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1511 Revista de Divulgação Científica em Língua Portuguesa, Linguística e Literatura Ano 16 - n.25 – 1º semestre– 2020 – ISSN 1807-5193 ELABORAÇÃO E ANÁLISE DE ATIVIDADES DE INGLÊS: REPENSANDO O CONCEITO DE “CULTURA” Mariana Nunes Monteiro Doutoranda no Programa Interdisciplinar de Linguística Aplicada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) – Rio de Janeiro, RJ, Brasil. RESUMO: O momento atual é marcado por uma série de processos complexos agrupados, geralmente, sob a denominação de contemporaneidade. Dentre esses processos, é relevante para este artigo, destacar as hibridizações linguístico-culturais cada vez mais latentes devido à globalização. Quando o assunto é ensino de inglês, faz-se necessário elaborar materiais que contemplem as culturas dos educandos, ao invés de só reforçarem as culturas dos ditos falantes nativos como sendo um padrão a ser imitado. Pensando sobre essas questões, este artigo se volta para a elaboração e análise de atividades de inglês, destinadas a alunos do 8º ano do Ensino Fundamental II, que visam a desconstruir esse ideal do falante nativo e suas culturas, fazendo com que o aluno valorize suas culturas e os usos criativos que faz da língua inglesa. Essas atividades foram pensadas e analisadas a partir, principalmente, dos macrocritérios para a análise de livros didáticos cunhados por Tilio (2016). Os processos de elaboração e análise apontam para a possibilidade e necessidade de se elaborar materiais de inglês que valorizem as performances linguísticas e culturais dos educandos. Para tanto, o conceito de cultura é discutido e problematizado, à luz das teorias de Duranti (1997). PALAVRAS-CHAVE: cultura. Falante nativo. Materiais de inglês. ABSTRACT: The current moment is marked by a series of complex processes usually grouped under the name of contemporaneity. Among these processes, it is relevant for this article to highlight linguistic-cultural hybridizations which are becoming increasingly latente due to globalization. When it comes to teaching English, it is necessary to develop materials that contemplate learners’ cultures, instead of reinforcing native speakers’ cultures as standards to be followed. Thinking about these issues, this article aims at elaborating and analysing English activities, developed for 8th graders. These activities focus on deconstructing the ideal of the native speaker and their cultures and making students value their own cultures and the creative uses they make of the English language. They were mainly elaborated and analyzed based on the macrocriteria for analysis of coursebooks coined by Tilio (2016). The elaboration and analysis processes point to the possibility and necessity of elaborating English materials that value students' linguistic and cultural performances. Therefore, the concept of culture is discussed and problematized, in the light of Duranti's (1997) theories. Keywords: culture. Native speaker. English materials.

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Revista de Divulgação Científica em Língua Portuguesa, Linguística e Literatura

Ano 16 - n.25 – 1º semestre– 2020 – ISSN 1807-5193

ELABORAÇÃO E ANÁLISE DE ATIVIDADES DE INGLÊS:

REPENSANDO O CONCEITO DE “CULTURA”

Mariana Nunes Monteiro

Doutoranda no Programa Interdisciplinar de Linguística

Aplicada da Universidade Federal do Rio de Janeiro

(UFRJ) – Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

RESUMO: O momento atual é marcado por uma série de processos complexos

agrupados, geralmente, sob a denominação de contemporaneidade. Dentre

esses processos, é relevante para este artigo, destacar as hibridizações

linguístico-culturais cada vez mais latentes devido à globalização. Quando o

assunto é ensino de inglês, faz-se necessário elaborar materiais que

contemplem as culturas dos educandos, ao invés de só reforçarem as culturas

dos ditos falantes nativos como sendo um padrão a ser imitado. Pensando sobre

essas questões, este artigo se volta para a elaboração e análise de atividades de

inglês, destinadas a alunos do 8º ano do Ensino Fundamental II, que visam a

desconstruir esse ideal do falante nativo e suas culturas, fazendo com que o

aluno valorize suas culturas e os usos criativos que faz da língua inglesa. Essas

atividades foram pensadas e analisadas a partir, principalmente, dos

macrocritérios para a análise de livros didáticos cunhados por Tilio (2016). Os

processos de elaboração e análise apontam para a possibilidade e necessidade

de se elaborar materiais de inglês que valorizem as performances linguísticas e

culturais dos educandos. Para tanto, o conceito de cultura é discutido e

problematizado, à luz das teorias de Duranti (1997).

PALAVRAS-CHAVE: cultura. Falante nativo. Materiais de inglês.

ABSTRACT: The current moment is marked by a series of complex processes

usually grouped under the name of contemporaneity. Among these processes,

it is relevant for this article to highlight linguistic-cultural hybridizations which

are becoming increasingly latente due to globalization. When it comes to

teaching English, it is necessary to develop materials that contemplate learners’

cultures, instead of reinforcing native speakers’ cultures as standards to be

followed. Thinking about these issues, this article aims at elaborating and

analysing English activities, developed for 8th graders. These activities focus on deconstructing the ideal of the native speaker and their cultures and making

students value their own cultures and the creative uses they make of the English

language. They were mainly elaborated and analyzed based on the

macrocriteria for analysis of coursebooks coined by Tilio (2016). The

elaboration and analysis processes point to the possibility and necessity of

elaborating English materials that value students' linguistic and cultural

performances. Therefore, the concept of culture is discussed and

problematized, in the light of Duranti's (1997) theories.

