educação, trabalho e violência
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Educação, Trabalho e Violência: percepções,expectativas e sonhos dos jovens*1
Fabiano de Sousa LimaUNESCO
Palavras-chave: juventude; classes sociais, educação; mercado de trabalho.
1. Introdução
Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) confirmam uma
tendência de desigualdade na distribuição de renda e elevados níveis de pobreza no
Brasil que exclui parte significativa de sua população do acesso a condições mínimas de
dignidade e cidadania, enquadrando-a em uma situação de vulnerabilidade social. Este
artigo busca esclarecer como jovens e adolescentes brasileiros percebem a negação de
seu acesso a estruturas de oportunidades que provêm do Estado, do mercado e da
sociedade; e como essa percepção limita suas expectativas de inserção social,
conduzindo-os, em alguns casos, a buscar na violência e na marginalidade as
oportunidades que lhe são negadas.
Trata-se de um artigo analítico que reúne e retrata dados coletados em diversas
pesquisas com jovens de 14 a 24 anos, realizadas pela UNESCO no Brasil entre os anos
de 1997 e 20012, enfocando as percepções desses jovens sobre educação e inserção no
mercado de trabalho. A hipótese central do artigo é que os jovens pesquisados possuem
ambições muito semelhantes referentes ao seu futuro profissional, independentemente
da condição econômica e social que possuam, porém a grande maioria é ciente que a
concretização de seus projetos depende do acesso a estruturas de oportunidades –
* Trabalho apresentado no XIII Encontro da Associação Brasileira de Estudos Populacionais, realizado em Ouro Preto, Minas Gerais, Brasil de 4 a 8 de novembro de 2002.1 O conteúdo deste artigo é de inteira e exclusiva responsabilidade de seu ator, cujas opiniões aqui
emitidas não exprimem, necessariamente, o ponto de vista da UNESCO.2 A UNESCO desenvolveu entre os anos de 1997 e 1999, nas cidades de Brasília, Rio de Janeiro,
Curitiba e Fortaleza, um projeto nacional intitulado Juventude Violência e Cidadania nas Cidades doBrasil; e entre 2000 e 2001, a pesquisa Violência, Aids e Drogas nas Escolas, em 14 capitaisbrasileiras. Ver maiores informações sobre esses projetos na seção 3.
2
principalmente educação – condizente com as exigências de qualificação que o mercado
de trabalho.
Procura-se, ainda, apontar que a inviabilidade de desenvolver os projetos
profissionais, acaba resumindo o trabalho apenas a um meio de sobrevivência,
descaracterizando-o para muitos como uma atividade construtiva, capaz de promover o
sentimento de pertencimento social. Isto, por sua vez, pode induzi-los a procurar na
marginalidade e na violência uma alternativa aceitável de sustento.
O artigo está organizado em 2 seções. A primeira seção visa esclarecer o quadro
de desigualdade na distribuição de renda e da pobreza no Brasil e oferecer algumas
informações gerais sobre a população jovem do Brasil. A segunda apresenta, com base
nas pesquisas desenvolvidas pela UNESCO, as percepções dos jovens sobre educação,
trabalho e futuro. Ainda na mesma seção, argumenta-se como a frustração do projeto
profissional alinhada com a vulnerabilidade social vivenciada por parte significativa dos
jovens brasileiros pode conduzi-los a violência. Em conclusão, destaca-se a necessidade
de políticas públicas que enfoquem a diminuição das diferenças e a inclusão dos jovens
em redes de proteção social como meios de combater a violência.
2. Pobreza, desigualdade e Juventude no Brasil
A partir de análises das Pesquisas Nacionais por Amostra de Domicílios
(PNADs) do IBGE é possível verificar que ao longo das últimas duas décadas a
indigência e a pobreza mantiveram uma relativa estabilidade, com exceções para os
momentos de implantação dos planos Cruzado e Real.
Com base na Tabela 1, observa-se que em todo o período a porcentagem de
pobres declinou, aproximadamente, de 40% em 1977 para 34% em 19993. Ressalta-se
ainda que a intensidade da queda na magnitude da pobreza ocorrida entre 1993 e 1995
foi menor que em 1986. No entanto, entre 1995 e 1999 a porcentagem de pobres
permaneceu estável, indicando a manutenção do impacto posterior ao Plano Real,
enquanto que a queda de 1986 não gerou resultados sustentados, com o retorno da
pobreza para os mesmo patamares vigentes antes do Plano Cruzado.
3 Não existem PNADs para os anos de 1980, 1991 e 1994.
3
Em virtude do crescimento populacional brasileiro, apesar da queda observada
na porcentagem da população que vive abaixo da linha de pobreza, o número de pobres
aumentou de 41 milhões em 1977 para 53 milhões em 1999. É interessante observar que
foi no final da década de 1980 que a pobreza alcançou seus maiores limites no Brasil,
sendo que entre 1990 e 1999, cerca de 10 milhões de pessoas deixaram de ser pobres.
Tabela 1. Evolução Temporal da Indigênciaa e da Pobreza no Brasil
Indigência Pobreza
Ano Indigentes (%) Indigentes (Em milhões) Pobres (%) Pobres (Em milhões)
1977 16,98 17,43 39,63 40,71978 21,82 23,2 42,55 45,241979 23,94 25,97 38,78 42,021980 - - - -1981 18,82 22,08 43,23 50,711982 19,42 23,38 43,18 51,981983 25 30,73 51,06 62,781984 23,63 29,8 50,45 63,631985 19,26 25,14 43,59 56,911986 9,81 13,06 28,24 37,61987 18,49 25,08 40,86 55,411988 22,14 30,56 45,34 62,581989 20,74 29,31 42,95 60,71990 21,36 30,79 43,82 63,181991 - - - -1992 19,3 27,13 40,79 57,341993 19,53 27,82 41,71 59,421994 - - - -1995 14,58 21,59 33,91 50,231996 14,95 22,36 33,53 50,141997 14,82 22,54 33,86 51,471998 14,13 21,67 32,8 50,311999 14,51 22,6 34,09 53,11Fonte: PNADs de 1977 a 1999.Nota a: Observe que o número de indigentes está contido no número de pobres.
