embriaguez, trabalho e o uso judicial da noção de dignidade humana - raquel veras franco

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CENTRO UNIVERSITÁRIO IESB CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO LATO SENSU RAQUEL VERAS FRANCO Embriaguez, Trabalho e o Uso Judicial da Noção de Dignidade Humana Brasília, dezembro de 2013

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Page 1: Embriaguez, Trabalho e o Uso Judicial da Noção de Dignidade Humana - Raquel Veras Franco

CENTRO UNIVERSITÁRIO IESB

CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO LATO SENSU

RAQUEL VERAS FRANCO

Embriaguez, Trabalho e o Uso Judicial da Noção de Dignidade Humana

Brasília, dezembro de 2013

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RAQUEL VERAS FRANCO

Embriaguez, Trabalho e o Uso Judicial da Noção de Dignidade Humana

Monografia apresentada ao Curso de Pós-Graduação emDireito do Trabalho do Centro Universitário Instituto deEducação Superior de Brasília.

Orientador: Prof. Mestre Douglas Alencar Rodrigues

Brasília, dezembro de 2013

Page 3: Embriaguez, Trabalho e o Uso Judicial da Noção de Dignidade Humana - Raquel Veras Franco

Para meu filho, Paulo Henrique,

minha maior inspiração.

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Agradecimentos

Agradeço ao meu orientador, professor e Meritíssimo Juiz Douglas Alencar

Rodrigues, pela paciência e estímulo.

À minha mãe, Joana, por todo o apoio e humor, fundamentais para a

conclusão deste trabalho.

Ao meu filho, Paulo Henrique, pelos sorrisos e abraços que foram e são

alentos e por me ensinar um pouco sobre a vida a cada dia, com a simplicidade própria

das crianças.

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“Nossa dignidade não está no

que fazemos, mas no que

compreendemos”.

George Santayana

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Resumo

O presente trabalho teve por objetivo discutir o uso judicial da noção de dignidade humana, em especial suaaplicação quanto ao tema da embriaguez habitual como justa causa para a rescisão do contrato de trabalho.Para tanto, buscou-se inicialmente desvelar as raízes históricas dessa noção, que se engendrou emdetrimento da antiga ideia de honra. Em seguida, com apoio em escritos de autores como J. Habermas, R.Dworkin, R. Posner e outros, procurou-se apontar alguns dos problemas e virtudes relacionados ao seuemprego judicial – emprego cada vez mais comum com o fortalecimento do Neoconstitucionalismo. Por fim,analisou-se o uso judicial da noção de dignidade na jurisprudência do TST (Tribunal Superior do Trabalho)produzida entre 1999 e 2013, no que diz respeito ao binômio alcoolismo e trabalho. Algumas dasconclusões a que se chegou foram a de que o Neoconstitucionalismo pode ser entendido, em parte, comouma tentativa de resposta do Direito ao desafio moral ocasionado pelo surgimento da noção de dignidadehumana (em detrimento da antiga noção de honra); a jurisprudência do TST, sobre a questão daembriaguez habitual como justa causa para dispensa do empregado, começou a se modificar com ofortalecimento do Neoconstitucionalismo e da própria noção de dignidade humana no Direito brasileiro (enão tanto com a decisão da Organização Mundial de Saúde, no sentido de entender o alcoolismo comodoença); o posicionamento do TST quanto à não incidência do art. 482, “f”, da CLT no caso de empregadoalcoolista, fruto ora explícito, ora implícito, da aplicação judicial da noção de dignidade humana, embora sejapassível de algumas críticas (sobretudo para quem vê com ceticismo tanto a referida noção, quanto apretensão de se fazer uma “leitura moral do Direito”), não implicou a criação de um novo direito, masapenas invalidou a incidência do referido dispositivo a uma determinada situação de fato (configuração doalcoolismo); o posicionamento do TST, ao menos em alguns casos, pode estar em consonância com anoção de eficiência de Kaldor – Hicks, cara aos partidários da análise econômica do Direito, que estãodentre os maiores críticos contemporâneos do uso judicial do conceito de dignidade humana.

Palavras-chave: dignidade humana, honra, alcoolismo, trabalho, neoconstitucionalismo, análiseeconômica do Direito.

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SUMÁRIO

Introdução p. 01

1. A bebida no Ocidente, o alcoolismo e o artigo 482, “f”, da CLT p. 02

2. Dignidade Humana - a trajetória histórica. Ou: os homens sempretiveram valor intrínseco? p. 11

2.1. Do conceito de honra ao conceito de dignidade humana p. 17

3. A dignidade humana no contexto do neoconstitucionalismo p. 24

3.1. Críticas à noção de dignidade humana p. 26

3.3. Críticas aos críticos da noção de dignidade humana p. 31

4. Dignidade, embriaguez habitual e trabalho nas decisões do TST p. 39

Considerações Finais p. 54

Referências Bibliográficas p. 57

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Introdução

Com o final da Segunda Guerra Mundial e seus traumas, a noção de dignidade

humana surge com força não apenas em uma miríade de documentos da Organização

das Nações Unidas (sendo a Declaração Universal dos Direitos Humanos o mais famoso),

como nas cerca de 40 Constituições Nacionais promulgadas desde então. É também

mencionada em legislações que vão da biotecnologia ao direito do trabalho e direito

internacional; em discursos políticos os mais variados e, recentemente, em decisões

judiciais produzidas em países díspares como Estados Unidos, África do Sul, Austrália e

Brasil1.

No que tange à jurisprudência trabalhista brasileira, o princípio da dignidade

humana sem dúvida tem sido bastante suscitado nos últimos anos, de forma implícita ou

explícita, inclusive no que diz respeito ao tema da embriaguez habitual como justa causa

para a cessação do contrato de trabalho pelo empregador. Tem-se entendido, quanto a

essa questão, que o empregado alcoolista sofre de uma doença (reconhecida como tal

pela Organização Mundial de Saúde) e que sua dispensa, com fundamento no artigo 482,

“f”, da CLT, implicaria afronta a sua dignidade humana. Tem havido, nesses casos, a

aplicação de um princípio em detrimento da letra da lei, ainda que nem sempre de forma

explícita.

A primeira questão que se pretende discutir neste trabalho é por que a noção de

dignidade humana tem sido cada vez mais invocada nos últimos anos no âmbito do

Direito (em contraposição ao quase total silêncio acerca dessa ideia antes da Segunda

Guerra Mundial). Para tanto, far-se-á um breve histórico dessa concepção, tentando-se

mesmo 'averiguar' se os homens sempre tiveram dignidade intrínseca. Em seguida, com

espeque em autores como Ronald Dworkin e Richard Posner, tentar-se-á discutir sua

aplicação judicial no âmbito do Neoconstitucionalismo, buscando-se apontar algumas de

suas virtudes e limites. Por fim, analisar-se-á o papel da noção de dignidade humana na

jurisprudência do TST acerca do binômio alcoolismo e trabalho.2

1 Cf. HABERMAS (2010), SENSEN (2011) e WHITE (2011)2 As referências bibliográficas em inglês serão traduzidas pela autora.

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1. A bebida no Ocidente, o alcoolismo e o artigo 482, “f”, da CLT

Na primeira cena de Farrapo Humano, a câmera de Billy Wilder desliza por prédios

e janelas da Nova York de 1945 de forma quase lânguida. Detém-se em uma janela em

particular, não sem antes ter dito ao espectador que a história que ali começa poderia

estar ocorrendo em qualquer outra.

Mas a janela em que a câmera se detém é a de Don Birman. Uma garrafa, presa a

ela por um barbante, está em suspenso do lado de fora. Foi a maneira que Don encontrou

para esconder o álcool do irmão, para saciar a sede tão logo esteja sozinho. Logo se vê

que não é só a garrafa que está em suspenso. A vida de Don também está. Trata-se de

um homem que, enfim, perdeu a crença em si. Mesmo a inabalável fé de Helen, a mulher

que o ama, mais o exaspera do que o comove.

O título do filme de Billy Wilder em inglês, The lost weekend, menos dramático do

que a versão brasileira, Farrapo humano, é mais exato em sua ironia: a película não trata

de um fim de semana perdido, mas de uma vida quase perdida com a ajuda do álcool. No

caso, a vida de Don, o escritor cuja inteligência e sensibilidade deram em nada e que

vive, agora, às custas do irmão.

The lost weekend foi o primeiro filme de Hollywood a tratar o problema do

alcoolismo de maneira menos moralista e com mais densidade humana. O que não quer

dizer que seja um filme condescendente. Ele mostra bem as fraquezas e, por vezes, a

mesquinhez de Don Birman, hipertrofiadas pela bebida. Mas mostra também que parte de

sua autonomia dolorosamente se esvaiu: o álcool o escraviza, porque gera o

esquecimento de que ele tanto precisa. É reconfortante e poderoso demais. Don tornou-

se um homem sem muitas saídas, como incontáveis outros alcoolistas3.

O drama do alcoolismo, bem encenado no filme de Billy Wilder, por certo é tão

antigo quanto a própria bebida alcoólica. A Grécia Antiga conheceu períodos de

domesticação dos usos do vinho e dos cultos dionisíacos, períodos em que o consumo da

bebida passou...

… a ser regido por uma noção de mistura com água, o que constitui um modelo dedieta temperada, em oposição ao vinho puro, visto como destemperado e atémesmo perigoso. Os gregos estipularam uma gradação do consumo equilibrado e

3 Segundo Zéu Palmeira Sobrinho (PALMEIRA SOBRINHO, 2012, pp. 168/169), o termo alcóolatra tem “conotaçãopejorativa”. Assim, a “terminologia corrente na ciência médica recomenda que o doente seja tratado como alcoolista,termo este que confere destaque apenas à prática reiterada do consumo, sem o escopo de estigmatização ou zombaria.Alcoolista é termo mais abrangente para designar não apenas o dependente, mas quem, ao abusar do álcool, situa-se emestágio de iminente dependência, razão pela qual se justifica separar as diferentes espécies de bebedores, isto é, omoderado, o exorbitante e o dependente”.

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do excesso alcoólico (CARNEIRO, 2010, p. 27).

Também na Roma Antiga houve tentativas de se regrar o consumo de álcool,

inclusive períodos de proibição oficial das festas dedicadas ao deus Baco.

Ao longo da Idade Média, embora os maiores pensadores da Igreja Católica não

tenham defendido a abstinência total do álcool, viam a embriaguez como “sinônimo de

perda da razão, (...) que nos leva a cometer todos os pecados”. Embriagar-se, então,

“seria tornar-se voluntariamente escravo do pecado e abdicar da razão” - e beber

“intencionalmente para perder a razão” seria “pecado mortal” (CARNEIRO, 2010, p. 112).

Nesse sentido, era preciso que a bebida permitisse “‘sair da carne, permanecendo

no corpo', como dizia Cassiano”; era preciso “domar, moderar, temperar as solicitações

sensuais, mas não aboli-las”, pois com a “abolição da tentação, não haveria o mérito da

resistência a ela” (CARNEIRO, 2010, p. 112).

Nos séculos que se seguiram ao fim da Baixa Idade Média, o uso da bebida

alcoólica continuou a ter defensores e delatores fervorosos, as várias percepções do

álcool foram sempre permeadas por contradições, por antagonismos irreconciliáveis. A

bebida foi ora vista como substância capaz de reduzir um homem a sua animalidade, ora

utilizada não apenas como diluente de medicamentos, mas como poderoso medicamento

em si, para males que iam desde “humores ‘frios’” até “certos tipos de febre” (CARNEIRO,

2010, p. 168):

A medicina medieval e a moderna consideravam o álcool destilado um remédio,assim como fizera a medicina da Antiguidade em relação ao vinho. Apenas em1915, o uísque e o conhaque foram excluídos da lista dos medicamentos daFarmacopeia dos Estados Unidos. Ainda no final do século XIX, muitas das tesesapresentadas na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro tratavam dos usosterapêuticos do vinho (CARNEIRO, 2010, p. 167).

Em diferentes lugares e em diferentes momentos, ao longo da história ocidental do

uso do álcool, foram estabelecidas formas legítimas e não legítimas de se beber. A noção

de embriaguez e, segundo Carneiro, mesmo a noção de vício são antigas. Mas é no

século XIX que ocorre uma verdadeira “ontologização do mal”, com a “adoção de uma

teoria orgânica da doença”. Nesse período foi fundada, em Londres, uma Society for the

Study of Inebriety (depois Society for the Study of Addiction) e, naquele mesmo ano, um

médico de nome Norman Kerr referia-se ao vício como “‘produto natural de uma

organização nervosa depravada, debilitada ou defeituosa (...) indiscutivelmente uma

doença, assim como a gota, a epilepsia ou a insanidade’” (CARNEIRO, 2010, pp.

188/189).

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Também é no século XIX que o álcool passa a ser visto como uma degeneração

hereditária ou uma “enfermidade de herança nervosa, cuja predisposição dependeria não

só dos pais ou de outros antepassados terem sido alcoolistas, como também do risco de

ter havido estado de embriaguez durante a concepção” (CARNEIRO, 2010, p. 186). Ainda

naquele século foram criados os primeiros asilos destinados unicamente a alcoolistas.

No início do século XX, há uma mudança no que tange à percepção do alcoolismo:

esse “provoca doenças orgânicas, mas não é uma doença orgânica”. Com a recusa do

modelo orgânico oitocentista, o álcool passa a ser visto como uma “‘doença da vontade’”.

Nesse novo modelo psicológico, o termo “adição” ganha destaque (CARNEIRO, 2010,

pág. 190).

Atualmente, sabe-se que o álcool afeta...

... praticamente todas as células do corpo, inclusive aquelas do sistema nervosocentral. Após exposição prolongada ao álcool, o cérebro torna-se depende. Beberfirme e consistentemente, com o tempo, pode produzir dependência e sintomas deabstinência. Essa dependência física, no entanto, não é a única causa doalcoolismo. Para desenvolvê-lo, outros fatores usualmente entram em jogo,incluindo-se fatores biológicos, genéticos, culturais e psicológicos. (A.D.A.M., Inc.,2013)

Dessa maneira, as causas do alcoolismo, e das adições em geral, são ainda alvo

de grandes discussões. Pesquisas sugerem que a doença está associada “a variações

genéticas em 51 regiões cromossômicas diferentes”, mas o “Ambiente, a personalidade e

fatores emocionais também têm um forte papel” (A.D.A.M., Inc., 2013).

Assim, há estudiosos que levam em consideração fatores biológicos e ambientais

para a explicação do alcoolismo e outros vícios, afirmando, por exemplo, que a ocorrência

de traumas infantis (violências, abusos e/ou negligências) acabam por modificar a biologia

cerebral ainda em formação e tornam indivíduos mais suscetíveis a vícios (cf. In the realm

of the hungry ghosts, do Dr. Gabor Maté). Há outros que ressaltam os aspectos

ambientais e vêem a adição em termos de “cultura familiar”, passada de geração a

geração – e não em termos de herança genética. Há também aqueles que têm destacado

o papel da dopamina para explicar os vícios em geral, a depressão e a motivação, como o

neurocientista Robert Sapolsky.

No que concerne aos efeitos do consumo abusivo e prolongado do álcool, é sabido

que “pode afetar os neurônios (células nervosas), a química cerebral e a corrente

sanguínea entre os lobos frontais do cérebro”. Os “neurotransmissores (mensageiros

químicos do cérebro) também são afetados a longo prazo pelo uso do álcool” (A.D.A.M,

Inc., 2013).

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De todo modo, é apenas no início da segunda metade do século XX, em 1956, que

o alcoolismo foi “cientificamente reconhecido como doença (...), conforme ato da

Associação Médica Americana”. Somente “20 anos depois, em 1976, Grifith Edwards e

Milton Gross caracterizaram e descreveram a chamada Síndrome de Dependência ao

Álcool (DAS)” (PALMEIRA SOBRINHO, 2012, p. 171).

Em 1978, a Organização Mundial de Saúde substituiu o termo alcoolismo por

síndrome de dependência alcoólica no Código Internacional de Doenças (CID-10), que

está especificada na CID F10.2 (PALMEIRA SOBRINHO, 2012, p. 172).

A OMS admite o alcoolismo como doença, considerando que “será doente o sujeito

que fizer uso de substâncias entorpecentes por força da dependência química que vincula

o usuário à substância” (VAZ, 2012, p. 18).

Há hoje, portanto, distinção entre o uso não dependente do álcool, dependência do

álcool e abuso deste. Ou seja...

... uma pessoa pode fazer uso nocivo do álcool sem ser dependente deste. Assim,se um indivíduo, mesmo que não seja consumidor habitual de álcool, resolverdirigir embriagado, a sua atitude (...) não pode ser interpretada como efeito dadependência em relação à droga, mas deve ser vista como resultado de umapostura consciente quanto ao perigo provocado (PALMEIRA SOBRINHO, 2012, p.172).

No que tange ao binômio álcool e trabalho, embora existam estudos médicos que

afirmem “inexistir um reflexo automático do estágio de dependência física sobre o corpo e

dos efeitos do ato de beber sobre as relações socioprofissionais do indivíduo”, de acordo

com Zéu Palmeira Sobrinho, “em todas as relações estabelecidas entre o trabalhador e o

álcool há sempre a probabilidade do risco” (PALMEIRA SOBRINHO, 2012, pp. 172 e 174).

Há que se ressaltar, aqui, aliás, que a relação entre bebida e trabalho tornou-se um

verdadeiro problema pelo menos desde a Revolução Industrial em fins do século XVIII.

Eric Hobsbawm já afirmou que a industrialização e a urbanização sem precedentes

daquele período trouxeram em sua esteira verdadeiro “alcoolismo em massa”

(HOBSBAWM, 1998).

Naquelas primeiras décadas de industrialismo, em que o trabalho era usualmente

penoso e realizado às vezes por dezesseis horas seguidas, “alguns homens que se

debruçaram sobre o problema, como Engels, viam a dependência do álcool não como

uma inclinação viciosa do caráter, mas uma forma inevitável de consolo das agruras da

exploração, por isso, quanto mais exaustivo, desgastante e perigoso o trabalho, maior a

busca da bebida” (CARNEIRO, 2010, p. 211).

Engels chegou a citar um médico que, sobre o trabalho nas minas, afirmou que “‘a

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infâmia deste ofício’ se comprovava pelo fato de que ‘os mais fortes bebedores são (...) os

que vivem mais tempo, porque faltam ao trabalho’” (CARNEIRO, 2010, p. 213).

Ante à epidemia do álcool dos séculos XVIII e XIX, muitas reformas coercitivas e

medidas proibitivas passaram a ser intentadas pelos patrões e pelo Estado, tanto na

Europa quanto nos Estados Unidos. Não deixou de existir quem as denunciasse, como

Ernest L. Abel, segundo o qual tais medidas eram “uma reação patronal e governamental

contra as classes operárias, que usavam os espaços de consumo alcoólico como locais

de sociabilidade”. Além disso, “se, de um lado, as bebidas podiam chegar a limitar a

capacidade de trabalho e a produtividade (...), de outro eram um consolo e anestésico

eficaz para ajudar uma parcela majoritária dos trabalhadores a suportar condições brutais

de existência” (CARNEIRO, 2010, p. 182).

De qualquer forma, o álcool, no mundo do trabalho, era, com razão, um problema

para os empregadores, pois afetava a produtividade dos empregados. Mas também era

mal visto naquele contexto, pois estava relacionado à “vida nas tavernas”, à “fomentação

de sindicalismo e rebeliões” (CARNEIRO, 2010, p. 204). Seu consumo foi, certamente,

uma das causas para que “o controle da vida privada” dos trabalhadores se tornasse

verdadeiro “princípio econômico”, de acordo com Henrique Carneiro.

Dentro da fábrica era preciso...

... aumentar sempre a produtividade do trabalho e o uso do álcool (e também, emmenor grau, do tabaco) interfere no processo produtivo industrial. Fumar afeta aprópria continuidade regular da produção, que deve ocupar incessantemente asmãos do operário, e o álcool perturba a capacidade de desempenho (CARNEIRO,2010, p. 219).

Nesse contexto é que se pode entender o fordismo não apenas como bem-

sucedido sistema de produção industrial, mas “estratégia moralizante” que, além “de

controlar cronometricamente o tempo de trabalho, pretendia o controle da vida pessoal

dos trabalhadores fora da fábrica” (CARNEIRO, 2010, p. 221). Ou seja, o fordismo foi

também intervenção em todos os “aspectos da vida do operário, através de

departamentos de sociologia da empresa, que investigavam em detalhe hábitos e

comportamentos”. Os dois aspectos “mais evidentes na empreitada de controle

comportamental do industrialismo foram a vida sexual e o consumo alcoólico dos

trabalhadores” (CARNEIRO, 2010, p. 221).