Keywords: culture. Native speaker. English materials.

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CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Vivemos em tempo de muitas mudanças e hibridizações de vários tipos: culturais,

sociais, linguístico-discursivas, etc., no qual o global e o local estão imbricados

inextricavelmente. Dentre essas mudanças, é relevante para este estudo destacar a demolição e

estabelecimento de fronteiras não só físicas e geográficas, mas também intelectuais e culturais,

reconhecidos pela nomenclatura globalização (RAMOSE, 2009) ou globalizações (econômica,

política, cultural, religiosa, etc.) (PIETERSE, 1995).

É importante notar que as divergências vão muito além da denominação, pois como

defende Canclini (2007 [2010]), o conteúdo do que cada um imagina como globalização varia

consideravelmente.

Para o gerente de uma empresa transnacional, a “globalização” abrange sobretudo os

países em que sua empresa atua, suas atividades e a concorrência com outras

empresas; para os governantes da América Latina, cujo intercâmbio comercial se

concentra nos Estados Unidos, globalização é quase sinônimo de “americanização”;

no discurso do Mercosul, a palavra inclui também nações europeias e, às vezes, é

associada à novas interações entre os países do Cone Sul. Para uma família mexicana

ou colombiana com vários membros trabalhando nos Estados Unidos, a globalização

remete a estreita ligação com o que ocorre nesse país onde estão seus familiares, bem

diferente do que imaginam artistas americanos ou colombianos, por exemplo, Salma

Hayek ou Carlos Vives, que têm um amplo público no mercado norteamericano

(CANCLINI, 2007 [2010, p. 10]).

Assim, conclui-se que existem múltiplas narrativas sobre o que significa globalizar-se

e é possível organizá-las simbolicamente em dois grandes grupos: narrações épicas e narrações

melodramáticas (CANCLINI, 2007 [2010]), ou ainda, globalização como fábula e globalização

como perversidade (SANTOS, 2000 [2003]), respectivamente. As narrações épicas e a

globalização como fábula giram em torno dos avanços econômicos e da promoção da

uniformidade e da homogeneização, sempre a serviço dos atores hegemônicos, com base na

crença de que todos os países e todos os povos estão sendo incluídos nesse processo. As

narrações melodramáticas e a globalização como perversidade, por outro lado, entendem que a

globalização beneficia setores minoritários e promove uma disputa de todos contra todos, em

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que o desemprego se torna crescente, a pobreza aumenta, fábricas falem e explodem a migração

e os conflitos étnicos e regionais.

Em termos culturais, mais especificamente, a divisão culmina em três escolas de

pensamento: a globalista, a localista e a glocalista (KUMARAVADIVELU, 2006). A primeira

acredita que a cultura norte-americana ocupa o centro dominante e que a globalização cultural

ocorre, portanto, de forma unilateral, partindo desse centro para o restante do mundo. Assim

sendo, os membros dessa primeira escola “veem uma equação simples e direta: globalização =

ocidentalização = norte-americanização = mcdonaldização” (KUMARAVADIVELU, 2006, p.

132).

A segunda escola, por sua vez, defende que está ocorrendo um tipo de heterogeneização

cultural, na qual a cultura e as identidades locais estão sendo fortalecidas, principalmente como

resposta à ameaça representada pela globalização. Ou seja, na medida em que a globalização

contribuiu somente para a contração do espaço, tempo e fronteias, mas não para a expansão da

harmonia comum ou valores compartilhados entre os povos, ela acaba fortalecendo

extremismos, como o fundamentalismo religioso, por exemplo (KUMARAVADIVELU,

2006).

Já a terceira escola defende a hibridização, unindo, de certa forma, os dois polos acima

explorados, por acreditar que a homogeneização e a heterogeneização estão ocorrendo ao

mesmo tempo. Ou seja, “as culturas em contato modelam e remodelam umas às outras direta

ou indiretamente” e essas forças são tão complexas que não podem ser entendidas na

perspectiva limitada de uma dicotomia centro-periferia (ibdem, p. 134).

Quando o assunto é ensino e aprendizagem de línguas envolve, é cada vez mais

necessário, devido aos processos de globalização na contemporaneidade, que a forma como

cultura é trabalhada nas aulas de língua inglesa seja repensada. No caso específico da língua

inglesa, considerada a língua da globalização (RICHARDS, 2003), essa delimitação do

desenvolvimento de uma consciência sociocultural dos aprendizes a apenas algumas culturas

hegemônicas específicas se torna ainda mais passível de problematização, pois a articulação

entre diferentes identidades linguísticas, culturais, globais e locais, desestabiliza, de maneira

mais contundente, a máxima do filósofo Herder: “um povo, uma língua, um território”

(JACQUEMET, 2015, p. 330). Para que se repense a maneira como cultura é trabalhada nas

aulas de inglês, deve-se, primeiramente, repensar o conceito de cultura em si, pois é ele que

norteia o trabalho em sala de aula.

