na atividade jurisdicional, Habermas não pretende
restringir a análise do sistema jurídico, mas sim o compreender a partir do valor funcional que
aquela possui. Nesse sentido, observa que a tensão entre facticidade e validade309
inerente ao
306
Habermas entende por “direito formal burguês” o que outros autores chamam de Estado Liberal. 307
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Volume I. Trad. de Flávio Beno
Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. p. 242. 308
Interações, nesse caso, são ações morais advindas das relações comunicativas – e racionais - que implicam em
inovações ou alterações que necessariamente devam repercutir perante o sistema jurídico. 309
A tensão entre facticidade e validade surge justamente pelos dissensos que emanam da pluralidade de mundos
da vida. Facticidade consiste na capacidade impositiva da norma, fruto de um processo legislativo racional. Já a
validade está ligada à fé dos membros da comunidade na legitimidade. Quando uma norma necessita de uma
sanção para valer seu teor, trata-se de uma facticidade artificial. Por outro lado, essa tensão é intensificada na
medida que as normas coíbem o agir estratégico – orientado por um sucesso próprio e que substitui a capacidade
de o outro aceitar a validade dos argumentos propostos - e amarram a vontade livre dos sujeitos em torno de uma
validade deontológica. O que resolve o dito conflito é o processo de fundamentação do direito pelo princípio da
democracia.
99
direito é projetada para a jurisdição como dicotomia entre “segurança jurídica” e a “pretensão
de tomar decisões corretas”.
Como dito acima, a práxis jurisdicional requer um resgate simultâneo da dupla
validade normativa para fazer resolver a problemática entre teoria principiológica e realidade
concreta. Para tanto, os juízos devem satisfazer os critérios de aceitabilidade racional e
consistência da decisão de modo a garantir tanto a segurança jurídica quanto a correção310
.
Habermas pensa a racionalidade da jurisdição para solucionar a tensão entre
segurança jurídica e a decisão correta, tendo por base uma teoria voltada à intersubjetividade
do discurso jurídico. Para que o direito mantenha a perspectiva integradora do mundo da vida,
a atividade jurisdicional deve satisfazer a duas condições: aceitabilidade racional e decisão
consistente311
.
Existem três correntes que pretendem solucionar a problemática da racionalidade
jurisprudencial: hermenêutica jurídica, realismo e positivismo jurídico.
A corrente hermenêutica redige um sistema para além da mera subsunção da regra ao
caso concreto, propondo um modelo baseado na interpretação e que incute na atividade
jurisdicional a racionalidade, pois contextualiza a norma, a partir da pré-compreensão
valorativa do estado de coisas, na história e na tradição.
Ademais, para esta corrente, a norma diz respeito à situação selecionada do mundo
da vida, enquanto o estado de coisas que a norma é capaz de constituir não se esgota pelo
conteúdo semântico da norma. Trata-se aqui da abertura cognitiva que é necessária para que o
intérprete produza sua atividade, avaliando os topoi a partir da história, da ética e da
tradição.312
Já o realismo valoriza a decisão judicial que seja válida perante uma sociedade
pluralista, eis que os diferentes topos podem ser encarados como “ideologia ou preconceito”,
310
Correção, nesse sentido, de estar correta, ser a decisão adequada para a realidade concreta comunicativa,
dirimindo o caso trazido ao crivo da autoridade judicante. Difere aqui da pretensão de correção de Alexy, que
envolve o grau de justiça do direito ao ser subordinado à moral. Para este autor, a “conexão necessária entre
direito e moral” forma “o conteúdo da tese da correção”. O objetivo desta tese é subsidiar a respostas às
questões jurídicas que conteudisticamente sejam questões morais. Daí que a pretensão à correção jurídica se
vincula a uma correção moral. (ALEXY, Robert. Conceito e validade do direito. Trad. Gercélia Batista de
Oliveira Mendes. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011. p. 92 – 93) 311
A própria noção de consistência é pontuada pela aderência da decisão à ordem jurídica, nos liames da
segurança jurídica. Isto implica na “história institucional” ser utilizada como pano de fundo para as decisões
futuras. Se os discursos morais alimentam o mundo da vida – então pano de fundo da atividade comunicativa – a
jurisprudência e os precedentes formados vão retroalimentar o sistema jurídico. Se tem aqui uma forte
semelhança, em Habermas, com a noção de romance em cadeia proposta por Ronald Dworkin, de que Habermas
absorve a noção de que a decisão judicial é uma criação da história e da moral. (HABERMAS, Jürgen. Direito e
democracia: entre facticidade e validade. Volume I. Trad. de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1997. p. 245 – 247) 312
Ibidem. p. 246 – 248
100
sendo necessário que o julgador analise empiricamente elementos extrajurídicos que colorem
a decisão em seu âmbito psicossocial.
Levado as últimas consequências, o realismo legal provoca a confusão entre direito e
política, já que as decisões não têm preocupação com a tradição ou a história, mas sim com a
construção de um futuro pautado em um utilitarismo racional que visa proporcionar um bem-
estar econômico e estabilização social.313
Assim, os processos decisórios podem ser descritos da mesma maneira que os de
poder político. Mitiga-se a segurança jurídica em prol de um amplo decisionismo, para que o
julgador cunhe o futuro com suas decisões, a partir de orientações axiológicas. O fim do
direito se torna político e utilitarista, satisfazendo critérios de bem estar econômico. Tal
posicionamento prejudica a estabilização das expectativas de comportamento, pois fecha os
canais para os próprios atores processuais.
Em outra ponta, o positivismo jurídico prega a estabilização das expectativas
fundadas em proposições jurídicas próprias, pertencentes a um sistema autônomo de regras
que garante a consistência das decisões, apartando estas da atividade política. A racionalidade
da jurisdição independente das tradições éticas ou da contextualização política do julgador,
favorecendo a história institucionalizada no próprio sistema jurídico, manifestada em regras
jurídicas positivadas. Trata-se, pois, da legitimidade a partir da legalidade do procedimento.314
Tendo em vista que o positivismo é incapaz de resolver os chamados hard cases, já
que o enaltecimento da segurança jurídica pretere à garantia de correção315
, Habermas opta
por uma reconstrução da teoria dos direitos de Ronald Dworkin, inserida no campo da
hermenêutica jurídica, a despeito de contar características particulares:
[...] a referência hermenêutica a uma pré-compreeensão determinada por princípios
não deve entregar o juiz à história de tradições autoritárias com conteúdo normativo;
ao contrário, esse recurso obriga-o a uma apropriação crítica de uma história
institucional do direito, na qual a razão prática deixou seus vestígios.316
Ainda, Dworkin tece críticas às duas outras correntes acima mencionadas, como
identifica Habermas:
Contra o realismo, Dworkin sustenta a possibilidade e a necessidade de decisões
consistentes ligadas a regras, as quais garantem uma medida suficiente de garantia
do direito. Contra o positivismo, ele afirma a possibilidade e a necessidade de
313
Ibidem. p. 248 – 250. 314
Ibidem. p. 250 - 252 315
Ibidem. p. 251 316
Ibidem. p. 252
101
decisões “corretas”, cujo conteúdo é legitimado à luz de princípios (e não apenas
formalmente, através de procedimentos).317
Para seguir o estudo com maior lastro científico, será realizada uma breve digressão
na teoria de Ronald Dworkin, fazendo contraponto com as anotações habermasianas.
4.2 A TEORIA DOS DIREITOS, O JUIZ HÉRCULES E O ROMANCE EM CADEIA DE
RONALD DWORKIN
A tese dworkiana pretende solucionar todos os entraves das teorias anteriores,
ilustrando que a decisão pode satisfazer tanto a segurança jurídica quanto a aceitabilidade
racional. Ronald Dworkin rompe o reducionismo e universalismo das regras jurídicas como
única fonte de primazia do direito, pois seu intento é desconstruir o positivismo, a partir da
visão de H.LA. Hart318
, elencando os princípios como última trincheira jurídica.
Para ser devidamente estrutura, a teoria de Dworkin prevê um conteúdo moral para
os direitos. Quando absorvidos pelo direito, os conteúdos morais podem variar em expressões
que vão da expectativa geral de cumprimento normativo até mesmo ao conteúdo das normas.
Tais postulados orientam o legislador e influenciam no conteúdo do direito, que deve ser
moralmente justificado.
Revestidos de direitos subjetivos embriagados nessa máxima, formam-se os
trunfos319
que impedem os abusos gerados por “finalidades coletivas”. De mais a mais, o
direito absorve argumentos morais mediante o processo legislativo, os quais são traduzidos
para o código do direito. Na verdade, a acepção do direito em Dworkin remonta para um
enlaço naturalista, já que identifica no homem a capacidade inata de esboçar planos e fazer
justiça.
Trata-se de uma leitura moral320
da Constituição, da qual advém o arcabouço
principiológico, pois entre normas de alto teor moral e aquelas desmoralizadas – no caso as
317
Idem. 318
Dworkin direciona suas críticas à teoria de Hart por entender que se trata da forma mais sofisticada de
positivismo que, na época que redigiu seus escritos, era sustentada. A crítica é direcionada a partir das lacunas
existentes no modelo de regras, de tal maneira que estas são insuficientes para preencher o sistema jurídico, daí
ter de chamar os princípios para solucionar questões de ordem política. (DWORKIN, Ronald. Levando os
direitos a sério. Trad. de Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 34- 36) 319
“Os direitos individuais são trunfos políticos que os indivíduos detêm. Os individuais têm direitos, quando
por alguma razão, um objetivo comum não configura uma justificativa suficiente para negar-lhes aquilo que,
enquanto indivíduos, desejam ter ou fazer, ou quando não há justificativa suficiente para lhes impor alguma
perda ou dano.” (Ibidem. p. XV) 320
A leitura moral ilustra uma forma particular de ler e aplicar uma Constituição política a qual propõe que
juízes, advogados e cidadãos interpretem e apliquem as cláusulas abstratas da Constituição invocando princípios
acerca da moralidade política e da justiça. A práxis jurisdicional aplica instintivamente a Constituição como
102
que ofertam prêmios ou transferências – estão as normas procedimentais intermediárias,
atinentes às regras de competência, as quais podem incluir comportamentos moralmente
relevantes.
A teoria de Dworkin aborda a validade jurídica por um prisma deontológico, o que
significa uma abordagem construtivista a hermenêutica. O direito, para este autor, não é
legitimado pela estrita legalidade. De fato, o discurso jurídico é independente dos juízos
morais e políticos, apesar de que estes podem ser transcritos para a linguagem do direito.
Não se trata de um sistema fechado em si, pois o discurso jurídico pode absorver
elementos extralegais através de argumentos principiológicos, os quais justificam a obtenção
do objetivo pretendido com a demanda judicial. As normas estabilizadoras das expectativas de
condutas são formadas pela jurisprudência quando esta considera as questões políticas –
objetivos legislativos – na ótica dos princípios.
Isto quer dizer que a teoria do direito engloba muito mais do que regras: são
necessários princípios e políticas que determinam as soluções de hard cases - casos difíceis,
cujos problemas são incapazes de ser trabalhados na perspectiva de um modelo de regras.
Tais casos são aqueles em que as regras não apontam uma solução jurídica, havendo a
necessidade de a decisão ser gerada a partir de princípios e políticas.321
O conceito de princípios atine aos “padrões que não são regras”, mas cujo “padrão
deve ser observado”, pois trata-se de uma “exigência de justiça ou equidade ou alguma outra
dimensão da moralidade”. Já por políticas, Dworkin compreende um “padrão que estabelece
um objetivo a ser alcançado, em geral uma melhoria em algum aspecto econômico, político
ou social da comunidade”.322
As regras, de um modo geral, não se destinam a solucionar os hard cases, mas sim
são vocacionadas a resolver os easy cases, em que há simples fixação de um componente
deôntico para as partes, como ocorre nos processos judiciais mais simples. Já os princípios
são direcionados aos hard cases, pois as regras invariavelmente possuem dois problemas: elas
apresentam lacunas – que podem ser preenchidas pelos princípios – e a existência de
expressão de requerimentos morais abstratos que só podem ser aplicados concretamente através de novos juízos
morais, o que não significa que os juízes não podem ler suas próprias convicções na Constituição, ou seja, não
podem ler cláusulas morais abstratas a partir de um juiz moral particular, mas que respeitem a Constituição como
um todo, construídas a partir com as linhas dominantes da interpretação constitucional do passado e de outros
juízes. (DWORKIN. Ronald. La lectura moral de la constituición y la premisa mayoritaria. Instituto de
Investigaciones Jurídicas. Universidade Nacional Autónoma de México, 2002. p. 03-29. n. 7, julio-diciembre,
2002) 321
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. de Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
p. 131 322
Ibidem. p. 36
103
antinomias, em que diferentes regras podem conflitar entre si, as quais geram insegurança e
incerteza, dificultando a aplicação do direito pelo próprio jurista.
Os princípios vão compor o sistema jurídico justamente pela necessidade de
preenchê-lo, orientando tanto o preenchimento de lacunas como a resolução das antinomias.
Quando as regras colidem, vai prevalecer o critério do tudo ou nada: uma regra será aplicada
em detrimento de outra, que será invalidada para aquele caso em espeque. Daí as regras são
impossíveis de serem harmonizadas.
No caso dos hard cases, os princípios terão um peso323
a ser atribuído, por
intermédio da fundamentação, evitando situações injustas, em especial quando as regras são
lacônicas. O recurso aos princípios faz com que um pese mais para a solução do caso do que
outro, estando relacionados com as políticas de compromisso teleológico – finalístico.
A ideia de interpretação ainda é revista por Dworkin ao tratar da distinção de regras –
normas concretas – e princípios – prescrições a serem interpretadas324
. Ao serem utilizadas
como argumentos, regras e princípios fundamentam a decisão em uma lógica distinta: as
regras comportam um “se” que define as situações de sua aplicação, enquanto os princípios,
pela amplitude, dependem da interpretação para incidir sobre uma condição específica. Isto se
justifica na medida que a decisão judicial assume um caráter político325
.
Para fornecer a segurança jurídica, o autor lança mão das regras como medida de
garantia do direito. Já para assegurar a aceitabilidade, trata de vincular as decisões aos
princípios, os quais legitimam a decisão judicial, na perspectiva argumentativa: “Os
argumentos de princípio justificam uma decisão política, mostrando que a decisão respeita ou
garante um direito a um individuo ou de um grupo.”326
323
“Os princípios possuem uma dimensão que as regras não têm – a dimensão do peso ou importância. Quando
os princípios se intercruzam [...], aquele que vai resolver o conflito tem de levar em conta a força relativa de
cada um. Esta não pode ser, por certo, uma mensuração exata e o julgador que determina que um princípio ou
uma política particular é mais importante que outra freqüentemente será objeto de controvérsia.” (Ibidem. p. 42) 324
Dworkin diverge de Robert Alexy nesse ponto, por não assinalar um caráter teleológico aos princípios, como
aquele autor o faz, ao considerar esses como “mandamentos de otimização”. Dworkin, ao dar a natureza
deontológica aos princípios, aduz uma percepção que os princípios são muito mais de fontes de apoio à atividade
hermenêutica-intepretativa. Os princípios por si só são fontes normativas que são capazes de amparar e
devidamente fundamentar a decisão jurídica. 325
O caráter político existe quando as decisões judiciais são fundamentadas nos princípios e não por argumentos
de políticas, como é o caso das criações parlamentares. Trata-se de o juiz antecipar uma decisão que será feita
pelo legislador, com base nos princípios, para resolver o caso concreto. Dworkin afirma o seguinte: “As decisões
judiciais são decisões políticas, pelo menos no sentido mais amplo que remete a doutrina da responsabilidade
política.” A justificativa se dá pela liberdade que o julgador possui para “dizer que uma determinada política
pode ser adequadamente sustentada, no caso em juízo [...], de sorte que nem as decisões anteriores, nem as
hipotéticas decisões futuras precisem ser compreendidas como uma sustentação da mesma política.” (Ibidem, p.
138 – 139) 326
Ibidem. p. 129
104
Para descrever o processo interpretativo, Dworkin cria a alegoria do “romance em
cadeia”. Este autor propõe que cada juiz trabalha em uma corrente, reescrevendo o novo
capítulo a partir do interior, ou seja, voltando-se sempre para o passado com o propósito de
formar o presente. A nova decisão terá a mesma projeção da anterior: versar sobre o caso em
espeque e formar um paradigma para futuras decisões.327
Nas palavras de Dworkin:
Cada juiz, então, é como um romancista na corrente. Ele deve ler tudo o que outros
juízes escreveram no passado, não apenas para descobrir o que disseram, ou seu
estado de espírito quando o dissertam, mas para chegar a uma opinião sobre o que
esses juízes fizeram coletivamente, da maneira como cada um de nossos romancistas
formou uma opinião sobre o romance coletivo escrito até então. Qualquer juiz
obrigado a decidir uma demanda descobrirá, se olhar nos livros adequados, registros
de muitos casos plausivelmente similares, decididos há décadas ou mesmo séculos
por muitos outros juízes, de estilos e filosofias judiciais e políticas diferentes, em
períodos nos quais o processo e as convenções judiciais eram diferentes. Ao decidir
o novo caso, cada juiz deve considerar-se como parceiro de um complexo
empreendimento em cadeia, do qual essas inúmeras decisões, estruturas, convenções
e práticas são a história, é seu trabalho continuar essa história no futuro por meio do
que ele faz agora. Ele deve interpretar o que aconteceu antes porque tem a
responsabilidade de levar adiante a incumbência que tem em mãos e não partir em
alguma nova direção.328
Pelo direito ser um empreendimento político, cada juiz irá interpretar a “história
jurídica” dando-lhe a roupagem necessária para estar coerente aos princípios e às políticas.
