ecos de lilith
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULOFACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANASDEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA PORTUGUESA
SHEILA PELEGRI DE SÁ
ECOS DE LILITH
UM OLHAR PARA A CONSTRUÇÃO DA FEMINILIDADE EM ROMANCES
PORTUGUESES PÓS-REVOLUÇÃO
São Paulo2009
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULOFACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANASDEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA PORTUGUESA
ECOS DE LILITH
UM OLHAR PARA A CONSTRUÇÃO DA FEMINILIDADE EM ROMANCES
PORTUGUESES PÓS-REVOLUÇÃO
Sheila Pelegri de Sá
Tese apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Literatura Portuguesa, do
Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas
da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo, para
obtenção do título de Doutor em Letras.
Orientadora: Profa. Dra. Marlise Vaz Bridi
São Paulo2009
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Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meioconvencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada afonte.
Sá, Sheila Pelegri de
Ecos de Lilith: um olhar para a construção da feminilidade emromances portugueses pós-Revolução / Sheila Pelegri de Sá. SãoPaulo: USP / FFLCH, 2009.
ix, 219 f. ; 29,7 cm.
Orientador: Marlise Vaz Bridi
Tese (Doutorado) – Universidade de São Paulo, Faculdade deFilosofia, Letras e Ciências Humanas, Programa de Pós Graduaçãoem Literatura Portuguesa, 2009.
Banca examinadora:
Referências Bibliográficas: f.213-218
1. Feminilidade. 2. Ficção Contemporânea. 3. Psicanálise 4.Literatura Portuguesa. – TESE. I. Bridi, Marlise Vaz. II. USP,FFLCH, DLCV. III. Título.
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Para as mulheres da minha vida:
Luiza, Nanci, Soraia, Regiane (Tica), Márcia e Bianca.
Com o meu amor,
Pelo seu amor.
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Meus especiais agradecimentos
À minha querida e inesquecível orientadora,Prof. Drª Marlise Vaz Bridi,
pela fé cega com que me agregou à sua vida,
Ao Programa de Pós-Graduação em Literatura Portuguesa,da FFLCH-USP, pela viabilização desta pesquisa,
Às Profªs Drªs Lilian Jacoto, Cleusa Rios, e Maria das Graças G. V. Silva, pela importante colaboração – certamente sub-aproveitada.
Aos amigos, pelo carinho, pela aposta, pela confiança.
Aos alunos e colegas de trabalho, pela compreensão, paciência e bons fluidos emanados.
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RESUMO
O exame da narrativa ficcional permite a abordagem, para além do
universo da teoria literária, de questões discursivas que refletem índices históricos,
sociológicos e antropológicos, dentre os quais a construção da identidade de
gênero. Neste sentido, o instrumental psicanalítico favorece a análise do sistema de
referentes que constitui a feminilidade. Interessa, aqui, refletir acerca da feminilidade
contemporânea – inserida no contexto português do período ditatorial e construída
discursivamente no período pós-revolucionário. Tal feminilidade apresenta-seavessa, muitas vezes, aos valores sedimentados no pensamento ocidental judaico-
cristão, que atribuem à mulher uma posição inferior, passiva e – no limite – castrada.
Ao enfocar personagens femininas presentes em alguns exemplares da
prosa portuguesa das últimas três décadas, pretende-se localizar um outro
paradigma, que corre à margem dos padrões sociais vigentes: o da mulher libertária,
independente, ativa, enfim, que rompe o “compromisso” com as regras da família,
sociedade e religião. Cabe observar que quatro das personagens ora abordadas são
discursivamente constituídas a partir de uma perspectiva masculina, tanto do ponto
de vista do foco narrativo, quanto do ponto de vista autoral. O contraponto se dá
com a escolha de uma personagem feminina fruto da perspectiva autoral feminina.
Para a realização da abordagem proposta, são percorridos cinco romances, a saber:
Balada da Praia dos cães e Alexandra Alpha, de José Cardoso Pires, Vícios e
Virtudes e Pedro e Paula, de Helder Macedo e A Costa dos Murmúrios, de Lidia
Jorge.
Palavras-chave: Literatura Portuguesa – Feminilidade – Narrativa – Ficção
Contemporânea – Psicanálise.
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ABSTRACT
The investigation of fictional narrative leads to an approach beyond the
universe of literary theory, discursive issues representing historical, sociological and
anthropological insights, among which the genre identity may be cited. In this way,
the psychoanalytical tools enable the analysis of the referring systems which
constitute the femininity. This work reflects upon the contemporaneous femininity
which has been inserted in the Portuguese context within the dictatorship period, and
built up discursively in a post-revolutionary era. Most times this femininity proves
itself to be contrary to the moral values established by the western Jewish – Christian
thoughts; such values set women mostly to an inferior, passive, submissive and
castrated position.