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O CONCEITO DE “CULTURA”

Os questionamentos apresentados ao final da seção anterior corroboram um

entendimento de cultura como algo distinto da natureza, ou seja, como algo que é aprendido

socialmente e transmitido, passado de uma geração para outra, através de ações humanas e,

obviamente, através da linguagem (DURANTI, 1997). Essa é apenas uma das seis teorias de

cultura apresentadas por Duranti em seu texto Theories of culture, de 1997. Assim sendo, faz-

se relevante discutir o conceito de cultura.

O termo “cultura”, derivado de “cultivo”, do campo semântico de “agricultura”,

presumia, no século dezoito, a existência de uma divisão entre educadores e os muitos que

deveriam ser objetos de cultivo (BAUMAN, 2013), ou seja, cultura como sinônimo de

civilização. Nessa perspectiva,

a “cultura” compreendia um acordo planejado e esperado entre os detentores do

conhecimento (ou pelo menos acreditavam nisso) e os ignorantes (ou aqueles assim

descritos pelos audaciosos aspirantes ao papel de educador); um acordo com uma

única assinatura, unilateralmente endossado e efetivado sob a direção exclusiva da

“classe instruída” (BAUMAN, 2013, p. 9).

O inglês, aqui no Brasil, continua sendo percebido sob essa perspectiva de cultura como

high culture, como língua de propriedade dos países do Círculo Interno, carregada de

superioridade cultural, histórica, moral, econômica (JORDÃO, 2004). Por isso, o ensino de

inglês acaba, muitas vezes, operando a partir daquela primeira teoria de cultura apresentada por

Duranti, através da transmissão de fatos e informações sobre a(s) dita(s) cultura(s) “alvo”,

vista(s) como superior(es) (PULVERNESS, 2014). Por conseguinte, o desenvolvimento de uma

consciência intercultural dos educandos fica restrito à aprendizagem de fatos e costumes sobre

determinadas culturas hegemônicas, especialmente, estadunidense e inglesa. Dito de outra

forma, o trabalho que geralmente se faz com cultura nas aulas de inglês se restringe a uma

constatação das diferenças, mas não a um entendimento dos processos socio históricos de

(re)produção e circulação dessas diferenças (TILIO, 2015).

Além da primeira teoria de cultura apresentada por Duranti (1997) e já discutida

anteriormente, o autor menciona mais cinco teorias nas quais a linguagem também tem um

papel particularmente importante. A segunda, por exemplo, pensa cultura como conhecimento

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de mundo. Isso não só significa que membros de uma cultura devem conhecer certos fatos ou

ser capazes de reconhecer objetos, lugares e pessoas, mas também devem compartilhar certos

padrões de pensamento e formas de entender o mundo (DURANTI, 1997).

Já terceira teoria de cultura destacada pelo autor é a teoria semiótica de cultura, cultura

como comunicação, através da qual cultura é entendida como um sistema de signos. Em sua

versão mais básica, essa visão entende cultura como uma representação do mundo, uma maneira

de fazer sentido da realidade através de sua objetificação em estórias, mitos, descrições, teorias,

provérbios, produtos artísticos e performances (DURANTI, 1997).

A quarta teoria, por sua vez, percebe cultura como um sistema de mediação. Segundo

essa teoria, a cultura organiza o uso de ferramentas em atividades específicas como caçar,

cozinhar, construir, lembrar o passado e planejar o futuro. Em cada caso, a habilidade das

pessoas de se apropriar, explorar ou controlar a natureza, ou suas interações com outras pessoas,

vai ser modificada pelo uso de ferramentas (DURANTI, 1997).

A quinta teoria defende cultura como um sistema de práticas, entendendo que o sujeito

pode existir culturalmente e funcionar como agente, participante, em uma série de atividades

habituais que são tanto pressupostas quanto reproduzidas por suas ações individuais

(DURANTI, 1997).

A sexta e última teoria apontada por Duranti apresenta a ideia de cultura como um

sistema de participação. Essa teoria está relacionada ao conceito de cultura como sistema de

práticas e é baseada na ideia de que qualquer ação no mundo, incluindo as práticas linguísticas,

têm uma qualidade inerentemente social, coletiva e participativa. Assim como a quinta teoria

de cultura acima apresentada, a sexta teoria também está em conformidade com o entendimento

de língua(gem) como prática social, uma vez que defende que falar uma língua significa ser

capaz de participar em interações com o mundo (DURANTI, 1997).