Em que pese a constatação da melhora nos números da pobreza no país, ainda é
inaceitável que 30% da população vive abaixo da linha de pobreza, enquanto que países
com renda per capita similares à brasileira essa percentagem corresponde a menos de
10% (UNDP, 2001).
4
Barros et. al (2001 p. 5-12), analisando sobre os determinantes imediatos da
pobreza no Brasil, concluem que a pobreza não deve ser associada prioritariamente com
a escassez, absoluta ou relativa, de recursos; mas sim na grande desigualdade
distributiva dos recursos produzidos no país. Os autores primeiramente contrastam a
renda per capita e o grau de pobreza no Brasil com os demais países no mundo,
verificando que o grau de pobreza no Brasil é mais elevado do que em países com renda
per capita similar. Em seguida, comparam a renda per capita brasileira com a linha de
pobreza e demonstraram que, na medida em que a renda média brasileira é
significantemente superior à linha de pobreza, a sua intensidade está associada à
concentração de renda. Por fim, com base no padrão de consumo das famílias com
renda per capita em torno da média nacional, demonstraram que a pobreza no Brasil é,
sobretudo, um problema relacionado à distribuição dos recursos e não à sua escassez.
De fato, analisando a evolução da desigualdade de renda no Brasil na Tabela 2,
verifica-se que o grau de desigualdade é extraordinariamente estável, mesmo nos
períodos em que houve uma diminuição da pobreza.
Tabela 2. Evolução Temporal da Desigualdade de Renda no Brasil
Percentagem da Renda Apropriada pela Pessoas
Ano20 % mais
pobres40 % mais
pobres50 % mais
pobres20 % mais
ricos10 % mais
ricos1 % mais
rico1977 2,4 7,7 11,7 66,6 51,6 18,51978 2,1 7,6 12,0 64,1 47,7 13,61979 1,9 7,5 11,9 64,2 47,5 13,61980 - - - - - -1981 2,6 8,6 13,0 63,1 46,7 12,71982 2,5 8,2 12,6 63,7 47,3 13,11983 2,5 8,1 12,4 64,4 47,7 13,51984 2,7 8,5 12,8 63,8 47,6 13,21985 2,5 8,2 12,4 64,4 48,2 14,21986 2,6 8,5 12,9 63,4 47,2 13,81987 2,3 7,9 12,1 64,3 48,0 14,11988 2,1 7,3 11,3 66,0 49,7 14,41989 2,0 6,8 10,5 67,8 51,7 16,41990 2,1 7,3 11,3 65,6 49,1 13,81991 - - - - - -1992 2,3 8,4 13,1 62,1 45,8 13,21993 2,2 7,9 12,3 64,5 48,6 15,01994 - - - - -1995 2,3 8,0 12,3 64,2 47,9 13,91996 2,1 7,7 12,1 64,1 47,6 13,5
5
1997 2,2 7,8 12,1 64,2 47,7 13,81998 2,2 7,9 12,2 64,2 47,9 13,91999 2,3 8,1 12,6 63,8 47,5 13,3Fonte: PNADs de 1977 a 1999.
As duas décadas analisadas na Tabela 2 revelam um cenário de concentração de
renda em que os 20% mais ricos da população se apropriam de uma renda média entre
24 e 35 vezes superior aos 20% mais pobres. Os indivíduos que se encontram entre os
10% mais ricos da população se apropriam de cerca de 50% do total da renda das
famílias, enquanto que os 50% mais pobres detêm pouco mais de 10% da renda. Mais
do que as flutuações observadas no período, é a estabilidade na intensa desigualdade de
renda que caracteriza a sociedade brasileira, inclusive no recente período de
implantação do Plano Real.
Como parte da sociedade, suscetível à mesma sorte do restante da população,
estão os jovens brasileiros. Os limites de idade para definir adolescência e juventude são
variados, pois dependem de parâmetros socioculturais diferenciados e de tratamento
estatísticos diversos, de acordo com as instituições que refletem ou atuam junto a esse
segmento da população. A Organização Internacional da Juventude define esses
parâmetros entre 15 e 24 anos, opção utilizada na maioria das análises demográficas. No
entanto, tal demarcação é muitas vezes questionada pelos que consideram juventude
como um processo e não apenas como uma categoria etária4. Em que pese a relevância
deste questionamento, assume-se no artigo o parâmetro etário 15 e 24 anos para definir
juventude.
Segundo dados do Censo 2000, existem no Brasil 34.081.330 pessoas entre 15 e
24 anos, 81% delas vivendo em áreas urbanas. Os jovens representam 20% da
população total. Isso significa que mesmo com a expressiva queda das taxas de
fecundidade observada no censo de 1991 e confirmada no censo de 20005, a geração
com 20 anos atualmente no país é uma das maiores da história brasileira, pois faz parte
4 Segundo a Organização Pan-americana de Saúde (OPS) e a Organização Mundial de Saúde (OMS), por
exemplo, a adolescência constitui um processo fundamentalmente biológico, de vivências orgânicas, noqual se aceleram o desenvolvimento cognitivo e a estruturação da personalidade. Abrange a pré-adolescência (faixa etária de 10 a 14 anos) e a adolescência propriamente dita (dos 15 aos 19 anos). Já oconceito de juventude resume uma categoria sociológica, que constitui um processo socioculturaldemarcado pela preparação dos indivíduos para assumirem o papel de adulto na sociedade, no planofamiliar e profissional. Inclui a fase dos 15 aos 19 anos de idade.