By focusing on female characters in the Portuguese prose from the last
three decades, another paradigm is brought up, mainly sideways to the imposed
common social patterns: the libertarian, active and independent woman is brought to
life, the one who breaks away from rules imposed by family, society and religion. It is
relevant to observe that four of such characters are discursively constituted from a
male perspective, within the narrative and authorial focus. The counterpoint is set in
the choice of a female character, based on a feminine authorial perspective. For this
proposed approach to take place, five novels have been fully taken into
consideration: Ballad of Dog’s Beach and Alexandra Alpha, from José Cardoso
Pires, Virtue and Vices and Peter and Paula, by Helder Macedo and The
Murmuring Coast, by Lidia Jorge.
Key words: Portuguese Literature – Femininity – Narrative – Contemporaneous
Fiction – Psychoanalysis.
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Há cidades cor de pérola onde as mulheres existem velozmente.Onde às vezes param, e são morosas por dentro.Há cidades absolutas, trabalhadas interiormente pelo pensamento das mulheres.Lugares límpidos e depois nocturnos, vistos ao alto como um fogo antigo, ou como um fogo juvenil.Vistos fixamente abaixados nas águas celestes.Há lugares de um esplendor virgem, com mulheres puras cujas mãos estremecem.Mulheres que imaginam num supremo silêncio, elevando-se sobre as pancadas da minha arte interior.
Há cidades esquecidas pelas semanas fora.Emoções onde vivo sem orelhas nem dedos.Onde consumo uma amizade bárbara.Um amor levitante.Zona que se refere aos meus dons desconhecidos.Há fervorosas e leves cidades sob os arcos pensadores.Para que algumas mulheres sejam cândidas.Para que alguém bata em mim no alto da noite e me diga o terror de semanas desaparecidas.Eu durmo no ar dessas cidades femininas cujos espinhos e sangues me inspiram o fundo da vida.Nelas queimo o mês que me pertence. A minha loucura, escada sobre escada.
Mulheres que eu amo com um desespero.Fulminante, a quem beijo os pés supostos entre pensamento e movimento.Cujo nome belo e sufocante digo com terror, com alegria.Em que toco levemente a boca brutal.Há mulheres que colocam cidades doces e formidáveis no espaço, dentro de ténues pérolas.Que racham a luz de alto a baixo e criam uma insondável ilusão.
Dentro de minha idade, desde a treva, de crime em crime - espero a felicidade de loucas delicadas mulheres.Uma cidade voltada para dentro do génio, aberta como uma boca em cima do som.Com estrelas secas.Parada.
Subo as mulheres aos degraus.Seus pedregulhos perante Deus.
É a vida futura tocando o sangue de um amargo delírio.Olho de cima a beleza genial de sua cabeça ardente:- E as altas cidades desenvolvem-se no meu pensamento quente.
Herberto Helder
Em certas vidas (eu acrescentaria, em todas) há circunstâncias que projectam o indivíduo para significações do domínio geral. Um acaso pode transformá-lo em matéria universal - matéria histórica para uns,matéria de ficção para outros, mas sempre justificativa de abordagem.
Interrogamo-la, essa matéria, porque ela nos interroga no fundo decada um de nós.
José Cardoso Pires
Por que ser dominada por você?Contudo eu também fui feita de pó e por isso sou tua igual.
Lilith
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SUMÁRIO
I - Introdução................................................................................................. ... p. 09
II - Mena e Joana: os olhares do marialvismo.............................................. ... p. 32
III – Paula e Alexandra: outras mulheres, outros olhares ............................. p. 80
IV – Sobre Evas, Liliths e Marias.................................................................. ... p. 161
V - Considerações Finais....................................................................... ... p. 200
Literatura e construção da identidade............................................ ... p. 201
As voltas do feminino.................................................................... ... p. 204
Espelhamentos e Revoluções: as novas Liliths Lusitanas.............. ... p. 207
VI - Referências Bibliográficas...................................................................... ... p. 212
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I
INTRODUÇÃO
A arte é uma realidade convencionalmente aceita, na qual,graças à ilusão artística, os símbolos e os substitutos são
capazes de provocar emoções reais. Assim, a arte constitui ummeio-caminho entre uma realidade que frustra os desejos e o
mundo de desejos realizados da imaginação.
Sigmund Freud, O interesse científico da Psicanálise.
O atual avanço da mulher na sociedade não é uma viagem domito para a verdade, mas do mito para um novo mito. Aascensão da mulher racional, tecnológica, pode exigir a
repressão de realidades arquetípicas desagradáveis.
Camille Paglia, Personas Sexuais.
Tendo em vista que a forma romanesca figura, no contexto da arte
contemporânea, como uma das mais bem sucedidas vias de representação do
sujeito, tanto no que se refere à sua constituição e afirmação enquanto indivíduo,
quanto à sua alocação em relação ao meio e ao momento histórico, observa-se que
o estudo de tal forma literária favorece a abordagem da definição de identidades.