Também o Estado, como já aventado, tentou colaborar para tal “controle

comportamental”, produzindo legislação que visava proibir ou diminuir o consumo do

álcool: nos EUA, a “primeira das leis contra as bebidas havia sido proclamada em 1847,

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no Estado do Maine, e durante mais de meio século desenrolou-se uma luta entre estados

e cidades secas e úmidas”. Em 1736, o Gim Act taxa pesadamente a bebida na Inglaterra

com o fito de inibir seu consumo, o que atingiu sobretudo os trabalhadores pobres

(CARNEIRO, 2010, pp. 196 e 203).

No Brasil, houve algumas iniciativas legislativas que visavam restringir o consumo

do álcool, como os projetos de lei “do deputado Juvenal Lamartine, em 1917, propondo

triplicar os impostos sobre a cachaça e o vinho”, e do deputado “Plínio Marques,

propondo, em 1921, a proibição do consumo de bebidas alcoólicas aos domingos e

feriados” (CARNEIRO, 2010, p. 205).

No campo da legislação trabalhista, pode-se suscitar o artigo 482, “f”, da

Consolidação das Leis do Trabalho, de 1º de maio de 1943, segundo o qual:

Constituem justa causa para rescisão do contrato de trabalho pelo empregador:(...)f) embriaguez habitual ou em serviço

Antes desse dispositivo, já “rezava a letra b do artigo 54 do Decreto nº 20.465, de

1º de outubro de 1931, ao tratar da Caixa de Aposentadoria e Pensões dos servidores

públicos, que era falta grave a embriaguez habitual ou em serviço”, o mesmo

preceituando a alínea “b” do artigo 90 do Decreto nº 22.872 de 1933, “ao criar regras

sobre o Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Marítimos” (MARTINS, 2013, p. 86).

Ainda anteriormente a esses dispositivos citados por Sérgio P. Martins, o artigo 69

do Decreto 17.941/1927 já dispunha, em seu caput, que “Depois de dez anos de serviço

efetivo, o ferroviário a que se refere o presente regulamento só poderá ser demitido no

caso de falta grave...”, sendo que, em seu parágrafo primeiro, afirmava:

§ 1º Será considerada falta grave:(...)c) embriaguez habitual ou em serviço

Pensa-se, aqui, na esteira de Henrique Carneiro, que esses dispositivos da

nascente legislação trabalhista denotam o esforço estatal (ainda que limitado e tardio no

Brasil) para se disciplinar e adequar comportamentos e hábitos dos trabalhadores ao

mundo do trabalho industrial então nascente.

Aliás, Dorval de Lacerda assim já escreveu, sobre o citado art. 482, “f”,

Consolidado:

... se presume, na inserção da embriaguez habitual no elenco faltoso, nem tantoum prejuízo da empresa e uma arma de defesa do empregador contra os perigosque oferece um ébrio habitual, embora momentaneamente (durante o serviço)sóbrio, mas uma ação indireta do Estado contra a propagação do alcoolismo (...).Não é de hoje a ação do Estado contra o alcoolismo ou qualquer espécie de vício

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que conduza à embriaguez (...). Não será, pois, acusado de rigorismo o legisladorque, por todos os meios e modos, procure atenuar o terrível mal; não sendo,consequentemente, sem propósito e oportunidade a ação nesse campo vasto epropício das relações de trabalho. (LACERDA, 1976, apud VAZ, 2012, p. 21 -grifei)

Ou seja, tanto o dispositivo Consolidado (art. 482, “f”, da CLT), quanto os

dispositivos anteriores que certamente lhe deram inspiração podem ser entendidos,

também, como tributários desse esforço de se disciplinar mentes e corações para o

mundo do trabalho industrial, na medida em que não punem o consumo moderado da

bebida, mas punem um hábito (“embriaguez habitual”) e um comportamento (“embriaguez

em serviço”) considerados desviantes, capazes de interferir com a produção.

É nesse sentido que o industrialismo “não se detém na forma específica da

produção e da exploração capitalistas, mas adquire uma espécie de autonomia como

motor civilizatório” (CARNEIRO, 2010, p. 222).

A bebida alcoólica, portanto, foi naturalmente alvo de interdições e proibições ao

longo de sua história no Ocidente, mas com o advento do capitalismo industrial a

necessidade de se disciplinar seu consumo alcançou proporções inéditas.

Não é desarrazoado, portanto, afirmar que o art. 482, “f”, da CLT, bem como os

mencionados dispositivos de edição anterior podem ser explicados pelo processo de

centralização do trabalho na vida dos indivíduos - processo que começou com o advento

da Revolução Industrial e que modificaria profundamente a relação entre o homem e seu

trabalho, tal qual existente em épocas anteriores.

No entanto, há que se fazer duas observações: não se concebe, aqui, o alcoolismo

apenas como um comportamento desviante ou supostamente desviante que teve de ser

(ou deve ser) erradicado, em nome da produção industrial ou de um mundo do trabalho

cada vez mais absorvente / exigente.

Houve - bem ou mal - um processo histórico complexo que implicou a

disciplinarização / adequação de comportamentos, hábitos, corpos e mentes em razão

das necessidades do capitalismo industrial. Contudo, a par de seu conteúdo algo

desviante, especialmente no mundo do trabalho, o alcoolismo, como já decidiu a OMS,

também é uma doença, que inclusive gera bastante sofrimento.

O combate ao alcoolismo no mundo do trabalho nem sempre pode ser visto como

mera afronta às liberdades do indivíduo, nem o conhecimento científico que se tem da

doença deve ser descartado como 'instrumento' que, em última análise, visaria apenas

‘categorizar’ pessoas. Há, afinal, indivíduos que sofrem em razão do vício – e o sofrimento

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é real, não se trata apenas de uma construção teórica.

Ademais, o binômio álcool e trabalho, infelizmente, já gerou e gera graves

acidentes e, a depender das atividades exercidas, a bebida pode colocar em risco a

saúde não apenas do empregado que bebe, como de colegas, clientes da empresa, etc.

A segunda observação que se deve fazer é que a jurisprudência trabalhista já há

algum tempo tem visto com bastante reserva a aplicação indiscriminada do art. 482, f, da

CLT, pelo menos no que tange à embriaguez habitual.

Ou seja, a maior parte dos tribunais e, certamente, o Tribunal Superior do Trabalho

(TST) têm entendido, reiteradas vezes, que o empregado alcoolista - dependente da

substância - não pode ser dispensado com fundamento no citado art. 482, “f”,

Consolidado.

Em geral, essas decisões têm se pautado no fato de que o alcoolismo é

considerado como doença pela OMS e a dispensa de um empregado doente atenta, em

última análise, contra a sua dignidade humana:

É dever do empregador tratar com dignidade o alcoolista empregado, ou seja, aoinvés de rescindir o contrato de trabalho deste, incumbe ao patrão encaminhar àPrevidência Social o empregado acometido de alcoolismo para efetuar otratamento ou possibilitar a concessão do benefício cabível, sob pena de vir aresponder por danos morais (PALMEIRA SOBRINHO, 2012, p. 182).

Percebe-se, quanto a esses casos de embriaguez habitual, a aplicação de um

princípio em detrimento de uma norma legal. Pode-se falar, ainda, na existência de dois

processos subjacentes que ficam visíveis e se contrapõem nesse posicionamento

preponderante dos tribunais trabalhistas: um relacionado à disciplinarização / adequação

de comportamentos e hábitos, exigidas pelo mundo do trabalho, sobretudo no contexto do

capitalismo industrial, e que é capaz de explicar, ao menos em parte, a existência de

dispositivos legais como o art. 482, “f”, da CLT; outro que culminou no recente uso judicial

da noção de dignidade humana em detrimento de dispositivos como o citado art. 482, “f”,

Consolidado - processo que será discutido posteriormente.

De todo modo, temos vigente um dispositivo legal que preceitua que a embriaguez

habitual é hipótese de justa causa e, em contraposição, o fortalecimento de uma

jurisprudência que, fundamentada (explicitamente ou não) no princípio da dignidade

humana, deixa de aplicá-lo - ao menos nos casos em que a dependência resta

configurada.

No entanto, há quem discorde, ao menos em parte, desse entendimento

jurisprudencial. Sérgio Pinto Martins afirma que a embriaguez habitual ou crônica “está

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muito mais para uma doença do empregado, que necessita de tratamento, do que para

justa causa. Entretanto, existe a previsão da lei” (MARTINS, 2013, p. 97 – grifo meu).

O referido jurista, aliás, afirma que o “empregador, com a dispensa, não está

impedindo o empregado de perceber o benefício previdenciário, que independe da

rescisão do contrato de trabalho, mas da manutenção da qualidade de segurado e de

período de carência” (MARTINS, 2013, pp. 96/97). Acrescenta que a “doença não seria

um problema do empregador, mas do Estado” (MARTINS, 2013, p. 95).

Essas considerações de Sérgio P. Martins são razoáveis e são comumente

suscitadas pelos que se posicionam contrariamente à não aplicação do art. 482, “f”, da

CLT.

Parece justo que um empregado alcoolista encontre apoio para enfrentar o

alcoolismo na empresa em que trabalha, ao invés de ser dispensado por justa causa (o

que, muitas vezes, pode ser a “gota d'água”, pode implicar sua definitiva ruína pessoal4 ).

Entretanto, é justo que o empregador tenha de mantê-lo em seu quadro, mesmo

que suspenso o contrato, preterindo um candidato produtivo que poderia ocupar a vaga?

A jurisprudência majoritária já se posicionou, como se disse, no sentido de que deve

prevalecer o princípio da dignidade humana e não a letra da lei nesses casos.

Mas o que se quer aqui é justamente discutir esse posicionamento dos tribunais

trabalhistas, em especial do TST. Tentar-se-á demonstrar sua validade e suas fragilidades.

Para tanto, contudo, julga-se necessário fazer um ligeiro histórico da noção de

dignidade humana.

4 Como bem salienta Palmeira Sobrinho (2012, pp. 182/183), a Primeira Turma do TST, em dezembro de 2010,condenou uma empresa ao pagamento de indenização por danos morais a dependentes de empregado alcoolista quefoi dispensado e, em seguida, cometeu suicídio. Trata-se de acórdão relativo ao RR-1957740-59.2003.5.09.0011, dalavra do Exmº Ministro Walmir Oliveira da Costa.

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2. Dignidade Humana - a trajetória histórica. Ou: os homens sempre tiveram valor

intrínseco?

Hanna Arendt já escreveu que “o mundo moderno em que vivemos surgiu com as

primeiras explosões atômicas” (ARENDT, 2000, p. 14). O mesmo pode-se dizer sobre a

onipresença da noção de dignidade humana no Direito. Com o final da Segunda Guerra

Mundial e seus traumas, essa concepção surge com força não apenas em uma miríade

de documentos da Organização das Nações Unidas (sendo a Declaração Universal dos

Direitos Humanos o mais famoso), como nas cerca de 40 Constituições Nacionais

promulgadas desde então. É também mencionada em legislações que vão da

biotecnologia ao direito do trabalho e direito internacional; em discursos políticos os mais

variados e, recentemente, em decisões judiciais produzidas em países díspares como

Estados Unidos, África do Sul, Austrália e Brasil.

O quase total silêncio do Direito em relação à ideia de dignidade humana antes da

Segunda Guerra Mundial (e até o surgimento da ONU e seus documentos fundadores) é

algo a ser explicado. Mas pode-se dizer que o modo eloquente como essa noção tem sido

suscitada desde então deve-se, em grande parte, ao choque da descoberta dos campos

de concentração e o morticínio e assassínio racionalizado e “industrial” que ocorreram

naqueles locais (HOBSBAWM, 1995).

De todo modo, anteriormente à Segunda Grande Guerra, pelo menos fora do

Direito, existia a concepção de que todo homem tem dignidade em si? A noção de

dignidade humana como um valor universal, intrínseco a todos os homens, capaz

de colocar a todos em pé de igualdade, tem mesmo apenas setenta anos ou sempre

esteve presente no mundo das ideias das sociedades Ocidentais (e até fora do

Ocidente)? E, mais importante, a dignidade humana sempre foi um fundamento

moral que autoriza qualquer ser humano a exigir certos direitos?

Se fizermos essas perguntas à história, as respostas poderão ser negativas.

Claro, haverá estudiosos que dirão que o entendimento de que “'a humanidade

possui uma profunda dignidade não é uma prerrogativa moderna'” e que essa noção,

inclusive, aparece “em várias culturas ao redor do mundo, Leste e Oeste, e em textos

teológicos do Judaísmo, Cristianismo e Islamismo” (MISZTAL, 2013, p. 102).

Para esses autores, a ideia contemporânea de dignidade humana, sem dúvida

uma das ideias centrais pelo menos das sociedades ocidentais nos últimos setenta anos,

tem raízes históricas bastante longas.

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Contudo, para muitos historiadores, as raízes não são tão longas assim: a

noção de dignidade humana que temos hoje é muito diversa daquela apreendida nos

documentos do Mundo Antigo, da Idade Média, do início do período Moderno e talvez

mesmo em muitos documentos do século que viu nascer os direitos humanos - o século

XVIII5.

Como explica Oliver Sensen (SENSEN, 2011), pode-se falar, seguramente, em

pelo menos uma noção tradicional (e historicamente persistente) de dignidade

humana, bem diferente da noção contemporânea de dignidade humana.

A noção contemporânea de dignidade, como já aventado, pode ser resumida

como a ideia segundo a qual cada pessoa é detentora de um valor inerente e irredutível,

conferido a ela por sua própria natureza humana e capaz de fundamentar a exigência de

certos direitos.

A noção tradicional de dignidade humana relaciona-se à ideia antiga de dignitas.

Na Roma Antiga, a dignitas não era atribuída a todos os homens. Era antes um termo

aristocrático, utilizado para distinguir, para expressar “a posição elevada da classe

governante” (SENSEN, 2011, p. 75). Sendo assim, a dignitas “era aplicável a poucos, por

exemplo, a um cônsul ou senador” (SENSEN, 2011, pp. 75/76).

A noção romana de dignitas, na esteira do que escreve o filósofo Oliver Sensen, é

bastante complexa. Ela abrange ideias de classe, de posição social elevada e também de

estima, valor ou excelência (ainda que a excelência, estima ou valor não sejam tão

importantes quanto à ideia mesma de posição elevada):

No Império Romano tardio, existia a notitia dignitatum, uma lista classificando osmais altos cargos oficiais no império. Ter dignidade, nesse sentido, nãopressupunha excelência ou alta estima. Era necessário apenas que se possuísseo cargo, que era concedido pelo imperador. O componente essencial era quedignidade expressava uma relação, uma posição elevada de algo sobre outracoisa. (SENSEN, 2011, p. 76 - grifei).

Assim, a noção romana de dignidade implica que esse valor poderia muito bem

ser perdido ou ser ganho, “por mérito, nascimento ou riqueza” (SENSEN, 2011, p. 76). Ou

5 Os direitos humanos nascem, no século XVIII, influenciados pela noção jusnaturalista de que os homens possuemdireitos anteriores ao Estado. Sendo assim, os direitos humanos limitam a soberania do Estado que, por sua vez, temcomo principal função garanti-los e protegê-los. Outro entendimento da época sobre tais direitos (menos 'radical'que o jusnaturalista) é o de que esses direitos nascem de um contrato, “expresso pela Constituição, entre as diversasforças políticas e sociais” (constitucionalismo). Outro entendimento é o de que o Estado é que concede ao indivíduotais direitos, com base em sua “autônoma soberania” (cf. MENGOZZI, 2000, pp. 353-361). De todo modo, muitosentendem que os direitos humanos, tal como expressos nas Bills of Rights de 1776 e na Déclaration des droits del'homme et du citoyen, de 1789, são muito anteriores à ideia contemporânea de dignidade humana, possuindoexistência independente dela. Autores como J. Habermas, como se verá, defendem entendimento bem diverso: anoção de dignidade humana, desde o nascimento dos direitos humanos no século XVIII, deu a eles sua validade, seufundamento moral e sua força (cf. HABERMAS, 2010).

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seja, a noção romana diferencia-se da noção contemporânea, porque a dignidade, então,

não era democrática, muito menos intrínseca ou não-relacional, como a entendemos hoje.

Ela era um valor, aristocrático e relacional, pois expressava o sentido de algo (ou alguém)

elevando-se sobre outra coisa (ou outros).

Cícero é que seria o encarregado de 'democratizar' a noção romana de dignitas,

na medida em que a utilizou para “expressar a ideia de um lugar elevado para os seres

humanos no universo” (SENSEN, 2011, p. 76). Mas isso não ‘aproximou’ tanto a noção

antiga de dignidade da noção contemporânea, como se poderia esperar. É que ao

perceber todos os homens (e não apenas alguns homens) dotados de dignidade,

colocando-os a todos em posição mais elevada que os animais , Cícero afirma

também que “'viver uma vida de prazer é algo indigno da posição elevada que os seres

humanos ocupam. Nossa superioridade e elevada posição demandam uma vida na qual

nossos desejos mais baixos devem ser governados de acordo com a razão'” (Cícero apud

SENSEN, 2011, p. 77).

A implicação dessas conclusões de Cícero é que no sentido tradicional,

embora todos os homens pudessem, a princípio, ser dignos (pois, comparados a

outros animais, são todos dotados de razão), a dignidade, então, não era um valor

intrínseco, capaz de fundamentar a exigência de certos direitos. Pelo contrário, a

dignidade que possuíam era fundamento de deveres e poderia ser perdida.

Observe-se, novamente, que na noção contemporânea, a dignidade humana

implica a propriedade de um valor intrínseco e não relacional, fundamento de direitos. Em

Cícero, transparece a noção tradicional de dignidade humana: ela é relacional (o homem

é digno, pois está em uma posição superior se comparado a outros animais) e ela é

fundamento de deveres (os homens devem se esforçar para se manter em um certo nível,

devem permanecer acima dos brutos).

Ou seja, na noção de Cícero, os homens possuem um valor especial, pois detêm

uma certa capacidade, no caso a razão. Mas estar elevado ou ser digno, nessa

concepção, implica “o dever de se comportar de uma certa maneira, que faça jus a essa

dignidade” (SENSEN, 2010, p. 78).

Também J. Habermas percebe, na história da noção de dignidade humana, uma

“modificação de perspectiva entre deveres morais e reivindicações legais”, afirmando

mesmo que os “direitos subjetivos, ao invés dos deveres, constituem o ponto inicial da

construção dos sistemas legais modernos” (HABERMAS, 2010, p. 471). Essa construção

ele percebe concomitante a outro processo: “a generalização paradoxal do conceito de

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dignidade que, originalmente, não estava equipado para qualquer distribuição igualitária

de dignidade, mas para diferenciações de status” (HABERMAS, 2010, p. 471).

Em seu interessante estudo, Oliver Sensen nota essas características da noção

tradicional de dignidade (ela é relacional e gera deveres que devem ser cumpridos para

sua própria manutenção) não apenas na obra de Cícero, mas, com algumas nuances, nas

obras de pensadores como Papa Leão I (nesse caso, a alma – e não a razão – é que nos

eleva acima dos demais animais, conferindo-nos dignidade) e Pico della Mirandola (a

dignidade está na capacidade do homem de escolher o lugar em que deseja estar na

ordem universal: mais próximo de Deus ou mais próximo dos animais mais baixos).

Poderíamos ainda adicionar à lista de Sensen dois outros pensadores cristãos:

Santo Agostinho e São Tomás de Aquino. Para Agostinho, a dignidade do homem localiza-

se em sua alma trina, composta de memória, intelecto e vontade. Mas “até o intelecto e a

vontade poderiam ser bons ou ruins, dependendo do modo como fossem exercidos; bons,

se direcionados à Divindade, e maus caso não fossem” (LEWIS, 2007, p. 94).

Tomás de Aquino, diferentemente de Leão I e Agostinho, localiza a dignidade

humana na natureza. Para ele o ser humano é naturalmente livre. Mas sua dignidade “é

perdida quando um pecado é cometido. O ser humano racional então assume o

status de uma besta não racional” (LEWIS, 2007, p. 94).

A despeito das disparidades entre os pensadores citados, podemos ver em todos

eles, de alguma maneira, a noção de dignidade humana mais relacionada a deveres e

a exigências de autoaperfeiçoamento do que como fundamento de direitos.

No que diz respeito a Immanuel Kant, Sensen ainda vê sua noção de dignidade

humana como geradora mais de deveres do que de direitos, sendo o Imperativo

Categórico a premissa normativa que se pode perceber no lugar “da concepção

teleológica da natureza que Cícero emprega” (SENSEN, 2011, p. 83). Nesse sentido, o

autor destoa de muitos estudiosos do conceito de dignidade humana, que apontam

Immanuel Kant como o pensador que justamente rompe com a noção tradicional e

começa a construir a noção contemporânea de dignidade humana.

Habermas, por exemplo, afirma que, embora “o conceito de dignidade humana

não tenha adquirido nenhuma importância sistemática em Kant” (HABERMAS, 2010, p.

474), em sua obra os “direitos humanos derivam seu conteúdo moral (…) de uma

concepção de dignidade humana universalista e individualista” (HABERMAS, p. 475).