Não se trata de “inventar uma história melhor”, tendo em vista que o discurso jurídico deve
ser plausibilizado por uma teoria política, a fim de encontrar a resposta correta. Isto se deve
ao fato de que os casos difíceis podem suscitar diversas respostas, sendo a interpretação em
cadeia um mecanismo para encontrar aquela mais coerente, apta a manter o direito íntegro.329
Por isso a relevância da moral nesse modelo de interpretação reconstrutiva: esta deve
servir de medida para o direito e apresenta um outro modo de validade quando inserida no
código jurídico. Não há de se falar em moralização do direito, pois tanto os conteúdos morais
quanto os jurídicos das normas fundamentais se cruzam no prisma do princípio da
democracia.330
327
Fica clara a veia fenomenológica de Dworkin, já que o comportamento do romance em cadeia é semelhante
àquele adotado pelas interpretações do mundo da vida, que resolvem tanto questões de validade intersubjetiva
quanto retornam para o repositório interpretativo para assim orientar futuras deliberações. Sobre mundo da vida,
ver item 2.3. 328
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Trad. de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes,
2001. p. 238 329
Ibidem. p. 240 - 241 330
Ronald Dworkin vê a relação de direito e moral como uma estrutura em forma de árvore. Não se tratam de
dois sistemas separados, como apregoa a distinção clássica. Direito e moral guardam uma relação circular – ou
de co-originalidade, em uma nomenclatura habermasiana – e estão situadas em um mesmo local. O direito, para
Dworkin, é um ramo – ou subdivisão - da moral política. A ética antecede a moral pessoal que por seu turno
antecede a moral política. Tanto o direito quanto a moral política são formas interpretativas. Do tronco do direito
105
O peso atribuído ao princípio não emana da discricionariedade judicial, mas sim dos
fins que pretendem ser alcançados com determinado princípio. Isto tem a ver com a noção de
direito como integridade, pois o direito não se esgota em si mesmo, sendo necessário pensar
nos fins que devem ser alcançados. No caso, o juiz deve pensar as políticas que seriam
lançadas pelo parlamento. Eis o télos da atividade jurisdicional quando resolve os hard-cases.
No que concerne aos conflitos entre regras, a solução está ou em uma cláusula de
exceção ou na declaração de invalidade de uma das colidentes331
. Já no caso de princípios,
não há anulação daquele que é preterido, demonstrando uma ordem transitiva, em face da
atribuição de pesos: um passa na frente do outro. Ademais, a falha do positivismo está em
considerar o direito como sistema de regras desprovidas de princípios.
Por fim, o afastamento da hermenêutica jurídica acontece por Dworkin se afastar do
reconhecimento histórico dos princípios enquanto topoi, aptos de colheita na comunidade
ética. Daí que o juiz deverá reconstruir o direito, pela interpretação construtiva, para assim
contextualizar o direito vigente. Tratam-se de dois pontos de apoio: interpretação construtiva
metódica e reconstrução conteudística do direito.
O direito, em sua integridade e enquanto sistema, não pode ser apartado dos outros
sistemas – político, econômico e social. O juiz está amarrado pela hermenêutica interpretativa
reconstrutiva, descobrindo aí o peso, lançando vistas para o passado e para o presente. O
passado é situado na análise dos precedentes judiciais – a história contextualizada com o
presente dos princípios, sem perder de mira a relação com as políticas. 332
Outro elemento da teoria dworkiana é o método Hércules333
, que representa o modelo
de julgador apto ao trabalho com princípios e políticas. Dworkin afirma que os juízes
partem galhos que formam o direito político, que por sua vez se ramifica para o direito legislativo, o qual orienta
a produção legislativa e a concretização de políticas públicas, bem como para os direitos jurídicos, que podem
ser exigidos pelos seus titulares nas instâncias judiciais. Esta teoria dá cabo da relação entre direito, moral e
política enquanto sistema único. (DWORKIN, Ronald. A raposa e o porco espinho: justiça e valor. Trad. de
Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2014. p. 620 – 623) 331
“Se duas regras entram em conflito, uma delas não pode ser válida. A decisão de saber qual delas é valida e
qual deve ser abandonada ou reformulada, deve ser tomada recorrendo-se a consideração que estão além das
próprias regras. Um sistema jurídico pode regular esses conflitos através de outras regras, que dão precedência à
regra promulgada pela autoridade de grau superior, à regra promulgada mais recentemente, à regra mais
específica ou outra coisa desse gênero. Um sistema jurídico também pode preferir a regra que é sustentada pelos
princípios mais importantes.” (DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. de Nelson Boeira. São
Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 43) 332
A própria presença do romance em cadeia afiança a existência do direito como integridade, já que a atividade
interpretativa de Dworkin pressupõe maior inflexibilidade quando comparada as outras modalidades como
convencionalismo ou pragmatismo. O afã de Dworkin é minimizar a discricionariedade do julgador, daí a
existência de concepções como coerência e integridade voltadas à história. (DWORKIN, Ronald. O império do
direito. Trad. de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 271 – 273) 333
“Hércules aparece pela primeira vez na obra de Dworkin, no artigo Casos Díficeis (hard cases) tendo como
rival o juiz Herbet, que aceita a teoria da decisão judicial e se propõe a aplicá-la em suas decisões. Hércules
aparece novamente no livro O império do Direito (Law’s Empire) tendo como rival o juiz Hermes, que defende a
106
precisam admitir, em certa medida, que “o direito é estruturado por um conjunto coerente de
princípios sobre a justiça, a equidade e o devido processo legal adjetivo” e necessitam aplicar
o direito “de tal modo que a situação de cada pessoa seja justa e equitativa segundo as
mesmas normas”.334
Quando Hércules for interpretar a Constituição, deverá desenvolver um raciocínio
semelhante ao de um jogador de xadrez, desenvolvendo uma teoria que defina a natureza do
texto constitucional, abarcando todo o arcabouço principiológico e político que dá
sustentáculo ao sistema de governo, reportando-se tanto a filosofia política quanto às
instituições existentes, para ao final elaborar sua decisão a partir dos conceitos que, ao serem
comparados com a estrutura institucional do sistema, se mostram mais adequados.335
Para interpretar as leis, Hércules também deverá construir uma “teoria política como
um argumento sobre o que o poder legislativo fez naquela ocasião” ao elaborar a legislação,
permitindo-lhe identificar no processo interpretativo os limites da política utilizada pelo
legislador.336
Quanto aos precedentes, Hércules utilizará de um construto alicerçado no
romance em cadeia e na doutrina da equidade, definindo a força gravitacional dos precedentes
aplicáveis ao caso concreto para firmar a justeza de sua decisão.337
Dirá Dworkin: os juízes que aceitam o ideal interpretativo da integridade decidem
casos difíceis tentando encontrar, em algum conjunto coerente de princípios sobre os direitos
e deveras das pessoas, a melhor interpretação da estrutura política e da doutrina jurídica de
sua comunidade. Tentam fazer o melhor possível essa estrutura e esse repositório
complexos.338
Em outras palavras, Hércules procederá a releitura da tradição histórica, na condição
de um observador externo de todo o jogo político e das circunstâncias sociais e econômicas
que o circundam. Pela letra de Dworkin, Hércules se mostra mais como um sujeito distante da
interpretação das leis conforme a intenção do legislador. Dworkin utiliza este artifício para explicar, passo a
passo, como deveria acontecer toda a prática interpretativa. De qualquer forma, Dworkin reconhece que um juiz
real não poder realizar sua tarefa da mesma forma que Hércules, mas propõe que ele seja um exemplo a ser
seguido.” (SAAVEDRA, Giovani Agostini. Jurisdição e democracia: uma análise a partir das teorias de Jürgen
Habermas, Robert Alexy, Ronald Dworkin e Niklas Luhmann. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 83) 334
DWORKIN, Ronald. O império do direito. Trad. de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes,
2007. p. 291 335
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. de Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
p. 167 - 168 336
Ibidem. p. 171 337
Ibidem. p. 177 - 180 338
DWORKIN, Ronald. O império do direito. Trad. de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes,
2007. p. 305
107
realidade do que efetivamente um membro da comunidade jurídica que atue
intersubjetivamente.339
Ao absorver a teoria de Dworkin340
, Habermas faz vistas ao caráter monológico do
juiz Hércules, cujas virtudes são suficientes para de um turno assegurar a representatividade
do cidadão e de outro suprir a integridade imanente do direito, o que impõe a esse autor a
oscilação de dois extremos:
Dworkin oscila entre a perspectiva dos cidadãos que legitima os deveres judiciais e a
perspectiva de um juiz que tem a pretensão de um privilégio cognitivo, apoiando-se
apenas em si mesmo, no caso em que a sua própria interpretação diverge de todas as
outras [...]341
Quando as propostas de Dworkin são repensadas no prisma do agir comunicativo,
para que o direito seja efetivamente um meio de integração social, faz-se um alargamento do
“núcleo procedimental”342
a fim de que o ideal político contido nas expectativas normativas
da sociedade oriente a busca, do julgador, pela verdade. A cognição se desloca da solitude343
do julgador virtuoso para aquilo que os participantes podem ofertar, em termos
argumentativos, que guiem o juiz em seu julgamento.
339
Isto fica claro quando Dworkin afirma que Hércules pode utilizar de argumentos históricos e de sua
percepção geral da comunidade jurídica para construir sua decisão no sentido de superar a aplicabilidade de um
determinado princípio. (DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. de Nelson Boeira. São Paulo:
Martins Fontes, 2002. p. 191) 340
Como observa Giovani Agostini Saavedra: “Em um primeiro momento, Habermas tenta precisar a tese que
Dworkin sustenta acerca da relação do direito com a moral. Dworkin entende que o direito positivo assimilou
inevitavelmente conteúdos morais. Habermas aceita esta tese, mas a reconstrói segundo a teoria discursiva do
direito, ou seja, o direito entra em contato com a moral através do processo de formação democrática da
legislação. Para melhor compreensão do argumento do autor, deve-se relembrar que Habermas sustenta o
argumento de que na sociedade moderna se atingiu o nível de fundamentação pós-tradicional, logo, a superação
total entre direito e moral deve estar sempre pressuposta.” (SAAVEDRA, Giovani Agostini. Jurisdição e
democracia: uma análise a partir das teorias de Jürgen Habermas, Robert Alexy, Ronald Dworkin e Niklas
Luhmann. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 138) 341
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Volume I. Trad. de Flávio Beno
Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. p. 276 342
“Nas sociedades complexas, essas relações de reconhecimento mútuo, que se produzem em formas de vida
concreta através do agir comunicativo só se deixam generalizar abstratamente através do direito [...] Entretanto, é
possível ampliar as condições concretas de reconhecimento através do mecanismo de reflexão do agir
comunicativo, ou seja, através da prática de argumentação, que exige de todo o participante a assunção das
perspectivas de todos os outros. O próprio Dworkin reconhece esse núcleo procedimental do princípio da
integridade garantida juridicamente, quando vê o direito às liberdades subjetivas de ação fundadas no direito às
mesmas liberdades comunicativas.” (HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade.
Volume I. Trad. de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. p. 277) 343
Comungando da crítica habermasiana, Dhenis Cruz Madeira: “O discurso jurídico e a vontade da norma
deixam de ser algo indemarcado e autocrático para abraçar a Teoria da Democracia, que encontra, na Teoria do
Processo, seu medium lingüístico. Fato é que, sem tal balizamento jurídico e sem a criação de um espaço
discursivo formalizado (com a processualização do princípio do discurso), a vontade da norma tende a ser a
vontade de uma autoridade oracular, à semelhança do locutor autorizado de Francis Wolff79 ou do juiz-hércules
de Ronald Dworkin.” (MADEIRA, Dhenis Cruz. Teoria do processo e discurso normativo: digressões
democráticas. In: DIDIER JÚNIOR, Fredie (Org.). Teoria do processo: panorama doutrinário mundial. Volume
II. Salvador: JusPodivum, 2008. p. 152)
108
Tendo isto em mente, Habermas passa a defender uma insustentabilidade do
princípio monológico, já que a compreensão procedimental do direito requer um “esforço
cooperativo” para que a atividade interpretativa seja encarada como um “empreendimento
comum, sustentado pela comunicação pública dos cidadãos”. Ainda, a “pré-compreensão
paradigmática do direito” somente logra êxito em estancar a indeterminação e fortalecer a
segurança jurídica na medida em que a comunidade jurídica – e os parceiros do direito –
compartilhem intersubjetivamente sua identidade enquanto estrato comunicativo.344
E justamente pela comunidade jurídica ser plural e compreender várias interpretações
do que vem a ser correto, o diálogo se torna mais do que necessário, evitando que
standards345
– aqui encarados como regras da ética profissional que legitimam a validade do
juízo jurídico – conflitantes prevaleçam, o que implicará no abandono argumentativo pelo
parceiro do direito preterido.
A solução apontada por Habermas é a seguinte:
Para sair deste círculo, só mesmo uma reconstrução da prática de interpretação pelo
caminho de uma teoria do direito, e não de uma dogmática do direto. A crítica à
teoria de Dworkin tem que situar-se no mesmo nível e fundamentar os princípios do
processo na figura de uma teoria da argumentação jurídica, que assume o fardo das
exigências ideais até agora atribuídas a Hércules.346
Tal teoria da argumentação jurídica deve culminar em um “acordo não-coercitivo
sobre a aceitabilidade de pretensão de validade controvertida”347
. Em outras palavras, o jogo
argumentativo deve ser desenvolvido estritamente nos liames da linguagem, sem a
interferência de elementos internos que maculem a capacidade dos falantes de concordar ou
não com o argumento proposto.
A própria ausência de fechamento argumentativo inviabilizaria a teoria dworkiana,
na medida que Hércules não ficaria imune a críticas recorrentes, por mais coerente e
consistente que seja sua argumentação. Todavia, o plot twist ocorre quando a teoria hercúlea
revela uma construção provisória, apta a trazer à tona “todos os argumentos e informações
relevantes sobre um tema, disponíveis em uma determinada época”348
.
Outrossim, não basta que a racionalidade procedimental atente somente para as
questões semânticas dos argumentos quando do juízo de validade. É importante observar os
344
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Volume I. Trad. de Flávio Beno
Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. p. 278 345
Habermas absorve a noção de standards processuais de Owen Fiss. (Ibidem. p. 280) 346
Idem. 347
Ibidem. p. 282 348
Ibidem. p. 283
109
pressupostos pragmáticos do arranjo argumentativo, para que a motivação que apoia cada
argumento seja revelada e ocorra o mútuo convencimento intersubjetivo.349
Daí que Habermas pondera:
Em primeiro lugar, o discurso jurídico não pode mover-se auto-suficientemente num
universo hermeticamente fechado do direito vigente; precisa manter-se aberto a
argumentos de outras procedências, especialmente a argumentos pragmáticos, éticos
e morais que transparecem no processo de legislação e são enfeixados na pretensão
de legitimidade de normas de direito. Em segundo lugar, a correção das decisões
judiciais mede-se pelo preenchimento de condições comunicativas da argumentação,
que tornam possível uma formação imparcial do juízo.350
Disto Habermas parte para uma crítica à teoria do caso especial de Alexy, uma vez
que o discurso jurídico não pode receber o mesmo tratamento que o discurso moral. Apesar de
ambos dizerem respeito a aplicações normativas, a dimensão de validade do direito impede a
redução do discurso jurídico351
a um discurso moral352
, já que as regras processuais conduzem
um tratamento de todos os discursos e argumentos lançados dentro do processo, para que, ao
final do processo argumentativo-jurídico, seja formada a decisão judicial.353
Deste ponto em diante, a decisão pode ser objeto da auto-reflexão institucional, em
que as instâncias superiores apreciam o julgado prolatado, com o fito de uniformar a aplicação
e o aperfeiçoamento direito, satisfazendo o interesse público que perfaz a integridade da
jurisprudência e a coerência da ordem jurídica.354
4.3 A TESE DO CASO ESPECIAL DE ROBERT ALEXY E O MODELO DA
PONDERAÇÃO
Outro autor que é estudado por Habermas e contribui para formação da teoria do
discurso jurídico é Robert Alexy. Seu pensamento, junto com o de Ronald Dworkin, irá
influenciar a maneira que Habermas pensa a atuação jurisdicional, razão pela qual é
349
Por isto que Habermas afirma que a fresta de racionalidade é idealista, pois a única decisão correta somente
existe quando o procedimento argumentativo é pautado pela busca cooperativa da verdade. (Idem) 350
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Volume I. Trad. de Flávio Beno
Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. p. 287 351
Vale a pena citar a seguinte passagem, em que Habermas trata do discurso jurídico: “O discurso jurídico é
independente da moral e da política, porém somente no sentido de que também os princípios morais e as
finalidades políticas podem ser traduzidos para a linguagem neutra do direito e engatadas no código jurídico.
Entretanto, por trás dessa uniformidade do código oculta-se um complexo sentido de validade do direito
legítimo, o qual explica por que, no caso de decisões sobre princípios, os discursos jurídicos admitem
argumentos de origem extralegal, portanto considerações de tipo pragmático, ético e moral, introduzindo-os em
argumentos jurídicos.“ (Ibidem. p. 257) 352
Ibidem. p. 290 353
Ibidem. p. 294 354
Ibidem. p. 294 - 295
110
necessário fazer um aporte, ainda que superficial, na teoria destes autores – como começou a
ser feito no item anterior com Dworkin – para clarear a construção habermasiana.
Para Robert Alexy, a perspectiva do participante355
define o conceito jurídico do
direito, conquanto um:
[...] sistema normativo que (1) formula uma pretensão à correção, (2) consiste na
totalidade das normas que integram uma constituição socialmente eficaz em termos
globais e que não são extremamente injustas, bem como na totalidade das normas
estabelecidas em conformidade com essa constituição e que apresentam um mínimo
de eficácia social ou de possibilidade de eficácia e não são extremamente injustas, e
(3) ao qual pertencem os princípios e outros argumentos normativos, nos quais se
apoia e/ou deve se apoiar o procedimento de aplicação do direito para satisfazer a
pretensão à correção.356
O dito conceito se enlaça com o da validade do direito, a qual pressupõe que a
Constituição e o sistema jurídico como um todo tenham eficácia social, com base mais na
validade social do que na validade moral.357
Trata-se de um enfoque político e sociológico
baseado na aproximação necessária de direito e moral, a qual embasa a Constituição como um
rol de direitos fundamentais, formando o chamado “constitucionalismo discursivo”358
.
Alexy aponta que existem duas construções de direitos fundamentais, uma baseada
em regras e outra em princípios, e que são aplicadas no âmbito da jurisdição constitucional359
.
Daí afirmar que, no âmbito da teoria dos direitos fundamentais, a mais importante
diferenciação diz respeito a essa dicotomia, consoante edificar toda a dogmática dos direitos:
Essa distinção constitui um elemento fundamental não somente da dogmática dos
direitos de liberdade e de igualdade, mas também dos direitos a proteção, a
organização e procedimento em sentido estrito. Com sua ajuda, problemas como os
efeitos dos direitos fundamentais perante terceiros e a repartição de competências
entre tribunal constitucional e parlamento podem ser mais bem esclarecidos.360
355
Para Alexy, existem duas perspectivas possíveis, a do participante e a do observador: “A perspectiva do
participante é adotada por quem, num sistema jurídico, participa de uma argumentação sobre o que nele é
ordenado, proibido, permitido e autorizado. No centro da perspectiva do participante está o juiz. Quando outros
participantes, tais como juristas, advogados ou cidadãos interessados no sistema jurídico apresentam argumentos
a favor ou contra determinados conteúdos do sistema jurídico, eles se referem, em última instância, a como um
juiz deveria decidir se pretendesse decidir corretamente. A perspectiva do observador é adotada por aquele que
não pergunta o que é a decisão correta num determinado sistema jurídico, e sim como de fato se decide em
determinado sistema jurídico.” (ALEXY, Robert. Conceito e validade do direito. Trad. Gercélia Batista de
Oliveira Mendes. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011. p. 30) 356
Ibidem. p. 151 357
Ibidem. p. 153 - 154 358
“O constitucionalismo discursivo é uma teoria que nasce do enlace de cinco conceitos: (1) do de direitos
fundamentais, (2) do de ponderação, (3) do de discurso, (4) do de jurisdição e (5) do de representação.”
(ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo. Trad. Luís Afonso Heck. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2012. p. 155) 359
Ibidem. p. 105 360
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros,
2008. p. 87
111
As regras são rigorosas e estreitas enquanto os princípios são largos e amplos. As
normas de cunho rigoroso são aplicadas como as demais do ordenamento jurídico, conquanto
produzem defesas do cidadão contra os arbítrios estatais. Por seu turno, as normas amplas ou
largas possuem um contexto maior por requerer uma ponderação dos bens jurídicos
envolvidos.361
No que cinge a teoria da argumentação jurídica, Alexy dirá que se trata de um caso
especial da argumentação prática geral, no qual os argumentos utilizados são jurídicos,
dizendo respeito a uma lei válida. Contudo, diferentemente da argumentação prática geral,
existem certas questões que não estão abertas ao debate. De outro orbe, a argumentação
jurídica é uma espécie de discurso institucionalizado, com regramento dado pela lei
processual, a qual limita o debate no tempo e espaço.362
Robert Alexy justifica seu posicionamento com base em três elementos:
[...] (1) as discussões jurídicas se preocupam com questões práticas, isto é, com o
que deve ou não ser feito ou deixado de fazer e (2) essas questões são discutidas
com a exigência de correção. É questão de “caso especial” porque as discussões
jurídicas (3) acontecem sob limites do tipo descrito.363
A evolução para do discurso alicerçado em uma teoria da argumentação jurídica
dependerá de uma justificação interna, que “diz respeito à questão de se uma opinião segue
logicamente das premissas aduzidas para justificá-la” enquanto a justificação externa tem
361
Alexy aponta duas construções possíveis para as normas concessionárias dos direitos fundamentais. A
primeira é uma construção estreita e rigorosa, tratam-se de normas que, salvo pela importância dentro do sistema
jurídico, não se diferem das demais normas jurídicas: “Segundo a construção estreita e rigorosa, normas que
concedem direitos fundamentais não se distinguem, essencialmente, das outras normas do sistema jurídico. Elas
têm, naturalmente, como normas constitucionais, seu lugar no grau extremo do sistema jurídico e seus objetos
são direitos, extremamente abstratos de maior importância, mas tudo isso – segundo a construção de regras – não
é fundamento para alguma diferença fundamental de tipo estrutural. Elas são normas jurídicas, e como tais, elas
são aplicáveis do mesmo modo como todas as outras normas jurídicas. Sua particularidade consiste somente
nisso, que elas protegem determinadas posições do cidadão, descritas abstratamente, contra o estado.” (ALEXY,
Robert. Constitucionalismo discursivo. Trad. Luís Afonso Heck. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2012. p. 106)
Já a segunda construção, denominada de holística, é fundada em princípios, alicerça a defesa do cidadão para
um caso abstrato, consignando o posicionamento do tribunal constitucional federal alemão, o qual pressupõe o
exercício da ponderação quando uma norma finde limitando um direito fundamental: “os direitos fundamentais
têm não só o caráter de regras, mas também de princípios. A segunda ideia, estreitamente unida com a primeira
[que os direitos fundamentais são princípios], é que os valores ou princípios jurídico-fundamentais valem não
somente par a relação entre o estado e o cidadão, mas muito mais além, “para todos os Âmbitos do direito”. Com
isso, produz-se um “efeito de irradiação” dos direitos fundamentais sobre o sistema jurídico todo. Direitos
fundamentais tornam-se ubiquitários. A terceira ideia resulta da estrutura dos valores e princípios. Valores como
princípios são propensos a colidir. Um colisão de princípios somente por ponderação pode ser solucionada.”
(Ibidem. p. 108) 362
ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica. Trad. Zilda Hutchinson Schild Silva. São Paulo: Landy,
2001. p. 211 - 212 363
Ibidem. p. 212
112
como seu “assunto tema” na “correção das premissas” utilizadas.364
A justificação externa
fará a correção das premissas argumentativas que nem são “regras de lei positiva e nem
afirmações empíricas”.365
Habermas tece críticas à teoria de Alexy, pois, mesmo que o discurso jurídico se
mantenha aberto aos argumentos pragmáticos, éticos e morais, e esteja enfeixados na
legitimidade normativa e sua correção seja mensurável pelo “preenchimento das condições
comunicativas da argumentação”, o “primado heurístico dos discursos prático-moral” e a
exigência de que as “regras do direito não podem contradizer normas morais” não estão aptos
a transformar os discursos jurídicos em argumentações morais.366
Assim, Habermas se insurge contra a tese do caso especial de Alexy e propõe duas
objeções. A primeira é que as partes não estão obrigadas a agir comunicativamente, podendo
fazer uso do agir estratégico para influenciar o julgador. Daí que a imparcialidade só existe na
figura do próprio juiz.367
A segunda objeção atine a indeterminação das condições procedimentais – ausência
de uma situação de fala ideal –, as quais não são suficientes para ofertar uma única decisão
correta.368
Este ponto, apesar de ensejar um pluralismo decisório, faz ruir com a espinha
dorsal da segurança jurídica, o que dificulta a transformação do dissenso em consenso
procedimental.
Por conta da ausência de um bloqueio ao agir estratégico, a argumentação em Alexy
não consegue afastar os interesses instrumentais e egoísticos, razão pela qual o resultado da
deliberação pode se afastar da realidade concreta. Alexy oferta uma proposição bastante
utópica, e que fica restrita ao âmbito de materialização dos princípios, ignorando os demais
fóruns deliberativos e esferas públicas existentes.
Na verdade, para Alexy, basta que o julgador siga determinadas regras de
argumentação para garantir a legitimidade da decisão.369
A filia deste autor, a despeito de não
atentar necessariamente para a segurança jurídica, guarda total sintonia com a democracia
constitucional, pois apresenta legitimidade quanto a sua forma argumentativa e seu conteúdo,
364
Ibidem. p. 218 365
Ibidem. p. 225 366
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Volume I. Trad. de Flávio Beno
Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. p. 285 367
Ibidem. p. 286 368
Ibidem. p. 286 369
A relação destas regras está presente no apêndice da obra Teoria da argumentação jurídica. São divididas em
regras básicas; de racionalidade; para alterar o encargo dos argumentos e sua forma; de justificação; de transição;
de justificação interna e externa; e de argumentação empírica e dogmática. (ALEXY, Robert. Teoria da
argumentação jurídica. Trad. Zilda Hutchinson Schild Silva. São Paulo: Landy, 2001. p. 293 – 299)
113
estando apta para satisfazer as demandas judiciais de uma sociedade complexa, já que toda a
argumentação plural poderá ser recepcionada pela jurisdição.
A solução para o segundo ponto, nas palavras de Habermas:
Para refutar a tese da indeterminação, Alexy teria que mostrar que esses princípios
processuais e máximas de interpretação – extraídas das prática e sistematizadas na
doutrina dos métodos – apenas especificam as condições gerais do processo de
discursos prático-morais em relação à ligação com o direito vigente. Para satisfazer
essa exigência não basta fazer uma breve referencia às semelhanças estruturais entre
as regras e formas de argumentos aduzidos para os tipos de discurso.370
Já a terceira crítica recaí na impossibilidade de as “decisões jurídicas fundamentadas
pelo discursos serem corretas no mesmo sentido que juízos morais válidos”, pois a união de
direito e moral finda relativizando a correção da decisão. Tal ponto pode ser sanado com a
adoção da proposta dworkinana de reconstrução racional do direito – o romance em cadeia –,
pois a correção da decisão está vinculada ao seu encaixe e coerência perante o sistema
jurídico.371
A última crítica é baseada em Klaus Günther, assumindo o conceito normativo de
coerência, que “alivia o discurso jurídico do peso das questões de fundamentação”. Os juízes
têm de realizar uma “avaliação reconstrutiva das normas tidas como válidas” pois, são as
normas que formam o sistema ideal e coerente da única resposta correta.372
Habermas preceitua que a legitimidade das normas é mensurada pela racionalidade
do processo democrático, que é bem mais intricado que o do juízo moral, pois entram no
cálculo variáveis como:
[...] disponibilidade, relevância, pertinência e escolha de informações, pela
fecundidade da elaboração das informações, pela adequação das interpretações da
situação e pelas colocações de problemas, racionalidade de decisões, pela
autenticidade de valorações fortes, principalmente pela equidade dos compromissos
obtidos, etc.373
Portanto, as dimensões de validade das decisões judiciais e dos juízos morais não
podem ser comparadas. A única possibilidade desta comparação ser efetiva é se ambas forem
realizadas em uma teoria do discurso que passe pela “mesma rede de argumentações,
negociações e comunicações políticas na qual se realiza o processo de legislação.”374
Para superar as críticas de Habermas, Alexy propõe uma análise estrutural da
ponderação, identificando a exigência do princípio da proporcionalidade que, por sua vez, é
370
Ibidem. p. 288 - 289 371
Ibidem. p. 289 372
Ibidem. p. 289 - 290 373
Ibidem. p. 290 374
Ibidem. p. 290 – 291
114
composto pelos subprincípios da idoneidade, da necessidade e da proporcionalidade em
sentido estrito, pois os três expressam o conceito de mandado de otimização375
.
O princípio da idoneidade determina a não utilização de meios que prejudiquem um
princípio e não sejam capazes de fomentar o outro, ou seja, deve ser adotada uma posição de
melhoria que não implique em desvantagens universais.376
Já o princípio da necessidade opta pela utilização do meio que menos intervir no
princípio colidente preterido. A ponderação será realizada quando ambos não puderem ser
aplicados, partindo para proporcionalidade em sentido estrito, pois vai haver situações em que
os riscos e sacrifícios são inevitáveis. Quanto maior for o grau de não cumprimento ou
prejuízo de um princípio, maior deverá ser o cumprimento do outro.377
Assim a ponderação
ocorre em três etapas: constatação do descumprimento ou prejuízo a um princípio;
comprovação da importância do cumprimento do princípio contrário; possibilidade de
justificativa para o não cumprimento de um e cumprimento do outro. Pela existência de tais
critérios, é possível obter um grau de racionalidade as sentenças fundadas no instituto
sobredito. 378
Aliás, o próprio conceito de desproporcionalidade379
entre os princípios concorrentes
não advém de hipóteses subjetivas, mas sim situações reais em que a intervenção se faz
necessária sob pena de criar operações que aleijam direitos fundamentais que poderiam ter
alguma aplicabilidade salvaguardada ao caso concreto. Trata-se, em última análise, de
proporcionar uma solução mais justa, adequada e balanceada às colisões.380
A preocupação de Alexy com o discurso jurídico também rende desdobramentos no
prisma da democracia deliberativa, que vai além da decisão, englobando também a
argumentação, de modo que institucionaliza o discurso enquanto “meio da tomada de decisão
pública”, eis que para o autor a “única possibilidade de reconciliar jurisdição constitucional
com a democracia” depende de compreender esta “como representação do povo”381
.
375
“Como mandamentos de otimização, princípios são normas que ordenam que algo seja realizado em medida
tão alta quanto possível relativamente as possibilidades fáticas e jurídicas”. (ALEXY, Robert.
Constitucionalismo discursivo. Trad. Luís Afonso Heck. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. p.
110) 376
Ibidem. p. 110 377
Ibidem. p. 110 - 111 378
Ibidem. p. 111 379
“O conceito de desproporcionalidade representa aqui uma relação entre intervenções concorrentes reais e
hipotéticas. Uma intervenção em um direito fundamental é desproporcional quando ela não é justificada por uma
outra intervenção hipotética, pelo menos, igualmente intensiva, em um ou outro princípio – contido na
constituição ou por ela admitido como fundamento de intervenção -, a qual, pela omissão da primeira
intervenção, iria torna-se real.” (Ibidem. p. 113) 380
Ibidem. p. 113 - 114 381
Ibidem. p. 163
115
A representatividade em Alexy é encarada de uma maneira para o parlamento e de
outra para o tribunal constitucional: “a representação do povo pelo parlamento, é
simultaneamente, volicional ou decisionista e argumentativa ou discursiva. A representação
do povo por um tribunal constitucional é, pelo contrário, puramente argumentativa.”382
Assim como Habermas, Alexy se preocupa com a plausibilidade dos argumentos,
fazendo conexão com a aceitabilidade destes pelos sujeitos racionais:
A existência de argumentos bons ou plausíveis basta para deliberação ou reflexão,
mas não representação. Para isso, é necessário que o tribunal não só promova a
pretensão de que seus argumentos são os argumentos do povo ou do cidadão; um
número suficiente de cidadãos precisa, pelo menos, em perspectiva mais prolongada,
aceitar esses argumentos como corretos.383
Inconscientemente, Alexy adota a baliza dos princípios do discurso e da democracia
de Habermas. Ainda, a teoria de Alexy, quando adequada à teoria do agir comunicativo –
ponderação aliada à construção procedimental de uma única resposta correta -, serve como
complementação à de Habermas, tendo em vista que o modelo argumentativo proposto pelo
primeiro serve de aporte para a gama de interpretações plurais que podem advir do substrato
social.384
Este estandarte é levantado por Góes, ao reconhecer que o uso dos princípios
“afigura-se como o meio hábil à solução de questões não resolvidas pela só procura e
seletividade de normas dispersas no ordenamento jurídico.”385
Daí a representatividade
argumentativa oriunda dos amicii curiae, bem como o desempenho do jogo argumentativo
discursivo permitem às lentes discursivas absorvam o pluralismo em sua multitude de
dissensos.386
Nesse sentido, a leitura conjunta de Habermas e Alexy:
[...] pode e deve servir para os casos de absoluta ausência de norma aplicável ou de
insuficiente adequação da única norma existente, consistindo numa complementação
que se dê mediante a reabertura de espaços de interlocução discursiva com esfera
pública e por meio de uma argumentação que, nos termos da teoria de Alexy [...],
considere todos os elementos inevitavelmente presentes nesse espaço (éticos, morais
382
Ibidem. p. 163 383
Ibidem. p. 165 384
A complementaridade é necessária, pois a visão de Alexy não consegue alcançar as possibilidades oriundas
do debate fora da atividade processual. É necessário que o “constitucionalismo discursivo” ocorra não somente
no exercício da ponderação, mas também nas diversas esferas públicas que estão circunscritas na sociedade civil. 385
GÓES, Ricardo Tinoco de. Democracia Deliberativa e Jurisdição: a legitimidade da decisão judicial a partir
e para além de J. Habermas. Curitiba: Juruá, 2013. p. 176 386
Cabe aqui citar a visão de Góes sobre o pluralismo: “Um pluralismo marcado não só pela diversidade de
“particularismos”, mas, sobretudo, pela tentativa de crescimento hegemônico de uns em relação aos outros,
numa clara demonstração de competitividade que se estratifica dentro e fora do aparto social.” (Ibidem. p. 174)
116
e pragmáticos), com o fito de, em ponderação, vir a favorecer a seleção do princípio
democraticamente adequado à aplicação no caso concreto.387
Deste exposto, salta aos olhos que também há uma convergência com os postulados
de Häberle e Hesse, tratados no item 3.1 deste estudo. O exercício da argumentativo deve
abarcar os argumentos oriundos da Constituição real, manifestados como pré-interpretações,
para assim construir a decisão judicial que irá colocar fim nos dissensos.
O conteúdo dos dissensos é manuseado pelo jogo argumentativo, de tal sorte que um
argumento não anula o outro, mas sim são ponderados, a lume de todo arcabouço
principiológico que reside nos “pressupostos realizáveis” e na “vontade da Constituição”388
,
formando o consenso procedimental esperado da práxis constitucional.
Outrossim, o exercício da ponderação, no sentido de nortear a atividade do intérprete,
se confunde com o exercício final da argumentação jurídica. A decisão judicial deve
demonstrar como foi feito o raciocínio lógico da ponderação, na esteira da expectativa de
legitimidade suscitada por Habermas.
A tensão entre facticidade e validade somente é capaz de ser apaziguada quando o
princípio da democracia encontra o da ponderação, e a deliberação pode assim formular algum
grau de entendimento mútuo. É preciso encarar os mecanismos de abertura que possibilitem
os influxos do debate jurisdicional serem semelhantes aos do processo legislativo.
Portanto, há de se falar em uma democracia deliberativa no âmbito da decisão
judicial que permaneça aberta a uma argumentação pluralista, com participação negociativa
da sociedade civil – introjetada no processo constitucional pelo amicus curiae –, para
construir, com a ponderação das pré-intepretações, a única decisão correta possível para o
caso concreto.
4.4 A LEGITIMIDADE PARA ALÉM DE HABERMAS: UMA REFERÊNCIA EM
RICARDO TINOCO DE GÓES
Ricardo Tinoco de Góes busca um aporte conjunto em Robert Alexy, Ronald
Dworkin, Willis Santiago Guerra Filho, Klaus Günther, Rudolf Weithölter e Hans-Georg
Gadamer para fazer aplicar o modelo habermasiano para a jurisdição brasileira. É que a teoria
de Habermas é direcionada ao parlamento, trazendo Góes uma proposta de aplicação
387
Ibidem. p. 179 388
Para esses conceitos, rever o item 3.1.
117
discursiva que possibilita ao judiciário dialogar com as esferas públicas, repensando a
legitimidade da decisão judicial para além de Habermas.389
Góes dirá que é necessária uma abertura comunicativa quando o judiciário se deparar
com demandas em que existe anomia ou a única norma existente se mostra insuficiente para
incidência no caso concreto.390
O autor irá trabalhar nas zonas cinzentas percebidas por
Habermas e que dizem respeito às situações propostas, as quais se moldam como o caso
difícil proposto por Dworkin.391
Assim, o autor reconhece que, quando existe vasto regramento, a escolha normativa
não é problemática. A questão ganha contornos delicados quando a inexistência de norma
aplicável requer do juiz que observe a realidade jurídica da comunidade no momento de
pinçar a norma aplicável, já que a jurisdição não pode dar de ombros a sua atividade.392
A aplicação do sistema discursivo habermasiano na jurisdição fará com que as zonas
cinzentas sejam superadas discursivamente a partir da situação concreta, com primazia para as
normas e princípios constitucionais, rebocando o ideário deliberativo do legislativo
habermasiano para um modelo jurisdicional radicalmente democrático.393
O trabalho de Góes
reputa uma solução para o déficit de legitimidade da jurisdição brasileira, nas linhas
habermasianas de diálogo com a esfera pública.394
389
A obra de Ricardo Tinoco de Góes tem um particularismo especial: ela se projeta a partir e para além de
Habermas. De fato, é uma proposta original, digna de ser lida e citada, consoante trata da aplicação do modelo
habermasiano ao sistema democrático brasileiro. A utilização da perspectiva tinoquiana para este estudo é
fundamental, pois trará elementos que orientam normativamente esta aplicação. Ademais, se faz necessário
estabelecer um marco de como deve ser um Habermas à brasileira, fazendo as adaptações teórico-arquitetônicas
necessárias. É com base neste item que o tópico seguinte prosseguirá analisando de que maneira a legitimidade
comunicativa encontra albergue no Novo Código de Processo Civil.