Pode-se dizer, na esteira de Stuart Hall (2005), que a questão da
identidade encontra-se na mira da teoria social. Isso se justifica, principalmente, pelo
fato de se encontrarem as velhas identidades – aquelas que por muito tempo
estabilizaram o mundo social – em franco declínio. Assim, a cada dia, ganham mais
espaço no olhar contemporâneo as constituições identitárias que melhor
representam o homem moderno, uma vez que permitem visualizar a sua natureza
fragmentária.
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Hall (2005, p. 10) distingue três diferentes concepções de identidade: a do
sujeito do Iluminismo, a do sujeito sociológico e a do sujeito pós-moderno.
A primeira traz em sua essência a noção de unificação, que finda
ultrapassada atualmente, a segunda, por sua vez, anuncia as transformações
sofridas pelo sujeito a partir do seu contato com a complexidade do mundo moderno.
É, entretanto, a terceira concepção explorada por Hall - a de sujeito pós-moderno -
que favorece a discussão ora iniciada, uma vez que resulta, grosso modo, dos
processos de descentramento e fragmentação sofridos pela identidade moderna ao
longo da chamada modernidade tardia.
Stuart Hall (2005, p. 34-46) explana a sua tese de descentramento do
sujeito cartesiano a partir de cinco importantes avanços nas ciências humanas ao
longo do século XX, a saber: a reinterpretação do pensamento marxista, a
descoberta do inconsciente por Freud - bem como os estudos acerca da
personalidade subseqüentes e derivados dela - o trabalho do lingüista estrutural
Ferdinand Saussure, abordagem genealógica do sujeito moderno proposta por
Michel Foucault e, por fim, o impacto do feminismo, tanto como crítica teórica quanto
no papel de movimento social.
É com base no pensamento de Freud que se torna possível pensar a
identidade, a sexualidade e a estrutura dos desejos humanos como sendo formadasa partir de processos psíquicos e simbólicos do inconsciente, que em nada se
assemelham ao conceito de sujeito cartesiano, racional, dotado de identidade fixa e
unificada.
Mais tarde, ao interpretar o texto freudiano, Lacan (apud Hall, 2005)
expõe a sua “teoria do espelho”, segundo a qual o “eu” se forma a partir do olhar do
“Outro”, com o início da relação da criança com os códigos simbólicos fora dela
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mesma, favorecendo a sua entrada nos sistemas de representação, que incluem a
língua, a cultura e a diferenciação sexual. Assim, os sentimentos contraditórios e
não resolvidos, que são aspectos-chave da formação inconsciente do sujeito – e que
o deixam dividido – o acompanham por toda a vida.
Paralelamente, o feminismo, que eclode enquanto movimento social
significativo durante a década de 1960 (para Hall, o grande marco da modernidade
tardia), contribui para o descentramento conceitual do sujeito cartesiano e
sociológico, à medida que questiona a distinção entre o “dentro” e o “fora”, o
“público” e o “privado”, promove a discussão acerca de questões como a família, a
sexualidade, o trabalho doméstico, o cuidado com as crianças, etc. e –
principalmente – enfatiza a maneira como o sujeito é formado e produzido
socialmente de modo genérico, ou seja, permite politizar a questão da subjetividade
e o processo de identificação, inclusive de gênero, questionando a noção de
“Humanidade” como um todo e enfatizando a questão da diferença sexual . O
feminismo, assim, contribui para uma discussão acerca da construção da identidade
de gênero.
Interessa, aqui, identificar e apontar os mecanismos que corroboram para
a expressão de um tipo específico de identidade de gênero – o feminino – no
contexto da produção romanesca portuguesa dos últimos trinta anos.Do ponto de vista da psicanálise freudiana, para definir a noção de
feminilidade1 é preciso considerar que, até certo ponto do desenvolvimento
psicossexual, meninos e meninas caminham na mesma direção, compartilham a
mesma constituição. Há um momento, no entanto, a partir do qual as meninas
1 O termo feminilidade será aqui utilizado com base em sua acepção psicanalítica, tendo sido sugerido por Freude retomado por seus leitores, conforme explicitado nos pressupostos teóricos desta tese. Neste contexto nãopreserva, por isso, qualquer relação direta com o conceito de feminismo.
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podem se tornar mulheres.
Embora masculino e feminino coexistam como facetas da subjetividade
humana por toda a vida, Maria Cristina Poli (2007, p. 31) afirma que é preciso
considerar que, na sexualidade infantil, a disposição masculina é predominante:
tanto a libido, pela sua tendência à atividade, quanto o desconhecimento da
diferença entre os sexos pelo inconsciente, dominado pela primazia do falo.