De todo modo, o que importa aqui é deixar claro que existem, historicamente, ao

menos duas noções de dignidade humana: a contemporânea, vastamente exteriorizada

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em inúmeros documentos da ONU e em legislações do mundo inteiro, sobretudo a partir

da Segunda Guerra Mundial, e a tradicional - que remonta à dignitas romana.

Admitir a existência dessas duas concepções não significa, contudo, como conclui

Oliver Sense, que a noção contemporânea de dignidade humana “não tem o suporte de

uma longa história”, pois, segundo ele, essa teria no máximo, 60 a 70 anos, ou seja,

historicamente apenas nasce com o fim da Segunda Guerra Mundial, com a descoberta

dos campos de concentração e com o nascimento da ONU (SENSEN, 2011, p. 85).

De fato, como já se aventou, é apenas a partir do fim da Segunda Guerra que

a noção de dignidade passa a ser “moeda corrente” no Direito e a estar presente nas

Constituições e sistemas legais de dezenas de países. Contudo, pensamos aqui, junto

com J. Habermas, que a noção contemporânea de dignidade humana tem uma história

um pouco mais longa do que defende Sensen, podendo ser estendida até pelo menos à

filosofia de Kant e ao século XVIII (não coincidentemente, o século que viu nascer a

Declaração dos direitos do homem e do cidadão).

Habermas, aliás, admite a prevalência do conceito de dignidade humana nos

textos legais da segunda metade do século XX, mas aponta exceções anteriores, como

um artigo da Constituição Alemã de março de 1849 (artigo 139) que, justificando a

abolição da pena de morte e das punições corporais, afirma que “'Um povo livre deve

respeitar a dignidade humana, mesmo no caso de um criminoso'” (HABERMAS, 2010, p.

466). Também cita a Constituição da República de Weimer, de 1919, que, em seu

artigo 151, “fala em 'alcançar uma vida digna para todos'”, acrescentando que, nesse

caso, “o conceito de dignidade humana permanece encoberto pelo uso adjetivo de uma

expressão coloquial” (HABERMAS, 2010, p. 468).

Ademais, fora dos textos legais, o tema da dignidade humana (em sua concepção

moderna) é suscitado nas obras de vários escritores e pensadores dos séculos XVIII e

XIX. Mary Wollstonecraft, por exemplo, o utiliza para reivindicar direitos para as mulheres;

F. Lassalle, em uma de suas obras, chegou a argumentar que “'o Estado deveria

assegurar que os trabalhadores (…) vivessem vidas realmente dignas'” (LASSALLE apud

MISZTAL, 2012, p. 102). Subjacente ao movimento abolicionista que se espalhou por

diversos países escravocratas no século XIX sem dúvida estava o tema da dignidade

humana, ainda que nem sempre explicitado.

Além dessa primeira crítica ao texto de Sensen, que diz respeito à antiguidade do

conceito contemporâneo de dignidade humana (achamos que suas raízes vão até pelo

menos as revoluções liberais do século XVIII), pode-se também fazer uma outra: em

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sua visão, o nascimento da noção contemporânea dá-se sem maiores ligações com a

noção tradicional de dignidade humana. É como se não houvesse continuidade alguma

entre as duas concepções, quase como se tivessem existências completamente

independentes.

Para começar, as ideias em geral nascem de outras ideias, seja como

continuidade ou como ruptura. Nesse sentido, há que se lembrar que as duas noções

dotam o homem de um valor especial, embora com implicações diversas.

Mas isso será discutido posteriormente. Por agora, resta salientar que há autores

que divergem ainda mais de Oliver Sensen, pois defendem que a noção de dignidade

humana atual remonta até mesmo aos primórdios do Judaísmo e do Cristianismo

(MISZTAL, 2012).

Essa visão de uma história extremamente longa do conceito, por sua vez, padece

de certa monotonia, o que é algo incomum quando se lida com história das ideias. Não

leva em conta que diferentes épocas tendem a entender de diferentes modos certos

conceitos. Não leva em consideração, inclusive, a existência de religiões e tradições de

pensamento que simplesmente desprezaram a noção de dignidade humana.

Mas, por outro lado, como não notar uma certa concepção de dignidade humana

fundamentando, por exemplo, a Regra de Ouro enunciada tanto por Cristo quanto

presente no Talmude? Contudo, nesses casos, a noção de dignidade humana parece

mais com a tradicional: o homem tem um valor especial que lhe confere deveres e a

obrigação de se autoaperfeiçoar. Faça aos outros o que gostaria que fizessem a você

implica dever e autoaperfeiçoamento, mais do que direitos.

Ademais, se para o pensamento cristão o homem foi criado à imagem e

semelhança de Deus, lembremos que, de acordo com Tomás de Aquino, sua dignidade

sempre pode ser perdida em razão do pecado.

Dessa forma, não se entende aqui, por exemplo, que a Bíblia seja fundamento

direto para a noção contemporânea de dignidade, pois ali há inclusive uma visão bastante

pessimista da natureza humana. A Bíblia diz mais sobre a redenção do homem do que

sobre sua dignidade.

A ideia de dignidade humana, em resumo, teve variações ao longo da história e,

na esteira do que escreveu Oliver Sensen, pode-se falar ao menos de uma concepção

tradicional e de uma noção contemporânea. No entanto, como já aventado, a concepção

contemporânea não tem raízes tão curtas como quer o autor norte-americano, pois

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remonta até pelo menos o século XVIII.

Ademais, acredita-se que as duas noções de dignidade humana, historicamente,

conviveram e ainda convivem, ao menos desde o século XVIII, no universo das ideias,

havendo rupturas, mas também continuidades entre elas. Ainda que em um longo período

uma tenha preponderado e, nos últimos setenta anos, outra prepondere, talvez seja

impossível explicar o surgimento da ideia atual sem se reportar à noção tradicional de

dignidade humana, que, afinal, também dotou os homens de um valor especial - ainda

que sem lhes conferir as prerrogativas que hoje acreditamos que eles detêm.

2.1. Do conceito de honra ao conceito de dignidade humana

A história do conceito de dignidade humana pode ser vista também como a

história do declínio da noção de honra.

O mérito dessa perspectiva é apontar não apenas as rupturas entre uma noção e

outra - noção tradicional de dignidade (ou honra) e noção contemporânea de dignidade -,

mas também as continuidades entre uma e outra concepção.

Além disso, tal perspectiva evidencia melhor o processo mesmo que levou ao

engendramento da ideia atual de dignidade humana.

A honra é uma espécie de valor, uma “dignidade conferida pela observância

de certos princípios socialmente estipulados” (HOUAISS, 2009). Ou seja, de forma

análoga à noção tradicional de dignidade humana, o conceito de honra traz em seu bojo a

ideia de cumprimento de deveres (observação de princípios) que têm um fundamento

social (os princípios são socialmente estipulados).

Para Julian Pitt-Rivers, citado por Thereza Cristina Gosdal, honra “‘é o valor que

uma pessoa tem a seus próprios olhos, mas também aos olhos da sociedade. É a sua

apreciação do quanto vale, da sua pretensão a orgulho, mas é também o

reconhecimento dessa pretensão, a admissão pela sociedade da sua excelência, do

seu direito ao orgulho’” (PITT-RIVERS apud GOSDAL, 2006, p. 154 - grifei).

Segundo o sociólogo Peter Berger, a honra é um conceito aristocrático ou ao

menos “associado com uma ordem hierárquica de sociedade”. As noções ocidentais de

honra são antigas, mas foram fortalecidas, sobretudo, pelos “códigos medievais de

cavalheirismo, enraizados nas estruturas sociais do feudalismo” (BERGER, 1983, p. 174).

Tais noções sobrevivem até hoje, principalmente em grupos que têm uma visão

“hierárquica da sociedade, como a nobreza, os militares” e mesmo em certas profissões,

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como aquelas relacionadas ao Direito e à Medicina. Em tais grupos, “honra é uma

expressão direta de status, uma fonte de solidariedade entre iguais e uma linha de

demarcação contra os inferiores” (BERGER, 1983, p. 174).

Em sociedade hierarquicamente ordenada, como a feudal, a etiqueta da vida

cotidiana consiste “em transações contínuas de honra, de acordo com o princípio do 'A

cada um segundo seu merecimento'” (BERGER, 1983, p. 174). Ainda de acordo com o

estudioso, aqueles que detêm um alto...

… status na comunidade, têm obrigações particulares de honra, mas mesmo osque se encontram em posição mais baixa são diferenciados em termos de honra edesonra. Em geral, os homens devem exibir virilidade e as mulheres, recato evergonha (...). No mais, a honra provê a ligação, não apenas do self com a comunidade, masentre o self e normas idealizadas pela comunidade. A honra, considerada comoa posse, por homens e mulheres, de certas qualidades, é a tentativa de relacionara existência a certos padrões arquetípicos de comportamento. (BERGER, 1983,p. 174 - grifei)

Além disso, em um mundo de honra, “o indivíduo é o símbolo social que está em

seu brasão. O verdadeiro self do cavaleiro é revelado enquanto ele corre para a batalha”.

Nesse mundo, “o homem nu em uma cama com uma mulher representa uma realidade

menor do self”. (BERGER, 1983, p. 177).

Por outro lado, em um mundo de dignidade, “o brasão esconde o verdadeiro self.

É precisamente o homem nu (…), expressando sua sexualidade, que representa a si de

modo mais verdadeiro” (BERGER, 1983, p. 177).

Em outras palavras (e ainda de acordo com o autor), o conceito de honra implica

que a identidade está essencialmente ligada aos papéis institucionais: no mundo da honra

“o indivíduo descobre sua verdadeira identidade nos seus papéis e afastar-se de seus

papéis é afastar-se de si mesmo” (BERGER, 1983, p. 177). O moderno conceito de

dignidade, por contraste, implica que a identidade é “essencialmente independente dos

papéis institucionais” (BERGER, 1983, p. 177).

No mundo da honra, portanto, homens e mulheres “têm obrigações

particulares” e suas identidades “estruturam-se com base nos papéis institucionais

que desempenham” e que a sociedade lhes confere. No mundo da dignidade, o

“homem deve emancipar-se dos papéis socialmente impostos” para descobrir a

dignidade intrínseca de sua “verdadeira identidade” (BERGER, 1986, p. 177). As

instituições, por sua vez, são vistas como “fluidas e não confiáveis” (BERGER,

1983, p. 178).

No Ocidente, segundo Berger, é válido ver esse tipo de cultura (a cultura da

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honra) como “essencialmente pré-moderna”. Mas, pensa-se aqui, há permanências dessa

cultura até hoje - não apenas as permanências concretas que o autor sugere (citadas

acima), mas outras que, se não se relacionam mais à construção da própria identidade do

indivíduo, concernem ao menos à esfera mais superficial dos comportamentos. Por

exemplo, as exigências de autocontrole e de disciplina no mundo do trabalho talvez sejam

permanências da cultura da honra, não se devem apenas a fenômenos históricos mais

recentes, como o fordismo.

Mas intui-se aqui que mesmo em um nível individual, psicológico, essas

duas noções talvez estejam presentes na vida do homem contemporâneo - que ora

pode retirar algum amor próprio da noção de que, afinal, é um ser humano e merece

consideração mínima como todos os outros; ora pode se defrontar com a dura realidade

de seus limites, oriundos de sua posição no mundo.

Podemos, ainda, localizar algumas permanências da noção de honra – ou ao

menos uma espécie de nostalgia em relação a ela - no campo do imaginário coletivo.

Essa nostalgia em relação a um mundo há muito findo é incontavelmente expressa pelo

cinema, pela literatura, por títulos de videogame, pelos quadrinhos e outras formas de

expressão.

Mas além dessas permanências, como o próprio Berger lembra, existem as

“constantes antropológicas”: o homem moderno “não é uma inovação total ou uma

mutação da espécie. Por isso ele compartilha, com qualquer versão arcaica sua, tanto a

sociabilidade intrínseca, quanto os processos recíprocos pelos quais suas várias

identidades são formadas” (BERGER, 1983, pp. 177/178).

Feitas essas considerações acerca das continuidades entre uma e outra noção,

há que se dizer que o mundo da honra começa a entrar em lento declínio no século XV,

processo que se acelera a partir do século XVIII.

Há inúmeros fatores ‘materiais’ que acompanharam essa decadência e que, aliás,

comumente são citados por estudiosos como explicadores gerais do fim das sociedades

atomizadas pré-industriais no Ocidente: esvaziamento do campo, advento da “tecnologia

e industrialização, crescimento da urbanização, crescimento populacional sem

precedentes, aumento da burocracia, o vasto aumento nas comunicações entre vários

grupos humanos, mobilidade social, pluralização dos mundos sociais”... (BERGER, 1983,

p. 178).

Esse enfraquecimento da noção de honra, contudo, por certo que se deu em

várias etapas, pelo que o declínio dos códigos medievais não levou diretamente à

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situação atual, em que a noção de honra, de acordo com Berger, é inexistente6 (ou quase

marginal).

Houve, por exemplo, o período, em fins do século XVIII, de 'aburguesamento' da

ideia de honra e depois, sim, o lento processo pelo qual ela foi saindo do centro do palco.

Ou, alternativamente, o lento processo pelo qual o conceito de dignidade humana atribuiu

“um status de nobre ao homem comum” (WALDRON apud WHITE, 2011, p. 8).

De todo modo, um personagem simbólico do declínio do mundo da honra, ainda

no início desse processo, seria, segundo Berger, o Falstaff de Shakespeare (dramaturgo

que, não por acaso, foi considerado o “inventor do humano” por Harold Bloom). O

catecismo de Falstaff expressa a ideia de que a “honra é um mero brasão”. É a

consciência moderna que desmascara, que “'desencanta' (…) até mostrar a honra como

nada além de um artefato pintado”. Por trás da honra “há a face de um homem moderno –

um homem sem a consolação de protótipos – o homem sozinho” (BERGER, 1983, p.

175).

Pode-se dizer que Hanna Arendt também alude a esse processo de

ensimesmamento do homem ao falar da vitória do animal laborans na

contemporaneidade: nela o homem foi “lançado à interioridade fechada da introspecção,

na qual suas mais elevadas experiências são os processos vazios do cálculo da mente, o

jogo da mente consigo mesma” (ARENDT, 2000, p. 334).

De todo modo, é importante “entender que é precisamente esse self solitário que

a consciência moderna percebe como dotado de dignidade humana” (BERGER, pp.

175/176). Ou seja, a desintegração da noção de honra deu-se concomitante à

compreensão cada vez maior de que, sob o peso dos papéis e deveres sociais, há o

homem e sua humanidade e sua solidão.

Foi saindo do mundo da honra que os homens foram capazes de atribuir

dignidade a sua própria humanidade – e não apenas ao exercício de algum papel ou

dever social. Talvez essa atribuição os tenha levado a acreditar na existência de certos

direitos, cuja proteção preserva tal dignidade (provavelmente mais frágil e fugidia, pensa-

se aqui, justamente porque despossuída daquela base social que fundamenta a honra).

Dessa forma, do que até agora visto, percebe-se que a honra (ou a noção

tradicional de dignidade humana) possui fundamento social (está relacionada ao6 Há que se lembrar, aqui, que Peter Berger é um autor austríaco radicado nos Estados Unidos. Quando escreve que

as sociedades contemporâneas liquidaram “qualquer concepção de honra” (BERGER, 1986, p. 175), deve-se ter emmente que não está pensando em um país latino como o Brasil, em que essa noção certamente existe com algumaforça. Ademais, pode-se criticar o texto de Berger justamente por defender a ideia de que a noção de honra foicompletamente aniquilada, o que é discutível mesmo em países ultra desenvolvidos como os nórdicos.

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cumprimento de certos papéis sociais), implica o cumprimento de certos deveres e é

relacional (pois eleva aquele que a possui em relação aos demais).

Já a noção de dignidade humana contemporânea não possui fundamento

social (o homem é digno em virtude de sua própria humanidade); dá ao homem certas

prerrogativas e é não relacional (todos os homens, afinal, possuem dignidade).

Luiz R. Cardoso de Oliveira afirma que...

... a honra do período anterior se transformou em dignidade na modernidade. Nãoestava mais ligada à vinculação do indivíduo a um determinado grupo ou classe,como ocorria, por exemplo, com os cavaleiros, os nobres e o clero na IdadeMédia, mas à atividade laboral do homem. A dignidade passou a compreendercondições mínimas de existência, o que importa o acesso a bens e serviçose a possibilidade de ser proprietário pelo menos de sua força de trabalho,que é ‘livremente vendida’ no mercado. Dentro do contexto de formação dopensamento moderno e do capitalismo, no qual se insere também odesenvolvimento dos direitos humanos em geral e do reconhecimento dadignidade da pessoa humana, necessário ainda tratar do papel das grandesrevoluções ocorridas no século XVIII. (CARDOSO apud GOSDAL, TherezaCristina, 2006 p. 65 - grifei)

Os primeiros documentos estabelecendo direitos humanos, no século XVIII7,

foram influenciados pela doutrina jusnaturalista, segundo a qual os homens detêm

prerrogativas anteriores ao surgimento do próprio Estado (liberdade, propriedade, direito

de lutar contra a humilhação e a opressão, etc.).

Mas, como defende J. Habermas, tais documentos também já estavam

moralmente carregados pela ideia (contemporânea) de dignidade humana. Assim escreve

o filósofo alemão:

… há um admirável deslocamento temporal entre a história dos direitos humanos,que remontam ao século dezessete, e ao uso relativamente recente do conceitode dignidade humana nas codificações nacionais e internacionais de Direito e naadministração da justiça, na segunda metade do século passado.… Eu gostaria de defender a tese de que uma íntima, ainda que inicialmenteapenas implícita, conexão conceitual já existia desde o início. Nossa intuição nosdiz, de qualquer forma, que os direitos humanos sempre foram o produto daresistência ao despotismo, à opressão e à humilhação. Hoje, ninguém podeproferir esses veneráveis artigos – por exemplo, a proposição de que 'Ninguémserá sujeito à tortura ou a punição ou tratamento cruel, desumano ou degradante'(Artigo 5 da Declaração Universal) – sem ouvir os ecos do clamor de incontáveiscriaturas humanas torturadas e assassinadas que ressoam neles. O apelo dosdireitos humanos alimenta-se do insulto dos humilhados ante a violação desua dignidade humana. Se é isso que forma o ponto inicial histórico, traçosde uma conexão conceitual entre dignidade humana e direitos humanosdeveriam ser evidentes desde o início do desenvolvimento da lei em si(HABERMAS, 2010, p. 466 - grifei)

Para Habermas, é importante a conexão entre a ideia de dignidade humana e de

direitos humanos, pois, de outra forma, esses últimos poderiam ser entendidos por meio

7 A Declaração dos direitos do homem e do cidadão, produzida pela Revolução Francesa de 1789, e os Bills ofRights das colônias norte-americanas que se rebelaram contra a Inglaterra em 1776 são os mais famosos.

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de concepções meramente políticas, que acabariam por retirar deles sua carga moral.

Ou seja, sem a noção de dignidade humana, sem essa carga moral, os direitos humanos

deixam de ser direitos “que cada pessoa deve possuir em função mesmo de sua natureza

humana” (HABERMAS, 2010, p. 478).

A esse respeito, o filósofo alemão ainda escreve o seguinte:

O investimento da lei com uma carga moral é um legado das revoluçõesconstitucionais do século dezoito. Neutralizar essas tensões seria abandonar oentendimento dinâmico que faz dos cidadãos, das nossas próprias e quase liberaissociedades, abertos a uma compreensão ainda mais exaustiva dos direitosexistentes e do perigo sempre presente de sua erosão (HABERMAS, 2010, p. 479- grifei).

Dessa maneira, como se viu, o declínio do mundo da honra (ou o

enfraquecimento da noção tradicional de dignidade humana) trouxe-nos, em sua esteira, o

entendimento, fixado de vez no universo jurídico e político após o fim da Segunda

Guerra Mundial, de que todo homem tem um valor intrínseco e irredutível – valor que é

também fundamento moral de certos direitos.

Não se acredita com isso, por óbvio, que os homens e as mulheres de três

séculos atrás fossem incapazes de sentimentos de injustiça. Certamente sofriam quando

uma grande humilhação se abatia sobre eles. Entretanto, é muito provável que não

pensavam deter a prerrogativa de não serem humilhados em virtude de sua dignidade

intrínseca – ideia que é tributária das revoluções liberais do século XVIII.

A desintegração do mundo da honra trouxe consigo um ganho fundamental, que

foi o engendramento da noção de dignidade humana.