5 Segundo o IBGE, a taxa de fecundidade do Brasil em 1980 era 4,4, em 1991 2,9 e em 2000 2,3.
6
de uma coorte anterior a essa queda. Em termos absolutos, observou-se um forte
aumento desse grupo, configurando o que os demógrafos denominam “onda jovem”.
Essa onda se superpõe à da população na faixa dos 40 anos, produzindo forte impacto
sobre a situação existente de desemprego e de pressão social (Madeira e Rodrigues,
1998).
Observa-se na Tabela 3 que 81% dos jovens estão de alguma forma ocupados,
sendo que apenas 13% estão de fatos ociosos, ou seja tão pouco estudam ou procuram
um emprego. Ressalta-se que existe uma diferença entre o tipo preponderante de
ocupação dos jovens, de acordo com a faixa etária em que se situam; enquanto 53%
daqueles de 15 a 16 anos apenas estudam, 56% dos jovens de 23 a 24 anos somente
trabalham. A saída da escola para o mercado de trabalho, no entanto não se dá de
maneira abrupta, como pode ser entendido através do pouca oscilação da percentagem
de jovens de 15 a 20 que estudam e trabalham.
Tabela 3. Ocupação por faixa etária, 1999 (%)
Faixas Etárias (anos)Ano
15 a 16 17 a 18 19 a 20 21 a 22 23 a 24 TotalSó estudam 53% 32% 14% 8% 5% 24%Jovens que só trabalham 8% 19% 37% 48% 56% 32%Jovens que Estudam etrabalham
22% 24% 20% 16% 11% 19%
Jovens que não estudam eprocuram emprego 2% 5% 7% 8% 8% 6%
Jovens que estudam eprocuram emprego
7% 9% 6% 4% 2% 6%
Jovens que não estudam, nãotrabalham e não procuramemprego
8% 11% 15% 17% 17% 13%
Total 100% 100% 100% 100% 100% 100%Fonte: PNAD 1999.
Relacionando a renda per capita6 domiciliar com o tipo ocupação dos jovens
(Tabela 4), verifica-se que entre os jovens que só trabalham 85% possuem renda per
capita domiciliar de até 2 salários mínimos. Já para o caso dos grupos de jovens que não
6 A renda per capita domiciliar é conseguida pela razão entre a soma das rendas individuais dos
componentes do domicílio e a soma dos membros; exclusos pensionistas, empregados domésticos eparentes dos empregados domésticos (pelo fato destes representarem gastos, ou seja, suas rendas nãosão computáveis no conjunto dos recursos disponíveis para o consumo dos membros do domicílio). Ovalor conseguido por esta razão é estendido a todos os membros do domicílio para que não se perca ainformação ao deixar na base somente os jovens de 15 a 24 anos.
7
trabalha e não estudam, independentemente se procura ou não emprego, 98% estão
abaixo da referida faixa de renda.
Continuando a análise da Tabela 4, observa-se algo de curioso. Apesar da
percentagem de jovens com maior com maiores rendas ser a do grupo que somente
trabalha – 15% desses jovens tem renda per capita domiciliar superior a 2 salários
mínimos –, a diferença percentual é de apenas dois pontos em relação ao grupo de
jovens que estudam e trabalha (13 % possuem mais de 2 salários de renda per capita
domiciliar). Essa pequena diferença indica que o ganho com a saída da escola para a
dedicação exclusiva ao trabalho não promove, necessariamente, um ganho de renda.
Tabela 4. Renda per capita domiciliar, segundo ocupação, 1999 (%)
OcupaçãoRenda percapitadomiciliar(Saláriomínimo)a
Sóestudam
Jovens queEstudam etrabalham
Jovensque só
trabalham
Jovens queestudam eprocuramemprego
Jovens quenão
estudam eprocuramemprego
Jovens quenão estudam,
nãotrabalham e
não procuramemprego
Total
Até 0,5 83% 41% 28% 79% 78% 77% 56%de 0,5 a 1 10% 26% 27% 12% 13% 14% 19%de 1 a 1,5 3% 13% 17% 5% 5% 5% 10%de 1,5 a 2 2% 8% 12% 2% 2% 2% 6%de 2 a 2,5 1% 5% 6% 1% 1% 1% 3%de 2,5 a 3 0% 2% 2% 1% 0% 0% 1%de 3 a 3,5 0% 2% 2% 0% 0% 0% 1%de 3,5 a 4 0% 1% 1% 0% 0% 0% 1%de 4 a 4,5 0% 1% 1% 0% 0% 0% 0%de 4,5 a 5 0% 1% 1% 0% 0% 0% 0%acima de 5 0% 1% 2% 0% 0% 0% 1%
Total 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100%Fonte: PNAD 1999.Nota a: Valores referentes ao salário mínimo do período de referência da PNAD 1999 (Setembro de 1999, R$ 165).
Por fim, com base na coluna da extrema direta da Tabela 4, observa-se que a
população jovem também está a mercê da concentração de renda no país. A
concentração de renda associada com a tímida abrangência de políticas públicas para a
juventude, que possibilitem ao jovem inserir na sociedade mais capacitado para os
desafios da modernidade, acaba colocando esse jovem em uma situação de perigosa
vulnerabilidade social. O não acesso a determinados insumos (educação, trabalho, lazer,
cultura etc) diminui as chances de aquisição e aperfeiçoamento dos recursos materiais
8
ou simbólicos7, fundamentais para que os jovens aproveitem as oportunidades
oferecidas pelo Estado, mercado e sociedade para ascender socialmente (Abramovay et
al, 2002).
3. Educação, Trabalho e Futuro na Percepção de Jovens no Brasil
Antes de apresentar as percepções dos jovens sobre escola, trabalho e futuro,
faz-se necessário informar brevemente o desenho de pesquisa e os limites
metodológicos dos trabalhos investigativos que apóiam esse artigo.