Convirjo, então, com as duas últimas teorias de cultura discutidas e defendo que a

ideologia1 cultural de que os ditos falantes nativos de inglês são de culturas superiores que

devem ser aprendidas e imitadas pelos aprendizes de inglês seja repensada, visto que entendo

cultura como um sistema de práticas sociais nas quais o micro e o macro, o contexto situacional

e o socio-histórico se imbricam inextricavelmente. Assim sendo, “a mera exposição de fatos

1 Neste artigo, entendo o termo ideologia como “todo o conjunto dos reflexos e das interpretações da realidade

social e natural que tem lugar no cérebro do homem e se expressa por meio de palavras [...] ou outras formas

sígnicas” (VOLÓCHINOV, 1929 [2017]).

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acerca de outras culturas não faz sentido por si só: é preciso que tais fatos sejam pensados

criticamente e confrontados com os contextos culturais do aprendiz” (TILIO, 2016, p. 231).

Nessa perspectiva, as culturas dos educandos são, na maioria das vezes, completamente

ignoradas nesse processo. Assim sendo, o ideal seria entender as culturas “do outro” e as dos

alunos como fluidas, desessencializadas, desterritorializadas, se entremeando e se mesclando,

antropofagicamente. Sem desconsiderar o caráter violento que envolve tal conceito, aproprio-

me do conceito de antropofagia, presente no Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade

(1972), para pensar cultura e ensino de inglês a partir de um entrelaçamento de culturas globais

e locais de maneira que não haja uma replicação de modelos globais ou uma supervalorização

dos mesmos, mas sim um processo de entrelaçamento inextricável de ambas, não sendo possível

dizer onde termina uma cultura e começa a outra. Esse processo acaba gerando culturas glocais2,

que precisam ser contempladas nos materiais didáticos utilizados em sala de aula.

METODOLOGIA

Assim que ingressei na escola federal3 onde trabalhei como professora substituta de

inglês por dois anos, fui convidada por duas professoras efetivas para participar do seu grupo

de pesquisa, cujo principal objetivo era4 repensar o trabalho realizado com a língua inglesa na

escola, desconstruindo uma visão hegemônica da língua como atrelada única e exclusivamente

a países como Estados Unidos e Inglaterra. Como consequência dessa desconstrução, o projeto

almejava aproximar os educandos da língua estudada, conscientizando-os acerca da sua

capacidade ativa e transformadora em relação ao inglês. Em outras palavras, a ideia era

encorajar os alunos a perceber que eles podem e devem se apropriar da língua inglesa de forma

protagonista, valorizando seus próprios usos, a fim de desestabilizar e, quiçá, desconstruir a

relação de poder assimétrica entre falantes nativos e não nativos.

Algumas manifestações na comunidade escolar que instigaram e encorajaram essas

professoras a começar esse projeto de pesquisa e, consequentemente, a buscar reformular certos

paradigmas que ainda norteavam o trabalho com a língua inglesa na escola foram: a

2 Apropriando-me do termo “glocal”, cunhado por Robertson (1992), opto por pensar o inglês na

contemporaneidade a partir dos Ingleses Glocais e de culturas glocais, cujo traço distintivo são as mestiçagens

linguístico-identitárias forjadas a partir de necessidade contingenciais de comunicação. 3 Escola localizada na Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro.

4 Embora o projeto ainda continue em curso, optei por utilizar o Pretérito Perfeito Simples para fazer referência

ao mesmo durante o período em que fiz parte da equipe.

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representação do setor de inglês no site da escola a partir do uso da imagem da Estátua da

Liberdade; o questionamento de alunos e responsáveis acerca da realização de celebrações

como o Halloween; e a representação do setor em apostilas e envelopes preparados pela direção

ou pela copiadora da escola através do uso da bandeira da Inglaterra ou de fotos de locais

turísticos dos Estados Unidos e/ou Inglaterra. Além dessas justificativas, é possível ressaltar

também questionamentos de alunos e responsáveis acerca do inglês ensinado (americano ou

britânico), assim como sua crença de que um falante nativo de inglês é necessariamente um

professor melhor do que um não nativo, mesmo que o primeiro não tenha formação na área.

O projeto era composto por reuniões semanais para discussão de teoria e para pensarmos

sobre questões práticas acerca da implementação e do andamento do mesmo. A presente

pesquisa surgiu, então, da necessidade de produção de materiais para esse projeto, visto que a

temática em questão não era explorada nos livros adotados5 pela escola.

É importante salientar que as atividades apresentadas neste artigo fazem parte de uma

unidade didática mais ampla, elaborada para ser trabalhada durante todo um trimestre letivo

com uma turma de 8º ano do Ensino Fundamental II. No entanto, não seria possível apresentá-

la na íntegra. Optei, então, por discutir neste artigo uma seção que compõe o material. A escolha

foi feita a partir do entendimento de que essa seção tematiza de forma mais direta a

desconstrução da hegemonia das culturas do falante nativo.

Ressalto que tanto o processo de elaboração das atividades quanto o de análise foram

pautados por por macrocritérios, pensados por Tilio (2016), para a análise de LDs e

sistematizados no quadro a seguir, assim como aparece no texto do autor.

5 A escola referida adota livros aprovados no Programa Nacional do Livro Didático (PNLD). Na última seleção,

no PNLD 2016, a coleção It Fits, obra coletiva desenvolvida e produzida por Edições SM, foi adotada para o

Ensino Fundamental II.