Mas é pertinente lembrar que também trouxe certas perdas. Sobre essa questão

– e para finalizar a presente discussão - é interessante citar, mais uma vez, o sociólogo

Peter Berger:

… Nós afirmaríamos aqui que as duas perspectivas – a liberação mítica da'esquerda' e a nostalgia da 'direita' por um mundo intacto – não fazem jus àsdimensões antropológicas e na verdade éticas do problema. Parece-nos claro que o entusiasmo sem restrição pela liberação total da'repressão' das instituições é falha, pois não leva em consideração certasnecessidades fundamentais do homem, notavelmente aquelas relacionadas àordem – aquela ordem institucional da sociedade sem a qual tanto ascoletividades, quanto os indivíduos, podem decair a um caos desumanizador. Emoutras palavras, o desaparecimento da honra deu-se com um alto custo a ser pagopor qualquer que sejam as liberdades que o homem moderno tenha alcançado.Por outro lado, a denúncia da constelação contemporânea de instituições e deidentidades falha ao não perceber os vastos ganhos morais tornados possíveisexatamente pela existência dessa constelação – sobretudo a descoberta doindivíduo autônomo, cuja dignidade deriva de seu próprio ser e que está além eacima de qualquer identificação social. Qualquer um que denuncie o mundomoderno tout court deveria fazer uma pausa e questionar se quer incluir nessadenúncia as descobertas modernas da dignidade e dos direitos humanos.

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A convicção de que até os membros mais fracos da sociedade têm direito inerenteà proteção e dignidade; o banimento da escravidão em todas as suas formas e aproibição à opressão racial e étnica; a desconcertante descoberta da dignidade edos direitos da criança; o surgimento de novas sensibilidades contra a crueldade,desde a repulsa à tortura até a codificação dos crimes de genocídio (…); oreconhecimento novo da responsabilidade do indivíduo por todos os seus atos,mesmo aqueles que lhe são exigidos em virtude de certos papéis institucionais –um reconhecimento que obteve a força da lei em Nuremberg; todos esses – eoutros – são ganhos morais que seriam impensáveis sem as constelaçõespeculiares do mundo moderno.(...)É permitido, contudo, especular se a redescoberta da honra, em um futurodesenvolvimento da sociedade moderna, é empiricamente plausível e moralmentedesejável. Desnecessário dizer que dificilmente tal redescobrimento tomaria aforma de um regresso aos códigos tradicionais. Mas o humor contemporâneo anti-institucionalista dificilmente durará, como Anton Zijderveld afirma. A constituiçãofundamental do homem é tal que ele inevitavelmente construirá, novamente,instituições que possam lhe oferecer uma realidade ordenada. Um retorno àsinstituições será, ipso facto, um retorno à honra. (…). A questão ética, claro, écomo serão essas instituições. Especificamente, o teste ético de quaisquer futurasinstituições, e dos códigos de honra a elas vinculadas, consistirá no sucesso queelas terão em incorporar e estabilizar as descobertas da dignidade humana, umadas principais façanhas do homem moderno (BERGER, 1983, pp. 180/181).

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3. A dignidade humana no contexto do neoconstitucionalismo

No tópico anterior viu-se como o engendramento da ideia de que todo homem

tem valor em si (ou seja, valor em virtude apenas de sua própria humanidade e que

fundamenta a exigência de certos direitos) implicou verdadeira revolução na história das

mentalidades do Ocidente. Sobretudo porque, como bem assevera Habermas, o

engendramento da noção de dignidade humana investiu a lei com uma carga moral

sem precedentes na história do Direito ocidental e é algo que remonta ao surgimento

dos chamados direitos humanos, na esteira das revoluções liberais do século XVIII8.

A despeito disso, a presença (explícita) da noção de de dignidade humana no

mundo do Direito, como se viu, é relativamente recente. Apesar do artigo 139 da

Constituição Alemã de março de 1849 e do artigo 151 da Constituição da República de

Weimer de 1919, que fazem referências a esse conceito, é apenas a partir do fim da

Segunda Guerra Mundial que ele se fará presente nos diversos ordenamentos jurídicos

ocidentais de maneira cada vez mais incisiva (e aí o peso da Segunda Guerra Mundial e

seus traumas teve papel desencadeador / catalizador importante).

O uso judicial da noção de dignidade humana é também recente (no Brasil,

alguns autores defendem que remonta aos anos de 1990) e se tornou mais comum na

medida em que certas correntes teóricas e movimentos pós-positivistas, como o

neoconstitucionalismo, se engendraram e se fortaleceram.

Aliás, pensa-se, aqui, que o neoconstitucionalismo, a despeito das nuances

e das diversas teorias que abarca, é uma corrente que, no geral, tenta dar uma

resposta jurídica ao surgimento (ou melhor, ao fortalecimento) da concepção de

dignidade humana (em detrimento da velha concepção de honra), bem como ao

desafio moral que essa nova concepção trouxe para o Direito.

Não por acaso, como bem explica Luís Roberto Barroso, o neoconstitucionalismo

teve como marco histórico a formação do Estado Constitucional de Direito,

“imediatamente após a 2ª Grande Guerra” e “especialmente na Alemanha e na Itália”

(BARROSO, 2006, p. 3).

O novo Direito Constitucional estaria ainda relacionado à “superação histórica do

jusnaturalismo” e ao “fracasso político do positivismo”, razão por que não despreza o

8 Importante mencionar que Habermas, se por um lado acha que não se deve abrir mão desse “investimento da lei comuma carga moral” (HABERMAS, 2010), por outro teme que uma hipermoralização do Direito poderia, em últimaanálise, comprometer sua eficácia (cf. LUDWIG, Roberto José. Princípios na relação entre Direito e moral. In:Revista dos Tribunais, RT 915, janeiro de 2012).

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Page 32: Embriaguez, Trabalho e o Uso Judicial da Noção de Dignidade Humana - Raquel Veras Franco

direito posto, mas “procura empreender uma leitura moral do Direito”, sendo o

“desenvolvimento de uma teoria dos direitos fundamentais, edificada sobre o

fundamento da dignidade humana”, um dos objetivos que “procuram abrigo neste

paradigma em construção” (BARROSO, 2006, p. 6 - grifei).

Do ponto de vista teórico, o neoconstitucionalismo propugna ainda “o

reconhecimento da força normativa da Constituição”; “a expansão da jurisdição

constitucional” (com a criação de tribunais constitucionais e alguma forma de controle de

constitucionalidade em países por ele atingidos) e “o desenvolvimento de uma nova

dogmática da interpretação constitucional”, que possui, dentre outros, os seguintes

princípios: supremacia da Constituição, presunção de Constitucionalidade das normas e

atos do Poder Público, interpretação conforme a Constituição, etc. (BARROSO, 2006, pp.

6 e 10/11).

Em um país como os Estados Unidos, em que “a interpretação de todo o direito

posto à luz da Constituiçpão é característica histórica”, o debate provocado pelo

neoconstitucionalismo tangencia a legitimidade e limites “da atuação do Judiciário na

aplicação de valores substantivos e no reconhecimento de direitos fundamentais que não

se encontrem expressos na Constituição” (BARROSO, 2006, p. 19).

Em países de tradição romano-germânica como o Brasil, em que o precedente foi

considerado fonte formal “imprópria” do Direito,, a inédita supremacia do Poder Judiciário

em relação ao Poder Legislativo é um desdobramento do neoconstitucionalismo que se

afigura como mudança ainda mais radical. Embora seja dito que o Juiz não possa inovar a

ordem jurídica, “criando comando até então inexistente” - estando autorizado apenas a

“invalidar um ato do Legislativo” (BARROSO, 2006, p. 29) -, ele se torna “co-participante

do processo de criação do Direito, completando o trabalho do legislador, ao fazer

valorações de sentido para as cláusulas abertas e ao realizar escolhas entre soluções

possíveis” (BARROSO, 2006, p. 12).

Outra nota definidora do neoconstitucionalismo, talvez uma das mais importantes,

é o reconhecimento da normatividade dos princípios. Esse reconhecimento deu-se em

concomitância com um outro: o de que “a solução dos problemas jurídicos nem sempre se

encontra no relato abstrato do texto normativo” (BARROSO, p. 12). Algumas vezes será

necessário apoiar-se em princípios que...

… não são, como as regras, comandos imediatamente descritivos de condutasespecíficas, mas sim normas que consagram determinados valores ou indicamfins públicos a serem realizados por diferentes meios. A definição do conteúdode cláusulas como dignidade da pessoa humana , razoabilidade, solidariedadee eficiência também transfere para o intérprete uma dose importante de

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Page 33: Embriaguez, Trabalho e o Uso Judicial da Noção de Dignidade Humana - Raquel Veras Franco

discricionariedade. Como se percebe claramente, a menor densidade jurídica detais normas impede que delas se extraia, no seu relato abstrato, a soluçãocompleta das questões sobre as quais incidem. Também aqui, portanto, impõe-sea atuação do inérprete na definição concreta de seu sentido e alcance.(BARROSO, p. 13 - grifei)

De fato, é difícil definir o “conteúdo” de um princípio como o da dignidade

humana. Pode-se afirmar (como neste trabalho até agora se afirmou) que a dignidade

humana é um valor inerente a qualquer ser humano, que desautoriza percebê-lo como um

meio, que obriga a percebê-lo como um fim em si e que lhe autoriza a exigência de

certos direitos. E é aí mesmo que reside seu problema: essa noção pode ser / foi

invocada como fundamento de direitos diversos e, inclusive, contraditórios, por

exemplo, em disputas relacionadas a aborto, união homoafetiva, pesquisas com células-

tronco (direito à vida vs direito à saúde, etc.).

3.1. Críticas à noção de dignidade humana

O psicólogo evolutivo Steven Pinker já escreveu que a noção de dignidade

humana é “frágil e subjetiva”, dificilmente “à altura das exigências morais pesadas que lhe

são atribuídas” (PINKER, 2008).

Por vezes, essa noção parece mesmo não estar à altura das exigências que lhe

são dirigidas, em especial quando ela é igualmente suscitada pelas partes em

conflito em uma ação, para embasar / legitimar direitos contraditórios, ou quando

sua invocação contraria a lei positiva. Seja, em alguns casos, sua aplicação, longe

de parecer segura ou definitiva, parece mais apoiar-se em algum critério quase

subjetivo. Ou, como escreve Paolo G. Carozza:

… podemos concordar com a existência de uma lacuna bastante grande entre aideia universal de dignidade humana, no abstrato, e seu desenvolvimento naprática concreta da interpretação judicial... essa lacuna tem importantesimplicações para a práticia jurídica em níveis nacionais e transnacionais(CAROZZA, 2008, p. 939 - grifei)

Um estudioso bastante mencionado na literatura sobre a questão da dignidade

humana, Christopher McCrudden (citado por Paolo G. Carozza), ao analisar a aplicação

prática do conceito na jurisprudência produzida nos Estados Unidos, África do Sul e

Europa, relacionada a temas díspares como aborto, eutanásia, distribuição de benefícios

sociais e pornografia, chegou à conclusão de que “'a aparência de comunhão [de

universalidade] do conceito desaparece quando de sua aplicação e a dignidade humana

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Page 34: Embriaguez, Trabalho e o Uso Judicial da Noção de Dignidade Humana - Raquel Veras Franco

(e com ela os direitos humanos) é exposta como culturalmente relativa, profundamente

contingente, dependente das políticas e valores locais, resultando em concepções

significativamente divergentes, inclusive conflituosas'” (McCRUDDEN apud CAROZZA,

2008, p. 935)9.

Essas seriam, de maneira talvez muito resumida, as principais críticas à utilização

judicial da noção de dignidade humana no contexto do neoconstitucionalismo: ela é vazia

de conteúdo e seu caráter, a priori, universal, esbarra, quando de sua aplicação judicial,

em políticas e valores locais (e até em valores pessoais, do próprio juiz).

Claro, essas críticas são aplicáveis a outros princípios também, como o da

razoabilidade ou o da isonomia – princípios cujos conteúdos somente parecem ficar mais

claros no momento mesmo de sua aplicação, quando da análise do caso concreto.

Mas deve-se perguntar se tais limitações/críticas sugerem, como aliás sugere

Steven Pinker, que se deva simplesmente abrir mão do conceito de dignidade humana.

Não se pretende, aqui, negar que existam problemas quando da aplicação judicial

do princípio da dignidade humana (como, aliás, de outros princípios) no contexto do

neoconstitucionalismo.

Esses problemas (sobretudo o da ausência de um conteúdo fixo, a despeito da

pretensão universal do princípio) são igualmente dramáticos no Brasil - mesmo que a

noção, aqui, tenha sido alçada inclusive à condição de fundamento da República (art. 1º,

III, da Constituição Federal).

Mas é de se perguntar, afinal, se é possível ou desejável abrir mão do princípio da

dignidade humana, ou melhor, do uso judicial desse princípio - que, no extremo (não tão

raro), pode ocasionar insegurança jurídica quando, por exemplo, é aplicado em

detrimento de uma norma vigente considerada não compatível com a Constituição.

Para Steven Pinker (2008), a noção de “autonomia humana” é o bastante para

resolver temas, diga-se, constrangidos por questões morais, sendo portanto

desnecessária a invocação da ideia de dignidade humana (ele está tratando de bioética

no artigo aqui citado, mas pode-se transpor suas ideias para o terreno jurídico).

Ele afirma que, na verdade, o...

consentimento informado serve como base da pesquisa e prática ética eclaramente exclui os abusos que em primeiro lugar levaram ao nascimento daBioética, como os pseudo-experimentos sádicos de Mengele na Alemanha nazistae a detenção de pacientes negros indigentes no infame estudo sobre a sífilis de

9 Cabe notar que Carozza critica McCrudden pelo número de “amostras” relativamente limitado de sua pesquisa (cf.CAROZZA, 2008, p. 935).

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Tuskegee. Uma vez que você reconheça o princípio da autonomia (…), a“dignidade” não adiciona nada. (PINKER, 2008 - grifei).

No âmbito jurídico, não apenas para os positivistas, mas para doutrinadores do

realismo jurídico norte-americano, como o juiz Richard Posner, princípios como o da

dignidade humana não teriam importância ou teriam importância quase marginal, mesmo

na solução dos chamados “casos difíceis”.

Não se quer aqui dizer que Posner não acredite que exista algo como a dignidade

humana, mas para ele essa noção não deve ser central no Direito contemporâneo. Ele

inclusive sugere, como outros autores da análise econômica do Direito, que o ideal de

maximização da riqueza é que deve lançar...

… bases não apenas para uma teoria dos direitos e dos remédios judiciais, maspara o próprio conceito de direito. A Lei frequentemente se define como umaordem apoiada no poder coercitivo do Estado. Segundo essa definição, qualquerordem vinda do poder soberano é direito. Mas isso distorce o sentido comum dotermo. Portanto, já se sugeriu que a definição, para se manter fiel ao uso correntedo termo, deve incluir os seguintes elementos adicionais: (1) para se caracterizarcomo lei, uma ordem deve ser obedecida por aqueles a quem se destina; (2) devetratar equitativamente aqueles que estejam na mesma posição em todos osaspectos importantes que a envolvam; (3) deve ser pública; (4) deve haver umprocedimento de apuração da verdade quaisquer fatos necessários à aplicação daordem, em conformidade com suas condições. Esses elementos fazem parte dateoria econômica do direito. Em uma perspectiva econômica ou de maximizaçãoda riqueza, a função básica do direito é a alteração de incentivos. Isso implica quea lei não impõe impossibilidades, pois uma ordem impossível de cumprir nãoalterará comportamentos” (POSNER, 2010, pp. 89/90 - grifei)

Observe-se, nesse trecho, a preocupção de Posner com a eficácia da lei e não

somente com sua validade. Tal preocupção é, aliás, comum aos partidários da análise

econômica do Direito - corrente teórica que supõe “'a aplicação da teoria econômica (seu

método) para o exame da formação, estruturação e do impacto da aplicação das normas

e instituições jurídicas (…), de modo a retirar 'as consequências do fenômeno jurídico da

periferia, trazendo-as para o centro do debate'” (RIBERIO, apud, PAPP).

Ou seja, se no neoconstitucionalismo a ideia de justiça é prioritária e no

juspositivismo a validade da norma é central, na análise econômica do Direito a eficácia e

a ideia de eficiência são primordiais - sendo que, de acordo com Décio Zylbersztajn e

Rachel Sztajn, “a eficiência está relacionada com a possibilidade de se atingir o melhor

resultado com o mínimo de erro ou desperdício, ao passo que a eficácia diz respeito à

capacidade [da norma] de produzir os efeitos desejados” (STAJN apud NIED, Paulo

Sérgio).

Assim...

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… a análise econômica do direito demonstra que tanto a eficiência quanto aeficácia devem ser constantemente perseguidas pelo Direito. Elementos deeconomia devem ser aplicados na formulação de políticas legislativas, naavaliação do impacto do direito sobre os indivíduos e, especialmente, na soluçãode problemas de alocação de recursos e de interpretação da lei. Nesse sentido, aanálise econômica do direito deixaria de ser mero instrumento, passando a deterum papel importante no meio social como método de consecução da Justiça(FRANÇA, Phillip Gill apud NIED, p. 6)

Ademais, essa teoria tem como pressupostos básicos os seguintes: os indivíduos

vivem em um mundo de recursos escassos e por isso devem fazer escolhas; os

indivíduos tendem a ser maximadores racionais de suas satisfações; o Direito pode

incentivar / desestimular comportamentos; o magistrado deve preocupar-se com a

eficiência de suas decisões (que devem ter por parâmetros critérios como Ótimo de

Pareto ou noção de eficiência de Kaldor - Hicks10); o magistrado deve preocupar-se

com as consequências de seus julgados (PAPP, pp. 14-17).

De acordo com Posner, os juízes de seu país, na imensa maioria das vezes,

julgariam constrangidos, não por conceitos como o da dignidade humana, mas pela

preocupação com a eficiência e eficácia de suas decisões ou, ainda, com a

preocupação de se maximizar riquezas11. Ao assim julgarem, sem se reportarem

necessariamente a princípios como o já citado, não estão, contudo, agindo contrariamente

à defesa de direitos, pois esses “são, na verdade, importantes corolários do princípio de

maximização da riqueza” (POSNER, 2010, p. 87).

Ou seja (e nas palavras de Ronald Dworkin), na análise econômica do Direito não

existe um “argumento moral independente em favor de se conceder ou não um

determinado direito” - que é visto apenas como um resultado indireto da maximização

10 Quando se atinge o ótimo de Pareto, diz-se que os bens da vida estão com quem mais os valoriza (todos ganham) e“as partes não realizarão novas trocas voluntariamente”. Contudo, “são raras as situações nas quais o PoderJudiciário se vê diante da possibilidade de proferir uma decisão que resulte em ganho para todas as partesenvolvidas”. Daí o uso da noção de Kalder – Hicks, que “admite a existência de uma mudança social eficientemesmo quando o aumento do bem-estar de uma parte resulta na redução do bem-estar de outra (…). Pode-se dizerque uma decisão eficiente no sentido KALDOR-HICKS deve aumentar o bem-estar dos ganhadores em ummontante tal que seja possível, ao menos em tese, a compensação da redução do bem-estar dos perdedores” (NIED,PAULO SÉRGIO). Em outras palavras, na noção de eficiência de Kaldor – Hicks, o “ganhador deve ganhar mais doque o perdedor deve perder”; as trocas consensuais devem “garantir ganhos mútuos” e nas não consensuais “aquelesque perdem em virtude de uma política [policy no original] ou decisão irão se beneficiar de outras e, no geral, todosganham, à medida que a riqueza agregada aumenta”; “as mudanças na política ou na lei são eficientes se os ganhosexcedem as perdas” (MICELI, 2009, p. 6). De todo modo, há que se salientar que o juiz brasileiro não poderádecidir em consonância com nenhum desses critérios, ao que parece, se existente norma legal aplicável aocaso, em sentido contrário a eles (NIED, PAULO SÉRGIO).

11 No Brasil talvez a situação não seja tão diferente, ao contrário do que se poderia pensar. Uma das críticas dospartidários brasileiros da análise econômica do Direito é a de que os juízes, influenciados peloneoconstitucionalismo, têm, nos últimos anos, deixado muitas vezes de aplicar a lei positiva. Ou seja, pode-se dizerque a lei brasileira, em boa parte, traduz o ideal de eficiência econômica / maximização de riquezas (defesa dapropriedade) e que alguns juízes, nos últimos anos, é que a estariam relativizando.

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de riqueza (DWORKIN, 1980, p. 207).

Ou, em outras palavras, para a análise econômica do Direito, de um modo geral,

o importante é deixar o “bolo crescer”. A distribuição de riqueza e o atendimento de certos

direitos é quase decorrência lógica desse crescimento. Dworkin faz algumas críticas

interessantes a esse posicionamento, bem como ressalta os limites da ideia de que o

juiz deve perseguir “a riqueza social como um 'alvo falso', no lugar de algum outro

importante valor”. Mas também incorre em alguns argumentos talvez questionáveis,

dentre os quais o de que a “maximização de riqueza não faz sentido como objetivo social,

nem mesmo se considerada como um dentre outros objetivos” (DWORKIN, 1980, p. 220).