O paradigma tinoquiano contém as seguinte características, nas palavras do próprio autor: “a) autonomista, no
sentido de ter por respeitada a co-originalidade das autonomias privada e pública e dos cidadãos; b) inclusivo,
porque aberto a todos os interessados, indistintamente; c) participativo, porque toma as contribuições pessoais de
cada um segundo uma visão igualitária e simétrica de participação; d) procedimental-discursivo, porque voltado
a atuar procedimentalmente perante as instâncias decisórias da Jurisdição do Estado e segundo o modelo
lingusitico-pragmático para a formação do consenso; e e) argumentativo, porque no procedimento discursivo a
envolver todos os interessados e a Jurisdição valerá, pela proporcionalidade, a formação de uma regra de
argumentação construída pela força do melhor argumento.“ (GÓES, Ricardo Tinoco de. Democracia
Deliberativa e Jurisdição: a legitimidade da decisão judicial a partir e para além de J. Habermas. Curitiba:
Juruá, 2013. p. 224) 390
Ibidem. p. 146 - 148 391
Ibidem. p. 150 - 151 392
Ibidem. p. 146 - 147 393
Ibidem. p. 159 – 160
Se por ventura o julgador adotar uma postura solipsista e fechar os ouvidos a cidadania, findará fazendo uma
aplicação antidemocrática do direito. (Ibidem. p. 148) 394
Ibidem. p. 156 – 157
Ricardo Tinoco de Góes trata da opinião pública – tida no dizer habermasiano de enfeixamento das esferas
públicas pluralistas – como uma diretriz maior para a aplicação do direito. A aplicação do direito deve estar
projetada comunicativamente, e não depender somente da originalidade, criatividade ou senso de justiça do
julgador. A ideia de Góes, alinhada com o ideário de Habermas, é evitar, em outro orbe, que os direitos
118
Aliás, com o arribe habermasiano, Góes irá colher da historicidade de Gadamer um
modelo de pré-compreensão a ser utilizada pelo juiz, que deverá buscar o que é a regra
jurídica contida no caso concreto. Após, o fruto dessa pré-compreensão será submetido à
compreensão discursiva, refletindo sobre a contextualização da historicidade em face da
situação em análise.395
Com Dworkin, Góes irá aprender uma interpretação construtiva, servindo-se desta
para consignar que os princípios são normas e que podem incidir no caso concreto, diante da
reconstrução do direito pelos tribunais396
. Assim como Habermas, também irá criticar a
solidão de Hércules, propugnando que o mítico julgador deverá falar e ouvir, para assim
participar pragmaticamente da ação comunicativa e, conjuntamente a sociedade cidadã,
construir a decisão legitima.397
De Alexy virá a estrutura de argumentação pluralista, apta a captar as relações
dialógicas estabelecidas na esfera pública.398
Essa será uma maneira de ponderar os dissensos
do pluralismo e seus diversos particularismos politicamente conflitantes.399
Também será
colhida em Alexy uma percepção sobre a aplicação dos princípios, os quais se mostram como
recurso apto a resolver as questões mais sensíveis, como os casos difíceis que habitam a zona
cinzenta.400
Logo, a decisão em Ricardo Tinoco de Góes deverá abarcar todos os elementos
contidos no espaço público que, ao serem ponderados, irão indicar qual princípio pode ser
aplicado no caso concreto.401
É também desta sistemática que nascerá a regra de
argumentação, assegurando uma “base valorativa” que orientará a decisão judicial. 402
fundamentais sejam reduzidos a mera fonte para livre argumentação, enxergando no poder comunicativo da
sociedade uma amarra contra o dedutivismo ou protagonismo solitário do julgador. (Ibidem. p. 230 – 233) 395
Ibidem. p. 167 - 168 396
Ibidem. p. 180
Góes adverte que adota o modelo de Alexy tão somente para a argumentação discursiva e o de Dworkin par a
decisão judicial. É que ambos os autores divergem quanto o caráter deontológico dos princípios: Alexy propõe
que são mandamentos de orientação para o caso concreto, enquanto Dworkin irá dizer que os princípios podem
incidir diretamente, servindo de fundamento para a decisão. Nas palavras de Góes: “Por isso, queremos acentuar
que a adoção dos modelos de Alexy para a argumentação e de Dworkin para a decisão judicial, decorre de uma
construção que prima pelo prevalecimento daquele primeiro ideal: o compromisso com um modelo
emancipatório de exercício do poder, que deposita na ação comunicativa de uma cidadania ativa e mobilizada a
confiança na produção de um Direito, cuja normatividade, advinda do Parlamento e da Jurisdição, seja, de fato,
dotada de legitimidade.” (Ibidem. p. 181 – 182) 397
Ibidem. p. 184
Aliás, o dever de diálogo do julgador, para Tinoco, não é uma faculdade e sim uma obrigação imposta pela
sistemática constitucional. 398
Ibidem. p. 175 - 176 399
Ibidem. p. 174 400
Ibidem. p. 176 - 177 401
Ibidem. p. 179 402
Ibidem. p. 193 – 194
119
Seu caráter é cogente, vinculativo aos valores que ficaram colhidos da esfera pública
e servirá como “ponto de partida” para a construção da decisão judicial. De outra banda,
também não será uma regra definitiva, uma vez que será somente uma parte da decisão e não
sua integralidade. Na verdade, a regra de argumentação fará a correção racional da atividade
jurisdicional.403
Sob a ótica deste estudo, a regra de argumentação é construída com a
participação dos amicii curiae no caso concreto.
O estudo de Góes contempla consequências para o modelo jurisdicional, atingindo
tanto a jurisdição constitucional quanto a jurisdição ordinária. Na seara da justiça
constitucional, o autor lança vistas inicialmente ao método de interpretação conforme a
Constituição como mecanismo que parte dos princípios - não como valores, mas sim como
realidades normativas404
- e que envolve a opinião pública no jogo deliberativo.405
O esforço
empreendido por Góes é demonstrar um trilho procedimental para as hipóteses em que existe
uma lei e que cuja constitucionalidade esteja subjudice.
Por outro lado, o autor, quando a jurisdição constitucional estiver diante de uma
omissão em sede de Ação Direita de Inconstitucionalidade por Omissão ou por intermédio de
um Mandado de Injunção, deverá considerar as expectativas sociais sobre a norma a ser
produzida, preenchendo a lacuna deixada pelo legislador.406
Para a jurisdição ordinária, Góes deixa uma herança comunicativa para as ações que
envolvam direitos difusos407
ou em áreas que a regulamentação estatal seja insuficiente, como
no campo do direito da infância e juventude.408
De mais a mais, ainda que o autor não tenha
contemplado a hipótese, consoante sua obra ter sido redigida na vigência da legislação
processual anterior, os ditames consignados acima podem ser facilmente aplicados no
incidente de resolução de demandas repetitivas, o qual foi mencionado no capítulo anterior.
Satisfeito todo esse percurso teórico, este trabalho consegue demonstrar qual a matriz
teórica utilizada por Jürgen Habermas para modelar a jurisdição e como os itens trabalhados
O autor ainda compara a regra de argumentação com o romance em cadeia de Ronald Dworkin, dizendo o
seguinte: “Assim, na visão perspectivada em Dworkin, esse conteúdo valorativo oferecido pela regra de
argumentação corresponde aos capítulos anteriores do que Dworkin alegoricamente chama de “romance em
cadeia”, capítulos que deveriam ter sido escritos pelo Legislador democrático, mas como não foram, são agroas
escritos em comunhão, pela cidadania e pela Jurisdição numa interlocução em que tudo favorece a legitimidade
da futura decisão judicial”. (Ibidem. p. 194) 403
Ibidem. p. 194 - 195 404
Isto demonstra a preferência de Ricardo Tinoco de Góes por utilizar os princípios como normas de aplicação
direita como dita Ronald Dworkin. Esta opção contribui, ainda, para evitar que elementos externos à
argumentação comunicativa sejam utilizados para macular o próprio texto legal, evitando usurpações de
competência pelo judiciário. (Ibidem. p. 237) 405
Ibidem. p. 238 – 239 406
Ibidem. p. 246 407
Ibidem. p. 247 408
Ibidem. p. 249
120
no capítulo inicial, sobre a formação procedimental da opinião pública, podem ser aplicados
no modelo jurisdicional brasileiro, a lume da proposta de Ricardo Tinoco de Góes.
No afã de dar seguimento ao percurso engrenado até o presente momento, o texto
segue para demonstrar os elementos comunicativos-habermasianos que estão localizados na
legislação processual, demonstrando tanto como a maneira que a esfera pública pode
repercutir em juízo, quanto de que forma as partes e os magistrados devem se comportar em
uma jurisdição procedimental.
4.5 DISCURSO JURÍDICO E ARGUMENTAÇÃO NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Diante de todas as considerações sobre discurso jurídico, o estudo passa a formar
correlações entre o modelo de decisão judicial discursiva e o direito processual positivado.409
Destarte, o processo judicial deve ser visto sobre um prisma procedimental, nos termos do que
pontua Luiz Guilherme Marinoni:
O processo é um procedimento, no sentido de instrumento, módulo legal ou conduto
com o qual se pretende alcançar um fim, legitimar uma atividade e viabilizar uma
atuação. O processo é o instrumento através do qual a jurisdição tutela os direitos na
dimensão da Constituição. É o modulo legal que legitima a atividade jurisdicional,
e, atrelado à participação, colabora para a legitimidade da decisão. É o conduto que
garante o acesso de todos ao Poder Judiciário, e, além disto, é o conduto para a
participação popular no poder e na reivindicação de concretização e de proteção dos
direitos fundamentais. Por tudo isso o procedimento tem que ser, em si mesmo,
legítimo, isto é, capaz de atender às situações substanciais carentes de tutela e estar
de pleno acordo, em seus cortes quanto à discussão do direito material, com os
direitos fundamentais materiais. É evidente que o procedimento, quando
compreendido nessa dimensão, é atrelado a valores que lhe dão conteúdo,
permitindo a identificação das suas finalidades. Isso pela razão óbvia de que o
procedimento, à luz da teoria processual que aqui interessa, não pode ser
compreendido de forma neutra e indiferente aos direitos fundamentais e aos valores
do Estado constitucional. Nesse momento não há razão para tentar penetrar na
essência de outro processo que não aquele que importa à jurisdição do Estado
contemporâneo.410
409
A necessidade de interligar o discurso jurídico com a abertura procedimental implica no reconhecimento de
que são necessários dispositivos legais e princípios que orientem o julgador na apreciação e tratamento daquilo
que é posto pela sociedade. Não basta ter o instituto do amicus curiae, é imprescindível também uma sólida
teoria da argumentação que ampare a apreciação da argumentação deduzida por todos os atores processuais.
Nesse sentido, Marinoni: “De modo que a referida norma do art. 7º, §2º, da Lei 9.868/99, ao abrir oportunidade
para a intervenção processual do amicus curiae, objetiva fundamentalmente pluralizar o debate constitucional,
vendo o terceiro como um amigo da Corte, ou melhor, como alguém que possa falar em nome de um setor social
cuja palavra tenha importância para a formação do debate em torno da controvérsia constitucional. Isso, porém,
não esgota o problema. É preciso atrelar a legitimidade da decisão a critérios objetivadores da compreensão da
questão constitucional e dos direitos fundamentais, tomando-se em conta determinadas regras, como as do
‘núcleo essencial’ e do ‘mínimo imprescindível’. E, além disto, exigir do juiz uma justificativa capaz de
evidenciar o emprego de tais critérios em seu raciocínio decisório.” (MARINONI, Luiz Guilherme. Da teoria da
relação jurídica processual ao processo civil do estado constitucional. In: DIDIER JÚNIOR, Fredie (Org.).
Teoria do processo: panorama doutrinário mundial. Volume I. Salvador: JusPodivum, 2008. p. 571) 410
Ibidem. p. 574
121
Nesse mesmo desiderato, Dhenis Cruz Madeira:
Na democracia constitucional, o povo é a única fonte de poder, apresentando-se
como o construtor, intérprete e destinatário da norma jurídica, legitimando o Direito.
No Brasil, a atividade interpretativa deve se dar dentro de um determinado contexto
político-jurídico-principiológico, qual seja, o contexto do Estado Democrático de
Direito. Nesse pano de fundo paradigmático, não se pode admitir a interpretação
solitária de uma autoridade supostamente sábia e justa, haja vista que o resultado
dessa atividade interpretativa (o provimento) deve ser fruto de uma processualidade
dialógica constitucionalizada. Diante de uma sociedade pluralista, não se nega que o
texto constitucional pode abrigar várias interpretações. Em vista disso, a própria
Constituição cuidou de delinear um medium lingüístico para que se realize a
interpretação constitucional, instituindo, assim, procedimentos63 que demarcam o
discurso jurídico, possibilitando o intercâmbio64 entre o mundo jurídico e as
instâncias políticas e econômicas. Nesse sentido é que, dentre todas as expressões
constitucionais, uma toma singular importância e destaque - o Processo - que, não
raro, é citado e protegido ao longo de todo texto constitucional. Como prova de tal
importância político constitucional, tem-se que o Processo é abraçado, até mesmo,
pelo rol dos direitos e garantias fundamentais411
.
Com efeito, é possível formar pontes entre as propostas de Habermas e o Código de
Processo Civil, pois a tônica da legislação mencionada está situada em um viés comunicativo
e cooperativo, materializado pela busca cooperativa entre as partes da solução processual,
consoante é posto pelo art. 6º: “Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para
que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva.”
Ainda sobre o paralelo entre democracia deliberativa e processo, o referido autor consigna o seguinte: se a
jurisdição detém a representação argumentativa em benefício da sociedade e em defesa dos direitos
fundamentais, mas a representação política está consubstanciada na lei, é necessário que a representação
argumentativa supere a representação política para que o direito fundamental possa se sobrepor à lei. Vale dizer
que a representação argumentativa deve ser capaz de convencer os cidadãos de que a decisão parlamentar, ou
a representação política, não deve prevalecer sobre o direito fundamental. Isso se torna possível quando se
compreende que a democracia não se resume apenas a um processo de decisão marcado pela existência de
eleições periódicas e pela regra da maioria. Um conceito adequado de democracia deve envolver não somente
decisão mas também discussão. A inclusão da discussão no conceito de democracia torna a democracia
deliberativa. A democracia deliberativa é uma tentativa de institucionalizar o discurso tanto quanto possível
como um instrumento para a produção de decisões públicas. Essa dimensão discursiva da democracia é exercida
pela representação argumentativa, e é nela que se situam as bases da convivência política legítima. O controle
judicial de constitucionalidade da lei se justifica quando os juízes demonstram publicamente que seus
julgamentos estão amparados em argumentos que são reconhecidos como bons argumentos, ou, ao menos, como
argumentos plausíveis, por todos aquelas pessoas racionais que aceitam a Constituição. (Ibidem. p. 573) 411
MADEIRA, Dhenis Cruz. Teoria do processo e discurso normativo: digressões democráticas. In: DIDIER
JÚNIOR, Fredie (Org.). Teoria do processo: panorama doutrinário mundial. Volume II. Salvador: JusPodivum,
2008. p. 150
O referido autor resgata a interligação entre as teorias de Jürgen Habermas e Peter Häberle com o processo civil-
constitucional: “(...) em decorrência dos Princípios da Supremacia da Constituição e da Reserva Legal, a
principiologia constitucional do Processo conduz toda a interpretação do Direito, vinculando o intérprete. Com
isso, a Teoria do Processo, ao abrigar uma instituição constitucional, demarca e vincula o próprio discurso
jurídico, apresentando-se como medium lingüístico da atividade jurídica. Todo poder emana do povo e a esse,
como única fonte do poder, deve ser assegurada a possibilidade de fiscalizar a atividade dos agentes público-
governativos, propiciando, outrossim, a oportunidade de criar, modificar e revogar a norma jurídica,via
procedimental, sob a regência da Teoria do Processo, garantindo-se, com esse ciclo, a legitimidade normativa. O
destinatário passa a ser, também, intérprete e operador da norma jurídica.” (Ibidem. p. 157)
122
Tal noção necessariamente fica atrelada à de uma cognição eficiente por parte do
magistrado, surgindo aí um dever de cooperação.412
Como “no Direito Democrático, o
provimento não advém de uma atividade solitária de uma autoridade, eis que todo poder
emana do povo e, justamente por isso, a garantia de fiscalização popular não pode ser
suplantada sem prejuízo da legitimidade democrática”413
, a sentença ou o acórdão deve ser
construído cooperativamente pelos atores processuais:
A participação dos que são diretamente interessados nessa empreitada confere
legitimidade à atuação da jurisdição, legitimidade que coaduna com os ideais do
Estado Democrático e Constitucional de Direito. Por isso que ao afirmarmos a
possibilidade de construir-se a decisão judicial, mediante a ampla participação dos
sujeitos processuais, todos concorrendo para a formação de um convencimento
consentâneo também com a realidade que se destina à efetivação e tutela dos
direitos, é porque já estávamos a inserir a adoção das técnicas de cognição com esse
claro desiderato.414
Por isso persiste um direito constitucionalmente assegurado a uma tutela justa,
adequada, que só pode ser alcançada com um discurso jurídico racional e procedimentalmente
estruturado na participação de todos os interessados, ainda mais quando se tratam de
interesses que dizem respeito a uma coletividade.
O efeito pragmático da decisão judicial não se esgota nas partes contendentes, eis
que o próprio decisório servirá de precedente para casos futuros – um epílogo para
julgamentos posteriores. Quando se pensa na atividade desempenhada pelos tribunais
superiores - a exemplo do STJ – e da jurisdição constitucional, os interesses alcançam toda a
coletividade, daí até mesmo se falar na repercussão geral415
.