Como citado rapidamente na introdução, esse artigo apóia-se em dados
coletados por pesquisas desenvolvidas pela UNESCO, em parceria com organizações
internacionais e nacionais, entre os anos de 1997 e 2001. Essas pesquisas enquadram-se
em dois grandes projetos distintos mas que possuem a juventude e a violência como
enfoque. Além do enfoque, ambos os projetos combinam, em suas pesquisas,
abordagem extensiva – com aplicação de questionários auto-aplicáveis – e
compreensiva – consistindo em entrevistas individuais e grupos focais. Essas
abordagens se complementam a medida em que a primeira visa conhecer magnitudes
enquanto a segunda trabalha o conteúdo das manifestações dos sujeitos pesquisados.
O primeiro projeto, intitulado Juventude Violência e Cidadania nas Cidades do
Brasil, realizou no biênio 1997/98, nas cidades de Brasília, Rio de Janeiro, Curitiba e
Fortaleza, um trabalho investigativo e analítico com os propósitos de: conhecer as
percepções sociais sobre a juventude, cidadania e violência no cotidiano de jovens de
camadas altas e nédias e de camadas populares; conhecer as percepções sociais dos pais
dos jovens entrevistados; investigar como os educadores lidam com os jovens e a
percepção que têm sobre o tema; e refletir sobre o cotidiano de jovens reconhecidos por
vivenciarem experiências violentas8. O segundo projeto, intitulado Violência, Aids e
Drogas nas Escolas, realizou durante o ano de 2000, uma ampla pesquisa em escolas de
7 Filgueira (2001; 8) apresenta como alguns exemplos desses recursos o capital financeiro, o capital
humano, a experiência de trabalho, o nível educacional, a composição e os recursos familiares, o capitalsocial, a participação em redes e o capital físico.
8 Os resultados das pesquisas foram lançados em 4 livros, um para cada cidade envolvida no projeto:“Gangues, Galeras, Chegados e Rappers”, como resultado da pesquisa em Brasília, “Fala Galera”, frutoda pesquisa no Rio de Janeiro, “Ligado na Galera”, produto de Fortaleza, e “Jovens de Curitiba:Esperanças e Desencantos”.
9
ensino fundamental e médio, públicas e privadas de 14 capitais brasileiras9. Esse projeto
visa, com base nas percepções e proposições de alunos, pais de alunos, professores,
diretores e outros atores da comunidade escolar: identificar os incidentes de violência
nas escolas, os fatores de vulnerabilidade escolar, experiências bem-sucedidas de
combate à violência na escola e de prevenção às doenças sexualmente transmissíveis
(DST), à Aids ao uso indevido de drogas; realizar um diagnóstico das informações,
atitudes, práticas e comportamentos de jovens e adolescentes escolarizados acerca da
prevenção de DST e AIDS e uso de drogas10.
Em acordo com os seus objetivos, os desenhos amostrais construídos para
ambos os projetos não previam a realização de inferências para toda a população jovem
brasileira. Isto significa dizer que os dados provenientes do projeto Juventude
Violência e Cidadania nas Cidades do Brasil permitem apenas inferências para as
cidades que abrange, do mesmo modo que os do projeto Violência, Aids e Drogas nas
Escolas, permitem apenas para o conjunto das 14 capitais pesquisadas.
Conseqüentemente, a análise desse artigo não pode ultrapassar esses limites sem correr
em um risco de erro imprevisível. Assim, optou-se por sempre identificar com as
iniciais do respectivo projeto a origem dos dados apresentados, afim de que o leitor
possa, também, controlar a abrangência das análises. Mesmo contando com essas
limitações a análise dessas informações permite levantar um quadro muito próximo da
realidade de uma grande parcela dos jovens brasileiros, o que justifica o mérito deste
artigo.
3.1 Educação e Trabalho: Expectativas e Realidade Percebidas por Jovens
Com base nos dados colhidos pelo projeto Violência Aids e Drogas nas
Escolas, observa-se uma diferença a rede pública de ensino fundamental e médio e a
rede privada no que se refere à classe social de seus alunos. Como pode ser observado
9 As capitais pesquisadas foram: Manaus e Belém, na região Norte; Fortaleza, Recife, Maceió e Salvador,
no Nordeste; Distrito Federal, Goiânia e Cuiabá, no Centro-Oeste; Vitória, Rio de Janeiro e São Paulo,na região Sudeste; e Porto Alegre e Florianópolis na região Sul.
10 Parte dos resultados desse projeto já foram lançados em dois livros: “Avaliação das Ações dePrevenção às DST/Aids e o Uso Indevido de Drogas nas Escolas de Ensino Fundamental e Médio emCapitais Brasileiras” e “Violências nas Escola”. Estando ainda sendo produzidos mais dois livros quecompletaram os objetivos do projeto: “Drogas nas Escolas” e “Sexualidade dos Jovens de Escolas deEnsino Fundamental e Médio em Capitais Brasileiras”.
10
na Tabela 5, embora 63% dos alunos no total pertencerem a classe C, 97% dos alunos
da rede pública são das classes D e C, enquanto o 93% dos alunos das escolas privadas
pertencem as classes C e B.
Tabela 5. Classe social dos alunos de ensino fundamental e médio, por dependênciaadministrativa da escola, 2000 (%)
Dependência AdministrativaClasse Social
Pública Privada TotalClasse D 33,0% 5,6% 27,4%Classe C 64,4% 58,9% 63,2%Classe B 2,5% 34,5% 9,1%Classe A 0,1% 1,0% 0,3%
Total 100% 100% 100%Fonte: Pesquisa Nacional Violência, Aids e Drogas nas Escolas, UNESCO, 2000.