De todo modo, ao prescindir de valores como o da dignidade humana, a análise

econômica do Direito não seria amoral, segundo Posner. Inclusive ele pretende lançar as

bases de “um sistema moral fundado em princípios econômicos” que, “além de ser

compatível com nossas intuições morais corriqueiras, pode estruturá-las” (POSNER,

2010, pp. 100/101).

Do que até agora dito, talvez não seja completamente equivocado concluir que

Posner, como Steven Pinker, defendem uma espécie de substituição da noção de

dignidade humana pela de autonomia humana, porquanto outro pressuposto

importante da análise econômica do Direito é o de que...

… as pessoas agem como maximizadoras racionais de suas satisfações. Trata-sedo 'traço comum à actuação da generalidade dos seres humanos: a tentativa deter uma vida tão satisfatória quanto possível, dados os constrangimentos que sedebatem. É nisso, afinal, que consiste o pressuposto da escolha racional'(RODRIGUES, 2007, p. 25). Em termos práticos, significa que, diante de diversasalternativas viáveis, as pessoas tendem a escolher aquela opção que melhoratenda a seus interesses pessoais (sejam eles quais forem). Ou seja, as pessoasbuscam alcançar benefícios maiores com custos menores” (PAPP, P. 15)

Sobre essa 'substituição' da noção de dignidade pela de autonomia humana, ou

melhor, sobre a exclusão do conceito de dignidade humana do universo jurídico, falar-se-á

novamente adiante.

Por ora, há que se observar, ainda, quanto a Richard Posner, que ele não

acredita, em relação aos “casos difíceis”, que a saída seja, por exemplo, a

ponderação / aplicação de princípios como o da dignidade humana . Na verdade, ele

pensa que o juiz, ao se defrontar com esses casos, julga, em última análise, “com base

em algum forte sentimento moral ou mesmo crença religiosa”12 . Ou, pode-se

12 Cf. entrevista de Posner em http://www.nybooks.com/articles/archives/2011/sep/29/court-talk-judge-richard-posner/?pagination=false [acesso em 23/12/2013 – conteúdo parcialmente pago). Cf. também (POSNER, 2008, pp.13 e 94).

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acrescentar, com base em suas inclinações políticas, como tenta demonstrar artigo de

Thomas Miles e Cass Sunstein, sobre a maior / menor incidência de votos “liberais” (ao

menos acerca de temas polêmicos como aborto, discriminação de gênero, lei

trabalhista...) e o maior / menor número de magistrados nomeados por presidentes

democratas ou republicanos nas Cortes Federais dos Estados Unidos (MILES e

SUSTEIN, 2007).

Obviamente essas colocações céticas de Posner causam polêmica, mas há que

se perguntar se, no final das contas, não encerram alguma (incômoda) verdade.

Um caso inédito, para o qual não haja lei (ou precedente) aplicável, envolvendo

direitos fundamentais contraditórios, pode ser resolvido de maneira racional? Ou a

resolução seria inescapavelmente voluntariosa / emocional como afirma Richard Posner?

Essa pergunta é importante, pois de sua resposta depende em boa parte a

legitimidade do uso judicial de princípios como o da dignidade humana. Se a conclusão é

a de que esses casos, no fim das contas, são sempre resolvidos de forma subjetiva ou

arbitrária, toda a reflexão em torno da aplicação de princípios constitucionais realizada

nos últimos anos no Direito Ocidental mais ou menos afigura-se inócua – como também

inócua afigura-se o próprio princípio da dignidade humana.

3.2. Críticas aos críticos da noção de dignidade humana

Não se pretende aqui, por óbvio, responder peremptoriamente às questões

postas anteriormente.

O que se pretende fazer é apenas trazer à tona algumas críticas às críticas de

Posner, pois nelas está embutido o entendimento (ou a crença?) de que é possível,

mesmo nos casos difíceis, chegar-se a soluções racionais – ao invés de emocionais ou

meramente voluntariosas.

Pois bem, há que se começar com Pinker e sua tese de que o mundo (pelo

menos o da bioética) giraria melhor sem a ideia de dignidade humana (sendo suficiente a

noção de autonomia): Habermas (2010) diagnostica uma tendência mais ou menos

recente no sentido de se desvincular os direitos humanos da noção de dignidade humana.

Assim ele escreve:

… Já que não é mais realista seguir Carl Schmitt e rejeitar inteiramente oprograma dos direitos humanos, cuja força subversiva tem permeado todas asregiões ao redor do mundo, hoje o “realismo” assume uma forma diferente. Acrítica 'desmascaradora' e direta está sendo substituída por uma crítica branda edeflacionária. Esse minimalismo novo afrouxa a reivindicação dos direitos

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humanos ao separá-los de seu impulso moral essencial, notadamente, aproteção da igual dignidade de cada ser humano.Seguindo John Rawls, Keneth Baynes caracteriza essa abordagem como umaconcepção 'política' (Baynes, 2009a) dos direitos humanos, em contraste comnoções jusnaturalistas de direitos “inerentes” que cada pessoa supostamentepossui em razão mesmo de sua natureza humana (HABERMAS, 2010, p. 478)

Um possível desdobramento das ideias de Pinker seria justamente essa

desvinculação. Ele afirma que “todos os seres humanos possuem a mesma capacidade

mínima de sofrer, prosperar, pensar e escolher” e por isso “ninguém tem o direito de

constranger a liberdade, o corpo, a vida” de outrem (PINKER, 2008). No entanto, ele

conclui, repita-se, que uma vez reconhecido “o princípio da autonomia (…) a 'dignidade'

não adiciona nada”.

Ora, mas essas capacidades elencadas por Pinker é que historicamente

fundamentam (e fundamentaram, como se viu em item anterior) a noção de dignidade

humana que, por sua vez, dá legitimidade aos direitos humanos. Se “pensar e escolher”

têm a ver com autonomia humana, no mínimo também têm a ver com dignidade – e

inclusive foram capacidades suscitadas por diversos filósofos ao longo da história para

salientar a diferença basilar que existe entre seres humanos e outros animais. Assim, ao

retirar a dignidade da “capacidade mínima” de “escolher” ou “de pensar” que

possui todo ser humano, retira-se dele justamente aquele valor que lhe permite a

exigência de certos direitos – e esses ficam, portanto, separados “de seu impulso moral

essencial”.

Mas esse desprezo de Steven Pinker pela noção de dignidade humana

provavelmente encontra raízes na própria psicologia evolutiva.

É verdade que, desde Darwin, ganhou bastante força a concepção de que os

homens não têm uma dignidade diferenciada, pois não são muito mais que “membros de

uma espécie evoluída que se relaciona, por ancestralidade comum, a qualquer outra

espécie na Terra”. Ou seja, a teoria evolutiva tende a enfraquecer certos entendimentos

“éticos que se embasam em suposições de uma criação especial” do homem, de uma

criação “à imagem de Deus”, etc13. Isso porque “não haveria separação biológica entre o

homo sapiens e o restante do mundo vivente”, mas antes um “continuum através da

história evolucionária, sem espécies criadas separadamente (…) ou dotadas de almas

13 Cabe referir (como se procurou demonstrar neste trabalho) que a noção de dignidade humana tem origens históricasna dignitas romana. Mas é verdade que foi fortalecida no interior de algumas tradições religiosas como oCristianismo. Por outro lado, até em razão de estudos como os do psicólogo Paul Bloom, poder-se-ia concluir que asReligiões é que se beneficiam de uma moralidade humana inata (ou pelo menos rudimentos de moralidade inatos).Cf. “The moral life of babies”, disponível em: http://www.nytimes.com/2010/05/09/magazine/09babies-t.html?pagewanted=all&_r=0

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especiais”14 (FITZPATRICK, 2012).

Contudo, nas palavras de William FitzPatrick, nada disso...

… demonstra que a visão comum, de uma dignidade humana especial, seja falsaou mesmo injustificada. Deve haver outras formas de se apoiar essa visão, quenão dependam de suposições criacionistas. Muitos concordariam, por exemplo,que ainda que sejamos aparentados a outros animais, nós somos muito diferentesmesmo dos nossos parentes primatas mais próximos, como uma viagem aozoológico, seguida por uma visita à Biblioteca do Congresso ou ao MetropolitanMuseum of Art poderiam confirmar. A vastidão das diferenças entre humanos eoutras formas de vida na Terra não é apagada ao se ressaltar que os sereshumanos são como são devido a processos evolucionários contingentes... Sãoessas diferenças reais – não importa como se originaram – queplausivelmente fundamenta as diferenças entre os status moral dos sereshumanos e de outros animais. (FITZPATRICK, 2012 - grifei)

Ademais, a própria Biologia Evolutiva e a Genética Comparada podem, segundo

o autor, “desempenhar um papel corretivo no que tange à ética normativa” ao, por

exemplo, serem “usadas para minar falsas alegações acerca de raça, que embasam

afirmações racistas”. Já a Psicologia Experimental pode ser usada para, de maneira geral,

expor “típicas armadilhas no que tange a julgamentos morais e comportamento –

tendências em direção à crueldade em condições de desigualdade de poder, ou em

direção a uma condenação moral exagerada quando se experiencia descontentamento ou

stress” (FITZPATRICK, 2012).

Finalmente, há de se esclarecer que S. Pinker, no artigo mencionado,

basicamente reclama da criação, em 2001, de um “Conselho do Presidente sobre

Bioética” (President's Council on Bioethics) que teria a função de opinar quanto a

“questões de política relacionadas à ética no que tange à inovação biomédica”. Também

critica uma publicação desse Conselho, na qual se tentou “colocar a dignidade em base

conceitual mais firme”, dizendo, em resumo, que nenhum dos conselheiros é cientista e

que o órgão na verdade possui uma “agenda política radical, alimentada por impulsos

religiosos fervorosos contra a biomedicina americana”.

Talvez, então, parte da diatribe de Pinker seja na verdade direcionada ao

posicionamento religioso radical de alguns membros do citado conselho - e não à noção

de dignidade humana em si. Ou, talvez, o que é mais provável, a acusação de

posicionamento religioso radical seja, ao menos em boa parte, explicada pela defesa da

noção de dignidade humana a que se propuseram aqueles membros.

Em todo caso, o importante é observar que mesmo Habermas não nega que

14 Interessante notar que a Biologia evolutiva tanto tem embasado conclusões no sentido de que o homem não possuiuma dignidade especial, quanto tem fundamentado ideias de que não apenas o homem, mas também os animais,possuem dignidade.

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existem, por vezes, contradições entre a “difusão retórica dos direitos humanos” e o seu

“emprego incorreto” para legitimar “jogos políticos” usuais em diversas áreas. Contudo, o

programa dos direitos humanos, embasado na ideia de dignidade humana, constitui “uma

utopia realista”, pois não pinta “imagens enganosas de uma utopia social que garanta

felicidade coletiva, mas ancora o ideal de uma sociedade justa nas instituições de Estados

constitucionais” (HABERMAS, 2010, p. 476).

Mas é verdade que Pinker não deve concordar com Habermas nesse ponto.

Quanto a Posner, por óbvio muitas críticas que ele faz ao “formalismo jurídico” e

em defesa do realismo são proveitosas (mesmo em países de tradição civilista).

Especialmente interessantes são algumas de suas assertivas honestas quanto às

atividades do juiz e à postura humilde que esse deve adotar, pois, segundo o autor, é

antes de tudo uma espécie de trabalhador do Poder Judiciário (POSNER, 2008).

Contudo, o problema de Posner (embora muitos não considerem esse seu

ceticismo extremado um problema) é evitar enfrentar a dimensão moral que, sem

dúvida, desafia o Direito, sobretudo, como já se disse aqui, após o advento da

noção contemporânea de dignidade humana.

Repita-se que, para ele, os chamados “casos difíceis” - e os desafios morais que

esses casos por vezes impõem ao julgador – são resolvidos com base “em algum forte

sentimento moral ou mesmo crença religiosa” do julgador. Não se está negando a

existência de sentimentos morais, mas Posner, de fato, não acredita em uma resolução

racional para essas questões.

Já o neoconstitucionalismo, de uma maneira geral, tenta uma resposta para esse

estado de coisas:

Quando duas normas de igual hierarquia colidem em abstrato, é intuitivo que nãopossam fornecer, pelo seu relato, a solução do problema. Nestes casos, a atuaçãodo intérprete criará o Direito aplicável ao caso concreto.A existência de colisões de normas constitucionais leva à necessidade deponderação. A subsunção, por óbvio, não é capaz de resolver o problema, por nãoser possível enquadrar o mesmo fato em normas antagônicas. Tampouco podemser úteis os critérios tradicionais de solução de conflitos normativos – hierárquico,cronológico e da especialização – quando a colisão se dá entre disposições daConstituição originária. Neste cenário, a ponderação de normas, bens ouvalores (…) é a técnica a ser utilizada pelo intérprete, por via da qual ele (i)fará concessões recíprocas, procurando preservar o máximo possível cadaum dos interesses em disputa ou, no limite, (ii) procederá à escolha dodireito que irá prevalecer, em concreto, por realizar mais adequadamente avontade constitucional. O conceito chave na matéria é o princípio instrumentalda razoabilidade” (BARROSO, p. 14).

Pode-se argumentar que a ponderação é uma resposta às vezes um tanto frágil,

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pois ainda implica um bom grau de subjetividade, até porque, o próprio princípio da

razoabilidade (como o da dignidade humana) não possui um conteúdo fixo.

Mas esses argumentos não impediram (ou impedem) teóricos os mais diversos

de tentarem construir um “modelo racional do processo de ponderação” (OLIVEIRA,

2013), desde os expoentes da “teoria do discurso” (Jürgen Habermas, Robert Alexy e

Klaus Günther) até Ronald Dworkin.

Dworkin, aliás, foi talvez quem melhor debateu as ideias não apenas de Posner,

mas as de H. L. A. Hart (sobretudo ao defender que o juiz, nos casos difíceis, não tem “o

'poder discricionário' para decidir o caso de uma maneira ou de outra”, mas na verdade

decide com base em “padrões que não funcionam como regras, mas operam

diferentemente, como princípios, políticas e outros tipos de padrões” - DWORKIN,

2002, pp. 36 e 127).

De todo modo, como bem afirma Cláudio L. De Oliveira, Dworkin, em seu ataque

ao positivismo jurídico, afirma que...

… na argumentação jurídica são encontrados “padrões” (standards) de distintasespécies, entre eles aqueles que funcionam como “regras” (rules), os quefuncionam como “princípios” (principles) ou ainda como “políticas” (politics).5 Entreprincípios e políticas, ainda que o próprio Dworkin afirme usar tais termos de modomuitas vezes intercambiável, há uma importante distinção. Política é definida comoum tipo de padrão que estabelece um objetivo social a ser alcançado, como porexemplo a promoção do crescimento econômico, a redução do desemprego e aredução dos acidentes de trabalho. Por sua vez, princípios são definidos comoo tipo de padrão que formula uma “exigência da justiça ou equidade oualguma outra dimensão da moralidade” e que deve ser observada em virtudede seus próprios termos e não porque é capaz de promover algum estado decoisas visto como socialmente desejável. No exemplo do próprio Dworkin, opadrão segundo o qual “ninguém deve beneficiar-se de sua própria torpeza” é umprincípio, ao passo que o padrão que estabelece que acidentes automobilísticosdevem ser reduzidos é uma política. (OLIVEIRA, 2013, p. 04 - grifei)

Quanto à distinção entre regras e princípios, que, como lembra Oliveira, Dworkin

considera que tem “natureza lógica”, ele assim escreve:

Os dois conjuntos de padrões apontam para decisões particulares acerca daobrigação jurídica em circunstâncias específicas, mas distinguem-se quanto ànatureza da orientação que oferecem. As regras são aplicáveis à maneira tudo-ou-nada. Dados os fatos que uma regra estipula, então ou a regra é válida (…) ou nãoé válida, e neste caso em nada contribui para a decisão. (DWORKIN, 2002, p. 39)

Já os princípios, mesmo aqueles que...

mais se assemelham a regras não apresentam consequências jurídicas que seseguem automaticamente quando as condições são dadas. Dizemos que o nossodireito respeita o princípio segundo o qual nenhum homem pode beneficiar-se doserros que comete. Na verdade, é comum que as pessoas obtenham vantagens, demodo perfeitamente legal, dos atos jurídicos ilícitos que praticam. O caso maisnotório é o usucapião (…). Há muitos exemplos menos dramáticos. (…) Se umhomem foge quando está sob fiança e cruza a fronteira estadual para fazer um

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investimento brilhante em outro estado, ele poderá ser remetido de volta à prisão,mas ele manterá os lucros.(…)Um princípio como “Nenhum homem pode beneficiar-se de seus próprios delitos”não pretende (nem mesmo) estabelecer condições que tornem sua aplicaçãonecessária. Ao contrário, enuncia uma razão que conduz o argumento emuma certa direção, mas (ainda assim) necessita de uma decisão particular.Se um homem recebeu ou está na iminência de receber alguma coisa comoresultado direto de um ato ilícito que tenha praticado para obtê-la, então essa éuma razão que o direito levará em consideração ao decidir se ele deve mantê-la.Pode haver outros princípios ou outras políticas que argumentem em outra direção– por exemplo, uma política que garanta o reconhecimento da validade deescrituras ou um princípio que limite a punição ao que foi estimulado pelo PoderLegislativo. Se assim for, nosso princípio pode não prevalecer, mas isso nãosignifica que não se trate de um princípio de nosso sistema jurídico, pois em outrocaso, quando essas considerações em contrário estiverem ausentes ou tiveremmenor força, o princípio poderá ser decisivo. Tudo o que pretendemos dizer, aoafirmarmos que um princípio particular é um princípio do nosso direito, éque ele, se for relevante, deve ser levado em conta pelas autoridadespúblicas, como uma razão que inclina numa ou outra direção. (DWORKIN,2002, pp. 41/42 - grifei)

A importância que Dworkin dá à distinção entre regras e princípios, pode-se dizer,

talvez esteja relacionada a sua ambição de legitimar o princípio como “uma razão que

inclina numa ou outra direção”. Observe-se que Dworkin não parece negar a existência de

uma subjetividade do julgador, mas afirma peremptoriamente que o princípio (que

“enuncia uma razão que conduz o argumento em uma certa direção”) “deve ser levado

em conta pelas autoridades públicas”.

Ou seja, ele acredita que princípios podem efetivamente constranger decisões

judiciais “numa ou outra direção” e, nesse sentido, possui visão bastante parecida com

grande parte da doutrina brasileira sobre a questão, inclusive, por exemplo, com a visão

de Arnaldo Süssekind, para quem “Princípios são enunciados genéricos, explicitados ou

deduzidos do ordenamento jurídico pertinente, destinados a iluminar tanto o legislador, ao

elaborar as leis dos respectivos sistemas, como o intérprete, ao aplicar as normas ou

sanar omissões” (SUSSEKIND, 1999, p. 56 – grifei).

Para Dworkin, portanto, o juiz não tem (ou não deveria ter) o “'poder discricionário'

para decidir o caso de uma maneira ou de outra” (DWORKIN, 2002, p. 127). Para ele a

decisão em um caso difícil “é uma decisão sobre que direitos as partes efetivamente

têm”(DWORKIN, 2002, p. 164 - grifei). Sendo assim, “as razões que a autoridade oferece

para seu juízo devem ser do tipo que justifica o reconhecimento ou a negação de um

direito” (DWORKIN, 2002, p. 163).

E observe-se, ainda, que ele sequer descarta o caráter generalizante, algo vazio

de conteúdo, do princípio: “Um princípio (...) não pretende (nem mesmo) estabelecer

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Page 44: Embriaguez, Trabalho e o Uso Judicial da Noção de Dignidade Humana - Raquel Veras Franco

condições que tornem sua aplicação necessária”. No entanto, tal “padrão” “deve ser

levado em conta”.

Essa (a normatização dos princípios) é uma das respostas do

neoconstitucionalismo ao constrangimento moral cada vez maior que vem sofrendo o

Direito, desde que se fortaleceu a ideia de dignidade humana e de direitos humanos. O

que ocasionou, como observa Habermas, uma “tensão entre direitos humanos

universais e direitos civis particulares” (HABERMAS, 2010, p. 478) e mesmo

colisões de direitos humanos entre si (até porque “as Constituições modernas são

documentos dialéticos, que consagram bens jurídicos que se contrapõem” -

BARROSO, p. 14).

Claro que algumas conclusões que se pode retirar de escritos de Richard Posner

e outros, no sentido de que a utilização de princípios, como o da dignidade humana é

muitas vezes incapaz de neutralizar o alto grau de subjetivismo de certas decisões

judiciais, causam perplexidade. Mas é de se perguntar se essa perplexidade deve

ocasionar a desistência da “busca pela integridade” na forma de “raciocínio

jurídico” (DWORKIN apud MILES e SUSTEIN, 2007).