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Quadro: Macrocritérios para análise de LDs (TILIO, 2016)

Categoria Operacionalização

Multiletramentos

(críticos)

Variedade de multiletramentos críticos

Gêneros

discursivos

Trabalho com uma variedade de gêneros discursivos socialmente

relevantes; textos autênticos

Temas Temas abordados e sua relevância/familiaridade para o público-alvo

Transculturalidade Contextos situacionais e culturais contemplados; tratamento das

diferenças

Atividades Diversidade de atividades, de modo a atender a heterogeneidade de

estilos de aprendizagem dos alunos, com predominância de

atividades que envolvam operações cognitivas mais complexas e de

tarefas autênticas

Autonomia Desenvolvimento da autonomia do aprendiz, de forma que ele

consiga ir além do livro didático e efetivamente agir no mundo

social utilizando os conhecimentos nele aprendidos

Conteúdo Trabalhado em uma perspectiva analítica, de forma a tornar o aluno

consciente da função social desse conteúdo e das possibilidades de

significados por ele engendradas

Letramento crítico Espaço para que o aluno assuma postura crítica ao longo de todo

processo pedagógico

Por fim, é válido mencionar que as atividades não serão apresentadas como um bloco

só, de forma corrida, como aparecem no material elaborado. Elas serão apresentadas uma a uma

no desenrolar da discussão tecida no processo de análise de dados.

ANÁLISE DOS DADOS

A primeira atividade da seção prepara os educandos para a atividade dois, na qual eles

têm que minimamente reconhecer países no mapa-múndi. Essa atividade se resume a um mapa

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(cf. figura 1) em que cada país tem seu território coberto por sua bandeira, e um diálogo

controlado (cf. figura 2), através do qual os alunos devem testar/construir seu conhecimento

cartográfico/geográfico, adivinhando os nomes dos países apontados por seus parceiros.

Figura 1: Mapa utilizado na atividade 1

Figura 2: diálogo referente à atividade 1

Nessa atividade, dois dos cinco macrocritérios selecionados se sobressaem:

Multiletramentos (críticos) e Autonomia. O primeiro pode ser percebido na tentativa de

desenvolvimento do letramento cartográfico/geográfico dos alunos através da leitura de uma

representação cartográfica plana, ou seja, a atividade em questão extrapola o texto escrito e

trabalha com outras semioses. É importante ressaltar que, embora essa atividade passeie pelos

países na medida em que encoraja os aprendizes a “transitar” pelo mapa livremente, não é

possível dizer que ela se desenvolve sob uma perspectiva multicultural, pois ela se restringe à

identificação dos países no mapa. No entanto, essa atividade como parte de um todo, que é a

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seção em questão, colabora para um trabalho multicultural, como será discutido mais adiante

quando os macrocritérios forem utilizados para falar da seção como um todo.

Cabe dizer ainda que faltou um trabalho, mesmo que superficial, com o gênero mapa.

Digo “mesmo que superficial” porque o mapa em questão remete ao gênero, mas não é fiel a

ele, por se tratar de um mapa estilizado. Além disso, tanto nessa atividade quanto na atividade

dois, que também trabalha com um mapa, os alunos não precisam de conhecimentos muito

aprofundados sobre mapas para realizar a atividade. Dessa forma, acredito que não é necessário

ir muito a fundo no estudo desse gênero, mas seria interessante trabalhar minimamente as

características de um mapa, como, por exemplo, desenvolver com os alunos a noção de mapa

político. Isso não poderia, por exemplo, vir somente nas orientações para o professor.

A categoria Autonomia, por sua vez, se apresenta, nessa atividade, mais como

autonomia individual6, já que a figura do professor perde centralidade, dando vez a uma

participação ativa dos alunos. Isso se evidencia na proposta da atividade de estimular que as

respostas partam dos alunos, ao invés de virem prontas e fechadas de forma unilateral: do

professor para o aluno.

A segunda atividade da seção consiste em um mapa-múndi em branco (cf. figura 3), no

qual os alunos devem pintar os países onde a língua inglesa é falada. Nas instruções para o

professor, sugere-se não sanar nenhuma dúvida dos alunos quanto a que inglês considerar, pois

mesmo que eles não utilizem a metalinguagem (L1, L2, LE), essa questão pode ser levantada.

A produção deles nessa atividade servirá de base para as discussões vindouras, porque é muito

provável que a maioria dos alunos, se não todos, pintem somente países hegemônicos como

Estados Unidos e Inglaterra, o que será contrastado com as estatísticas sobre o número elevado

de falantes não nativos de inglês, apresentadas na atividade quatro dessa seção. Dessa forma,

como também indicado nas orientações para o professor, não existe uma resposta fechada para

essa atividade, uma vez que a resposta depende da maneira como o aluno está considerando o

inglês: como língua materna, como segunda língua ou como língua estrangeira. O fato de a

atividade não delimitar a ação do aluno e, portanto, não aceitar apenas uma resposta, colabora

para o desenvolvimento da autonomia individual do educando, que se sente livre para realizar

6 A autonomia individual está mais ligada à noção de autonomia do senso comum, entendendo que ser autônomo

é agir no mundo sem a ajuda de outrem. O macrocritério “Autonomia”, por outro lado, se refere ao conceito de

autonomia sociocultural, que parte do “pressuposto de que o indivíduo faz parte de um contexto socio-histórico e,

como tal, é responsável por seus atos e pelas consequências daí originadas, além de exercer um papel modificador

no e do meio social no qual está inserido” (NICOLAIDES; TILIO, 2011, p. 179).