Segundo Freud (1969-80)2:
As mulheres podem demonstrar grande atividade, em diversos
sentidos; os homens não conseguem viver em companhia dos desua própria espécie, a menos que desenvolvam uma grande dose deadaptabilidade passiva. Se agora os senhores me disserem queesses fatos provam justamente que tanto os homens como asmulheres são bissexuais, no sentido psicológico, concluirei quedecidiram, na sua mente, a fazer coincidir ‘ativo’ com ‘masculino’ e‘passivo’ com ‘feminino’.
A controversa exposição acerca do feminino na extensa obra freudiana
permite, ainda assim, inferir algumas interpretações para a noção de feminilidade,dentro das quais a mais consagrada corresponde à posição de passividade
pulsional , perspectiva que baliza a análise aqui apresentada.
Abordar a feminilidade expressa na ficção portuguesa contemporânea
permite avaliar em que medida a literatura produzida no contexto pós-Revolução dos
Cravos revela, discute e representa a posição da mulher portuguesa, imersa no seio
de uma sociedade fundada em valores patriarcais que são, em certo sentido,
profundamente conservadores. O 25 de abril, como acontecimento histórico, operou
uma significativa transformação na vida dos portugueses, modificando as instituições
sociais e, sobretudo, influenciando o âmbito artístico.
A ficção portuguesa pós-Revolução representa, dessa forma, um espaço
de abertura no campo artístico, uma vez que permite o distanciamento temporal que
2 Conferência XXIII – Feminilidade.
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oferece uma visão mais abrangente da sociedade, sua ética e seus valores.
Assim, torna-se justificável observar os mecanismos por meio dos quais o
fim da censura salazarista influenciou a atividade escritural dos autores, no caso da
ficção portuguesa contemporânea, pois pode ser demonstrada uma estreita
vinculação entre as alterações sociais e a renovação do próprio percurso artístico
dos escritores portugueses anteriores e subseqüentes a 1974.
O especial interesse pelas narrativas nas quais o presente diegético está
situado ao longo do período conhecido como ditadura salazarista reside, sobretudo,
nas características do referido regime, e nas conseqüências – diretas e indiretas –
que uma organização social e política dessa natureza imprime nas artes e nos
saberes locais.
O regime ditatorial português, que se inicia em 1926 com a derrubada –
por meio de golpe militar - da República Parlamentar instaurada em Portugal em
1910, é oficializado a partir de 1928 e perdura até o ano de 1974. Marcado pela
inspiração no modelo político de Mussolini, tem como Ministro da Fazenda Antonio
de Oliveira Salazar, convidado por Óscar Carmona para assumir o cargo.
Em 1930, Salazar funda a União Nacional, movimento ultranacionalista de
pretensões corporativistas, assumindo, em 1932, a condição de chefe de Estado, e
dando início a um regime totalitário e com nuances populistas.Com a constituição de 1933, que oficializa o Estado Novo, Salazar passa
a Presidente do Conselho, dispondo de plenos poderes e instaurando um regime
protecionista, isolacionista, em que imperam a exaltação patriótica, o
conservadorismo e a perseguição sistemática aos opositores do regime.
Os três pilares valorativos do governo de Salazar são a Igreja, a Pátria e a
Família. Ele permanece no cargo até 1968, quando, por problemas de saúde, é
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substituído por Marcello Caetano, e vem a falecer em 1970.
Dessa forma, o salazarismo impõe ao povo português, ao longo de mais de
quatro décadas, um chefe, Oliveira Salazar, um partido, a União Nacional, uma
polícia política, a PIDE, além de prisões especiais para políticos, censura, proibição
dos sindicatos, uma milícia armada, a Legião Portuguesa, um enquadramento da
juventude, a Mocidade Portuguesa, o estreitamento das relações com a Igreja, uma
postura conservadora em relação às colônias – chamadas territórios ultramarinos –
e a propagação de um sentimento de antiparlamentarismo, antimarxismo e
antidemocracia.
Além disso, na esteira dos valores familiares tradicionais, promove a
subalternização da mulher face ao homem, o chefe de família, e o controle da
cultura e dos movimentos artísticos, na forma de propaganda do regime.
Após décadas de sistemática recusa em democratizar as bases políticas,
econômicas e culturais do país, bem como em promover o diálogo com outras
nações - que resulta na política do “orgulhosamente sós” - e de um longo e doloroso
processo de resistência às tentativas de libertação das colônias ultramarinas, que
promove uma sangrenta guerra espalhada pela Guiné, Moçambique e Angola,
finalmente, em 25 de abril de 1974, o governo de Marcello Caetano é deposto por
um levante militar, promovido pelo Movimento das Forças Armadas, e encabeçado,sobretudo, por aqueles oficiais retornados das guerras em África.
Nas primeiras horas da manhã, a declaração de queda do regime é
veiculada nas rádios e, pelas ruas, multidões caminham juntamente com o exército,
que recebe cravos vermelhos dos passantes, razão pela qual o movimento recebe a
designação de Revolução dos Cravos.