Nas escolas públicas e privadas do conjunto das 14 capitais pesquisadas, 65%
apenas estudam, 21% já trabalham, 10% fazem algum “bico” e 4% estão
desempregados. Como observado para a população em geral (Tabela 3), também são os
jovens pesquisados com maior idade os que mais se declaram trabalhar. A participação
no mercado de trabalho dos jovens entre 20 e 24 anos é, aproximadamente 2,5 vezes
maior do que entre os jovens de 15 a 19 anos.
Como pode ser observado na Tabela 6, os alunos de escola pública contribuem
mais para o sustento da família do que os alunos de escola particular. A participação no
sustento da família é muitas vezes determinante para que o trabalho seja para esses
jovens não uma opção mas uma necessidade; assim ao invés de se dedicarem aos
estudos se vêem impelidos a se lançarem, muitas vezes prematuramente, no mercado de
trabalho.
Tabela 6. Participação do trabalho do aluno no sustento da família, segundo pordependência administrativa, 2000 (%)
Dependência Administrativa
Contribui para o sustento da Família:Pública Privada Total
Sim 68% 39% 65%Não 32% 61% 35%
Total 100% 100% 100%Fonte: Pesquisa Nacional Violência, Aids e Drogas nas Escolas, UNESCO, 2000.
Sobre a percepção da utilidade da escola, em que pese as diferenças apontadas
anteriormente, a maioria dos alunos, tanto das escolas públicas quanto das escolas
privadas, acredita que as coisas que a escola consegue ensinar são úteis e necessárias
11
para o futuro (Tabela 7). Se somar a esses os que consideram que o ensinado, apesar de
não ser útil nem necessário, interfere nas oportunidades de trabalho, obtém-se quase a
totalidade dos que acreditam aprender alguma coisa na escola.
Tabela 7. Percepção de alunos sobre a utilidade da escola, por dependênciaadministrativa da escola, 2000 (%)
Dependência AdministrativaO Ensinado nas Escolas são coisas
Pública Privada TotalNecessárias para a vida, úteis para o futuro 81,3% 78,7% 80,7%Não são úteis nem necessárias, mas sem elasnão terá chance de trabalho
15,8% 19,4% 16,6%
Não são úteis, nem necessárias e não tem aschances de trabalho
2,9% 1,9% 2,8%
Não aprendo nada na escola 0,7% 0,6% 0,3%Total 100% 100% 100%
Fonte: Pesquisa Nacional Violência, Aids e Drogas nas Escolas, UNESCO, 2000.
Como pode ser observado na Tabela 8, a utilidade da escola vem em encontro
com o ambicionado pela maioria dos jovens, que é conquistar de uma boa profissão para
que possa ter um futuro feliz.
Tabela 8. Percepção de alunos sobre o mais importante para um futuro, pordependência administrativa da escola, 2000 (%)
Dependência AdministrativaO mais importante para um futuro feliz
Pública Privada TotalTer uma boa profissão 45% 37% 43%Formar uma família 20% 27% 22%Poder ajudar a sua comunidade 12% 7% 11%Ser respeitado 8% 7% 8%Ter dinheiro 6% 6% 6%Ter uma vida de aventuras, de emoção 4% 7% 5%Viajar, conhecer outros lugares 3% 6% 4%Ser importante, famoso 3% 2% 3%
Total 100% 100% 100%Fonte: Pesquisa Nacional Violência, Aids e Drogas nas Escolas, UNESCO, 2000.
De fato, ao serem questionados sobre suas perspectivas com relação ao futuro,
alunos de escolas públicas e privadas demonstram, em seus depoimentos, ter como
objetivos terminar seus estudos básicos (ensino médio), o que os tornaria aptos a lançar-
se futuramente num mercado de trabalho cada vez mais competitivo, inserido em uma
sociedade em que ter estudo torna-se uma de suas principais imposições:
Quanto mais dias eu tiver de vida, mais eu quero estudar, mais eu quero ler
porque no Brasil se você não é artista, se você não é ladrão, a única forma de
12
você conseguir alguma coisa é estudando. É algo muito importante! (VADE,
Grupo Focal de Alunos, Escola Pública, Recife)
Sim, porque se a gente não pensar no futuro hoje em dia, está praticamente
perdido. Porque o principal hoje em dia é pensar no futuro, é estudar muito
para conseguir um emprego e ser alguém na vida. (VADE, Grupo Focal de
Alunos, Escola Privada, Belém)
Nesse contexto otimista em relação aos estudos, os depoimentos de alunos de
ambas as redes de ensino ressaltam o vínculo com a construção de uma vida melhor e
digna tanto para os alunos quanto para toda a família e oportunidade de se obter
segurança financeira no futuro:
(...) eu quero arranjar um emprego, fazer alguma coisa para ajudar em casa,
ajudar meus pais, ajudar meus avós, dá uma boa condição a minha família, não
é só para comprar coisas para mim (...) (VADE, Grupo Focal de Alunos, Escola
Privada, Salvador)
Eu quero estudar e poder trabalhar, um emprego justo que eu possa ajudar
minha família, e minha mãe principalmente, dar um futuro melhor para o meu
filho, que futuramente eu pretendo ter (...) (VADE, Grupo Focal de Alunos,
Escola Privada, Recife)
Porém, embora a maioria dos alunos concorde que o que é ensinado pela escola,
pública ou privada, é de alguma forma importante para o futuro, a capacidade das
escolas que freqüentam em transmitir esse conhecimento é visto de forma diferenciada,
segundo a dependência escolar. Na Tabela 9, comparando as opiniões de alunos de
escolas públicas e privadas, constata-se que os últimos estão mais contentes com o que a
escola transmite, enquanto a maioria dos alunos da rede pública crê que o ensinado pela
escola é pouco ou nada.
Tabela 9. Percepção de alunos sobre a suficiência do ensinado na escola, pordependência administrativa da escola, 2000 (%)
Dependência AdministrativaA Escola consegue ensinar:
Pública Privada TotalMuito ou Bastante 42,2% 66,2% 47,1%Pouco ou Nada 57,8% 33,8% 52,9%
Total 100% 100% 100%Fonte: Pesquisa Nacional Violência, Aids e Drogas nas Escolas, UNESCO, 2000.