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a atividade da maneira que julgar correta, contanto que saiba justificar e embasar suas escolhas.

Além disso, assim como na atividade um, essa atividade auxilia no desenvolvimento do

letramento cartográfico/geográfico dos alunos na medida em que eles têm que saber explorar o

mapa. Essa atividade, no entanto, dá um passo a mais do que a primeira atividade em direção a

um trabalho multicultural, visto que encoraja a reflexão dos alunos acerca de identidades

linguístico-culturais relacionadas ao inglês.

Figura 3: mapa-múndi para colorir da atividade 2

A atividade três, por sua vez, trabalha os conceitos de L1, L2 e LE a partir da leitura de

um texto em português (cf. figura 4) que esmiúça tais conceitos. O importante dessa atividade

é, primeiro, trabalhar esses conceitos, problematizando-os, já que em meio a um mundo

hibridizado, mestiço e diverso, onde a mistura linguístico-identitária é cada vez mais

evidenciada, não faz mais sentido continuar operando com essas epistemes. Entretanto, elas são

conceitos base para que os alunos entendam depois, mais efetivamente, a noção de inglês como

língua franca e de ingleses glocais. Além da leitura do texto, os alunos são encorajados a

encontrar no mapa da atividade anterior (cf. figura 3) países que exemplifiquem os conceitos

trabalhados, ou seja, países que falam inglês como primeira língua, como segunda língua e

como língua estrangeira. Eles são levados também a revisitar esse mesmo mapa para, a partir

dos conceitos trabalhados, entender a maneira como pensam o inglês no mundo contemporâneo,

pensamento esse que provavelmente se materializou nos países que escolheram pintar no mapa.

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Figura 4: texto sobre os conceitos de L1, L2 e LE da atividade 3

Um aspecto que eu mudaria nessa atividade seria a maneira como os conceitos L1, L2

e LE são trabalhados. Gosto do uso do texto em português, uma vez que tais termos envolvem

explicações complexas, o que se tornaria ainda mais complicado se os alunos tivessem que ler

em inglês. O uso da língua materna aqui colabora para o desenvolvimento da autonomia

individual do aluno; todavia, acredito que o fato de o texto já apresentar as definições dos

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conceitos não ajuda nesse processo. Penso que seria mais interessante e produtivo se o texto

viesse com lacunas a serem preenchidas no lugar dos termos “primeira língua”, “segunda

língua”, “língua estrangeira”. Em outras palavras, ao invés do texto vir com as definições e

explicações completas e os alunos terem que somente achar exemplos de países para cada um

desses conceitos, defendo que os alunos possam chegar a suas próprias conclusões a partir da

leitura do texto e, assim, completá-lo com os conceitos em questão, correlacionando-os com

suas definições. Dessa maneira, o conteúdo da atividade seria trabalhado de maneira indutiva e

analítica, o que facilitaria o processo de aproximação do conteúdo com a realidade social do

aluno.

Ainda sobre a terceira atividade, é importante dizer que ela suscita o macrocritério

Gêneros discursivos. Mais uma vez, assim como ocorreu na primeira seção da unidade, o gênero

discursivo utilizado na atividade não é trabalhado. Nesse caso, o gênero é artigo acadêmico.

Ele não é relevante para o público-alvo, e, por isso, não defendo que suas características sejam

exploradas nem como parte do corpo da seção, nem em uma caixa à parte.

A quarta atividade se volta para uma reflexão sobre dois pequenos textos (cf. figuras 5

e 6), nos quais texto escrito e imagem fundem-se. Esses textos trazem informações sobre o

número de falantes de inglês no mundo, assim como a notícia de que o número de falantes não

nativos ultrapassa o de falantes nativos, o que acaba fazendo com que o inglês assuma o status

de língua franca. Os alunos são, então, encorajados a pensar criticamente sobre essas

informações na tentativa de responder a seguinte pergunta do enunciado: “A quem pertence o

inglês, então?”.

Figuras 5 e 6: textos da quarta atividade da seção

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Nessa atividade, a categoria Conteúdo se destaca, pois o conteúdo é trabalhado de

maneira indutiva e analítica. Os alunos têm que ler os textos e chegar a sua própria conclusão

acerca da pergunta estabelecida, o que faz com que a função social desse conteúdo se torne

mais clara. Na verdade, espera-se que os alunos compreendam melhor a aplicabilidade social

dessas informações na próxima atividade, uma vez que é ela que abarca de maneira mais

contundente os usos criativos forjados também pelos ditos falantes não nativos.