Paolo Carozza, neste trabalho já mencionado, embora não negando a

desconfortável ausência de um conteúdo fixo para o princípio da dignidade humana,

afirma que detectou, quando da aplicação da referida noção, uma “incoerência

judicial bem menos aparente em casos envolvendo pena de morte, por exemplo”,

em contraposição ao estudo de McCrudden, aqui também já citado. Ademais, diz ele, “não

é óbvio que a existência de uma intensa controvérsia nas bordas de uma discussão legal

necessariamente prejudique a afirmação do valor e do status de princípios básicos como

o da dignidade humana” (CAROZZO, p. 938).

Aliás, o próprio McCrudden (um dos críticos mais incisivos da noção) afirma que a

ideia de dignidade humana não é insignificante. Apesar de seu “'alto grau de generalidade

e incompletude'”, ela serviu para “'catalisar a ação política em defesa dos direitos

humanos e seu reconhecimento na lei positivada'”. Esses direitos, por sua vez, são

“'vastamente aceitos e empregados por juízes na interpretação da lei'” e são

“'suficientemente robustos em substância para desafiar a legitimidade de um vasto

contingente de sistemas políticos e econômicos que, em tempos diversos, governaram de

maneira sistematicamente contrária ao bem da pessoa humana'” (McCRUDDEN apud

CAROZZA, 2008, p. 935).

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Por fim, vale mencionar o que Dworkin escreve sobre a dignidade humana:

Quem quer que professe levar os direitos a sério (…) deve aceitar, nomínimo, uma ou duas ideias importantes. A primeira é a ideia vaga, maspoderosa, da dignidade humana. Essa ideia, associada a Kant, mas defendidapor filósofos de diferentes escolas, pressupõe que existem maneiras de tratar umhomem que são incompatíveis com seu reconhecimento como um membro plenoda comunidade humana, e sustenta que tal tratamento é profundamente injusto.A segunda é a ideia, mais familiar, da igualdade política. Esta pressupõe que osmembros mais frágeis da comunidade política têm direito à mesma consideração eao mesmo respeito que o governo concede a seus membros mais poderosos...Faz sentido dizer que um homem tem um direito fundamental contra ogoverno, no sentido forte, como a liberdade de expressão, se esse direito fornecessário para proteger sua dignidade ou sua posição enquanto detentorda mesma consideração e do mesmo respeito, ou de qualquer outro valorpessoal da mesma importância. É somente nesses termos que essaafirmação tem sentido. (DWORKIN, 2002, pp. 304/305 - grifei)

Aqui vemos, novamente, a ideia de que a noção de dignidade humana dá sentido

a direitos humanos, como o da liberdade de expressão. Aliás, nesse mesmo sentido

consigna Alexandre de Moraes, segundo o qual a dignidade da pessoa humana...

… concede unidade aos direitos e garantias fundamentais, sendo inerente àspersonalidades humanas. Esse fundamento afasta a ideia de predomínio dasconcepções transpessoalistas de Estado e Nação, em detrimento da liberdadeindividual. A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que semanifesta sigularmente na autodeterminação consciente e responsável da própriavida... (MORAES, 2006, p. 16).

Mas é verdade que, a despeito desses argumentos, realistas, positivistas e outros

ainda julgam que uma “leitura moral do Direito” (pelo menos aquela que implique

entender-se a dignidade humana como um princípio normativo) simplesmente não é

fundamental.

De fato, a relação entre moralidade e Direito parece uma dessas questões longe

de um termo que satisfaça realistas e moralistas, que satisfaça desde os que desprezam

a noção de dignidade humana até os que a entendem como fundamental. Se é que uma

conclusão qualquer sobre a matéria será realmente possível um dia.

De todo modo, pensa-se, aqui, que os desconfortos da aplicação judicial do

conceito de dignidade humana são, na maior parte das vezes, suportáveis - se

comparados ao custo humano de se prescindir, totalmente, dessa noção (e da “carga

moral” que ela trouxe para o Direito).

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Page 46: Embriaguez, Trabalho e o Uso Judicial da Noção de Dignidade Humana - Raquel Veras Franco

4. Dignidade, embriaguez habitual e trabalho nas recentes decisões do TST

Viu-se um pouco da discussão em torno do uso judicial do princípio da dignidade

humana, bem como uma parte da problemática que esse uso encerra, sendo pertinente

passar-se, então, à análise da jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho sobre a

questão da embriaguez e trabalho - tentando-se desvelar se e como o princípio da

dignidade humana é utilizado nesses casos.

Já se disse, neste trabalho, que o art. 482, “f”, da Consolidação das Leis do

Trabalho pode ser entendido como parte de um esforço estatal para se conter o

alcoolismo em massa, surgido na esteira do crescimento industrial. Arnaldo Süssekind,

por exemplo, afirma que “em 1943, quando foi aprovada a CLT, os autores do seu

projeto tiveram em mira o alcoolismo” (SÜSSEKIND, 2010, p. 353 - grifei).

A guerra contra o alcoolismo, por sua vez (como já se aventou aqui), pode ser

entendida como um esforço de se disciplinar e adequar comportamentos e hábitos dos

trabalhadores ao mundo do trabalho industrial então nascente; pode ser entendido, enfim,

como resultado do processo que teve como desdobramento a centralidade do trabalho na

vida dos homens ocidentais desde, pelo menos, o século XVIII.

Também afirmou-se, ao longo deste trabalho, que a noção de dignidade humana,

tal como a concebemos hoje, engendrou-se em detrimento da noção de honra. Assim, se

a honra é um valor que se funda no desempenho de certos papéis e no atendimento de

certos deveres (inclusive de autoaperfeiçoamento), sendo relacional (na medida em que

eleva quem a detém acima dos demais) e passível de ser perdida; a dignidade é um valor

inerente a todos os seres humanos (prescindindo, portanto, do exercício de qualquer

dever / papel social), coloca todos os homens em pé de igualdade e é fundamento de

certos direitos, ao invés de deveres.

Salientou-se ainda, neste trabalho, que embora a noção de dignidade humana

prepondere sobre a de honra nos dias de hoje, isso não quer dizer que a noção de honra

tenha desaparecido por completo. Pelo contrário, as exigências de autocontrole e de

disciplina no mundo do trabalho talvez sejam permanências da cultura da honra - não se

devem apenas a fenômenos históricos mais recentes como o fordismo.

Pois bem, o artigo 482, “f”, da Consolidação das Leis do Trabalho, ao afirmar que

a embriaguez habitual ou em serviço é falta grave, traz em seu bojo a noção tradicional de

dignidade humana (honra) e não a noção contemporânea de dignidade. O homem /

trabalhador aí é visto (não se está aqui dizendo que a visão seja errada ou correta) como

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alguém que não pode abandonar-se a excessos (embriaguez habitual), pois corre o risco

de perder seu emprego. Ou seja, do empregado é exigida “a observância de certos

princípios socialmente estipulados”, no caso, o dever de não se entregar a “prazeres

sensuais que não fazem jus à dignidade do homem” (SENSEN, 2010, p. 76).

Nesse sentido (pensa-se aqui), deve-se entender o que Délio Maranhão escreve

a respeito do citado dispositivo:

Embriaguez habitual ou em serviço. Trata-se aqui, a rigor, de duas faltas. Umaimportando violação da obrigação geral de conduta do empregado, refletindo-seno contrato de trabalho (embriaguez habitual); outra, violação da obrigaçãoespecífica de execução do contrato (embriaguez em serviço).(…)… a embriaguez habitual, fora do serviço, nada mais constitui que uma formaespecial de incontinência de conduta. A habitualidade revela o vício, odesregramento. Embora o empregado nenhuma falta haja cometido notrabalho, embora aí compareça, sempre, sem o menor sinal de intoxicação,aquele vício, a que se entrega fora do trabalho, fá-lo perder a confiança doempregador. Não é, portanto, uma 'farra' esporádica, ou o simples hábito debeber, moderadamente, sem perder a compostura, que caracterizam a violaçãoà obrigação geral de conduta do empregado.” (MARANHÃO, 2005, p. 585 - grifei)

O entendimento de Délio Maranhão, exprime, como o próprio dispositivo

Consolidado, o entendimento de que o empregado deve ser capaz de atender certos

deveres de autocontrole e de que possui autonomia para entregar-se ou não ao

vício. Ou seja, tanto o mencionado dispositivo Consolidado quanto as palavras do

doutrinador encerram em si não apenas a noção de honra, como a ideia de

autonomia humana em detrimento da noção contemporânea de dignidade.

De todo modo, a jurisprudência do TST já foi no sentido de se aplicar o art. 482,

“f”, da CLT quando configurada a embriaguez habitual (ainda que configurada, também, a

dependência química). In verbis15:

RECURSO DE REVISTA DA RECLAMADA. JUSTA CAUSA - EMBRIAGUEZ. O alcoolismo, apesar de ser atualmenteconsiderado doença , não pode ser desconsiderado como fator de dispensa porjusta causa, visto que tal conduta está tipificada expressamente no art. 482, letra"f", da CLT, como ensejadora de falta grave. Revista conhecida parcialmente eprovida para julgar improcedente a Reclamatória. (RR - 326795-41.1996.5.06.5555Data de Julgamento: 12/08/1999, Relator Juiz Convocado: Levi Ceregato, 5ªTurma, Data de Publicação: DJ 03/09/1999 - grifei).

JUSTA CAUSA. ALCOOLISMO. O alcoolismo é uma figura típica de falta grave doempregado, ensejadora da justa causa para a rescisão do contrato de trabalho.Mesmo sendo uma doença de conseqüência muito grave para a sociedade é

15 A pesquisa jurisprudencial teve como recorte temporal os anos de 1999 a 2013, em que foramproduzidas cerca de 132 decisões sobre o binômio álcool e trabalho no âmbito do TST. Foramdescartados da presente análise todos os acórdãos que não analisaram o mérito ou que não trataramespecificamente da “embriaguez habitual” (alcoolismo), detendo-se, por exemplo, no tema daembriaguez em serviço ou no tema do ônus probatório acerca da responsabilidade do empregadoquando da configuração de acidentes de trabalho envolvendo abuso esporádico de álcool, etc.

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motivo de rescisão contratual porque a lei assim determina. O alcoolismo é umproblema da alçada do Estado que deve assumir o cidadão doente, e não doempregador que não é obrigado a tolerar o empregado alcoólatra que, pela suacondição, pode estar vulnerável a acidentes de trabalho, problemas de convívio einsatisfatório desempenho de suas funções. Revista conhecida e desprovida. (RR- 524378-14.1998.5.15.5555 Data de Julgamento: 18/08/1999, Relator JuizConvocado: Lucas Kontoyanis, 3ª Turma, Data de Publicação: DJ 17/09/1999 -grifei).

Há ainda acórdãos, nesse sentido, publicados em 2003, 2004 e 2005:

RECURSO DE REVISTA. JUSTA CAUSA. EMBRIAGUEZ. Mesmo revelando adecisão atacada profunda preocupação social, pois caracterizada dependênciaalcóolica, não cabe ao empregador, contra vontade do empregado, encaminhá-loà previdência social, além do quê, embora necessária revisão do dispositivo legal,artigo 482, alínea f da CLT, tal hipótese continua gerar a despedida motivada,hipótese caracterizada nos autos. Recurso de revista conhecido por divergênciajurisprudencial e por violação legal e provido. (ED-E-RR - 586320-51.1999.5.10.5555 Data de Julgamento: 18/12/2002, Relator Juiz Convocado:João Ghisleni Filho, 5ª Turma, Data de Publicação: DJ 14/03/2003 - grifei).

JUSTA CAUSA - EMBRIAGUEZ NO LOCAL DE TRABALHO - O alcoolismo,apesar de ser atualmente considerado doença , está tipificado na CLT comoensejador de falta grave, acarretando a justa causa (ex vi do artigo 482, alínea "f",da CLT). Recurso de Revista conhecido e provido para julgar improcedente aReclamação, invertidos os ônus da sucumbência, isento. (RR - 572919-12.1999.5.09.5555 Data de Julgamento: 06/04/2004, Relator Ministro: CarlosAlberto Reis de Paula, 3ª Turma, Data de Publicação: DJ 07/05/2004 - grifei).

RECURSO DE REVISTA. 1. EMBRIAGUEZ HABITUAL E NO SERVIÇO. JUSTACAUSA. O regional condenou a reclamada à readmissão do reclamante porentender que a embriaguez é doença que deve ser tratada, não a considerandocomo motivo para dispensa por justa causa. Revista conhecida por aparenteviolação legal e divergência jurisprudencial. No mérito, não obstante os judiciososargumentos expendidos nas instâncias ordinárias, entendo que a moléstia queacometeu o reclamante, não obstante possa ser reconhecida como tal , é causade dispensa do empregado por justa causa, a teor do entendimento contido no art.482, “f”, da CLT. Impende ressaltar que não se pode impingir ao empregador aobrigação de manter em seu quadro empregado que nitidamente não temcondições de exercer suas atividades, colocando em risco não só a sua vida mastambém a de seus companheiros de trabalho e da população em geral. Ajustificativa para manutenção do vínculo, malgrado louvável, não encontra eco nalegislação trabalhista, que prevê, no caso, a possibilidade de rompimento bruscodo liame empregatício. Recurso de revista conhecido e provido. (E-RR - 638368-44.2000.5.21.5555 Data de Julgamento: 20/04/2005, Relator JuizConvocado: Luiz Ronan Neves Koury, 3ª Turma, Data de Publicação: DJ13/05/2005 - grifei).

Em primeiro lugar, insta salientar que esse posicionamento “legalista” visto acima,

mais comum no final dos anos de 1990 ou mesmo nos primeiros anos da década de

2000, parece corroborar as críticas de alguns partidários da abordagem econômica do

Direito no Brasil, que afirmam que o uso da noção de dignidade humana e a

decorrente flexibilização da lei não é resultado direto da edição da Constituição de

1988. Segundo esses críticos, o constituinte não pretendeu que o Direito brasileiro

deixasse suas origens romano-germânicas ou que o juiz flexibilizasse a aplicação de leis

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Page 49: Embriaguez, Trabalho e o Uso Judicial da Noção de Dignidade Humana - Raquel Veras Franco

ou pusesse em cheque o princípio da separação entre poderes. O uso de princípios como

o da dignidade humana, por exemplo, nas decisões do STF, remonta a no máximo 1998,

de modo que a “postura neoconstitucionalista é resultado de um vácuo de poder,

originado da fraqueza do Congresso” (GICO JÚNIOR, 2010).

Outros teóricos, como Luís Roberto Barroso, afirmam que o marco histórico “da

postura neoconstitucionalista” no Brasil é, de fato, a Constituição de 1988 “e o processo

de redemocratização que ela ajudou a protagonizar” (BARROSO, 2006, p. 3). Pode-se

dizer que Barroso talvez esteja correto em sua assertiva, afirmando-se que a fraqueza do

Poder Legislativo, no Brasil como em outros países, não originou a postura

neoconstitucional, nem a preponderância do Poder Judiciário. Talvez a fraqueza do

Legislativo é que tenha sido originada com o fortalecimento do neoconstitucionalismo e

sua pretensão de criar um “Estado Constitucional”.

Há que se ressaltar que Nicola Matteucci percebe fenômeno parecido

(enfraquecimento do Legislativo) quando do surgimento do próprio Constitucionalismo,

durante os séculos XVII - XVIII:

“O princípio da primazia da lei, a afirmação de que todo poder político tem de serlegalmente limitado, é a maior contribuição da Idade Média para a história doConstitucionalismo. Contudo, na Idade Média, ele foi um simples princípio, muitasvezes pouco eficaz, porque faltava um instituto legítimo que controlasse,baseando-se no direito, o exercício do poder político (…). A descoberta e aplicaçãoconcreta desses meios é própria, pelo contrário, do Constitucionalismo moderno:deve-se particularmente aos ingleses, em um século de transição como foi oséculo XVII, quando as Cortes judiciárias proclamaram a superioridade das leisfundamentais sobre as do Parlamento, e aos americanos, em fins do século XVIII,quando inciaram a codificação do direito constitucional (…).(…)Convém ainda determo-nos um pouco em uma nova definição doConstitucionalismo, não muito frequente na nossa literatura política, que se baseiana oposição entre direito e poder, racionalidade e força. Parte de uma claradistinção entre Constituição e Governo. A Constituição, por ser anterior e superiorao Governo, pode limitar seu poder; quando violada, o Governo se tornaanticonstitucional, arbitrário e ilegítimo.(…)Assim, em um sistema político representativo, que realize o princípio do Governolimitado, a função judiciária acabará por adquirir um peso bastante maior noequilíbrio constitucional do que em um sistema baseado na mera separação dospoderes. Voltamos assim ao outro grande tema de Montesquieu, que acompanhao da divisão do poder político entre os Estados do reino: o da independência damagistratura. Esta só poderá ser verdadeiramente efetiva em um Governolimitado; isso porque o primado do direito ou da jurisdictio sobre o poder exigeo robustecimento da função que visa justamente à defesa do mesmo direito.Esta transposição do equilíbrio constitucional do legislativo para o juidiciário, estanova relação entre o poder e o direito indicam certamente uma ruptura com anossa tradição política, uma ruptura que não é ainda plenamente clara para anossa cultura política...” (MATEUCCI, 2000, pp. 255/256)

Ou seja, o fortalecimento do Judiciário havido nos Estados modernos e hoje, nos

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Estados contemporâneos, causa perplexidade, mas parece resultar do próprio processo

de constitucionalização (e neoconstitucionalização) dos mesmos, bem como do “primado

do direito”.

Em segundo lugar, repita-se, nos arestos acima colacionados as decisões

emanadas pelo TST foram em estrita consonância com a lei positivada: configurada

a embriaguez habitual, em todas se concluiu pela dispensa motivada do empregado, com

aplicação do art. 482, “f”, da CLT.

Interessante notar que também em todas já estava evidente o entendimento

do alcoolismo como doença, assim reconhecida pela OMS. No entanto, isso não se

afigurou motivo suficiente, ao menos para aqueles julgadores, para deixar de se

aplicar o citado dispositivo legal. Nesse sentido é que se pensa, aqui, que a mudança

de parâmetros no julgamento dessa questão no âmbito do TST, desde 2001, mas de

forma reiterada apenas a partir de 2006, não se deveu apenas ao reconhecimento

do alcoolismo como moléstia (embora as decisões sempre se reportem a esse fato),

mas também à própria preponderância da ideia de dignidade humana – mesmo que

o princípio muitas vezes só tranpareça nos recentes julgados de forma implícita.

Cabe observar que o entendimento de que um empregado considerado doente

não deve ser meramente 'descartado' (dispensado), mas receber apoio / tratamento

apropriado, inclusive a despeito de dispositivo legal que preceitue que poderia ser

dispensado por justa causa, só pode ter como fundamento implícito a noção de dignidade

humana.

Aliás, poder-se-ia mesmo dizer que o entendimento do alcoolismo como doença –

e não como mera “falha de caráter” - está bastante relacionado ao surgimento da noção

contemporânea de dignidade humana em detrimento da noção de honra (sem se

descartar, por óbvio, os fundamentos físicos/biológicos envolvidos no desencadeamento

dessa síndrome de dependência, que levaram a OMS a assim considerá-la).

De todo modo, cabe afirmar que Arnaldo Süssekind já afirmou, quanto ao art. 482,

“f”, Consolidado, que...

É certo que o trabalhador viciado no álcool ou na droga deve ser considerado umdoente. O ideal é que a lei facultasse, na primeira constatação da falta, asuspensão de contrato de trabalho, com a obrigação do empregado submeter-se adevido tratamento, só autorizando a sua rescisão se persistisse no vício. Mas oque não se pode impor é a presença e serviço de um empregado com redução doseu “estado de consciência, lucidez, alerta ou vigilância”, sobretudo nostransportes e na indústria, capazes de causar acidentes e, em qualquerestabelecimento, de tratar colegas e fregueses de maneira imprópria.(SÜSSEKIND, 2010, p. 354)

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Seguindo esse tipo de entendimento (que sem dúvida insculpe a noção

contemporânea de dignidade humana), começam a surgir decisões do TST, a partir de

200116, no sentido de não se aplicar o artigo 482, “f”, da CLT àqueles casos em que

delineado quadro fático segundo o qual o empregado é alcoolista. In verbis:

ALCOOLISMO. JUSTA CAUSA. Não se pode convalidar como inteiramentejusta a despedida do empregado que havia trabalhado anos na empresa semcometer a menor falta, só pelo fato de ele ter sido acometido pela doença doalcoolismo, ainda mais quando da leitura da decisão regional não se extrai que oautor tenha alguma vez comparecido embriagado no serviço. A matéria deveria sertratada com maior cuidado científico, de modo que as empresas não demitissem oempregado doente, mas sim tentasse recuperá-lo, tendo em vista que para umadoença é necessário tratamento adequado e não punição. (…) Revistaparcialmente conhecida e parcialmente provida.Processo: RR - 383922-16.1997.5.09.5555 Data de Julgamento: 04/04/2001,Relator Ministro: Vantuil Abdala, 2ª Turma, Data de Publicação: DJ 14/05/2001.