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Nesse sentido, os depoimentos de alunos de escolas públicas revelam que além
de freqüentar a escola é necessário procurar sempre fazer cursos, como os de
informática, para conseguir entrar e obter chances promissoras no mercado de trabalho.
Esses os jovens demonstram ter consciência de que o mercado de trabalho está cada
mais seletivo e exigente com relação à escolha de seus profissionais e que, diante das
diversas dificuldades a qualificação para a inserção no mercado de trabalho, é a solução
mais apontada:
É importante terminar o ensino médio para ter um bom emprego, ter curso de
computação. Para ter um futuro melhor, hoje eles estão exigentes. (VADE,
Grupo Focal de Alunos, Escola Pública, Fortaleza)
Porque em qualquer empresa que você chega, pergunta se você tem curso de
computação, pergunta se você tem Internet, pergunta se você tem segundo. (...)
É, porque o mercado de trabalho está muito difícil. (VADE, Grupo Focal de
Alunos, Escola Pública, Salvador)
Assim, os jovens ainda enfatizam que é essencial para se conseguir um bom
emprego, não apenas o término do ensino médio, mas sua continuidade por meio da
realização de um curso superior, o qual lhes permitiria uma maior possibilidade de
ascensão social: Em relação aos estudos, primeiro objetivo é terminar o 2º grau,
[depois] prestar vestibular, e fazer faculdade. Você tem sempre que quer mais, buscar
mais, não ficar para trás, poder subir na vida. (VADE, Grupo Focal de Alunos, Escola
Pública, Florianópolis)
Como é possível verificar através da Tabela 10, a crença de que o ensinado pela
escola é insuficiente para o futuro aumenta com o avanço da idade. Assim, entre os
jovens pesquisados observou-se que são os da faixa etária de 21 a 24 anos os que mais
creditam que a escola é insuficiente para as exigências do mercado de trabalho. Uma
possível explicação para essa descrença seja o fato de serem esses jovens os que,
relativamente, mais estão engajados ou tentando ingressar no mercado de trabalho e
portanto possuem uma visão mais intima das exigências feitas aos candidatos a
empregos.
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Tabela 10. Percepção de alunos sobre a utilidade do ensinado na escola, segundofaixa etária, 2000 (%)
Faixa Etária (anos)A Escola consegue ensinar: 15 a 17 18 a 20 21 a 24 Total
Muito ou Bastante 50,6% 39,3% 41,3% 47,1%Pouco ou Nada 49,4% 60,7% 58,7% 52,9%TOTAL 100% 100% 100% 100%Fonte: Pesquisa Nacional Violência, Aids e Drogas nas Escolas, UNESCO, 2000.
Nos depoimentos de alunos, colhidos nas 14 capitais pesquisadas em Violência,
Aids e Drogas nas Escolas, fica evidente que, apesar da maioria dos alunos se referirem
ao fato de que a inserção no mercado de trabalho está vinculada à qualidade
diferenciada do trabalho daqueles que têm escolaridade, o desestímulo à continuidade
do estudo é presente, tendo em vista que a titulação por si só não garante colocação no
mercado de trabalho altamente competitivo:
Um amigo meu (...) estudou e já terminou os estudos todinhos. Já tem vários
cursos, mas ele não está trabalhando. (VADE, Grupo Focal de Alunos, Escola
Pública, Fortaleza)
(...) Ah! Eu não vou te dar esse emprego porque você não terminou os estudos,
você é burro, você é isso, você é aquilo, se bem eu conheço bastante pessoas que
têm diploma e que está desempregado. (VADE, Grupo Focal de Alunos, Escola
Pública, Cuiabá)
O poder aquisitivo, a disponibilidade de tempo e a possibilidade de estudar em
bons colégios são fatores que interferem nas possibilidades de sucesso futuro. Assim, na
própria percepção dos jovens, os alunos de escolas privadas possuem um futuro
diferente e mais promissor do que o reservado para os alunos das escolas públicas.
Como exemplo, a terceira etapa da educação, a universidade, fica muito distante para os
alunos da rede pública, considerando a possibilidade de arcar com as despesas relativas
a uma escola privada, assim como uma boa colocação no mercado de trabalho,
comprometendo o seu futuro:
[Se] a gente for enfrentar uma faculdade, aí já fica um pouco mais complicado
pelo fato de ter estudado em escola pública. É bem mais atrasado o ensino, é
uma coisa mais devagar. Acaba que você vai entrar numa faculdade ruim, nas
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federais só entra que estuda em colégio particular. Como a gente vai concorrer
então? (VADE, Grupo Focal de Alunos, Escola Pública, Rio de Janeiro)
O vestibular, quando é essas faculdades mais assim, só tem aluno de colégio
privado. Tem muitos alunos inteligentes, capacitados em escola pública, que
não têm condição em relação a material, essas coisas (....) quando for fazer a
prova, eles só vão dar preferência àquele que estudou num colégio melhor,
privado. Eu acho uma injustiça muito grande. (VADE, Grupo Focal de Alunos,
Escola Pública, Fortaleza)
Se por um lado, é forte a percepção dos jovens das escolas brasileiras que existe
uma diferença nas possibilidades de futuro, segundo as condições socioeconômicas dos
indivíduos; por outro lado permanece a idéia de que o investimento na educação é,
ainda, a mais viável fonte de saída e possibilidade de mudança diante das dificuldades
apresentadas pela vida:
Sim, porque se a gente não pensar no futuro hoje em dia, está praticamente
perdido. Porque o principal hoje em dia é pensar no futuro, é estudar muito
para conseguir um emprego e ser alguém na vida. (VADE, Grupo Focal de
Alunos, Escola Privada, Belém)
Esse país que está aí, violência, corrupção tudo, meu futuro é este. Tentar
crescer, aprender cada vez mais, e tentar quem sabe um dia, mudar essa
realidade. (VADE, Grupo Focal de Alunos, Escola Pública, Florianópolis)
Bom para ter um futuro melhor, porque a questão da violência, às vezes,
interfere aquilo nas pessoas, e falar talvez que não estudou e que não tem assim
uma experiência, não consegue um emprego e entra no desespero e, rouba. Aí a
pessoa fica louca e vai fazer as coisas que não deve. (VADE, Grupo Focal de
Alunos, Escola Pública, Vitória)
As percepções dos jovens identificadas no projeto Violência, Aids e Drogas nas
Escolas sobre o ensino e o trabalho também foram verificadas nas pesquisas do projeto
Juventude Violência e Cidadania nas Cidades do Brasil, embora, nesse último, muito
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jovens demonstram menos convicção na escolaridade e na conquista de uma profissão
como garantias de um futuro feliz11.