A quinta atividade enfoca produções linguísticas de brasileiros (cf. figuras 7 e 8) que se

apropriam da língua inglesa e a adaptam aos seus contextos culturais e situacionais, o que

reforça a discussão da atividade anterior sobre os falantes nativos do inglês não deterem o

monopólio da língua.

Figuras 7 e 8: exemplos de hibridizações

linguísticas da atividade 5

Um macrocritério que se destaca nessa atividade é o da Transculturalidade. Isso pode

ser dito porque a atividade atravessa fronteiras linguístico-culturais, contemplando um contexto

híbrido, no qual não se pode delimitar onde termina uma cultura e onde começa a outra. Esse

entrelace linguístico-cultural inextricável corrobora a ideia de se pensar culturas a partir de um

movimento antropofágico, como sugerido anteriormente, na medida em que não há uma

replicação de modelos globais, mas sim um imbricamento do global e do local que culmina na

construção de culturas e ingleses glocais.

Além dele, destaca-se também o Letramento crítico, uma vez que essa atividade

demanda, em diálogo com as atividades quatro e seis, que os alunos entendam o porquê das

hibridizações, atentando para o fato de que elas ocorrem a partir do tensionamento global-local,

e percebendo que elas desestabilizam o poderio dos ditos falantes nativos.

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A penúltima atividade da seção trabalha uma citação de Chinua Achebe: “O preço que

uma língua global tem que estar preparada para pagar é o da submissão a muitos tipos diferentes

de uso”. Tal citação é trabalhada com o intuito de tentar sumarizar o ponto principal dessa

seção: o surgimento de diferentes ingleses construídos na interseção global-local.

A última atividade é uma caixa de discussão intitulada Reflecting and Dialoguing (cf.

figura 9), já apresentada anteriormente. Nessa caixa, as seguintes questões são levantadas: “O

que é uma língua global? O inglês é uma língua global? O que faz uma língua ser global? Quais

são os benefícios de uma língua global? Você consegue pensar em alguma desvantagem?”.

Optei por alocar essas perguntas em uma caixa Reflecting and Dialoguing, pois elas se

distanciam um pouco da linha que a seção vinha seguindo, já que o foco da seção recai mais

sobre a questão das hibridizações linguístico-culturais. No entanto, não quis deixar tais questões

de fora da unidade por julgá-las de extrema relevância para a construção do conhecimento do

alunado acerca da língua inglesa na contemporaneidade.

Figura 9: caixa Reflecting and Dialoguing

Chegado ao fim dessa seção, destaco, a partir de agora, todos os macrocritérios

suscitados pela seção como um todo. Quanto ao primeiro deles, Multiletramentos (críticos), é

possível destacar um trabalho com os seguintes letramentos nas atividades em questão:

letramento cartográfico/geográfico (atividades 1 e 2), letramento de leitura (atividade 3 e 4),

letramento crítico (atividades 5 e 6). Nota-se, então, que a seção trabalha uma variedade de

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letramentos em uma perspectiva multimodal, na medida em que não se restringe ao tradicional

texto escrito, e multicultural, uma vez que explora realidades linguístico-culturais distintas cujo

ponto em comum é a língua inglesa, o que se evidencia de forma contundente na construção do

conhecimento do aluno acerca dos conceitos de L1, L2, LE e LF. Defendo ainda que essa seção

vai além de um trabalho multicultural, no qual diferentes realidades linguístico-culturais são

confrontadas, abarcando a categoria Transculturalidade. Isso pode ser dito porque a seção tem

como foco hibridizações linguístico-culturais que transgridem os limites do território e as

barreiras simbólicas entre uma língua e outra; nesse caso, entre as línguas portuguesa e inglesa.

São exatamente essas hibridizações linguístico-culturais que compõem o tema dessa

seção, dentro do tema mais macro da unidade didática. Defendo a relevância desse tema para o

público-alvo, visto que acredito que é a partir do entendimento e da valorização de produções

linguísticas mestiças, como as que aparecem na seção, que os aprendizes podem começar a se

perceber como donos da língua inglesa e, portanto, forjar novos usos de acordo com suas

necessidades situacionais. Esse tema é de tamanha relevância que acabou motivando a criação

da unidade didática aqui analisada. Essa categoria se imbrica na categoria Conteúdo, pois é esse

tema, além dos conceitos mais concretos de L1, L2, LE e LF, que são os conteúdos dessa seção.

Salvo tais conceitos, o conteúdo da seção é trabalhado de maneira analítica, fazendo com que

os educandos percebam sua função social de forma mais efetiva. Isso pode ser percebido, como

foi discutido ao longo da análise, no caráter indutivo da maioria das atividades, que não

apresentam respostas prontas e fechadas para os alunos, mas os encorajam a construir

conhecimento e não a consumi-lo.