412
Como vislumbra Góes, a cognição é tratada de tal sorte que persiste um direito fundamental às partes de obter
do julgador uma valoração probatória e apreciação argumentativa adequada: “Relaciona-se o direito à cognição
adequada à Teoria dos Direitos Fundamentais, isto porque sendo a tutela constitucional do processo uma tutela
com prometida com a garantia do acessão à justiça e sendo este mais um direito fundamental, quando assimilado
na perspectiva da acessibilidade à ordem jurídica justa, apenas uma cognição suficientemente destinada a
assegurar um resultado útil para o processo é que estará concorrendo para a concretização daquele direito
fundamental.” (GÓES, Ricardo Tinoco de. Efetividade do processo e cognição adequada. São Paulo: MD,
2008. p. 159)
Afirma este autor que os princípios da lealdade e da boa-fé processual são garantias de que serão produzidas as
provas úteis para alcançar a verdade fática. As punições de litigância de má-fé objetivam, pois, coibir as partes
de induzir o juízo em erro, pois em última análise, tem-se uma ofensa não só à dignidade da justiça, mas também
às próprias partes litigantes. De outra banda, a própria distribuição do ônus da prova deve ser encarada nesta
mesma finalidade: assegurar uma cognição adequada. (Ibidem. p. 132 – 135)
Com efeito, é possível destacar neste ponto uma eficácia horizontal dos direitos fundamentais processuais, dos
quais estão a boa-fé, a lealdade como componentes do devido processo legal. 413
MADEIRA, Dhenis Cruz. Teoria do processo e discurso normativo: digressões democráticas. In: DIDIER
JÚNIOR, Fredie (Org.). Teoria do processo: panorama doutrinário mundial. Volume II. Salvador: JusPodivum,
2008. p. 153 414
GÓES, Ricardo Tinoco de. Efetividade do processo e cognição adequada. São Paulo: MD, 2008. p. 149 415
Sobre a repercussão geral, ver o item 3.3.3.
123
Outrossim, a verdadeira cognição significa que o juiz validará normativamente o
melhor argumento, na construção intersubjetiva processual, com a fundamentação na
adequação plausível das expectativas normativas e dos interesses plurais que colidem no
processo judicial.
Assim a cognição processual passa necessariamente pela cooperação416
intersubjetiva das partes, razão pela qual a colheita probatória e a elucidação fática não são
uma discricionariedade do magistrado, mas sim uma construção conjunta, dialética e
dialógica. Como pontua Lúcio Grassi de Gouveia:
Entende-se que não basta que o órgão judicante esteja convencido da exatidão da
solução se tal solução não é obtida de maneira correta e verificável. E a sentença não
deve ser aceita pela sua natureza de ato imperativo, mas pela sua força intrínseca de
persuasão obtida através da colaboração dos protagonistas do processo.417
No mesmo sentido, Carlos Alberto Alvaro de Oliveira:
As diretivas aqui preconizadas reforçam-se, por outro lado, pela percepção de uma
democracia mais participativa, com um conseqüente exercício mais ativo da
cidadania, inclusive de natureza processual. Além de tudo, revela-se inegável a
importância do contraditório para o processo justo, princípio essencial que se
encontra na base mesma do diálogo judicial e da cooperação. A sentença final só
pode resultar do trabalho conjunto de todos os sujeitos do processo. Ora, a idéia de
cooperação além de exigir, sim, um juiz ativo e leal, colocado no centro da
controvérsia, importará senão o restabelecimento do caráter isonômico do processo
pelo menos a busca de um ponto de equilíbrio.418
Luiz Guilherme Marinoni, ao analisar o art. 5º, inciso LIV da Constituição,
compreende que o processo justo é um direito fundamental do cidadão e, portanto, pode ser
depreendido o imperativo da cooperação. Ainda que as partes possuam interesses materiais
divergentes, haverá convergência de interesses no prisma judicial, pois é relevante para ambos
que a decisão no final seja justa.419
Outrossim, os atores processuais formam uma “comunidade de trabalho” que, em
uma perspectiva habermasiana, coordenam seus esforços em um agir comunicativo fraco. Na
416
Ao tratar da origem do princípio da cooperação, Lúcio Grassi de Gouveia explica: “De origem alemã, o
princípio da cooperação corresponde ao direito de perguntar do juiz (Fragerecht), que corresponde a um dever de
perguntar e esclarecer (Frage und Aufklärungspflicht). Admite, inclusive, o direito alemão, recurso, quando não
tenha sido exercido, devendo tê-lo, isto é, nos casos em que fosse aconselhável o esclarecimento das posições de
fato e direito e a introdução de eventuais perspectivas judiciais dela divergentes.” (GOUVEA, Lúcio Grassi de.
Cognição processual civil: atividade dialética e cooperação intersubjetiva na busca da verdade real. In: DIDIER
JÚNIOR, Fredie (Org.). Processo civil: leituras complementares. 4. ed. Salvador: JusPodivum, 2006. p. 200) 417
Ibidem. p. 207 418
OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. O formalismo-valorativo no confronto com o formalismo excessivo.
In: DIDIER JÚNIOR, Fredie (Org.). Teoria do processo: panorama doutrinário mundial. Volume II. Salvador:
JusPodivum, 2008. p. 135 419
MARINONI, Luiz Guilherme. ARENHART, Sérgio Cruz. MITIDIERO, Daniel. Novo curso de processo
civil: tutela dos direitos mediante processo comum, volume II. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. p. 72 - 73
124
ótica de Arruda Alvim, a cooperação das partes com o juiz resulta também do interesse que
estas possuem de ter consideradas as alegações como verdadeiras, obtendo daí a possibilidade
de influenciar na convicção do julgador.420
Ademais, essa coordenação decorre tanto do interesse de uma decisão justa, pois os
atores também serão autores do decisório, como também pelas limitações impostas pela
legislação, já que existe a possibilidade daquele que litigue de má-fé sofrer sanções, como as
previstas nos arts. 77 - 81421
do Código de Processo Civil.422
420
ALVIM, José Eduardo Carreira. Teoria geral do processo. 20. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense,
2017. p. 234 421
Art. 77. Além de outros previstos neste Código, são deveres das partes, de seus procuradores e de todos
aqueles que de qualquer forma participem do processo: I - expor os fatos em juízo conforme a verdade; II - não
formular pretensão ou de apresentar defesa quando cientes de que são destituídas de fundamento; III - não
produzir provas e não praticar atos inúteis ou desnecessários à declaração ou à defesa do direito; IV - cumprir
com exatidão as decisões jurisdicionais, de natureza provisória ou final, e não criar embaraços à sua efetivação;
V - declinar, no primeiro momento que lhes couber falar nos autos, o endereço residencial ou profissional onde
receberão intimações, atualizando essa informação sempre que ocorrer qualquer modificação temporária ou
definitiva; VI - não praticar inovação ilegal no estado de fato de bem ou direito litigioso. § 1o Nas hipóteses dos
incisos IV e VI, o juiz advertirá qualquer das pessoas mencionadas no caput de que sua conduta poderá ser
punida como ato atentatório à dignidade da justiça. § 2o A violação ao disposto nos incisos IV e VI constitui ato
atentatório à dignidade da justiça, devendo o juiz, sem prejuízo das sanções criminais, civis e processuais
cabíveis, aplicar ao responsável multa de até vinte por cento do valor da causa, de acordo com a gravidade da
conduta. § 3o Não sendo paga no prazo a ser fixado pelo juiz, a multa prevista no § 2
o será inscrita como dívida
ativa da União ou do Estado após o trânsito em julgado da decisão que a fixou, e sua execução observará o
procedimento da execução fiscal, revertendo-se aos fundos previstos no art. 97. § 4o A multa estabelecida no § 2
o
poderá ser fixada independentemente da incidência das previstas nos arts. 523, § 1o, e 536, § 1
o. § 5
o Quando o
valor da causa for irrisório ou inestimável, a multa prevista no § 2o poderá ser fixada em até 10 (dez) vezes o
valor do salário-mínimo. § 6o Aos advogados públicos ou privados e aos membros da Defensoria Pública e do
Ministério Público não se aplica o disposto nos §§ 2o a 5
o, devendo eventual responsabilidade disciplinar ser
apurada pelo respectivo órgão de classe ou corregedoria, ao qual o juiz oficiará. § 7o Reconhecida violação ao
disposto no inciso VI, o juiz determinará o restabelecimento do estado anterior, podendo, ainda, proibir a parte
de falar nos autos até a purgação do atentado, sem prejuízo da aplicação do § 2o. § 8
o O representante judicial da
parte não pode ser compelido a cumprir decisão em seu lugar.
Art. 78. É vedado às partes, a seus procuradores, aos juízes, aos membros do Ministério Público e da Defensoria
Pública e a qualquer pessoa que participe do processo empregar expressões ofensivas nos escritos apresentados.
§ 1o Quando expressões ou condutas ofensivas forem manifestadas oral ou presencialmente, o juiz advertirá o
ofensor de que não as deve usar ou repetir, sob pena de lhe ser cassada a palavra. § 2o De ofício ou a
requerimento do ofendido, o juiz determinará que as expressões ofensivas sejam riscadas e, a requerimento do
ofendido, determinará a expedição de certidão com inteiro teor das expressões ofensivas e a colocará à
disposição da parte interessada.
Art. 79. Responde por perdas e danos aquele que litigar de má-fé como autor, réu ou interveniente.
Art. 80. Considera-se litigante de má-fé aquele que: I - deduzir pretensão ou defesa contra texto expresso de lei
ou fato incontroverso; II - alterar a verdade dos fatos; III - usar do processo para conseguir objetivo ilegal; IV -
opuser resistência injustificada ao andamento do processo; V - proceder de modo temerário em qualquer
incidente ou ato do processo; VI - provocar incidente manifestamente infundado; VII - interpuser recurso com
intuito manifestamente protelatório.
Art. 81. De ofício ou a requerimento, o juiz condenará o litigante de má-fé a pagar multa, que deverá ser
superior a um por cento e inferior a dez por cento do valor corrigido da causa, a indenizar a parte contrária pelos
prejuízos que esta sofreu e a arcar com os honorários advocatícios e com todas as despesas que efetuou. § 1o
Quando forem 2 (dois) ou mais os litigantes de má-fé, o juiz condenará cada um na proporção de seu respectivo
interesse na causa ou solidariamente aqueles que se coligaram para lesar a parte contrária. § 2o Quando o valor
da causa for irrisório ou inestimável, a multa poderá ser fixada em até 10 (dez) vezes o valor do salário-mínimo.
§ 3o O valor da indenização será fixado pelo juiz ou, caso não seja possível mensurá-lo, liquidado por
arbitramento ou pelo procedimento comum, nos próprios autos.
125
A cooperação pode ser vista de diferentes prismas, os quais estão coadunados com a
postura que deve ser assumida por cada ator processual na dinâmica ilocutória dos atos
processuais. Para Lúcio Grassi de Gouveia, quatro são os deveres resultantes da cooperação
intersubjetiva: esclarecimento, prevenção, de consultar as partes e de auxiliar as partes.
O dever de consultar as partes surge da necessidade do tribunal conhecer a matéria
de fato ou direito sobre a qual não tenha havido pronunciamento prévio, sendo assim um
dever de caráter assistencial. A justificativa deste dever é:
[...] o direito de influir sobre o desenvolvimento da controvérsia e sobre o conteúdo
da decisão restará inevitavelmente oprimido se os interessados não tiverem a
oportunidade de acompanhar e examinar previamente os fundamentos jurídicos do
órgão judicante.423
Assim:
Acaso o magistrado “descubra” a falta de um requisito de admissibilidade, não deve
determinar a extinção do processo (se esse for o efeito previsto) sem antes ouvir as
partes sobre a questão. É certo, ainda, que o magistrado pode indeferir a petição
inicial por motivos não relacionados à sua validade: é o caso da extinção com exame
de mérito, em razão do reconhecimento de decadência legal ou prescrição.424
No caso do Código de Processo Civil, se tem a inovação quanto a este dever, previsto
no art. 9º: “Não se proferirá decisão contra uma das partes sem que ela seja previamente
ouvida.” Ademais, também encontra similitude com o contraditório cooperativo do art. 10
422
Menciona Arruda Alvim que as consequências para o ofensor podem acarretar até mesmo a nulidade
processual: “A infração ao princípio da cooperação produz evidentemente consequências para os sujeitos
processuais, de modo que se o dever de cooperar for imposto ao juiz por uma previsão “fechada”, isto é, se a
situação em que o dever tem de ser observado não deixar ao juiz qualquer margem de apreciação, a sua omissão
importará em nulidade processual, se essa irregularidade puder influir da decisão da causa; não, porém, se o
dever imposto ao juiz resultar de uma previsão “aberta”, deve-se entender que a determinação da situação que
impõe cai no âmbito da discricionariedade do juiz, pelo que a sua omissão não produz qualquer nulidade
processual.” (ALVIM, José Eduardo Carreira. Teoria geral do processo. 20. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro:
Forense, 2017. p. 233) 423
GOUVEA, Lúcio Grassi de. Cognição processual civil: atividade dialética e cooperação intersubjetiva na
busca da verdade real. In: DIDIER JÚNIOR, Fredie (Org.). Processo civil: leituras complementares. 4. ed.
Salvador: JusPodivum, 2006. p. 205 424
DIDIER JÚNIOR, Fredie. O juízo de admissibilidade na teoria geral do direito. In: DIDIER JÚNIOR, Fredie
(Org.). Teoria do processo: panorama doutrinário mundial. Volume II. Salvador: JusPodivum, 2008. p. 306
Sobre a regência da cooperação no princípio do contraditório: “Atualmente, prestigia-se no direito estrangeiro –
mais precisamente na Alemanha, França e em Portugal –, e já com alguma repercussão na doutrina brasileira, o
chamado princípio da cooperação, que orienta o magistrado a tomar uma posição de agente-colaborador do
processo, de participante ativo do contraditório e não apenas a de um mero fiscal de regras. Essa participação
não se resumiria à ampliação dos seus poderes instrutórios ou de efetivação das decisões judiciais [...] O
magistrado deveria adotar uma postura de diálogo com as partes e com os demais sujeitos do processo:
esclarecendo suas dúvidas, pedindo esclarecimentos quando estiver com dúvidas e, ainda, dando as orientações
necessárias, quando for o caso. Encara-se o processo como o produto de atividade cooperativa: cada qual com as
suas funções, mas todos com o objetivo comum, que é a prolação do ato final (decisão do magistrado sobre o
objeto litigioso). Traz-se o magistrado ao debate processual; prestigiam-se o diálogo e o equilíbrio. Trata-se de
princípio que estrutura e qualifica o contraditório. A obediência ao princípio da cooperação é comportamento
que impede ou dificulta a decretação de nulidades processuais – e, principalmente, a prolação do juízo de
inadmissibilidade”. (Ibidem. p. 304 – 305)
126
daquela legislação: “O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em
fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar,
ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício.”
Esta forma425
de contraditório instrumentaliza um novo grau para o princípio
constitucional previsto pelo art. 5º, inciso LV da Constituição Federal426
. O contraditório
projeta um direito de participação para a parte e um dever para o juiz427
, formando uma das
vigas legitimadoras da decisão final.428
Como afirma Cândido Rangel Dinamarco: “A participação que a garantia do
contraditório impõe ao juiz consiste em atos de direção, de prova e de diálogo.”429
O caráter
dialógico com participação do magistrado não significa um prejulgamento ou mitigação da
imparcialidade, mas traduz uma postura conciliadora.430
Em ótica habermasiana, a postura do magistrado contribui para resguardar a ação
comunicativa endoprocessual. Seria um árbitro imparcial que está mediando o debate
argumentativo, evitando que as partes fujam do discurso de aplicação e partam para o agir
estratégico.431
425
Arruda Alvim explica que o contraditório substancial vincula tanto as partes quanto o juiz, de tal maneira
todas as decisões que forem proferidas deverão ter “audiência recíproca” das partes. Além dos arts. 9º e 10º do
Novo Código de Processo Civil, o autor diz que o princípio em tela também se faz presente no caput do art. 239
e 721. (ALVIM, José Eduardo Carreira. Teoria geral do processo. 20. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense,
2017. p.226)
Art. 239. Para a validade do processo é indispensável a citação do réu ou do executado, ressalvadas as hipóteses
de indeferimento da petição inicial ou de improcedência liminar do pedido.
Art. 721. Serão citados todos os interessados, bem como intimado o Ministério Público, nos casos do art. 178,
para que se manifestem, querendo, no prazo de 15 (quinze) dias.
Ainda, sobre a conexão entre a cooperação do art. 6º e os ditames do art. 10º, Candido Rangel Dinamarco
observa que há um duplo endereçamento: os enunciados prescritivos condicionam tanto as partes quanto o juiz.
O autor identifica que estes artigos encontram similitude com o Código de Processo Civil francês, que tem
disposição semelhante no art. 16. Em última análise, Dinamarco enquadra a cooperação como uma forma de
lealdade processual entre todos os atores e que aumenta a eficiência do contraditório e, por conseguinte, a justeza
da decisão a ser proferida no cabo da marcha processual. (DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de
direito processual civil. Volume I. 7. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2017. p. 47) 426
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes: LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados
em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.
Não obstante, o princípio do contraditório é tão importante quanto absoluto que sua inobservância acarreta
nulidade total do processo. 427
Dever este instituído na parte final do art. 7º do Novo Código de Processo Civil. 428
DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do novo processo civil. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2017. p.