Em Curitiba, Fortaleza, Rio de Janeiro e Brasília as pesquisas realizadas
reuniram fortes evidencias que os jovens de classes baixas, médias e altas dividem
expectativas e sonhos muito semelhantes para o futuro. Muitos sonham em terminar o
ensino médio e entrar na universidade, onde a maioria pretende fazer os cursos
considerados mais prestigiados ou tradicionais (engenharia, direito, medicina etc.).
Porém, as diferenças começam a surgir quando são confrontados com as suas
expectativas imediatas de futuro.
Enquanto os jovens privilegiados das classes A e B demonstram muita certeza e
confiança no seu ingresso na universidade, detalhando as suas chances em diversos
vestibulares para várias universidades e o porquê da escolha de determinada profissão;
os jovens das classes menos favorecidas romantizam com a universidade e a profissão
desejadas mas planejam uma estratégia de sobrevivência muito menos ambiciosa, como
pode ser verificada nos relatos de uma mesma pessoa em dois momentos do grupo
focal:
11 É bom lembrar que enquanto o universo pesquisado pelo primeiro projeto era formado apenas por
estudantes do ensino médio e fundamental, o analisado pelo segundo projeto eram os jovens residentesnas cidades11, independentemente se estudantes ou não. Essa diferença é importante para explicar asdiferenças entre as percepções dos jovens colhidos nos projetos. Supõe-se que mesmo descontentes, osjovens estudantes ainda possuem alguma crença no valor da educação para o futuro ao passo que omesmo não pode ser tão verdade para a população jovem em geral.
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Momento 1: Jovem responde livremente sobre seus sonhos para o futuroprofissional
O que vocês esperam para o futuro de você?
- Estudar bastante e me formar em enfermeira.-Terminar o supletivo, fazer um cursinho e fazer medicina, que éaudácia, né? Fazer vestibular pra medicina e ser médica.-Eu quero terminar meus estudos e me formar em advocacia(começa a rir), lutar pelo direito de quem merece.
Momento 2: Um pouco mais adiante na entrevistas a mesma jovem falasobre perspectivas imediatas de trabalho:
Alguém aqui trabalha?-Não! (diversos jovens dizem que não mas que tencionam começar)
Em que você vão trabalhar?- Eu vou trabalhar em casa de família como sempre, né? Coitadinha!Mas quando eu passar de ano, fizer o segundo grau, vou fazer umcurso de balconista...- Para ser feliz é importante trabalhar ganhar muito dinheiro,ganhar dois salários...
(JVCCB, Grupo Focal de Jovens, Fortaleza)
Como observado, no momento em que são confrontados à realidade imediata
que os sonhos começam a desmoronar: empregada doméstica - “coitada” é o julgamento
que se impõe, pois sonhava poucos momentos antes em ser médica e agora é
confrontada com o que lhe espera. O mais interessante quando se fala das possibilidades
objetivas, no entanto, é que a tentativa de libertação de um destino profissional nada
encantador de emprega doméstica já não está situada na medicina ou na enfermagem,
mas em concluir o segundo grau (ensino médio) e fazer um curso de balconista. Quando
expressada a felicidade financeira esta indica um horizonte de possibilidades, dois
salários mínimos, dificilmente aceitável por um jovem com melhor renda, aluno de
escola particular por exemplo.
Ainda sobre o confronto entre os desejos para o futuro e a realidade imediata,
outro dado interessante levantado pelas pesquisas realizadas nas quatro capitais é a
diferença de condições de ingresso no mercado de trabalho que separa os jovens de
diferentes camadas econômicas. Além do fato previsível de que os jovens mais pobres
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têm que ingressar mais cedo no mercado de trabalho, diminuindo suas chances de
ficarem integralmente voltados ao estudo, os jovens privilegiados, em via de regra,
ingressarem no mercado de trabalho em atividades de mando ou de treinamento para um
futuro profissional, enquanto os oriundos de classes com menores rendas engrossam o
grupo dos desempregados, dos autônomos e dos empregado em empresas privadas,
demarcando precocemente os lugares sociais que tais jovens irão ocupar desde cedo e
para toda vida.
Os dados relativos à educação e ao trabalho da pesquisa realizada em Brasília
(Abramovay et. al, 1999: 76-84) mostram que é relativamente baixa a inserção no
mercado dos jovens pesquisados (31% afirmaram estar trabalhando) e que, à medida
que cresce a idade, aumenta o número daqueles que não trabalham e tão pouco estudam.
A dificuldade de acesso ao trabalho afeta mais duramente os grupos de menor
escolaridade, trazendo prejuízos a vivência de sua própria juventude desestimulando os
projetos de futuro: “A escolha certa é trabalhar, mas nem sempre as pessoas têm a
mesma escolha. Qualquer lugar que você vai, pedem experiência” (JVCCB, Grupo
Focal de Jovens, Brasília).