Ora, embora não haja uma invocação explícita da noção de dignidade humana,

por certo nessa ementa faz-se presente a ideia de que o empregado, por “ter sido

acometido pela doença do alcoolismo”, não pode ser meramente dispensado. Esse

deve, em resumo, ser recuperado, deve ser tratado como fim em s i, não como meio.

Transparece, aqui, sem dúvida a defesa da noção (contemporânea) de dignidade

humana, seja, aquela que não é perdida mesmo por quem, infelizmente, sucumbe a uma

doença como o alcoolismo (contrariamente à noção tradicional de dignidade ou honra,

vista no excerto de Délio Maranhão).

No mesmo sentido, o seguinte julgado, de 2003:

JUSTA CAUSA. ALCOOLISMO CRÔNICO. ART. 482, 'F', DA CLT.APLICABILIDADE. 1. O alcoolismo crônico é formalmente reconhecido comodoença pelo Código Internacional de Doenças (CID) da Organização Mundial deSaúde - OMS, que o classifica sob o título de "síndrome de dependência do álcool"(referência F- 10.2), o que afasta a aplicação do art. 482, "f", da CLT. 2. Oalcoolismo crônico gera compulsão que impele o alcoolista a consumirdescontroladamente a substância psicoativa e retira-lhe a capacidade dediscernimento sobre seus atos. 3. Por conseguinte, ao invés de motivar a dispensapor justa causa, deve inspirar no Empregador, até por motivos humanitários eporque lhe incumbe responsabilidade social, atitude dirigida ao encaminhamentodo Empregado a instituição médica ou ao INSS, a fim de que se adote solução denatureza previdenciária para o caso. 4. Recurso de revista de que não se conhece.(ED-RR - 561040-40.1999.5.15.5555 Data de Julgamento: 18/06/2003, RedatorMinistro: João Oreste Dalazen, 1ª Turma, Data de Publicação: DJ 29/08/2003).

Do voto mencionado, retira-se o seguinte:

É certo que o artigo 482, alínea “f”, da CLT, como se sabe, estabelece como faltapassível de configurar justa causa para dispensa a embriaguez habitual ou emserviço:

16 Há de se lembrar que o recorte temporal deste pequeno trabalho vai de 1999 a 2013.

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(…)Sucede que, a meu juízo, a hipótese que se delineia nos presentes autos não seamolda à situação descrita pelo aludido dispositivo legal, o que se depreende doquanto assentado pelo Eg. Regional.Infere do v. acórdão recorrido, ao indicar expressamente que a situação era de“típico caso de alcoólatra crônico” (fl. 107), trata-se aqui de “alcoolismo crônico”,catalogado como doença pela Organização Mundial de Saúde – OMS...(…)O alcoolismo constitui, portanto, grave e angustiante problema social. É umachaga social que aflige todos os segmentos da sociedade, todas as classessociais, drama familiar penoso para todos quantos o vivenciam e situação,portanto, em que a parte merece compreensão e tolerância da sociedade e, emparticular, do Empregador, que deveria encaminhá-lo para tratamento médico. Adespedida sumária do obreiro, longe de representar solução, acaba por agravar asituação já aflitiva do alcoolista.Por se tratar de enfermidade, cumpria ao Empregador encaminhar paratratamento médico junto ao INSS, provocando o afastamento desse empregado doserviço e, por conseguinte, a suspensão do contrato de trabalho, e não o rigorexcessivo com que se houve, tomando a decisão de dispensar o Empregado porjusta causa. Penso que há aí certa incompreensão, ou, quando menos, falta decaridade, de magnanimidade para com situação grave, séria e dolorosa, do pontode vista pessoal e social. Convém recordar, no particular, que as empresas têmtambém responsabilidade social decorrente de mandamento constitucional.Cuidando-se, na presente hipótese, de alcoolismo crônico, entendo, em conclusão,que se o Empregador optasse por se desvencilhar do Empregado alcoolista –embora se me afigure uma opção pouco caritativa –, o máximo que poderia fazerseria uma despedida sem justa causa. O reconhecimento da despedida por justacausa, nesta circunstância, em um quadro de um empregado com seis anos deserviço, cuja página funcional se tem por imaculada, parece-me de rigordraconiano, inconcebível e inaceitável, do ponto de vista da justiça social.Reputo, assim, incólume o artigo 482, alínea “f”, da CLT.

Neste caso, o Exmo. Ministro João Oreste Dalazen concluiu que a aplicação do

art. 482, “f”, da CLT não seria possível, pois haveria dissonância entre o fato narrado e o

conceito contido no citado dispositivo. Essa é uma outra maneira de se dizer que a

“embriaguez habitual”, no caso, não é violação da obrigação geral de conduta, mas

doença (síndrome de dependência alcoólica).

De todo modo, como a embriaguez habitual em si certamente se fez presente no

caso concreto, pensa-se que a decisão ainda poderia também ser no sentido de se aplicar

o dispositivo. Não o foi porque, além do magistrado ter concluído que “a hipótese (...) não

se amolda à situação descrita pelo aludido dispositivo legal”, também amparou-se na ideia

de que o alcoolista “merece compreensão e tolerância da sociedade e, em particular, do

Empregador, que deveria encaminhá-lo para tratamento médico”.

Ou seja, novamente percebe-se a noção de que o empregado, doente, não

pode ser simplesmente dispensado, mas deve receber tratamento – o que é outra

maneira de dizer que possui dignidade humana.

Pode-se afirmar que nos arestos abaixo colacionados o mesmo posicionamento é

em geral adotado (não aplicação do art. 482, “f”, da CLT), ainda que no acórdão relativo

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ao AIRR-140240-74.1999.5.04.0022 alerte-se para o direito potestativo do empregador de

dispensar, sem justa causa, o empregado alcoolista (cabe referir que na decisão do RR-

529000-74.2007.5.12.0004 foi reconhecido o direito de empregado alcoolista da ECT,

dispensado por justa causa, à reintegração; o mesmo concluindo-se quanto a empregado

da Fundação da Universidade Federal do Paraná - RR-130400-51.2007.5.09.0012).

Cabe ainda notar que no acórdão relativo ao RR-1957740-59.2003.5.09.0011, já

mencionado, foi deferida indenização por dano moral a família de empregado alcoolista

que se suicidou após ter sido dispensado com base no art. 482, “f”, da CLT.

Em outros julgados (p. ex., AIRR-2412-13.2010.5.15.0000, publicado em

19/11/2010), admitiu-se a possibilidade de aplicação do art. 482, “f”, da CLT, desde que o

empregado tivesse sido submetido a punições mais brandas antes. No E-RR–638368-

44.2000.5.21.5555, julgado pela SBDI-1 e publicado em 14/11/2006, admitiu-se a justa

causa após ter havido “tratamento contra a moléstia, que não obteve sucesso”.

Vale também mencionar o acórdão relativo ao RR-38840-68.2006.5.17.0132, em

que o TST negou indenização por dano moral a família de empregado alcoolista que

faleceu em decorrência da doença (em virtude de cirrose, insuficiência hepática aguda,

insuficiências renal e insuficiência respiratória), porquanto não configurada a culpa da

empregadora que, aliás, “encaminhou o ex-empregado a tratamento específico e à

entrevista no serviço social” (observe-se que no voto do Ministro Walmir Oliveira da Costa,

no RR-1957740-59.2003.5.09.0011, a morte do empregado, por meio de suicídio,

decorreu diretamente da dispensa com justa causa – quadro fático totalmente diverso).

De todo modo, feitos os remarques acima, transcreve-se, aqui, as principais

decisões acerca da questão, prolatadas nos últimos anos pelo TST:

(…) 2. EMBRIAGUEZ - JUSTA CAUSA - VIOLAÇÃO. ALCOOLISMO CRÔNICO. Oregional, com base no conjunto probatório, interpretou de forma razoável o art.482, "f", da CLT, admitindo que em casos como o dos autos em quecomprovadamente há dependência do álcool, considerado como doença pelaOrganização Mundial de Saúde, a dispensa do empregado, embora seja um direitodo empregador, não pode ser motivada. Agravo de instrumento desprovido. (AIRR- 140240-74.1999.5.04.0022 Data de Julgamento: 10/05/2006, Relator JuizConvocado: Luiz Ronan Neves Koury, 3ª Turma, Data de Publicação: DJ02/06/2006).

RECURSO DE REVISTA PATRONAL. ALCOOLISMO. Diante do posicionamentoda OMS, que catalogou o alcoolismo como doença no Código Internacional deDoenças (CID), sob o título de síndrome de dependência do álcool (referência F-10.2), impõe-se a revisão do disciplinamento contido no art. 482, letra "f", da CLT,de modo a impedir a dispensa por justa causa do Trabalhador alcoólatra(embriaguez habitual), mas, tão-somente, levar à suspensão de seu contrato detrabalho, para que possa ser submetido a tratamento médico ou mesmo a suaaposentadoria, por invalidez. Recurso de Revista conhecido em parte edesprovido. (AIRR e RR - 813281-96.2001.5.02.5555 Data de Julgamento:

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23/08/2006, Relator Ministro: José Luciano de Castilho Pereira, 2ª Turma, Data dePublicação: DJ 22/09/2006).

JUSTA CAUSA. ALCOOLISMO. SÚMULA Nº 296, I, DO C. TST. ARESTOSPARADIGMAS INESPECÍFICOS. Os julgados paradigmas apresentados norecurso de embargos não refletem com fidelidade tese oposta àquela revelada nav. decisão embargada que, ao analisar o mérito do recurso de revista, esclareceuque a justa causa por embriaguez somente foi levada a cabo após tratamentocontra a moléstia, que não obteve sucesso. Incidência da Súmula nº 296, I, do C.TST. Embargos não conhecidos. Processo: E-RR - 638368-44.2000.5.21.5555 Data de Julgamento: 14/11/2006,Relator Ministro: Aloysio Corrêa da Veiga, Subseção I Especializada em DissídiosIndividuais, Data de Publicação: DJ 01/12/2006.

RECURSO DE REVISTA. INQUÉRITO PARA APURAÇÃO DE FALTA GRAVE.ALCOOLISMO. JUSTA CAUSA. O alcoolismo crônico, nos dias atuais, éformalmente reconhecido como doença pela Organização Mundial de Saúde -OMS, que o classifica sob o título de "síndrome de dependência do álcool", cujapatologia gera compulsão, impele o alcoolista a consumir descontroladamente asubstância psicoativa e retira-lhe a capacidade de discernimento sobre seus atos.Assim é que se faz necessário, antes de qualquer ato de punição por parte doempregador, que o empregado seja encaminhado ao INSS para tratamento, sendoimperativa, naqueles casos em que o órgão previdenciário detectar airreversibilidade da situação, a adoção das providências necessárias à suaaposentadoria. No caso dos autos, resta incontroversa a condição do obreiro dedependente químico. Por conseguinte, reconhecido o alcoolismo pela OrganizaçãoMundial de Saúde como doença, não há como imputar ao empregado a justacausa como motivo ensejador da ruptura do liame empregatício. Recurso derevista conhecido e provido. (RR - 186400-95.2004.5.03.0092 Data de Julgamento:13/02/2008, Relator Ministro: Lelio Bentes Corrêa, 1ª Turma, Data de Publicação:DJ 28/03/2008).

RECURSO DE REVISTA. EMBRIAGUEZ. A embriaguez habitual ou em serviço sóconstitui justa causa para rescisão do contrato de trabalho pelo empregadorquando o empregado não é portador de doença do alcoolismo, também chamadade síndrome de dependência do álcool. Recurso de revista conhecido edesprovido. (RR - 200040-97.2004.5.19.0003 Data de Julgamento: 02/04/2008,Relator Ministro: Luiz Philippe Vieira de Mello Filho, 1ª Turma, Data de Publicação:DJ 18/04/2008).

ALCOOLISMO. NÃO-CARACTERIZAÇÃO DA JUSTA CAUSA. REINTEGRAÇÃO.Revela-se em consonância com a jurisprudência desta Casa a tese regional nosentido de que o alcoolismo crônico, catalogado no Código Internacional deDoenças (CID) da Organização Mundial de Saúde OMS, sob o título de síndromede dependência do álcool, é doença, e não desvio de conduta justificador darescisão do contrato de trabalho. Registrado no acórdão regional que "restoucomprovado nos autos o estado patológico do autor", que o levou, inclusive, "asuportar tratamento em clínica especializada", não há falar em configuração dahipótese de embriaguez habitual, prevista no art. 482, "f", da CLT, porquanto essaexige a conduta dolosa do reclamante, o que não se verifica na hipótese. Recursode revista não-conhecido, integralmente. Processo: RR - 153000-73.2004.5.15.0022 Data de Julgamento: 21/10/2009, Relatora Ministra: RosaMaria Weber, 3ª Turma, Data de Publicação: DEJT 06/11/2009.

AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO DE REVISTA. ALCOOLISMOCRÔNICO. JUSTA CAUSA. DA VIOLAÇÃO AO ARTIGO 482, F, DA CLT. A decisãodo Regional, quanto ao afastamento da justa causa, não merece reparos,porquanto está em consonância com o entendimento desta Corte Superior,inclusive da SBDI-1, no sentido de que o alcoolismo crônico é visto, atualmente,

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como uma doença, o que requer tratamento e não punição. Incólume o artigo 482,alínea "f", da CLT. Agravo de instrumento conhecido e não provido. Processo:AIRR - 34040-08.2008.5.10.0007 Data de Julgamento: 14/04/2010, RelatoraMinistra: Dora Maria da Costa, 8ª Turma, Data de Publicação: DEJT 16/04/2010.

CONVERSÃO DA JUSTA CAUSA EM DESPEDIDA IMOTIVADA. MATÉRIAFÁTICA. NÃO PROVIMENTO. 1. O simples fato de ser portador de síndrome dedependência de álcool não configura, por si só, justa causa para a dispensa doempregado. Caso concreto que não se amolda à hipótese das alíneas "e", "f" e "h"no artigo 482 da CLT. 2. Assim, para decidir de forma diversa, seria imprescindívela reapreciação do suporte fático, o que é defeso nesta fase processual, ante o quedispõe a Súmula nº 126. 3. Agravo de instrumento a que se nega provimento. Processo: AIRR - 27540-60.2005.5.04.0018 Data de Julgamento: 10/08/2010,Relator Ministro: Guilherme Augusto Caputo Bastos, 2ª Turma, Data dePublicação: DEJT 20/08/2010.

RECURSO DE REVISTA. DECISÃO REGIONAL QUE AFASTOU JUSTA CAUSAPARA A DESPEDIDA DO EMPREGADO, ADOTANDO TESE JURÍDICAALICERÇADA NO RECONHECIMENTO CIENTÍFICO DE QUE O ALCOOLISMOCRÔNICO, DE QUE PADECE O RECLAMANTE, NO CASO DOS AUTOS, ÉDOENÇA QUE RECLAMA TRATAMENTO, NÃO SE CONFUNDINDO COM ODESVIO DE CONDUTA DE QUE TRATA A HIPÓTESE DO ART. 482, LETRA -F-,DA CLT. RECURSO DE REVISTA FUNDADO APENAS EM DIVERGÊNCIAJURISPRUDENCIAL, QUE NÃO ESTÁ DEVIDAMENTE CARACTERIZADA,TORNANDO-SE INVIÁVEL SEU CONHECIMENTO. INCIDÊNCIA DA SÚMULAN.º 296, I, DO TST. Verifica-se que as decisões colacionadas em razões derecurso de revista não se prestam ao conflito de teses, pois inespecíficas, à luz daSúmula n.º 296, I, do TST. Com efeito, nenhum dos paradigmas transcritos pelareclamada (fl. 201) refere-se à hipótese de embriaguez contumaz, em que oobreiro padece de alcoolismo crônico, aspecto fático expressamente consignadono acórdão regional. Logo, considerando que o apelo patronal veio calcadoapenas em divergência jurisprudencial, mostra-se inviável o processamento doapelo, nos termos do que dispõe aludido verbete. Recurso de revista nãoconhecido. Processo: RR - 132900-69.2005.5.15.0020 Data de Julgamento:18/08/2010, Relator Juiz Convocado: Flavio Portinho Sirangelo, 7ª Turma, Data dePublicação: DEJT 27/08/2010.

AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA. JUSTA CAUSA. Aanálise do conjunto probatório feita pelo Regional leva à conclusão de que areclamada agiu acertadamente na aplicação da penalidade máxima imposta aoreclamante, provando inclusive a aplicação das punições mais brandas antes depromover o desligamento do obreiro. Assim, decidir de forma diversa implicaria oreexame de fatos e provas por parte deste Tribunal, o que é vedado nos termos daSúmula nº 126/TST. Agravo de instrumento conhecido e não provido. Processo: AIRR - 2412-13.2010.5.15.0000 Data de Julgamento: 17/11/2010,Relatora Ministra: Dora Maria da Costa, 8ª Turma, Data de Publicação: DEJT19/11/2010.

RECURSO DE REVISTA. DOENÇA GRAVE. ALCOOLISMO. DISPENSAARBITRÁRIA. INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL. 1. Trata-se de hipótese deempregado portador de síndrome de dependência do álcool, catalogada pelaOrganização Mundial de Saúde como doença grave, que impele o portador àcompulsão pelo consumo da substância psicoativa, tornado-a prioritária em suavida em detrimento da capacidade de discernimento em relação aos atoscotidianos a partir de então praticados, cabendo tratamento médico. 2. Nessecontexto, a rescisão do contrato de trabalho por iniciativa da empresa, ainda quesem justa causa, contribuiu para agravar o estado psicológico do adicto,culminando em morte por suicídio. 3. A dispensa imotivada, nessas condições,configura o abuso de direito do empregador que, em situação de debilidade do

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empregado acometido de doença grave, deveria tê-lo submetido a tratamentomédico, suspendendo o contrato de emprego. 4. Desse modo, resta comprovado oevento danoso, ensejando, assim, o pagamento de compensação a título de danoextrapatrimonial ou moral. 5. O dano moral em si não é suscetível de prova, emface da impossibilidade de fazer demonstração, em juízo, da dor, do abalo moral eda angústia sofridos. O dano ocorre in re ipsa, ou seja, o dano moral éconsequência do próprio fato ofensivo, de modo que, comprovado o evento lesivo,tem-se, como consequência lógica, a configuração de dano moral, exsurgindo aobrigação de pagar indenização, nos termos do art. 5º, X, da Constituição Federal.Recurso de revista conhecido e provido. Processo: RR - 1957740-59.2003.5.09.0011 Data de Julgamento: 15/12/2010, Relator Ministro: WalmirOliveira da Costa, 1ª Turma, Data de Publicação: DEJT 04/02/2011.

RECURSO DE REVISTA. DOENÇA OCUPACIONAL. ALCOOLISMO. DANOSMORAIS. INDENIZAÇÃO. R$50.000,00. O Tribunal Regional deu provimento aorecurso ordinário interposto pelos Reclamantes, a fim de condenar a Reclamadaao pagamento de indenização por danos morais, decorrente de acidente detrabalho, no valor de R$ 50.000,00. Entendeu que a omissão da Reclamada aonão encaminhar o ex-empregado a tratamento específico para sua doençaocupacional - alcoolismo - caracteriza a culpa pelo evento danoso, o falecimentodo ex-empregado. Os fatos consignados no acórdão recorrido demonstram aausência de culpa do empregador. O infortúnio decorreu de -insuficiênciarespiratória, insuficiência renal, insuficiência hepática aguda e cirrose hepática,conforme certidão de óbito de fls. 21-, e não da conduta do empregador. Nãoconsta do julgado nenhum indício de que a Reclamada agiu com a intenção deprovocar o evento que vitimou o de cujus ou de que descumpriu as obrigaçõeslegais relativas à saúde ocupacional, nem de que se absteve do dever geral decautela. Ao contrário, consta que a Reclamada encaminhou o ex-empregado atratamento específico e à entrevista no serviço social, descaracterizando aomissão. Recurso de revista conhecido e provido, para afastar a condenação daReclamada ao pagamento de indenização por danos morais e julgarimprocedentes os pedidos formulados pelos Autores. Processo: RR - 38840-68.2006.5.17.0132 Data de Julgamento: 15/12/2010,Relator Ministro: Fernando Eizo Ono, 4ª Turma, Data de Publicação: DEJT04/02/2011.