61 – 62 429
Ibidem. p. 64 430
Ibidem. p. 65 - 66 431
“O sistema processual brasileiro é um ambiente no qual revalecem os interesses não cooperativos de todos os
sujeitos processuais. O juiz imerso na busca por otimização numérica de seus julgados e as partes (e seus
advogados) no âmbito de uma litigância estratégica (agir estratégico) com a finalidade de obtenção de êxito. Esta
patologia de índole fática não representa minimamente os comandos normativos impostos pelo modelo
constitucional de processo, nem mesmo os grandes propósitos que o processo, como garantia, deve ofertar. Ao se
127
Trata-se de uma abertura cognitiva direcionada ao julgador, consoante a norma
impor ao juiz a oitiva dos fundamentos fáticos; dos fatos constitutivos, impeditivos,
modificativos ou extintos do direito; das teses jurídicas; e dos fatos simples ou circunstanciais
que influam no julgamento.432
Não se pode admitir outra postura do julgador se não aquela em prol da colaboração
processual entre os atores. Aliás, como pondera Dinamarco: “O juiz mudo tem também algo
de Pilatos e, por temor ou vaidade, afasta-se do compromisso de fazer justiça.”433
Já o dever de esclarecimento nas palavras de Gouveia e Didier, respectivamente,
pode assim ser explicado:
[...] consiste no dever do tribunal de se esclarecer junto às partes quanto às dúvidas
que tenha sobre as suas alegações, pedidos ou posições em juízo [...], de molde a
evitar que a sua decisão tenha por base a falta de informação e não a verdade
apurada. Implica em um dever recíproco do tribunal perante as partes e desta perante
aquele órgão: o tribunal tem o dever de se esclarecer junto às partes e estas têm o
dever de o esclarecer [...]434
[...] se o magistrado estiver em dúvida sobre o preenchimento de um requisito
processual de validade, deverá providenciar esclarecimento da parte envolvida, e
não determinar imediatamente a conseqüência prevista em lei para esse ilícito
processual (extinção do processo, por exemplo) – nesse sentido, n. 3 do § 139 da
ZPO Alemã. É possível dizer, até, que, na dúvida, o magistrado deve reputar
admissível (válido) o procedimento. Do mesmo modo, não deve o magistrado
indeferir a petição inicial, tendo em vista a obscuridade do pedido ou da causa de
pedir, sem antes pedir esclarecimentos ao demandante – convém lembrar que há
hipóteses em que se confere capacidade postulatória a não-advogados, o que torna
ainda mais indispensável o cumprimento desse dever.435
Logo, essas obrigações ilocutórias-processuais resvalam na instrumentalização do já
falado contraditório substancial, enquanto desdobramento dos já mencionados art. 10º como
também do art. 7º436
. Afora os dois dispositivos mencionados, o dever de esclarecimento
partir desta constatação cabe ao direito, dentro de seu pressuposto contrafático, ofertar uma base normativa que
induza um comportamento de diálogo genuíno no qual estes comportamentos não cooperativos sejam
mitigados”. (JÚNIOR, Humberto Theodoro. NUNES, Dierle. BAHIA, Alexandre Melo Franco. PEDRON,
Flávio Quinaud. Novo CPC: fundamentos e sistematização. Rio de Janeiro: Forense, 2015. p. 47) 432
ALVIM, José Eduardo Carreira. Teoria geral do processo. 20. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense,
2017. p. 238 433
DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do novo processo civil. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2017. p.
66 434
GOUVEA, Lúcio Grassi de. Cognição processual civil: atividade dialética e cooperação intersubjetiva na
busca da verdade real. In: DIDIER JÚNIOR, Fredie (Org.). Processo civil: leituras complementares. 4. ed.
Salvador: JusPodivum, 2006. p. 203 435
DIDIER JÚNIOR, Fredie. O juízo de admissibilidade na teoria geral do direito. In: DIDIER JÚNIOR, Fredie
(Org.). Teoria do processo: panorama doutrinário mundial. Volume II. Salvador: JusPodivum, 2008. p. 305 -
306 436
Art. 7o É assegurada às partes paridade de tratamento em relação ao exercício de direitos e faculdades
processuais, aos meios de defesa, aos ônus, aos deveres e à aplicação de sanções processuais, competindo ao juiz
zelar pelo efetivo contraditório.
128
também impregna os arts. 385 – 388437
, que tratam sobre o depoimento pessoal da parte, e o
art. 319, nos § 2º e 3º além do art. 321438
, os quais dispõe sobre a emenda da petição inicial.
Na medida em que o Código de Processo determina ao julgador que se manifeste a
cerca das teses jurídicas levantadas pelas partes, fica consolidado o viés procedimental, em
que o será vitorioso o melhor argumental racional, proposto no jogo do discurso jurídico.
Como observa Marinoni:
O poder judiciário tem o dever de dialogar com a parte a respeito dos argumentos
capazes de determinar por si só a procedência ou improcedência de um pedido – ou
de determinar por si só o conhecimento, não conhecimento, provimento ou
desprovimento de um recurso. Isso quer dizer que todos os demais argumentos só
precisam ser considerados pelo juiz com o fim de demonstração de que não capazes
de determinar conclusão diversa daquela adotada pelo julgador.439
Por seu turno, o dever de prevenção implica na obrigação dos tribunais alertarem as
partes da insuficiência quanto à fundamentação ou o teor das pretensões deduzidas. Sua base
reside em quatro pilares: “a explicitação de pedidos pouco claros, o caráter lacunar da
437
Art. 385. Cabe à parte requerer o depoimento pessoal da outra parte, a fim de que esta seja interrogada na
audiência de instrução e julgamento, sem prejuízo do poder do juiz de ordená-lo de ofício. § 1o Se a parte,
pessoalmente intimada para prestar depoimento pessoal e advertida da pena de confesso, não comparecer ou,
comparecendo, se recusar a depor, o juiz aplicar-lhe-á a pena. § 2o É vedado a quem ainda não depôs assistir ao
interrogatório da outra parte. § 3o O depoimento pessoal da parte que residir em comarca, seção ou subseção
judiciária diversa daquela onde tramita o processo poderá ser colhido por meio de videoconferência ou outro
recurso tecnológico de transmissão de sons e imagens em tempo real, o que poderá ocorrer, inclusive, durante a
realização da audiência de instrução e julgamento.
Art. 386. Quando a parte, sem motivo justificado, deixar de responder ao que lhe for perguntado ou empregar
evasivas, o juiz, apreciando as demais circunstâncias e os elementos de prova, declarará, na sentença, se houve
recusa de depor.
Art. 387. A parte responderá pessoalmente sobre os fatos articulados, não podendo servir-se de escritos
anteriormente preparados, permitindo-lhe o juiz, todavia, a consulta a notas breves, desde que objetivem
completar esclarecimentos.
Art. 388. A parte não é obrigada a depor sobre fatos: I - criminosos ou torpes que lhe forem imputados; II - a
cujo respeito, por estado ou profissão, deva guardar sigilo; III - acerca dos quais não possa responder sem
desonra própria, de seu cônjuge, de seu companheiro ou de parente em grau sucessível; IV - que coloquem em
perigo a vida do depoente ou das pessoas referidas no inciso III. Parágrafo único. Esta disposição não se aplica
às ações de estado e de família. 438
Art. 319. A petição inicial indicará: § 2o A petição inicial não será indeferida se, a despeito da falta de
informações a que se refere o inciso II, for possível a citação do réu. § 3o A petição inicial não será indeferida
pelo não atendimento ao disposto no inciso II deste artigo se a obtenção de tais informações tornar impossível ou
excessivamente oneroso o acesso à justiça.
Art. 321. O juiz, ao verificar que a petição inicial não preenche os requisitos dos arts. 319 e 320 ou que
apresenta defeitos e irregularidades capazes de dificultar o julgamento de mérito, determinará que o autor, no
prazo de 15 (quinze) dias, a emende ou a complete, indicando com precisão o que deve ser corrigido ou
completado. Parágrafo único. Se o autor não cumprir a diligência, o juiz indeferirá a petição inicial. 439
MARINONI, Luiz Guilherme. ARENHART, Sérgio Cruz. MITIDIERO, Daniel. Novo curso de processo
civil: teoria do processo civil, volume II. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. p. 445 – 446
129
exposição dos fatos relevantes, a necessidade de adequar o pedido formulado à situação
concreta e a sugestão de uma certa atuação.”440
Em essência, intenta-se evitar que o direito subjetivo das partes, por estar mal
apresentado, leve a nulidades processuais. A hipótese de correção de vícios que ensejem a
extinção sem resolução de mérito, como é prevista no art. 317441
, se alinha com este
postulado.442
De certa maneira, trata-se de uma decorrência lógica dos arts. 9º e 10º, pois se
estará oportunizando a parte de se manifestar antes da decisão ser produzida.
O dever final é o de auxiliar as partes, que direciona o órgão julgador para a retirada
dos obstáculos que surjam na prática dos atos processuais:
Sempre que uma das partes alegue justificadamente dificuldade séria em obter
documento ou informação que condicione o eficaz exercício de uma faculdade ou
cumprimento de ônus ou dever processual, o juiz deve quando possível,
providenciar pela remoção do obstáculo [...]443
Outra dimensão do dever de auxiliar calça ao contraditório, como identifica Rangel
Dinamarco ao tratar do princípio do contraditório quando o juiz atua como condutor do
processo e da produção probatória. Trata-se de uma postura cooperativa, como impõe a tônica
do código:
Por isso, o princípio dispositivo vai sendo mitigado e a experiência mostra que o juiz
moderno, suprindo deficiências probatórias do processo, não se desequilibra por isso
nem se torna parcial. Isso não significa que o juiz assuma paternalmente a tutela da
parte negligente. O que a garantia constitucional lhe exige é que saia de uma postura
de indiferença e, percebendo a possibilidade de alguma prova relevante e pertinente
que as partes não hajam requerido, tome iniciativa que elas não tomaram e mande
que se produza.444
440
GOUVEA, Lúcio Grassi de. Cognição processual civil: atividade dialética e cooperação intersubjetiva na
busca da verdade real. In: DIDIER JÚNIOR, Fredie (Org.). Processo civil: leituras complementares. 4. ed.
Salvador: JusPodivum, 2006. p. 204 441
Art. 317. Antes de proferir decisão sem resolução de mérito, o juiz deverá conceder à parte oportunidade
para, se possível, corrigir o vício. 442
Ao tratar a aplicação, sistema de invalidades processuais ao juízo de admissibilidade do procedimento
principal, Fredie Didier Júnior, se posiciona de forma semelhante quanto ao dever de prevenção: “Outra
importante aplicação prática desta proposta a de impor ao magistrado os deveres de correção e de
aproveitamento do procedimento, mesmo ausente um dos “pressupostos processuais” de validade. Exige-se que
o magistrado assuma o compromisso de fazer o possível para que o mérito seja examinado. Se houver defeitos
processuais (ausência de algum requisito processual), deve ser sanado; se o defeito não causar prejuízo, o
procedimento deve ser aproveitado e o mérito deve ser julgado” (DIDIER JÚNIOR, Fredie. O juízo de
admissibilidade na teoria geral do direito. In: DIDIER JÚNIOR, Fredie (Org.). Teoria do processo: panorama
doutrinário mundial. Volume II. Salvador: JusPodivum, 2008. p. 303) 443
GOUVEA, Lúcio Grassi de. Cognição processual civil: atividade dialética e cooperação intersubjetiva na
busca da verdade real. In: DIDIER JÚNIOR, Fredie (Org.). Processo civil: leituras complementares. 4. ed.
Salvador: JusPodivum, 2006. p. 210 444
DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do novo processo civil. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2017. p.
65
130
Outra aparição do dever de cooperação pode ser descoberta na leitura do art. 357445
do Código de Processo Civil, que trata do saneamento e organização do processo446
. A
cooperação aflora especialmente naquelas demandas que forem complexas em matéria de fato
ou de direito, como aquela prevista pelo § 3º, nas quais pode haver delimitação consensual da
matéria a ser julgada, na esteira do que dispõe o § 2º, ambos do dispositivo retro.
A consequência direta do “saneamento compartilhado” é que o processo será julgado
de forma mais justa e nos termos construídos pelos litigantes.447
Este espírito cooperativo
também é canalizado para os arts. 190 e 191448
, que permitem a adaptação do procedimento,
proporcionando uma nova dimensão para as relações processuais.449
445
Art. 357. Não ocorrendo nenhuma das hipóteses deste Capítulo, deverá o juiz, em decisão de saneamento e
de organização do processo: I - resolver as questões processuais pendentes, se houver; II - delimitar as questões
de fato sobre as quais recairá a atividade probatória, especificando os meios de prova admitidos; III - definir a
distribuição do ônus da prova, observado o art. 373; IV - delimitar as questões de direito relevantes para a
decisão do mérito; V - designar, se necessário, audiência de instrução e julgamento. § 1o Realizado o
saneamento, as partes têm o direito de pedir esclarecimentos ou solicitar ajustes, no prazo comum de 5 (cinco)
dias, findo o qual a decisão se torna estável. § 2o As partes podem apresentar ao juiz, para homologação,
delimitação consensual das questões de fato e de direito a que se referem os incisos II e IV, a qual, se
homologada, vincula as partes e o juiz. § 3o Se a causa apresentar complexidade em matéria de fato ou de direito,
deverá o juiz designar audiência para que o saneamento seja feito em cooperação com as partes, oportunidade
em que o juiz, se for o caso, convidará as partes a integrar ou esclarecer suas alegações. § 4o Caso tenha sido
determinada a produção de prova testemunhal, o juiz fixará prazo comum não superior a 15 (quinze) dias para
que as partes apresentem rol de testemunhas. § 5o Na hipótese do § 3
o, as partes devem levar, para a audiência
prevista, o respectivo rol de testemunhas. § 6o O número de testemunhas arroladas não pode ser superior a 10
(dez), sendo 3 (três), no máximo, para a prova de cada fato. § 7o O juiz poderá limitar o número de testemunhas
levando em conta a complexidade da causa e dos fatos individualmente considerados. § 8o Caso tenha sido
determinada a produção de prova pericial, o juiz deve observar o disposto no art. 465 e, se possível, estabelecer,
desde logo, calendário para sua realização. § 9o As pautas deverão ser preparadas com intervalo mínimo de 1
(uma) hora entre as audiências. 446
O saneamento processual tem início logo após depositada em juízo a contestação e sua possível réplica. É a
etapa subsequente à fase postulatória, nos eventuais defeitos processuais são corrigidos e as provas a serem
produzidas são especificadas. Nesta etapa que as preliminares processuais – que versem sobre incompetência ou
justiça gratuita, por exemplo – são afastadas ou acolhidas. (DIDIER JÚNIOR, Fredie. Curso de direito
processual civil: teoria da prova, direito probatório, decisão, precedente, coisa julgada e tutela provisória. 17. ed.
Salvador: Jus Podivm, 2015. p. 685 – 687) 447
Em termos endoprocessuais, o saneamento cooperativo traz uma outra implicação: a impossibilidade de
impugnar ou (re)ajustar o que foi delimitado anteriormente, sob pena de violar o princípio da boa-fé processual
contido no art. 5º do Novo Código de Processo Civil. (MARINONI, Luiz Guilherme. ARENHART, Sérgio Cruz.
MITIDIERO, Daniel. Novo curso de processo civil: tutela dos direitos mediante processo comum, volume II.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. p. 233)
Já na doutrina de Rangel Dinarmaco, o saneamento compartilhado limita o poder do juiz no momento de decidir
o saneamento, tendo em vista que a legislação faculta às partes participar ativamente desta etapa.
(DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. Volume II. 7. ed. rev. e atual. São
Paulo: Malheiros, 2017. p. 244) 448
Art. 190. Versando o processo sobre direitos que admitam autocomposição, é lícito às partes plenamente
capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os
seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo. Parágrafo único. De ofício ou
a requerimento, o juiz controlará a validade das convenções previstas neste artigo, recusando-lhes aplicação
somente nos casos de nulidade ou de inserção abusiva em contrato de adesão ou em que alguma parte se
encontre em manifesta situação de vulnerabilidade.
Art. 191. De comum acordo, o juiz e as partes podem fixar calendário para a prática dos atos processuais,
quando for o caso. § 1o O calendário vincula as partes e o juiz, e os prazos nele previstos somente serão
131
Quando qualquer um destes deveres for violado450
, pode ser levantada a nulidade da
decisão com alicerce no art. 489 do Código de Processo Civil, pois será afetada diretamente a
fundamentação da decisão. Aliás, a fundamentação451
é um imperativo principiológico-
constitucional452
, pois é nela que o magistrado manifesta a formação racional da decisão,
enfrentando os argumentos suscitados pelas partes, dando verdadeira eficácia ao contraditório
substancial453
.
modificados em casos excepcionais, devidamente justificados. § 2
o Dispensa-se a intimação das partes para a
prática de ato processual ou a realização de audiência cujas datas tiverem sido designadas no calendário. 449
Rangel Dinamarco compreende que a estrutura cooperativista e dialógica do Novo Código de Processo Civil é
verdadeira cristalização do princípio constitucional do contraditório: “em vista as limitações e condicionamentos
impostos ao poder exercido pelo juiz, em substância se cuida da efetivada da garantia do devido processo legal
[...], o qual outra coisa não é senão um sistema de limitações ao exercício do poder” (DINAMARCO, Cândido
Rangel. Instituições de direito processual civil. Volume II. 7. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2017. p.
245) 450
É como observa Lúcio Grassi de Gouvea: “No direito brasileiro, o grande problema é que, geralmente, as
atribuições dos tribunais vêm previstas em lei como poderes que, em tese, poderiam ser usados ou não pelo juiz
ou tribunal, apesar de entendermos que muitas vezes consistem em poderes-deveres, até porque o papel do juiz,
no processo civil moderno, não se coaduna com a prolação de qualquer decisão, independentemente de seu
conteúdo, tendo em vista que a exigência constitucional de motivar suas decisões sugere que não deve
economizar esforços no sentido de que elas espelhem a verdade real.” (GOUVEA, Lúcio Grassi de. Cognição
processual civil: atividade dialética e cooperação intersubjetiva na busca da verdade real. In: DIDIER JÚNIOR,
Fredie (Org.). Processo civil: leituras complementares. 4. ed. Salvador: JusPodivum, 2006. p. 211)
Ainda nesses trilhos, Didier aduz que a imposição de nulidade da decisão como uma pena caso os requisitos
sejam descumpridos, reconhecendo que o ato de fundamentar está interligado ao conteúdo mínimo do devido
processo legal. (DIDIER JÚNIOR, Fredie. Curso de direito processual civil: teoria da prova, direito probatório,
decisão, precedente, coisa julgada e tutela provisória. 17. ed. Salvador: Jus Podivm, 2015. p. 314) 451
No contexto do direito comparado e da história, o dever de fundamentação foi inserido no Código de
Processo Civil da França no art. 455. Já na Itália, Espanha e Portugal, o dever de fundamentação foi positivado
no plano constitucional. Na Itália, a previsão constitucional está no art. 111, comma 6 e no código de processo
reside no art. 132, comma 4. Em Portugal, o dever de fundamentação está tanto no art. 205 da Constituição
quanto no art. 158 do Código de Processo Civil português. Já na Alemanha, a previsão é infraconstitucional no §
313, inciso I da ZPO. De mais a mais, no common law não há previsão expressa, mas a motivação das decisões
se atrela ao princípio do fair Trial, o que torna a fundamentação obrigatória. (MOTTA, Otávio Verdi.
Justificação da decisão judicial: a elaboração da motivação e a formação do precedente. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2015. p. 125 – 127) 452
Principiológico já que contém previsão no art. 11 do Novo Código de Processo Civil, situado na seção de
“normas fundamentais do processo”, com seguinte teor: todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário
serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade. A faceta constitucional advém do art.
93, inciso IX, da Constituição Federal: “Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal,
disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios: IX todos os julgamentos dos
órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a
lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos
nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à
informação.”