No dia seguinte, forma-se a Junta de Salvação Nacional, constituída por
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militares, e que procederá a um governo de transição. O essencial do programa do
MFA é resumido nos três D: Democratizar, Descolonizar, Desenvolver.
Entre as medidas imediatas da revolução, está a extinção da polícia
política (PIDE/DGS) e da Censura. Os partidos políticos e sindicatos livres são
legalizados. Em 26 de abril são libertados os presos políticos da Prisão de Caxias e
de Peniche. Os líderes políticos da oposição no exílio voltam ao país nos dias
seguintes. Passada uma semana, o 1º de Maio é celebrado legalmente nas ruas
pela primeira vez em muitos anos. Em Lisboa reúnem-se cerca de um milhão de
pessoas.
Portugal passa, então, por um período conturbado, que dura cerca de
dois anos, comumente referido como PREC (Processo Revolucionário Em Curso),
período esse marcado pela luta e pela perseguição política entre as facções de
esquerda e direita. São nacionalizadas as grandes empresas e perseguidas
personalidades que se identificam com o Estado Novo, ou não partilham da mesma
visão política que então se estabelece para o país. No dia 25 de Abril de 1975
realizam-se as primeiras eleições livres, para a Assembléia Constituinte, nas quais o
Partido Socialista sai vitorioso. É elaborada uma nova Constituição, de forte pendor
socialista, e estabelecida uma democracia parlamentar. A constituição vem a ser
aprovada em 1976 pela maioria dos deputados.A guerra colonial finalmente termina, durante o PREC, e as colônias
africanas e o Timor-Leste tornam-se independentes.
Ainda hoje as opiniões em relação ao progresso promovido pelo fim do
regime se dividem. Há aqueles conservacionistas que acreditam que a identidade
nacional sofreu fortes abalos desde que o poder foi relegado aos “comunistas”.
Como nação de forte tradição agrária, uma reação compreensível, sobretudo no que
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se refere à noção de propriedade. Não há dúvida, entretanto, que o país evoluiu e se
modernizou nos últimos trinta anos, recuperando várias posições no cenário
econômico europeu e mundial.
Entre os intelectuais, a queda do regime trouxe a oportunidade de
repatriamento, e – principalmente – de livre expressão de sua ideologia, por décadas
censurada e perseguida.
O fim da censura implicou uma nova organização editorial no apoio das
recém criadas entidades públicas à produção artística, na implantação de prêmios
literários e, principalmente, na livre manifestação dos autores, anteriormente
silenciados pelo antigo regime (ROANI, 2004, p. 16).
Evidentemente, não é o caso de se deixar seduzir pelo reducionismo,
apontando somente fatores políticos e sociais advindos das transformações
históricas do período imediatamente posterior ao 25 de abril que justifiquem os
novos caminhos trilhados pelos ficcionistas. É importante considerar que, se a
Literatura Portuguesa atual vive um período de efervescência, tal processo se deve
às tentativas de inúmeros romancistas de todo o século XX português, que
pretenderam alcançar na prosa de ficção uma expressão genuinamente lusitana. Tal
esforço orientou a produção ficcional e crítica dos autores do Neo-Realismo e de
muitos escritores das décadas de cinqüenta e sessenta. Entretanto, não se podedeixar de admitir que o fenômeno se intensificou, tanto qualitativa, quanto
quantitativamente, com a eliminação dos mecanismos repressores que coibiam a
produção artística portuguesa.
Outro dado relevante é o fato de que a arte literária não se limitou a
realizar a mera representação da Revolução como evento transformador da
sociedade portuguesa. O universo literário captou, no advento desse novo tempo, a
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necessidade de repensar os caminhos da expressão literária sobre a qual havia
pairado, durante quase meio século, o crivo de uma censura impiedosa e limitadora
da livre expressão artística (ROANI, 2004, p. 16).
Tal problemática exige retroceder ao período ditatorial, sob o império da
censura. De 1926 até 1974, o destino das produções literárias, em Portugal, pode
ser entendido a partir de três condições que envolveram as obras produzidas, que
podiam ser toleradas, proibidas ou mutiladas, dependendo do arbítrio dos censores.
O ato criativo via-se limitado, pois os artistas eram obrigados a ter diante de si a
consciência de que seu trabalho artístico e o seu destino como escritores dependiam
daquelas pessoas encarregadas de analisar o produto final da sua escrita: a obra
destinada à publicação. Essa situação foi vivida por escritores como Aquilino
Ribeiro, Fernando Pessoa, Vergílio Ferreira, Agustina Bessa-Luís, José Régio,
António Sérgio, Maria Teresa Horta, José Cardoso Pires, Agostinho da Silva, Irene
Lisboa, Fernando Namora, Maria Judite de Carvalho, Isabel da Nóbrega, Urbano
Tavares Rodrigues, Jorge de Sena, Isabel Barreno, Miguel Torga, Alves Redol,
Sophia de Mello Breyner Andresen, entre outros.