Quanto ao macrocritério Atividades, saliento que a seção Glocal Englishes abrange um

leque amplo de atividades: diálogo (atividade 1), atividade com mapa (atividades 1 e 2),

atividade de leitura (atividade 3 e 4), atividade de discussão (atividades 5 e 6). Vale ressaltar

que, nessa seção, há a predominância de atividades que demandam operações cognitivas

complexas, posto que, salvo a primeira atividade que é mais simplista, todas as demais exigem

que os alunos entendam e reflitam sobre conceitos complexos.

O sexto macrocritério, Autonomia, além de se apresentar em sua forma de autonomia

individual, já discutida durante a análise das atividades, pode ser percebida também em seu

aspecto sociocultural, à medida que a seção busca preparar o aluno para agir no mudo social

utilizando os conhecimentos nela aprendidos. Ou seja, entende-se que, por instigar os alunos a

se apropriar da língua inglesa e valorizar os usos que fazem da mesma, a presente seção os

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empodera para, de fato, atuar no mundo através do inglês, sem necessitarem reproduzir de

forma passiva construções linguístico-culturais dos ditos falantes nativos.

Por fim, a categoria Letramento crítico se faz bastante presente na seção Glocal

Englishes, pois os alunos são encorajados a assumir uma postura crítica durante toda a seção,

especialmente nas atividades quatro, cinco e seis. Eles são levados a construir uma nova visão

sobre o inglês na contemporaneidade, descentralizando o poder do falante nativo e legitimando

todos os usos dessa língua.

No entanto, agora percebo que o trabalho com o letramento crítico deixou a desejar

nessa seção devido ao fato de não ter sido proposta uma reflexão efetiva sobre as condições

sociohistóricas de produção e reprodução das relações sociais de poderio do dito falante nativo

e de desvalorização do não nativo. Tal reflexão poderia ocorrer entre as atividades três e quatro,

o que faria até com que a transição entre essas atividades se desse de forma mais sútil, menos

brusca. Em outras palavras, seria interessante e produtivo se os alunos, a partir do trabalho com

os conceitos de L1, L2 e LE, pudessem compreender de onde vem a soberania dos chamados

falantes nativos de inglês para, então, desconstrui-la a partir do entendimento de relações mais

fluidas e menos territorializadas na contemporaneidade.

Uma opção seria disponibilizar algumas perguntas para reflexão, ao final da atividade

três, que preparassem os educandos para a próxima atividade, na qual eles serão apresentados

às estatísticas do alto número de falantes não nativos. Algumas perguntas possíveis são: “No

caso de uma criança que nasceu no Brasil, mas mora desde um ano de idade na Noruega, fala

Norueguês no dia a dia, aprende inglês na escola e fala português em casa com os pais, é

possível dizer qual é a L1 dessa criança?”, “O que essa situação revela sobre os conceitos de

L1, L2 e LE na contemporaneidade?”, “Na sua opinião, quantas pessoas no mundo falam

inglês?”, Você acredita que existam mais falantes de inglês nos EUA e na Inglaterra ou

espalhados pelo mundo?”. Através da discussão dessas perguntas os alunos podem vir a

reconhecer a inaplicabilidade de tais conceitos no mundo contemporâneo, mas entender que

eles um dia eles talvez tenham feito mais sentido e que a construção da posição de poder dos

falantes nativos vem não da genética, mas do tensionamento de redes de poder.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As atividades analisadas instigam os alunos a se apropriar da língua inglesa, valorizando

os usos que fazem da mesma, o que tende a os empoderar para agir no mundo através dessa

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língua. Esse movimento fica melhor ilustrado na atividade cinco da seção analisada, visto que

apresenta manifestações de ingleses glocais, hibridizações linguístico-culturais produzidas, por

brasileiros, através da apropriação da língua inglesa.

A análise mostrou como é possível fugir das representações, na maioria das vezes

estereotipadas, que materiais de inglês fazem do mundo, já que se construiu a partir da

aproximação de duas esferas: o mundo dos aprendizes e o mundo do inglês, antes muito distante

do primeiro. Dito de outra forma, os alunos estão geralmente acostumados a pensar a língua

inglesa, e as culturas a ela associadas, como algo muito distante, como uma língua do outro,

algo inalcançável e, na maioria das vezes, superior. Entretanto, a partir do momento que a seção

entende cultura como sistemas de participação e não como conteúdo a ser passado de uma

geração para a outra, ela aproxima os dois mundos mencionados, imbricando-os

antropofagicamente. Assim, os alunos podem passar a se perceber como agentes dos processos

de construção de significados em língua inglesa. Essa mudança é possibilitada, principalmente,

pelo fato de a unidade mostrar o quanto o inglês está presente no dia a dia dos alunos, e por

focalizar o quanto eles também podem modificar essa língua.

A abordagem transcultural, percebida nas atividades, contesta a ideologia linguística-

cultural da delimitação da língua inglesa a países hegemônicos, como Estados Unidos e

Inglaterra. Esse movimento de questionamento dessa ideologia é feito a partir do estímulo à

percepção dos alunos sobre a proximidade que têm com o inglês no seu cotidiano, e através da

tematização de hibridizações linguístico-culturais, mostrando que é problemático, na

contemporaneidade, tentar delimitar uma língua a uma comunidade ou a um território

específico.

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