Na averiguação de Verdi Motta, o art. 489 do Novo Código de Processo Civil vem para densificar analiticamente
no direito positivo a prescrição do art. 93 da Constituição Federal. (Ibidem. p. 151) 453
Leonardo Carneiro da Cunha observa que o art. 489 aplica o modelo de contraditório substancial: “o exercício
pleno do contraditório não se limita à garantia de alegação oportuna e eficaz a respeito de fatos, implicando a
possibilidade de ser ouvido também em matéria jurídica”. Portanto, aponta que “o juiz não pode valer-se de
fundamento a respeito do qual não se tenha oportunizado manifestação das partes”. Para operacionalizar este
formato, o novo CPC impõe ao juiz “o dever de submeter a debate entre as partes as questões jurídicas, aí
incluídas as matérias que ele há de apreciar de ofício. O juiz tem o dever de provocar, preventivamente, o
contraditório das partes.” (CUNHA, Leonardo Carneiro da. Seção II: Dos Elementos e dos Efeitos da Sentença.
In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. DIDIER JÚNIOR, Fredie. TALAMINI, Eduardo. DANTAS, Bruno.
132
Vale a leitura do artigo acima mencionado:
Art. 489. São elementos essenciais da sentença:
III - o dispositivo, em que o juiz resolverá as questões principais que as partes lhe
submeterem.
§ 1o Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela
interlocutória, sentença ou acórdão, que:
I - se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar
sua relação com a causa ou a questão decidida;
II - empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de
sua incidência no caso;
III - invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão;
IV - não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese,
infirmar a conclusão adotada pelo julgador;
V - se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus
fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta
àqueles fundamentos;
VI - deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado
pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a
superação do entendimento.
Fundamentação e argumentação são indissociáveis em um modelo procedimental,
pois os argumentos utilizados são demonstrados na fundamentação, da qual, por sua vez,
surgem dois vetores: um vinculado ao caráter exoprocessual - cujo destino é a sociedade civil
- e outro denominado de viés endoprocessual, que é direcionado para as instâncias superiores,
as quais irão verificar a legitimidade da decisão em sede recursal.454
É através da fundamentação que serão operacionalizadas as técnicas de superação
dos precedentes judiciais, com observância da adequação daquele julgamento com aquilo que
é fincado nos tribunais superiores: é nos fundamentos que o magistrado deve indicar o porquê
de deixar de aplicar um precedente, a partir das manifestações das partes – também co-
(Orgs.). Breves comentários ao Novo Código de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. p.
1234)
Esse paralelo do art. 489 com o contraditório substancial também é identificado por Verdi Motta: “Daí que se
entende que a motivação das decisões judiciais consiste na “última manifestação do contraditório”, porque a
extensão da motivação mede-se em função do direito ao contraditório das partes. É na garantia do direito à
motivação que se poderá avaliar verdadeiramente, portanto, o exercício substancial do direito ao contraditório,
havendo, dessa forma “um nexo inarredável entre inafastabilidade da jurisdição, direito fundamental ao
contraditório e dever de fundamentar as decisões jurisdicionais”. (MOTTA, Otávio Verdi. Justificação da
decisão judicial: a elaboração da motivação e a formação do precedente. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2015. p. 157) 454
DIDIER JÚNIOR, Fredie. Curso de direito processual civil: teoria da prova, direito probatório, decisão,
precedente, coisa julgada e tutela provisória. 17. ed. Salvador: Jus Podivm, 2015. p. 315
Sobre esses vetores, Verdi Motta: “Em essência, a função endoprocessual consistira em possibilitar que as partes
compreendam a decisão, especialmente para possibilitar a interposição de recurso, e que os juízes das instâncias
superiores apreciem de madeira adequada os fundamentos da decisão recorrida. A função extraprocessual, por
seu turno, corresponderia à possibilidade de controle externo por parte da opinião pública e da sociedade civil
em geral a respeito dos fundamentos da decisão judicial. (MOTTA, Otávio Verdi. Justificação da decisão
judicial: a elaboração da motivação e a formação do precedente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. p. 133)
133
responsáveis, enquanto atores processuais – as quais identifiquem elementos fáticos ou
jurídicos que impliquem na superação ou distinção de um determinado precedente.455
Por tais razões, fica claro que a fundamentação é componente essencial para que a
decisão seja um ato jurídico perfeito, pois a construção procedimental do decisório é o
parâmetro a ser utilizado na revisão futura das decisões judiciais na reconstrução em cadeia,
necessária para manutenção da integridade do sistema jurídico. Por isso a faceta
endoprocessual alimentar a auto-reflexão pelos tribunais e o dever de fundamentação
contribuir para manutenção da jurisprudência íntegra e coerente, como quer o art. 926 do
Código de Processo Civil456
.
Já o viés exoprocessual abre oportunidade para a sociedade civil visualizar a
aderência do julgado aos argumentos originários da esfera pública e canalizados pelos amicus
curiae. Isto se reflete na expressão de convencimento que envolve a decisão e no enfoque
democrático da jurisdição, já que o fundamento democrático é uma das bases da atividade
jurisdicional.457
É que “a jurisdição tanto deve ser convencida quanto deve convencer a sociedade”,
justificando formalmente as conclusões construídas no decorrer do processo, como informar
aos atores processuais e à sociedade qual a “informação deontólogica que parte do texto
constitucional e que aterrissa sobre a realidade estabelecida no processo.”458
455
Os precedentes estão conectados diretamente a interpretação, alicerçada na construção feita pelos atores
processuais com base nos determinantes fáticos e jurídicos: “A percepção de que a norma é o resultado da
interpretação [...] abriu espaço para que se pensasse na decisão judicial [...] como um meio para promoção da
unidade do direito. Mais precisamente, chegou-se à conclusão de que em determinadas situações as razões
adotadas na justificação das decisões servem como elementos capazes de reduzir a indeterminação do discurso
jurídico, podendo servir como concretizações reconstrutivas de mandamentos normativos." (MARINONI, Luiz
Guilherme. ARENHART, Sérgio Cruz. MITIDIERO, Daniel. Novo curso de processo civil: teoria do processo
civil, volume II. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. p. 606) 456
Art. 926. Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente. § 1o Na
forma estabelecida e segundo os pressupostos fixados no regimento interno, os tribunais editarão enunciados de
súmula correspondentes a sua jurisprudência dominante. § 2o Ao editar enunciados de súmula, os tribunais
devem ater-se às circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram sua criação.
É curioso que o Novo Código de Processo Civil adotou a nomenclatura utilizada por Ronald Dworkin. Quiçá a
leitura moral da Constituição esteja como imperativo na elaboração da referida legislação. De fato, fica claro que
o arcabouço principiológico que ampara o código aduz uma gama de imperativos conectados à cooperação das
partes. Adotar a teoria do romance em cadeia pela via dos “precedentes” significa também adotar a teoria da
decisão correta. Mas não aquela decisão solipsista e sim aquela decisão correta construída procedimentalmente,
pois o princípio da busca cooperativa terminaria por afastar as tendências de solipsismo e protagonismo dos
juízes. 457
MOTTA, Otávio Verdi. Justificação da decisão judicial: a elaboração da motivação e a formação do
precedente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. p. 133 458
GÓES, Ricardo Tinoco de. Democracia Deliberativa e Jurisdição: a legitimidade da decisão judicial a partir
e para além de J. Habermas. Curitiba: Juruá, 2013. p. 251
O paralelo entre legitimidade e fundamentação é destacado pelo referido autor “Assim, com referência aos
interesses titularizados pela cidadania, dentre os quais , sobre tudo, os que estão imantados à natureza própria
dos direitos fundamentais, a obrigação ou a exigência de que a Jurisdição fundamente as suas decisões,
134
A decisão como elemento objetivo do discurso jurídico, na definição de Góe,
corresponde a uma:
[...] perspectiva dinâmica de um modelo argumentativo/interpretativo que ora leva a
Jurisdição a formar um convencimento em consonância com os valores
preponderantes no discurso, ora permite a esfera pública, caso esses valores não
sejam motivadamente albergados, a revisão dos seus próprios argumentos. Nesse
último caso, a participação da cidadania com vistas a rever os seus argumentos pode
ocorrer tanto para modificar a regra de argumentação antes construída, como para
acrescentar outros proferimentos, de maior relevo e destaque, a ponto de num
segundo momento, levar a Jurisdição a modificar a interpretação que, anteriormente,
teve por adotar.459
Na ótica de Peter Häberle, a fundamentação da decisão fora a reserva de
consistência, tida por parâmetro argumentativo que deverá englobar toda a gama de pré-
interpretações deduzidas pela esfera pública plural.460
Na medida em que os argumentos são
enfrentados pelo juízo, na faceta exoprocessual, tem-se a ocorrência do accountability461
pela
sociedade.
Além do mais, o dever de fundamentação é de um direito fundamental462
e alinhado
com os pressupostos de um Estado constitucional, no qual a justificativa do exercício do
enfrentando diretamente toda a argumentação construída na etapa que precede a conclusão do julgado, é o que
para nós, sedimenta a convicção da legitimação democrática do ato de julgar”. (Idem.) 459
Ibidem. p. 252 460
HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional - a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição:
contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da constituição Trad. de Gilmar Ferreira Mendes.
Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002. p. 42
A despeito de Häberle creditar à Habermas o termo, pensando numa comparação entre Direito e Democracia e
Bewteen Facts and Norms, considerada como a tradução norte-americana da primeira, o termo pode ser visto
como “reserva de coerência” ou “reserva de integridade”, já que consistência (consistency) aparece como
sinônimos para esses dois outros termos.
Noutro orbe, a reserva de consistência é tratada por Sérgio Fernando Moro como o parâmetro de auto-contenção
do julgador, diante da apreciação de inconstitucionalidade de uma norma ou na necessidade de tratar sobre a
implementação de uma política pública. Diz este autor que: “A intervenção da jurisdição constitucional depende
da reunião de elementos suficientes para demonstrar o acerto do resultado que se pretende alcançar.” (MORO,
Sérgio Fernando. Jurisdição constitucional como democracia. São Paulo: Resista dos Tribunais, 2004. p. 221)
Daí o juiz “ter de superar a reserva de consistência, que exige pelo menos a demonstração do desarcerto da lei, e
quiçá a indicação de um valor compatível como o comando constitucional, para o que ele deverá valer-se de
amplos dados empíricos.” Sustenta, ainda, que o juiz não pode se fechar as “consequências de suas decisões”,
devendo “cogitar sobre os reflexos de sua decisão para a economia do país.” (Ibidem, p. 222)
A autocontenção pela reserva de consistência decorre da “desconfiança quanto à capacidade do juiz para resolver
controvérsias” Caso a argumentação não seja suficiente, deverá o julgador evitar proferir uma “decisão de mérito
equivocada”. Esse mesmo parâmetro servirá como critério para casos futuros. (Ibidem, p. 226)
Com efeito, a reserva de consistência é tratada por aquele autor em um viés argumentativo, mas para este estudo,
tal elemento se mostra muito mais que um simples parâmetro de auto-contenção, sendo a visão do autor deveras
solipsista e pragmática, consoante o termo englobar também os anseios da sociedade civil em relação aquela
demanda. 461
O termo accountability refere-se a uma forma de prestação de contas ou fiscalização por parte da sociedade.
Trata-se de terminologia amplamente utilizada para designar a responsabilidade ética do agente público. Em
miúdos: a fundamentação substancial, plural e racional é também um dever ético do julgador. 462
O próprio conceito de direito fundamental, em sua acepção mais ampla, faz englobar todos aqueles direitos
que estão encontrados no texto constitucional e, diante da supremacia das normas constitucionais, formam um
mínimo de direitos garantidos que retiram a opção do legislador ordinário quanto à sua retirada da ordem
135
poder e sua legitimação são questões tratadas em par com a inadmissibilidade de condutas
arbitrárias ou totalitárias.463
É no dever de fundamentação que toda a garantia principiológica do Código de
Processo Civil deposita seu anseio de justeza: enquanto direito fundamental do jurisdicionado,
o dever de fundamentação assegura que as decisões tomadas serão justas e cria mecanismos
para efetivação discursava dos deveres de cooperação, consignando um imperativo dialógico
para o magistrado.
Se o art. 489 for levado às suas últimas consequências e aplicado fidedignamente,
conseguirá por fim ao solipsismo e ao protagonismo dos magistrados, trazendo as próprias
partes – e no caso da jurisdição constitucional, a própria sociedade – para o centro do
construto processual e da tomada de decisão.
Perfilhando deste entendimento, Verdi Motta avalia:
É em função da necessidade de resolver disputas judiciais que aparece a necessidade
de prolação de decisões judiciais. É pressuposto necessário da aplicação a
interpretação. Disso decorre que a conexão entre justificação e motivação como
discurso do caso está em, que, no processo, a interpretação é consequência da
provocação para a aplicação do direito com o fim de que seja prolatada uma decisão
justa para o caso concreto posto a julgamento. A motivação, nesse contexto, aparece
como a sede material da justificação: é quando no processo, o órgão jurisdicional
concretiza em ato material a justificação [...] por meio de um discurso racional e
escrito, as razões que motivaram a reconstrução normativa e as provas que
demonstram a ocorrência de elementos factuais, com vista à prolatação de uma
decisão justa.464
E arremata com a seguinte linha:
A partir daí, entende-se que a questão que envolve o discurso da motivação deve ser
vista sob o ponto de vista de que a sua estrutura dê conta da necessidade de
demonstração, por meio da elaboração de critérios, de que a decisão adotada pode
ser considerada a melhor, e portanto, justa.465
No caso, o critério a ser adotado pela perspectiva habermasiana e tinoquiana está
localizado no procedimento que serviu de fonte para a decisão. Explica-se: a decisão correta,
jurídica. (DIMOULIS, Dimitri. MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. 4. ed. rev.
atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2012. p. 39 – 40)
Como visualiza Otávio Verdi Motta, mesmo que o dever de fundamentação não esteja no rol de direitos e
garantias fundamentais da Constituição – pensando aí em direitos fundamentais em sentido estrito -, trata-se de
uma fundamentalidade material, que está conectada ao conteúdo e importância da fundamentação das decisões
judiciais. E o autor ainda vai além, ao dizer que a fundamentabilidade do direito à motivação está presente no
direito internacional, sendo aplicado na Corte Europeia de Direitos Humanos. (MOTTA, Otávio Verdi.
Justificação da decisão judicial: a elaboração da motivação e a formação do precedente. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2015. p. 128 - 129) 463
Idem. 464
Ibidem. p. 130 - 131 465
Ibidem. p. 131
136
adequada, aquela que é melhor diante do caso concreto, sempre será a que for construída
procedimentalmente e tenha alicerce na vitória do melhor argumento jurídico.
E quando se fala em vitória, não quer dizer que os argumentos – e, portanto, as
pretensões deduzidas pelos contendentes – sejam anuláveis entre si. O cerne da atividade
argumentativa opera mais como uma transação, ainda que na perspectiva unicamente
procedimental, que os interesses mínguam para ceder lugar àquele que foi defendido
racionalmente.
Ainda que tal concepção pareça distante da realidade judicante repleta de lides,
todavia, a própria essência do processo judicial está imbricada nesta concepção, ainda mais
nos termos da nova carta de ritos processuais. A existência de um processo civil dialógico
resulta numa ação comunicativa que prima por uma construção justa.466
Por derradeiro, como a “motivação transforma a justificação em ato material no
processo”, sua elaboração deve ser racional, demonstrando “as razões que levam a uma
determinada reconstrução normativa, às provas que demonstram a ocorrência dos elementos
factuais e a correção do percurso processual” e deve comportar alguns elementos
estruturais.467
Na ótica de Verdi Mota, essa estrutura mínima é configurada nos seguintes
requisitos:
[...] (a) a identificação da norma aplicável; (b) a verificação das alegações de fato;
(c) a qualificação jurídica do suporte fático; (d) avaliação das consequências
jurídicas da qualificação do suporte fático; (e) avaliação do contexto de nexos de
implicação e coerência entre tais enunciados; (f) a justificação dos enunciados com
base em critérios que demonstrem que as escolhas do juiz foram racionalmente
corretas – critérios que correspondem às exigências de justificação externa. O
discurso, Ademais, deve ser racional e coerente, respondendo à exigência de
justificação o interna. Além de tudo isso, a motivação só será capaz de possibilitar a
formação de uma decisão justa se der conta também da justa estruturação do
processo. Logo se vê que a justificação a respeito das individualizações e escolhas
no plano normativo e no plano fático correspondem à justificação externa da
decisão, ao passo que a qualificação jurídica e os nexos de inferência entre os
enunciados jurídicos e fáticos correspondem à justificação interna.468
466
Daí se propor uma metáfora, ainda que tosca: o peso do martelo do julgador sob a parte vencida será baseado
na argumentação desempenhada. Quanto melhor for a argumentação, mais aqueles fatores serão levados em
consideração pelo julgador e menores serão as consequências negativas da decisão. Uma maneira de visualizar
esta questão é nas ações de danos morais, na qual o sucumbente tem de arcar com uma indenização que nem
sempre é no valor total pleiteado pelo autor. Já no contexto da jurisdição constitucional, é até preferível pensar
que não há perdedores ou vencedores, já que a dinâmica social impõe uma revisão constante dos argumentos
fáticos – aqui encarados como fatores reais de poder – que não são derrotáveis pela atividade jurisdicional. De
mais a mais, nos casos da corte constitucional, haverá verdadeira ponderação, não de valores, mas sim de
argumentos afim de determinar aquele que irá prevalecer, sendo esta uma característica importante em face do
pluralismo das sociedades contemporâneas. 467
MOTTA, Otávio Verdi. Justificação da decisão judicial: a elaboração da motivação e a formação do
precedente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. p. 143 468
Ibidem. p. 144
137
Devidamente identificado como direito fundamental do cidadão, o dever de
fundamentação é o cânone máximo de racionalidade da atividade jurisdicional e uma garantia
que tudo aquilo que é deduzido no bojo processual pelas esferas públicas canalizadas pelos
amicii curiae será enfrentado pelo julgador no momento da decisão.469
Não se pode admitir
outra postura de um juiz se não a cooperação, de modo que eventuais afrontas a este dever
podem e devem ser supridas através da via recursal.470
Enfim, todo esse percurso tem como objetivo demonstrar como a colheita das
informações advindas das esferas públicas são tratadas sob o prisma do processo civil. Fica
claro que o legislador tem preocupação com a cooperação e consigna um grau de abertura
procedimental, consoante os dispositivos legais e princípios contidos no Código de Processo
Civil.