Além da censura estabelecida pela ditadura, parecia inevitável que o
escritor colocasse diante de si o censor imaginário que condicionava e coibia a
liberdade criativa. Roani (2004, p.16) observa que esse procedimento angustiososintomatiza o temor não do que a censura proibia, mas do que ela poderia proibir,
quando a obra fosse posta ao obrigatório julgamento prévio. A censura intimidava os
intelectuais e a sociedade, disseminando o medo sobre as possíveis conseqüências
de qualquer ato reprovável à política oficial.
Qualquer obra podia ser vetada, ou mesmo destruída, pela censura sob
os mais diversos e banais pretextos, sem que os escritores pudessem prever tais
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atos. Uma prática corrente era a apreensão e destruição de livros, lesando os
autores e as editoras. Durante quase cinqüenta anos, o panorama literário português
foi açoitado por tal realidade. Escrever significava predispor-se a enfrentar condições
muito penosas. Roani (2004, p.17) afirma que a ação da censura aprofundou o
isolamento dos escritores, chegando ao absurdo de agir sobre o escritor, enquanto
indivíduo, e não sobre o texto produzido. A instituição censorial e o regime político
que garantia a sua sustentação recorreram, variadas vezes, às medidas repressivas
extremas, como a prisão de escritores, críticos literários, jornalistas e professores
universitários.
Em relação a tal atmosfera sinistra, José Cardoso Pires, escritor a quem,
sabe-se, a censura não conseguiu limitar ou anular o poder de fabulação artística
revelado em suas engenhosas narrativas, comenta que
[a censura] Entrava no detalhe individual, no pormenor privado e na
provocação psicológica, de modo a condicionar o escritor e a impor-lhe o isolamento. A publicação de uma fotografia, a simplesreferência do seu nome em qualquer noticiário era cuidadosamentemeditada. À crítica desfavorável à obra do escritor maldito, oGabinete da Censura dava-lhe curso livre. À que o elogiasse punha-lhe o carimbo da proibição. Inversamente, ao literato de confiançadeixava passar o elogio e cortava o pormenor negativo – e assim,dicotomizando, distorcendo, a censura impunha uma “imagem oficial”do escritor e redigia, ela também, uma versão apócrifa da Literaturaportuguesa (PIRES, apud ROANI, 2004, p. 19).
Pires, um dos autores que compõem o corpus deste estudo, por meio da
análise de duas das suas mais instigantes personagens escritas no período posterior
ao 25 de Abril, Mena – de Balada da praia dos cães –, e Alexandra – de Alexandra
Alpha –, demonstra que a ação da censura forjou, inclusive, identidades autorais ao
durante o regime.
Torna-se, pois, inviável investigar o alcance e os efeitos da ação da
censura, no que diz respeito à criatividade dos escritores e pensadores portugueses,
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ao longo de quase meio século de existência do Estado-Novo. Todavia, esse
panorama de limitações e repressões oferece vias para o entendimento da
renovação literária portuguesa em todos os gêneros discursivos, e subseqüentes
temáticas e figurativizações, e do novo país que a revolução de 74 revelou.
De modo geral, a produção romanesca do período ditatorial, a despeito de
todos os entraves citados, figura como frutífera e numerosa no contexto da história
da literatura portuguesa. Fato que só contribui para a idéia de que em tempos de
crise, as artes sobrevivem como via possível de manifestação do sujeito, ainda que
travestidas e codificadas, em muitos momentos.
Álvaro Cardoso Gomes (1993, p.30) afirma que, na década de 70,
produção romanesca, bem como a literatura em geral, sofre uma redução
quantitativa, e responsabiliza, entre outros fatores, as urgência, por parte dos
produtores de textos, em lidar com interesses mais imediatos, como o jornalismo, a
pedagogia, os textos administrativos e partidários. Os leitores, por sua vez, passam
a se interessar por textos documentais e doutrinários.
É a década de 80 que favorece o surgimento (ou ressurgimento) de uma
geração de romancistas com vozes próprias e que refletem sobre tendências
diversas, o que resulta em uma literatura com características específicas e
independente das influências européias, tanto na exploração dos temas, quanto nasinovações formais (GOMES, 1993, p. 30).
Assim, a narrativa portuguesa contemporânea possui características bem
específicas, como diz Gomes (1993, p. 83):
[...] distingue-se do romance do modernismo, em primeiro lugar, porseus autores não se filiarem a nenhuma escola ou movimento. [...]Embora conscientizados e combativos, os romancistascontemporâneos não se filiam a grupos marcados por ideologias (anão ser grupos políticos, o que é uma coisa muito diferente). Emsegundo lugar, não se verificará, na contemporaneidade, um
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romance puramente lúdico.