Recorrendo a trabalhos eventuais e não formalizados, os chamados bicos, para
responder as necessidades de sobrevivência, os jovens acabam distanciando o trabalho
de qualquer relação com prazer, realização pessoal e mesmo segurança e integração
social.
Desiludidos com a possibilidade de mobilidade social através do trabalho e da
escolarização, muito jovens da periferia da capital federal declararam não querem ser
trabalhadores assalariados, e que sua única alternativa para ter algum conforto ou para
ascender socialmente é se tornarem assaltantes ou se associarem ao tráfico de drogas,
mesmo que para isso tenham que abandonar quaisquer expectativas de um futuro longo,
assumindo para si próprios a possibilidade imediata e concreta da morte:
Se eles não achar trabalhar, com certeza eles falam que não saem da vida deles,
dessas galerinhas, pode-se dizer vida do crime. Nem nós mesmo que podemos
dizer não somos da vida do crime, a gente quase não tem chance, imagina eles
que estão dentro da vida do crime. O que a gente tem chance de ser, o máximo
que chega é ser traficante. O máximo de sonho que a gente tem. O futuro da
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gente aqui é ser traficante. Eu penso em ter uma casa, um carro, uma família,
mas não dá, se a gente quiser ter um futuro vamos ser traficantes. (JVCCB,
Entrevista com Jovem, Brasília)
O futuro, se ele existe – não vou ter futuro não – é negro, fora da lei e perto da
morte e depende de conseguir sair vivo de uma guerra e de poder sobreviver um
novo dia. A vida toda é como se fosse um filme. Hoje em dia, você tá vivo,
amanhã, vê esse quilo de bala perdida, você acabou. (...) A gente sai daqui, de
repente ta rolando uma guerra ali. Pode uma bala pegar ni mim. (JVCCB,
Entrevista com Jovem, Brasília)
O cenário estabelecido pela exclusão social, onde é negado aos jovens das
camadas com menores rendas os meios de amadurecimento e capacitação que os
permitiria conseguir uma inserção social baseada em um trabalho capaz de satisfazer
além de suas necessidades mínimas de sobrevivência, se torna propício ao
enquadramento dos jovens no papel de perpetrador e de vítima da violência
(Abramovay et. al. 2002a.).
As conseqüências desse cenário são fáceis de serem constatadas. De acordo com
dados divulgados pela UNESCO nas principais capitais brasileira cerca de 52,3 % das
mortes da coorte entre 15 a 25 anos seria por violência conjunta, isto é: (homicídios,
suicídios e acidentes de transporte). Na população em geral, só 8,7% dos óbitos deve-se
a violência conjunta. (Waiselfisz, 2000). Segundo dados da CEPAL para a América
Latina e Caribe, o Brasil é um dos países com maiores taxas de mortalidade por causas
externas no grupo de 15 a 24 anos, ao lado da Colômbia e El Salvador, sendo que a
maioria das vítimas são homens, solteiros, de estratos socioeconômicos mais baixos e
que abandonaram o sistema escolar (CEPAL, 1999).
4. Conclusão
O artigo mostrou, com base em dados das PNADs, que os níveis de pobreza e
indigência no Brasil persistiram ao longo das últimas décadas, com exceções para o
momento de implantação de dois planos de estabilização econômica: o Plano Cruzado e
o Plano Real, mas que somente os impactos do segundo se sustentaram. Sobre esses
dados, argumentou-se que a pobreza e a indigência no Brasil possuem na má
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distribuição de renda sua causa principal. Essa por sua vez, permaneceu marcante
inclusive no recente período de implantação do Plano Real.
Verificou-se que a juventude brasileira está exposta ao mesmo quadro de
desigualdade e concentração de renda que afeta o país, configurando um cenário onde
significativa parcela desses jovens tem negado o acesso aos insumos, em especial
educação e trabalho de qualidades, fundamentais para o aproveitamento das
oportunidades oferecidas pelo Estado, mercado e sociedade que os fariam ascender
socialmente.
Em que pese às diferenças econômicas e sociais entre os jovens brasileiros,
foram detectados pontos em comum nas percepções desses jovens sobre a escola,
atribuindo papel fundamental na preparação para o ingresso no mercado de trabalho, e
nas expectativas e sonhos profissionais para o futuro. Por outro lado, percebeu-se que o
jovem é, em sua maioria, ciente que a concretização de seus projetos depende do acesso
a estruturas de oportunidades condizente com as exigências de qualificação que o
mercado de trabalho e que esse acesso não está à disposição de outros.
Defrontados com a realidade excludente, resta aos jovens das camadas com
menores rendas, reverem suas estratégias de ascensão profissional, se desfazendo dos
sonhos com a universidade e profissões de prestigio social. Para uns a opção é a
inserção precoce no mercado de trabalho em postos de má qualificação e remuneração.
Para outros essa opção acaba descaracterizando o trabalho como uma atividade capaz de
ir além de meio de sobrevivência, abrindo a possibilidade de buscarem na atividade
criminosa os recursos para ascensão social e econômica que desejam. Essa opção tem
como conseqüência mais imediata o aumento das estatísticas da violência entre a
população jovem brasileira
É preciso ter claro que a pobreza, fruto da concentração de renda, cria fatores de
risco, que reduzem a esperança de vida e depreciam a sua qualidade. A pobreza,
principalmente quando atinge crianças e jovens, cria deficiências que comprometem não
somente o futuro dos indivíduos, mas o futuro da sociedade em conjunto. Para a
transformação dessa realidade inaceitável é imperativo reduzir a desigualdade
econômica e social, através da adoção de políticas públicas que permitam ou aumentem
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o acesso dos jovens aos insumos econômicos e culturais necessários à aquisição e
aperfeiçoamentos das habilidades indispensáveis para a integração e ascensão social.
5. Bibliografia
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