RECURSO DE REVISTA. JUSTA CAUSA. ALCOOLISMO CRÔNICO.REINTEGRAÇÃO. A OMS formalmente reconhece o alcoolismo crônico comodoença no Código Internacional de Doenças (CID). Diante de tal premissa, ajurisprudência desta C. Corte firmou-se no sentido de admitir o alcoolismo comopatologia, fazendo-se necessário, antes de qualquer ato de punição por parte doempregador, que o empregado seja encaminhado para tratamento médico, demodo a reabilitá-lo. A própria Constituição da República prima pela proteção àsaúde, além de adotar, como fundamentos, a dignidade da pessoa humana eos valores sociais do trabalho (arts. 6º e 1º, incisos III e IV). Repudia-se ato doempregador que adota a dispensa por justa causa como punição sumária aotrabalhador. Precedentes. Recurso de revista não conhecido. (…). INDENIZAÇÃOPOR DANOS MORAIS. ACIDENTE DE TRABALHO. INTOXICAÇÃO AGUDA. A v.decisão foi proferida com base no conjunto fático-probatório e na legislaçãopertinente à matéria, no sentido de deferir o pagamento de indenização por danosmorais, porque comprovados o nexo causal, o dano e a culpa do empregador.Qualquer posicionamento diverso levaria ao reexame de matéria fática, incabívelna atual fase processual, a teor do disposto na Súmula nº 126 do C. TST. Recursode revista não conhecido.Processo: RR - 130400-51.2007.5.09.0012 Data de Julgamento: 16/02/2011,Relator Ministro: Aloysio Corrêa da Veiga, 6ª Turma, Data de Publicação: DEJT25/02/2011.

ECT. DISPENSA. MOTIVAÇÃO. ESTABILIDADE. ALCOOLISMO.REINTEGRAÇÃO. 1. -A validade do ato de despedida de empregado da Empresa

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Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT) está condicionada à motivação, porgozar a empresa do mesmo tratamento destinado à Fazenda Pública em relação àimunidade tributária e à execução por precatório, além das prerrogativas de foro,prazos e custas processuais- (OJ 247, II, da SDI-I do TST). 2. O alcoolismocrônico, catalogado no Código Internacional de Doenças (CID) da OrganizaçãoMundial de Saúde OMS, sob o título de síndrome de dependência do álcool, édoença, e não desvio de conduta justificador da rescisão do contrato de trabalho.3. Ainda que o alcoolismo, no caso em apreço, não decorra necessariamente docontrato de trabalho, não se vislumbra contrariedade à Súmula 378, II, do TST,porquanto não afastada a ilegalidade da dispensa do reclamante. Incólumes osarts. 1º, III, e 37, caput, da Constituição da República. Recurso de revistaintegralmente não conhecido. (RR - 72700-92.2007.5.17.0013 Data deJulgamento: 23/03/2011, Relatora Ministra: Rosa Maria Weber, 3ª Turma, Data dePublicação: DEJT 01/04/2011).

RECURSO DE REVISTA. FALTA GRAVE. ALCOOLISMO. JUSTA CAUSA. 1. Oalcoolismo crônico, nos dias atuais, é formalmente reconhecido como doença pelaOrganização Mundial de Saúde - OMS, que o classifica sob o título de -síndromede dependência do álcool-, cuja patologia gera compulsão, impele o alcoolista aconsumir descontroladamente a substância psicoativa e retira-lhe a capacidade dediscernimento sobre seus atos. 2. Assim é que se faz necessário, antes dequalquer ato de punição por parte do empregador, que o empregado sejaencaminhado ao INSS para tratamento, sendo imperativa, naqueles casos em queo órgão previdenciário detectar a irreversibilidade da situação, a adoção dasprovidências necessárias à sua aposentadoria. 3. No caso dos autos, restaincontroversa a condição da dependência da bebida alcoólica pelo reclamante.Nesse contexto, considerado o alcoolismo, pela Organização Mundial deSaúde, uma doença, e adotando a Constituição da República comoprincípios fundamentais a dignidade da pessoa humana e os valores sociaisdo trabalho, além de objetivar o bem de todos, primando pela proteção àsaúde (artigos 1º, III e IV, 170, 3º, IV, 6º), não há imputar ao empregado a justacausa como motivo ensejador da ruptura do liame empregatício. 4. Recurso derevista não conhecido. (RR - 152900-21.2004.5.15.0022 Data de Julgamento:11/05/2011, Relator Ministro: Lelio Bentes Corrêa, 1ª Turma, Data de Publicação:DEJT 20/05/2011).

AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO DE REVISTA. 1. PRESCRIÇÃO. ORegional não examinou a questão pelo enfoque da data em que configurada aincapacidade do reclamante, mas por incidência da Súmula nº 422 do TST, motivopelo qual a pretensão encontra óbice na Súmula nº 297 do TST. 2. NULIDADE.JUSTA CAUSA. ALCOOLISMO. A decisão do Regional, quanto ao afastamento dajusta causa, não merece reparos, porquanto está em consonância com oentendimento desta Corte Superior, inclusive da SBDI-1, no sentido de que oalcoolismo crônico é visto, atualmente, como uma doença, o que requertratamento, e não punição. Incólume a Súmula nº 32 do TST. 3. DANO MORAL.CONFIGURAÇÃO. Presentes os requisitos para a configuração do dano moral, odever de indenizar não está atrelado necessariamente à comprovação do abalomoral sofrido, pois trata-se de dano in re ipsa, ou seja, pela mera ocorrência doevento descrito. 4. VALOR ARBITRADO À CONDENAÇÃO. O fato de oreclamante ficar impossibilitado de auferir salários, receber tratamento médico edemais vantagens advindas do contrato de trabalho, sopesado à prevenção defutura negligência do empregador, sem que isso viesse a representarenriquecimento sem causa do reclamante, demonstra a utilização de parâmetrosrazoáveis e proporcionais na fixação do valor da condenação. Ileso o art. 944,parágrafo único, do CC. Agravo de instrumento conhecido e não provido.(AIRR - 3082-89.2010.5.10.0000 Data de Julgamento: 08/06/2011, RelatoraMinistra: Dora Maria da Costa, 8ª Turma, Data de Publicação: DEJT 10/06/2011).

AGRAVO DE INSTRUMENTO. DISPENSA POR JUSTA CAUSA. ALCOOLISMOCRÔNICO. CLASSIFICAÇÃO COMO DOENÇA DENOMINADA SÍNDROME DE

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DEPENDÊNCIA DO ÁLCOOL PELA ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE -OMS (CID-10, REFERÊNCIA F-10.2). ART. 482, F, DA CLT. REINTEGRAÇÃO.Confirmada a ordem de obstaculização do recurso de revista, na medida em quenão demonstrada a satisfação dos requisitos de admissibilidade, insculpidos noartigo 896 da CLT. Agravo de instrumento não provido. Processo: AIRR - 397-79.2010.5.10.0010 Data de Julgamento: 14/11/2012, Relator Ministro: AugustoCésar Leite de Carvalho, 6ª Turma, Data de Publicação: DEJT 23/11/2012.

RECURSO DE REVISTA. ALCOOLISMO. DOENÇA CRÔNICA. DISPENSA PORJUSTA CAUSA. IMPOSSIBILIDADE. DIREITO À REINTEGRAÇÃO. De acordocom o Tribunal Regional, o reclamante é dependente químico, apresentandoquadro que associa alcoolismo crônico com o uso de maconha e crack. Ajurisprudência desta Corte tem se orientado no sentido de que o alcoolismocrônico, catalogado no Código Internacional de Doenças (CID) da OrganizaçãoMundial de Saúde OMS, sob o título de síndrome de dependência do álcool, édoença que compromete as funções cognitivas do indivíduo, e não desvio deconduta justificador da rescisão do contrato de trabalho. Assim, tem-se comoinjustificada a dispensa do reclamante, porquanto acometido de doença grave.Recurso de revista conhecido e provido. Processo: RR - 529000-74.2007.5.12.0004 Data de Julgamento: 05/06/2013, Relatora Ministra: DelaídeMiranda Arantes, 7ª Turma, Data de Publicação: DEJT 07/06/2013.

Importante observar, novamente, que o entendimento de que um empregado

considerado doente não deve ser meramente 'descartado', mas receber apoio /

tratamento apropriado, tem como fundamento implícito (e por vezes explícito, como

se viu acima) o princípio da dignidade humana.

Cabe referir, mais uma vez, que esse entendimento do TST colide com o contido

no art. 482, “f”, da CLT, segundo o qual:

Art. 482 - Constituem justa causa para rescisão do contrato de trabalho peloempregador:

(…)f) embriaguez habitual ou em serviço;

Luís Roberto Barroso afirma que uma das características do

neoconstitucionalismo é a “interpretação conforme a Constituição”, que pode envolver “(i)

uma singela determinação de sentido da norma, (ii) sua não incidência a uma

determinada situação de fato ou (iii) a exclusão, por inconstitucional, de uma das normas

que podem ser extraídas do texto”. Em qualquer dos casos, “não há declaração de

inconstitucionalidade do enunciado normativo, permanecendo a norma no ordenamento”,

reconciliando-se, assim, “o princípio da supremacia da Constituição e o princípio da

presunção de constitucionalidade” (BARROSO, 2006, p. 30).

Nos arestos produzidos pelo TST, pode-se dizer que houve interpretação,

conforme a Constituição, do art. 482, “f”, da CLT, que culminou em sua não incidência

a uma determinada situação de fato. Pode-se dizer, ainda, que essa interpretação foi

ensejada, sem dúvida, pelo entendimento de que o alcoolismo é uma doença, mas

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Page 59: Embriaguez, Trabalho e o Uso Judicial da Noção de Dignidade Humana - Raquel Veras Franco

também inspirada nos princípios da dignidade humana, valor social do trabalho,

proteção à saúde, etc.(repita-se que o TST também já produziu decisões no sentido

de se aplicar o dispositivo Consolidado, mesmo partindo-se da constatação de que

o alcoolismo é uma doença, pelo que a mudança de posicionamento de sua

jurisprudência, acredita-se aqui, deve-se mais ao fortalecimento do

neoconstitucionalismo e da própria ideia de dignidade humana no Direito

brasileiro).

De todo modo, esse tipo de interpretação é criticada por partidários da análise

econômica do direito, segundo os quais a postura neoconstitucionalista ocasiona “a

flexibilização da lei e sua compatibilização com princípios de conteúdo indeterminado”

(GICO JR apud PAPP, p. 10).

Já se discutiu, neste pequeno trabalho, a problemática da aplicação de princípios

como o da dignidade humana, quanto mais em detrimento de textos legais vigentes. Já se

debateu a possibilidade de que o uso de noções vagas como a de dignidade humana

podem tanto ser fruto de uma inclinação pessoal / emotiva do julgador, como pode estar

relacionada a uma tentativa de solução racional para casos desafiados por questões

morais – como é o caso da dispensa com justa causa de empregado que

desenvolve o alcoolismo e, portanto, encontra-se enfermo.

De fato, desde que a embriaguez habitual perdeu o status de mero desvio de

conduta, sendo considerada uma doença, a aplicação do art. 482, “f”, da CLT só poderia

dar-se mediante ofensa ao princípio da dignidade nos casos em que a doença resta

configurada. Talvez essa conclusão não seja de todo 'voluntariosa': a inspiração em

princípios como o da dignidade está, afinal, prevista em nosso ordenamento jurídico (art.

4º da LIDB). Ademais, o princípio, repita-se, definido como o tipo de padrão que formula

uma “exigência da justiça ou equidade ou alguma outra dimensão da moralidade”, que

“enuncia uma razão que conduz o argumento em uma certa direção”, “deve ser levado

em conta pelas autoridades públicas” (DWORKIN, 2002) em um Estado Constitucional.

E, ao menos quanto ao tema do alcoolismo e trabalho aqui analisado, o princípio,

em detrimento da norma, vem sendo aplicado com propriedade pelo TST, já que não

implicou a criação de um novo direito, mas apenas invalidou a incidência do art. 482, “f”,

da CLT a uma situação de fato (configuração do alcoolismo), sob o risco de ofensa à

Constituição.

Observe-se que exageros do tipo condenar o empregador a pagar indenização

por dano moral à família do empregado alcoolista em razão de sua morte, relacionada às

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complicações da doença, ainda mais quando caracterizado o comportamento benigno da

empresa para com o empregado, não foram cometidos.

Ademais, poder-se-ia até afirmar que o posicionamento do TST está inclusive

de acordo com a noção de eficiência de Kaldor – Hicks, ao menos em alguns casos,

como o do RR-383922-16.1997.5.09.555, em que a empresa não pôde dispensar

empregado que, afinal, havia trabalhado para ela por anos “sem cometer a menor falta”.

Ressalte-se que segundo o critério de Kaldor – Hicks, o “ganhador deve ganhar mais do

que o perdedor perde”, de modo a, teoricamente, compensar o último (MICELI, 2009); ou

melhor, “o bem-estar dos ganhadores” deve crescer “em um montante tal que seja

possível, ao menos em tese, a compensação da redução do bem-estar dos perdedores”

(NIED, Paulo Sérgio).

Embora a empresa 'perca' na medida em que fica obrigada a manter o contrato,

este ao menos fica suspenso, as obrigações mútuas tornam-se inexigíveis, não se

produzindo recolhimentos vinculados a ele. O alcoolista, por sua vez, ganha a

manutenção do emprego, encaminhamento ao INSS, percepção de auxílio-doença e

possibilidade de se tratar e recuperar-se (ou aposentar-se). Nos casos em que se

recupera e retorna ao serviço (sobretudo se é o tipo do funcionário exemplar ou altamente

qualificado), a compensação para a empresa deixa de ser teórica, pois há quem afirme

que a recuperação de um empregado alcoolista pode ser menos custosa do que a sua

dispensa seguida da contratação e treinamento de um substituto. Ademais, o empregado

que teve o apoio da empresa no enfrentamento da doença provavelmente será leal a

ela17.

De todo modo, é certo que nem sempre as decisões do Judiciário Trabalhista

acerca do binômio alcoolismo e trabalho serão (ou deveriam ser) compatíveis com algum

critério de eficiência como o de Kaldor – Hicks. Essa é uma das razões pela qual esse tipo

de decisão sempre gerará algum tipo de desconforto, como já se disse aqui. Desconforto

17 Cf. “Managing alcohol problems in the workplace: treatment works” (JOSS, Bray): “Supporting an employeethrough to recovery is likely to result in a more loyal and more committed employee who is an asset to theorganisation”. Disponível em http://www.hrmagazine.co.uk/hro/features/1075213/managing-alcohol-workplace-treatment#sthash.5BJiDP6B.dpuf. Também: “Since more than 7 percent of full-time 18 to 49-year-old workers haddrinking problems during the past year, treating alcohol problems can curb health care costs and boost productivity” - Asound investment: identifying and treating alcohol problems (HARWOOD, Henrick, p. 10). Disponível emhttp://www.integration.samhsa.gov/clinical-practice/sbirt/A_sound_investment.pdf. Ademais, cabe acrescentar, quantoao tratamento do alcoolismo, que “Dados mostram que a perspectiva de recuperação dentro da empresa é de 65 a 70%,enquanto centros de tratamento apresentam índices de abstinência de 30 a 35%” (MORAES, Gláucia T. Bardi ePILATTI, Luiz Alberto. Alcoolismo e as organizações: por que investir em programas de prevenção recuperaçãode dependentes químicos). Disponível em: http://editora.unoesc.edu.br/index.php/achs/article/viewFile/91/pdf_68.

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que parece ser comum desde que o Direito passou a ser desafiado moralmente pela

noção contemporânea de dignidade humana.

Considerações Finais

Durante a elaboração deste trabalho verificou-se que a noção contemporânea de

dignidade humana, segundo a qual todo homem possui valor intrínseco que é fundamento

de certos direitos, nem sempre existiu. Ela se engendrou em detrimento da noção de

honra (ou noção tradicional de dignidade), segundo a qual o valor de um homem está no

cumprimento de certas obrigações e/ou papéis socialmente estabelecidos (sendo a honra,

portanto, fundamento não de direitos, mas de deveres de autoaperfeiçoamento).

Concluiu-se, ainda, que a noção contemporânea de dignidade (a ideia de que todo

homem possui valor em virtude de sua própria humanidade, valor que prescinde do

desempenho de qualquer papel social), colocou os homens em pé de igualdade e

configurou-se, desde o século XVIII, em um elemento que desafia moralmente o Direito,

dando também aos direitos humanos sua “carga moral”.

No entanto, ou por isso mesmo, o uso judicial da noção de dignidade humana não

é pacífico e mesmo fácil. A despeito do seu caráter universal em abstrato, essa

concepção, por ser vazia de conteúdo, gera desconfortos quando de sua aplicação

judicial ao caso concreto – situação em que ela pode ser invocada pelas partes para

fundamentar a defesa de direitos inclusive contraditórios. Dessa maneira, sua aplicação,

por vezes, parece mais apoiar-se em algum critério de justiça quase subjetivo do julgador.

Alguns doutrinadores, como Richard Posner, vêm princípios como o da dignidade

humana com ceticismo e não acreditam que seu emprego judicial possa se dar de

maneira racional. O julgador, quando o utiliza, quase sempre está, na verdade, sendo

guiado por certos sentimentos ou até mesmo inconscientes crenças religiosas.

Outros estudiosos, da corrente neoconstitucionalista (e neste trabalho entendeu-se

o Neoconstitucionalismo também como uma tentativa de resposta do Direito ao desafio

moral trazido pela noção contemporânea de dignidade humana), acreditam que é possível

a resolução racional de casos difíceis, justamente com o emprego / ponderação de

princípios como o da dignidade humana. Ronald Dworkin afirma mesmo que o juiz não

tem (ou não deveria ter) o 'poder discricionário' para decidir o caso de uma maneira ou de

outra - ele é (ou deve ser) constrangido, se não pelas regras, pelo princípio, que é “uma

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razão” que o “inclina numa ou outra direção”.

Quanto ao tema da embriaguez habitual como justa causa para a cessação do

contrato de trabalho, viu-se que, desde que a OMS entendeu que o alcoolismo é uma

doença (síndrome de dependência do álcool), o tema tornou-se uma espécie de “caso

difícil”, pois a embriaguez habitual, ao menos quando configurada a dependência, deixou

de ser mera violação da obrigação geral de conduta do empregado e passou a ser

doença – ficando, portanto, questionável a aplicação do art. 482, “f”, da CLT.

Não obstante, verificou-se que inúmeros julgados anteriores e mesmo posteriores a

2001 continuaram aplicando o citado dispositivo Consolidado, ainda que fazendo

referência à decisão da OMS, pelo que o fortalecimento da jurisprudência no sentido de

não aplicá-lo, a partir de 2001 e, mais consistentemente, a partir de 2006, talvez encontre

resposta em um fortalecimento do neoconstitucionalismo e da própria noção de dignidade

humana no Direito brasileiro na última década.

De todo modo, a decisão do TST, no sentido de não aplicar o art. 482, “f”, da CLT,

encerra em si a noção contemporânea de dignidade humana (em contraposição à noção

tradicional de dignidade humana, expressada no referido dispositivo e nas palavras de

doutrinadores como Délio Maranhão); é uma tentativa de resposta para um caso que

envolve uma questão eminentemente moral (a validade da dispensa por justa causa de

empregado que passou a ser considerado enfermo é uma questão moral); envolveu a

flexibilização da lei, mas mediante a interpretação, conforme a Constituição, do art. 482,

“f”, da CLT (que culminou em sua não incidência a uma determinada situação de fato).

Poder-se-ia afirmar que além de estar conforme a Constituição, o posicionamento

do TST pode estar de acordo também, ao menos em algumas decisões, com o critério de

eficiência de Kaldor – Hicks, segundo o qual o “ganhador deve ganhar mais do que o

perdedor perde”, de modo a, teoricamente, compensar o último (MICELI, 2009). É que

embora a empresa 'perca', na medida em que fica obrigada a manter o contrato, o

empregado, por sua vez, ganha a manutenção do emprego, encaminhamento ao INSS,

percepção de auxílio-doença e possibilidade de se tratar e recuperar-se (ou aposentar-

se). Nos casos em que se recupera e retorna ao serviço (sobretudo se é o tipo do

funcionário exemplar ou altamente qualificado), a compensação para a empresa deixa de

ser teórica, pois há quem afirme que a recuperação de um empregado alcoolista pode ser

menos custosa do que a sua dispensa seguida da contratação e treinamento de um

substituto. Ademais, o empregado que teve o apoio da empresa no enfrentamento da

doença provavelmente será leal a ela.

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De todo modo, embora gere algum desconforto o uso judicial de um princípio

como o da dignidade humana (ainda mais em detrimento da lei positiva), observou-se que

esse foi aplicado com propriedade pelo TST, já que não implicou a criação de um novo

direito, mas apenas invalidou a incidência do art. 482, “f”, da CLT a uma situação de fato

(configuração do alcoolismo).

Assim, o posicionamento do TST quanto à não incidência do art. 482, “f”, da CLT no

caso de empregado alcoólatra (embora vá ser sempre passível de críticas, sobretudo para

quem vê com ceticismo tanto a noção de dignidade humana, quanto a pretensão de se

fazer uma “leitura moral” do Direito) acabou por expressar, como diria Habermas, a “fusão

explosiva entre conteúdos morais e a lei, como um meio no qual a construção de ordens

políticas justas deve ser realizada” (HABERMAS, 2010, p. 479).

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