A marca registrada da produção portuguesa contemporânea, portanto,
será a combatividade, que resulta de uma consciência sempre atenta ao problemas
político-sociais de Portugal, e, ao assumir tal caráter, evidenciará uma bipolaridade:
Por um lado, de modo geral, terá como alvo da crítica a realidade, o
contexto e, por outro, de modo restrito, o universo do romance, os mecanismos de
ficção. Nesse sentido, afirma Gomes (1993, p. 84):
[...] o romance português contemporâneo não só fará o inventáriocrítico da situação sociopolítico-econômica portuguesa, como faráum inventário crítico da linguagem, do modo de narrar e docompromisso do escritor com a realidade.
Como crônica de costumes, segundo Gomes (1993), a narrativa
portuguesa contempla o leitor com uma gama variada de problemas, entre eles a
opressão ditatorial, o peso da tradição, a condição feminina, a guerra colonial (e a
tragédia dos retornados) e a própria Revolução.
Além disso, não apenas os mecanismos expressivos, mas também os
temas antes calados pelo regime vieram à tona no período pós-revolucionário,
trazendo para as linhas da nova ficção diferentes figurativizações, entre elas, aquela
que aqui interessa enfocar por meio do estudo de algumas personagens: as
diferentes manifestações da identidade feminina durante o Portugal Salazarista.
A reflexão ora proposta parte da hipótese de que tais figurativizações
tornam-se significativas em textos escritos nos anos posteriores à Revolução, mas
que abordam um presente diegético contemporâneo ao regime censor, o que
favorece a expressão de situações e posturas antes passíveis de serem
consideradas inadequadas pelo regime.
Não gratuitamente, as personagens selecionadas têm em comum
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posturas contrastantes com aquelas esperadas da mulher portuguesa tradicional,
educada no seio da família católica e situada num contexto patriarcal e falocêntrico
em que, durantes séculos, seu papel ficou restrito ao de mãe e esposa,
absolutamente resignada ao marido, entendido, inclusive do ponto de vista legal,
como o “chefe da família”.
As referidas posturas, embora contrastem com a condição social e política
da mulher portuguesa dos anos do regime, sinalizam as mudanças reivindicadas por
feministas desde as primeiras décadas do século XX e efetivamente vivenciadas nos
anos posteriores à Revolução Cultural de 1968.
À mulher portuguesa foram negados, até o início do século XX, o acesso
à educação secundária e superior, o direito ao voto (concedido em 1931 às
mulheres diplomadas em níveis secundário e superior), a paridade no mercado de
trabalho, entre tantos outros direitos.
De acordo com Virgínia Ferreira ([20??]., p.1), entre 1974 e 1979, período
da instauração e consolidação da democracia portuguesa, as mulheres viram
alterar-se a sua condição social em numerosos domínios como, por exemplo, ser-
lhes aberto o acesso a todas as carreiras profissionais; alargado o direito ao voto;
ser retirado aos maridos os direitos de lhes violar a correspondência e não autorizar
a sua saída do país; ser aumentada a licença de maternidade para 90 dias; serreconhecida constitucionalmente a igualdade entre homens e mulheres em todas as
áreas; ser aprovado um novo Código Civil em que desaparece a figura de "chefe de
família". Isso sem que se registrassem movimentações consistentes em defesa
dessas conquistas. Vê-se, portanto, que as amarras que envolveram a livre
expressão da feminilidade na sociedade portuguesa abrangem fatores de ordem
moral, política, econômina, social e religiosa e que todos, em maior ou menor grau,
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contribuíram para um avanço moroso nas conquistas relativas aos direitos da
mulher.
Uma vez justificado o recorte temporal – a ficção portuguesa pós-
Revolução cujo presente diegético coincide com o período ditatorial – que delimita o
corpus deste estudo, bem como o objeto analisado – cinco personagens femininas –
cabe discutir de que perspectiva a noção de feminilidade será abordada ao longo do
texto.
São, pelo menos, três as possibilidades de abordagem da noção de
feminilidade: a biológica, a sociológica e a psicológica. Essas diferentes perspectivas
serão, em maior ou menor grau, aqui discutidas. Entretanto, o aporte teórico
psicanalítico favoreceu o encaminhamento de muitas interpretações ao longo da
análise das personagens. Assim, a psicanálise, sobretudo de viés freudiano, figura
como uma técnica de leitura de destaque ao longo desta análise literária, ainda que
utilizada de maneira não especializada (tendo em vista que se trata de uma análise
literária), superficial, promovendo aproximações conceituais e sugestões de
abordagem, sem que em qualquer momento se tenha tido a intenção – declarada ou
velada – de “levar ao divã” personagens ou autores.