Porém, o alargamento jurisdicional não é levado à cabo consoante o receio de que o
diálogo finde retardando a marcha processual. De fato, a celeridade processual é uma
garantia do jurisdicional, a questão aqui – e talvez um mote para futuras inquirições – reside
na compatibilização entre procedimentalismo e bom andamento.471
469
Fazendo um paralelo com a doutrina de Ricardo Tinoco de Góes, a construção provisória da regra de
argumentação deverá ser enfrentada comunicativamente neste momento, com o julgador identificando se aquela
pretensão interpretativa – ou expectativa normativa se coaduna com o sistema jurídico. 470
É dura a crítica de Humberto Theodoro Júnior: “Não podemos mais tolerar as simulações de fundamentação
nas quais o juiz repete o texto normativo ou a ementa de julgado que lhe pareceu adequado ou preferível, sem
justificar a escolha. Devemos patrocinar uma aplicação dinâmica e panorâmica dessa fundamentação que gere
inúmeros benefícios, desde a diminuição das taxas de reformas recursais, passando pela maior amplitude e
profundidade dos fundamentos determinantes produzidos nos acórdãos e chegando até mesmo a uma nova
prática decisória na qual os tribunais julguem menos vezes casos idênticos em face da consistência dos
julgamentos anteriores. Há muito se percebe que a exigência de fundamentação das decisões judiciais é uma
garantia contra o arbítrio e a discricionariedade; no entanto, a consideração recorrente de que se trata de
obrigação óbvia faz crer que qualquer motivo apresentado pelo juiz seria suficiente para o cumprimento da
norma prevista no art. 93, IX, da CR/1988.” (JÚNIOR, Humberto Theodoro. NUNES, Dierle. BAHIA,
Alexandre Melo Franco. PEDRON, Flávio Quinaud. Novo CPC: fundamentos e sistematização. Rio de Janeiro:
Forense, 2015. p. 205) 471
Como diz a música composta por Almir Satre e Renato Teixeira: “Ando devagar porque já tive pressa, levo
esse sorriso porque já chorei demais, hoje me sinto mais forte, mais feliz, quem sabe?” É necessário cuidado
quanto ao apego exacerbado à celeridade processual. Há de se pensar que a jurisdição deve ser tratada de forma
qualitativa e não somente quantitativa, afinal, como diz o adágio: “A pressa é inimiga da perfeição”. Ademais,
vale a leitura da seguinte transcrição: “Do mesmo modo, a apresentação do juiz como protagonista do sistema
que com imparcialidade julga corretamente traz algo a ser contestado. O mito da imparcialidade (neutralidade)
como blindagem ao elemento anímico do juiz faz crer no seu desinteresse no julgamento, de modo absoluto,
conduzindo ao desprezo de suas pré-compreensões e propensões cognitivas solitárias no ato de julgar. E aqui não
se está discutindo a imparTialidade (com T – ou terzietá), como já comum entre os processualistas, como
postura de “não parte” que vedaria ao magistrado qualquer função típica das partes. Critica-se a falaciosa
ausência de elemento anímico do julgador ou suposta neutralidade, quando se constata a existência de
verdadeiros ancoramentos cognitivos promovidos antes do próprio processo (como, por exemplo, o preconceito
inconsciente em relação a grupos étnicos/raciais ou de diversa orientação sexual) e propensões cognitivas
produzidas durante o processo (v.g. contaminação cognitiva do magistrado que teve contato com a prova
excluída por ilicitude), para não falar da formação prévia daqueles que são os julgadores, em sua maior parte
provenientes das elites econômicas do País, chegando-se ao ponto até de haver certa “coincidência” de
138
Logo, não se trata de transformar o judiciário em esfera pública, mas sim em um fiel
depositário daquilo que a sociedade civil delibera. Isto implica dizer que as deliberações
argumentativas são anteriores e ocorrem no âmbito da sociedade e não do processo.
A jurisdição irá receber o influxo comunicativo e produzir o julgado sob a ótica
procedimental com todos os atores processuais envolvidos, devendo justificar
argumentativamente a decisão proferida. Tal postura permite que a melhor decisão seja
construída de forma procedimental, não dependendo da solitária análise do julgador, mas sim
de uma construção comum.
Esta noção é importante quando se pensa no amicus curiae, cujas manifestações em
juízo devem ser consideradas para criação da regra de argumentação e devidamente
enfrentadas no momento de lavratura da sentença ou acórdão. As consequências processuais
desta visão afiançada no sistema processual cooperativo servem como uma garantia para o
cidadão e toda a sociedade civil.
sobrenomes (mais uma vez, em sentido oposto aos mecanismos republicanos). Em face da quantidade de
trabalho de um sistema que já conta com mais de 95 milhões de processos segundo o último relatório “Justiça em
Números” do CNJ, a tendência de contaminação cognitiva em busca de maior rapidez do julgamento precisa ser
levada em consideração.” (Ibidem. p. 59-60)
139
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Palmilhando tudo que foi exposto até o momento, o estudo chegou a sua etapa final.
Será feito um apanhado sinótico, apontando quais as conclusões foram obtidas para, de um
lado, responder as questões que fomentaram a esta pesquisa e, de outro, devolver para a
comunidade científica novas perguntas com o afã de impulsionar futuras pesquisas dentro da
temática, apontando tópicos que podem – e devem – ser objetos de estudo para uma teoria
procedimental da jurisdição.
O ponto de partida para alcançar a resposta obtida deste estudo repousa no
reconhecimento de que a sociedade é estruturada através da linguagem e tem nos atos de fala
sua unidade fundamental. Os atos de fala são os reprodutores do substrato social e que
possibilitam o desenvolvimento da sociedade a partir de uma linguagem compartilhada entre
os sujeitos. É que no contexto das sociedades pluralísticas e seculares, a linguagem é o único
meio através do qual as necessidades humanas podem ser tratadas coletivamente, no sentido
de que a dinâmica linguística é a viga-mestra da atividade do homem em sociedade.
Assim, com os atos de fala é possível fazer uma interpretação auto-referencial do que
é colocado ao ouvinte, que é capaz de identificar qual o interesse por traz da ação do agente-
falante. Os atos de fala tem um caráter representativo, porque identificam algo no mundo
concreto, como também produtivo, já que direcionam novas atuações humanas.
Enquanto meio de transmissão, a linguagem comporta modos de utilização diversos a
lume da teoria do agir comunicativo de Jürgen Habermas. Disso, é possível ter a linguagem
orientada para o sucesso de um interesse particular ou para a harmonização de interesses entre
todos os falantes.
O uso da linguagem orientado para o próprio sucesso configura o agir estratégico, no
qual a aceitação do ouvinte é subvertida por elementos extralinguísticos, como ameaças ou
dissimulações. No agir estratégico, a linguagem é somente um meio de transmissão de
informações. Já o agir comunicativo lança mão do uso linguístico orientado para o
entendimento mútuo, fazendo da linguagem um mecanismo cooperativo em que a
inteligibilidade da fala é avaliada intersubjetivamente – entre sujeitos que compartilham uma
linguagem comum – no que cinge a sua validade normativa – se deve ser aceita ou não.
O agir comunicativo forma o sistema de negociação através do qual os consensos são
formados no corpo social, de modo que a integração da sociedade perpassa pela mitigação do
agir estratégico e estímulo ao agir comunicativo. Trata-se de um acordo racional de vontades
coordenadas no âmbito do mundo da vida. Por seu turno, é no mundo da vida que ocorrem as
140
atividades comunicativas, servindo como pano de fundo para a ação humana e contendo um
fato repositório interpretativo que é retroalimentado pela atividade comunicativa. Sua
composição é baseada na cultura, na personalidade do sujeito e na sociedade, elementos
entrançados entre si.
Ainda que o consenso seja a peça chave da ação comunicativa, o mesmo não é algo
obrigatório e muito menos perpétuo. O agir comunicativo enseja um caráter cíclico nas
atividades humanas, de modo que hoje se um determinado proferido é tido por invalido,
futuramente há chances dele se tornar válido e aceitável. O agir comunicativo pode ser forte
ou fraco, a depender das pretensões levantadas pelo falante e o grau de aceitabilidade. Se
forem aceitas integralmente em suas premissas, o agir comunicativo será forte e será formado
um acordo. Quando o aceite é parcial e se deve mais pela plausibilidade de veracidade do que
por toda a estrutura lógica do argumento, forma-se o entendimento mútuo do agir
comunicativo fraco.
Quando o consenso não é possível, o direito entra em cena com mecanismos para
coibir o agir estratégico e fomentar as atividades comunicativas tendo como marco não mais
as questões morais do mundo da vida e sim o prisma institucional dos direitos fundamentais.
Outrossim, o direito possui o condão de estabilizar o mundo da vida, suprindo a carência de
força normativa da linguagem comunicativa, servindo como garantidor da integração social. É
que os mundos da vida, por serem muito pluralizados, necessita de um plano de validade
deontológica extra-linguística operando no plano da validade linguística.
A integração social do direito ocorre no âmbito do discurso jurídico, pois veda o
questionamento direto pelo destinatários sobre a validade das normas que plausibilizam as
condutas e impede a ruptura do arranjo comunicativo. Há uma aceitação prévia que decorre de
toda a estrutura do direito. Por seu turno, o direito é aceito pelos cidadãos porque estes são
autores e destinatários, ficando claro através do princípio do discurso que as normas somente
logram êxito em serem válidas quando construídas procedimentalmente, com iguais chances
de manifestação por todos os destinatários sobre sua aceitação ou não.
O princípio do discurso é desdobrado enquanto princípio da democracia quando trata
das normas jurídicas, removendo o ônus moral das deliberações. É necessário que o cidadão
se organize comunicativamente e atue como parceiro do direito para construção normativa.
Logo, direito e moral possuem uma relação de complementariedade, de tal sorte que o direito
opera no nível institucional e a moral no âmbito cultural do mundo da vida. O direito protege
a estrutura jurídica que possibilita o fluxo comunicativo, enquanto a moral oferta o conteúdo
dos atos jurídicos.
141
O cidadão detém uma gama de direitos nos limites de sua liberdade individual, a qual
é harmonizada pela legislação com as liberdades dos demais. O direito fará uma estruturação
comunicativa dessas liberdades individuais para que haja a negociação comunicativa
ensejando a vitória do melhor argumento racional. Isto pressupõe uma dimensão moral
conteudística para o direito, sem deixar de lado a forma jurídica comunicativa. Logo, a
igualdade comunicativa de liberdades individuais se torna um requisito da soberania do
cidadão e objetivo do discurso jurídico.
O discurso jurídico serve de gênese a uma autonomia política do cidadão, que
interliga discursivamente a autonomia privada com a autonomia pública. É através da
autonomia privada que são escolhidos os direitos fundamentais que vão compor o repertório
de direitos das Constituições, enquanto a autonomia pública impõe limites para a autonomia
privada. A eleição de uma autonomia pública como pressuposto da atividade política sinaliza
um rompimento com o modelo do paternalismo legal e da ditadura de maiorias. O direito é
produzido com o devido esclarecimento para todos os envolvidos que tem a possibilidade de
participar ou não do debate político.
Quanto a dimensão espacial, é na esfera pública que os debates ocorrem, de modo
que nela as biografias dos particulares reverberam os problemas comuns aquela coletividade e
projetam para o parlamento, para o judiciário e para o executivo, quais as necessidades.
Apesar de ser uma arena de debates, a esfera pública não se confunde com o espaço
arquitetônico que ocorre, sendo formada pela sociedade civil organizada.
Vale salientar que esfera pública e mundo da vida diferem entre si. O mundo da vida
é o repositório interpretativo baseado nos saberes culturais, que é constantemente reabastecido
pela ação comunicativa. Já a esfera pública é a circunscrição argumentativa desempenhada no
mundo da vida e que é direcionada ao poder público. A opinião pública se forma a partir das
esferas públicas pluralistas da sociedade civil, que agem comunicativamente para chegar a
consensos sobre temas do cotidiano político. O cerne da atividade estatal sempre irá perpassar
pela autonomia política do cidadão, daí se falar em um modelo de democracia radical e
deliberativa.
O amicus curiae é um canal comunicativo entre a opinião pública construída
procedimentalmente e a jurisdição, seja ela ordinária – como nos casos de IRDR ou
uniformização de jurisprudência dos juizados especiais – seja a constitucional. O influxo
comunicativo adentra pela eclusa consubstanciada naquele instituto processual e leva ao crivo
do julgador elementos jurídicos e extrajurídicos que tem o condão de influenciar o
julgamento. Em outras palavras, se em uma perspectiva endoprocessual o amicus curiae é o
142
canal comunicativo, por outro lado, em uma instância moral-conteudística, aquele instituto é a
própria esfera pública em juízo.
A opinião pública procedimental colhida pelo amicus curiae representa a
Constituição real assinalada por Konrad Hesse ou os fatores reais de poder tratados por
Ferdinand Lassale. Quando o Supremo Tribunal Federal abre suas comportas comunicativas à
sociedade civil está maximizando os direitos fundamentais sob tutela. A intervenção do
amicus curiae tem tríplice função: a) prestação de informações extrajurídicas para uma
cognição eficiente; b) participação cidadã no processo judicial quando há um interesse
público e; c) manutenção da integridade do direito e da segurança jurídica. Também pode ser
dada as intervenções de amicii uma conotação contra-colonizadora, já que os requisitos
intrínsecos à intervenção asseguram que somente aqueles que tiverem interesse direto com a
temática em julgamento é que poderão se manifestar em juízo.
Os requisitos que devem ser atendidos são a necessidade de relevância da matéria e a
representatividade dos postulantes. Isto evita que grupos de interesse intervenham de forma
estratégica no processo judicial. Na intermediação entre sociedade e judiciário, a intervenção
pode ocorrer na forma de memoriais, através da sustentação oral ou na participação de
audiências públicas. Amicus curiae é um gênero do qual a audiência pública faz parte. Quanto
à natureza jurídica, o amicus curiae é uma intervenção de terceiro que não se confunde com a
atuação do perito, do custos legis e nem do assistente, ainda que guarde certas semelhanças
com cada instituto.
O amicus curiae lastreia a verdadeira democratização da jurisdição, na qual a
sociedade dialoga com o poder judicial para construção da melhor interpretação – e
consequentemente da resposta procedimentalmente correta – para a tema que tiver sub judice.
A opção por esta via tem como alicerce o reconhecimento da sociedade como destinatária e
co-autora das normas jurídicas. A pré-interpretação suscitada na forma do princípio da
democracia habermasiana contribui para elaboração da regra de argumentação, que irá nortear
o julgamento pelo órgão judicante e parte da ponderação dos valores envolvidos na temática.
O caráter procedimental imanente à atividade jurisdicional é extensivo ao tratamento
da opinião pública consignada em juízo. É que o julgador tem um dever de cooperação com
todos os atores processuais, formando a comunidade de trabalho que irá edificar, etapa por
etapa, o desfecho processual. Neste afã, as teorias de Jürgen Habermas e Peter Harbele são
complementares, de modo que a sociedade oferta a pré-interpretação e expectativas
normativas advindas das esferas públicas. Não se trata de transformar o judiciário em uma
esfera pública, mas manter as eclusas abertas para o diálogo com a sociedade civil. Em última
143
análise, a práxis constitucional fará adequação entre mundo da vida, esfera pública e texto
Constitucional.
Dito isso, a racionalidade e legitimidade da jurisdição são auferidas a partir da
capacidade dialógica apresentada pelo julgador. O juiz deve ouvir a sociedade e não ficar
restrito a uma releitura moral do texto Constitucional. Esta é a principal crítica de Habermas
ao juiz Hércules de Ronald Dworkin: não há espaço para solipismo ou protagonismo na
jurisdição procedimental.
É que a decisão para os casos difíceis – aqueles que a norma se mostra insuficiente
ou inexistente – dependerá de uma argumentação principiológica e haverá construção de uma
resposta correta. Mas essa resposta é construída com a aquiescência da sociedade através da
regra de argumentação. Por isso a jurisdição procedimental está apoiada em uma teoria da
argumentação jurídica que levanta o ônus moral do julgador e o direciona para um feixe
plausibilizador dos melhores argumentos, cuja validade é testada dialogicamente, sempre em
confronto com texto constitucional e regra de argumentação.
O Código de Processo Civil mostra uma adoção parcial do modelo de jurisdição
procedimental a ao inscrever no art. 6º o princípio da cooperação entre as partes. De fato,
ainda que tenham interesses materialmente antagônicos, os atores que fazem parte da
comunidade de trabalho processual devem agir comunicativamente. O juiz deve assumir uma
postura ativa e cooperativa, de modo que construa sua decisão junto com as partes. No caso
da jurisdição constitucional, a cooperação deve ocorrer com todos os amicii que intervirem no
feito. Ainda, na jurisdição ordinária, o juiz é o responsável por dirigir o processo, atuando de
forma impartial.
Esta rubrica decorre da cumulação dos mais diversos dispositivos do Código de
Processo Civil que ensejam o contraditório substancial e descambam em um agir
comunicativo endoprocessual: por mais que os interesses sejam materialmente contraditórios
– o que inclusive é uma marca do pluralismo das sociedades contemporânea -, todos os
litigantes devem se comportar orientados a um fim comum: influenciar o magistrado.
O aparato comunicativo alcança um patamar especial na fundamentação da decisão
judicial, a qual é retratada como um direito fundamental do jurisdicionado. Portanto, o
julgador deverá enfrentar todos os argumentos deduzidos pela comunidade de trabalho
processual, levando em conta as conjecturas jurídicas e fáticas presentes nos autos. Isto é o
que representa a cognição eficiente do magistrado.
A consequência imediata disto é a necessidade de enfrentar o que foi reportado pela
regra de argumentação, pautando tudo aquilo que a sociedade civil, em seus mais diversos
144
mundos da vida, trouxe para orientar o juízo. Daí até mesmo falar que o amicus curiae não é
um amigo da parte, mas verdadeiramente da corte, porque a contribuição maior é para a
própria atividade jurisdicional, que passa a deter uma legitimidade deliberativa e irá produzir
decisões coesas.
Quanto aos novos questionamentos que este trabalho levantou, as seguintes hipóteses
podem ser examinadas em futuras investigações: a) Como deve ser operacionalizada a auto-
reflexão e construção da decisão colegiada em um tribunal que preze pelo modelo
procedimental? b) Como se dá a formação do precedente judicial? Estruturalmente, onde fica
inserida a regra de argumentação no processo cognitivo e os diálogos com a sociedade? c) O
modelo procedimental habermasiano indica uma nova forma de acesso à justiça? d) Como
deve ser a postura dialógica do julgador a luz de todos que se manifestaram no processo? Há
um exaurimento da questão?
Dito tudo isso, a investigação concluiu que existe possibilidade para que a opinião
pública influencie no processo deliberativo – não só do Supremo Tribunal Federal, mas de
todo o poder judiciário – quando a temática for afeita à própria sociedade e carecer de
regulamentação normativa.
Apesar de recente, o Código de Processo Civil sinalizou uma guinada para o modelo
processual procedimental, resta observar se no decorrer do tempo, essas premissas dialógicas
serão consagradas pela jurisprudência ou se a dita legislação irá se transformar em um museu
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145
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