Sarah Kofman (1996, p. 69), discute a possibilidade de considerar a obra
literária uma espécie de enigma a decifrar, assim, é possível pensar o texto comoum sintoma e aplicar a ele mecanismos de interpretação semelhantes aos usados
na interpretação dos sonhos. Nesse sentido, todo texto é lacunar, e essas lacunas
de significado são cobertas com um “tecido” que, ao mesmo tempo, mascara e
revela. Diz Kofman (1996, p. 69):
O “texto-tecido” é também uma proteção contra aquilo que só se dátraído por sua deformação e pela maneira como se deforma:proteção contra o desejo censurado e contra o castigo possível, queé a castração. Todo texto é produto de um conflito de forças.
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Resultado de um compromisso, fala ao mesmo tempo do desejo, desua transgressão e do castigo possível, em particular do desejo deincesto e de sua proibição, fundamento de todas as culturas. 3
Destarte, se o enigma do texto se liga a uma lacuna, a uma ruptura, a um
recalque originário, a uma castração, à proibição de contato, pode-se dizer que ele
remete a um enigma por excelência, que é a feminilidade. Segundo Freud (1969-80),
“em todas as épocas, os homens se confrontaram com o enigma da feminilidade”4 .
Tendo em vista essa perspectiva, Kofman (1993, p.71) pondera que, se é
a mulher um enigma é porque há o homem e porque, no homem, como na mulher,
existe a recusa da feminilidade; o que é enigmático é a bissexualidade originária. A
autora lembra que Freud descobre que o enigma fundamental é do homem, mas
desde que nele exista a feminilidade e que essa seja recusada: é o próprio enigma
da vida que se encontra já colocado na infância assim: “como nascem as crianças?”,
que é reduzido pelo sexo masculino ao “enigma feminino”.
De qualquer forma, todo texto, na qualidade de compromisso entre o
desejo e sua proibição, entre Eros e pulsão de morte, afirma Kofman, “é também
um compromisso entre o masculino e o feminino”.
Em outros textos consagrados, como A interpretação dos sonhos
(1969-80), Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen (1969-80) e O estranho
(1969-80), Sigmund Freud realiza a aproximação da obra de arte literária a
mecanismos psíquicos como as construções oníricas, o delírio e a sublimação, por
exemplo. Para Freud (1969-80), todo sonho é a manifestação de um desejo
inconsciente. Em relação a tal parentesco, diz o autor: “As relações existentes entre
nossos sonhos típicos e os contos ou outros motivos poéticos (Dichtungsstoffen)
certamente não são nem isoladas nem casuais. O poeta é o instrumento de3 Grifo meu.4 (Conferência XXIII – Feminilidade)
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transformação do sonho” (FREUD, 1969-80).
Além disso, da perspectiva freudiana, a literatura, enquanto objeto de
reflexão acerca do passado, seja ele individual ou coletivo, adquire um caráter
fantasmático. Nesse sentido, o método de interpretação, que encontra seu modelo
nos sonhos, consiste em encontrar o arcaico individual e coletivo através de suas
deformações. Sarah Kofman (1993, p. 88) comenta que “a arte funciona como uma
memória específica, que permite a reconstrução dos fantasmas do autor”. Fantasma,
por sua vez, vem a ser um relato ulterior que se pode fazer da história do artista,
graças à sua estruturação simbólica em uma obra de arte.
O enfoque do presente estudo reside na abordagem do texto literário
buscando, na teoria psicanalítica, um dos fundamentos necessários à compreensão
da constituição da identidade feminina, construída/manifestada por meio do desejo
que, segundo Birman (1999, p. 31), para Freud, seria o fundador do inconsciente e
do sujeito.
A psicanálise, portanto, identifica-se com o desejo, por meio da análise da
sexualidade, instaurando uma multiplicidade de significados na constituição do
sujeito. É tardiamente – nos escritos da década de 30 – segundo Birman (1999,
p.10), que Freud se volta de maneira mais sistemática sobre a questão do feminino,
muito embora seus estudos sobre a histeria datem já dos últimos anos do séculoXIX.
Para Birman (1999, p.10),
[...] percorrer o universo da feminilidade implica aventura, antes demais nada, já que supõe uma viagem pelo imprevisível e no limite doindizível. Isso porque o território da feminilidade corresponde a umregistro psíquico que se opõe ao do falo na tradição psicanalítica,sendo seu contraponto nos menores detalhes. Enquanto pelo falo osujeito busca a totalização, a universalidade e o domínio das coisas edos outros, pela feminilidade o que está em pauta é uma posturavoltada para o particular, o relativo e o não-controle sobre as coisas.
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Embora os estudos de Freud tenham seu mérito como análise inovadora
e sistemática da sexualidade humana, a própria inserção do psicanalista em um
contexto patriarcal restringe seu campo de visão no que se refere à sexualidade
feminina. Freud (1969-80)5 acredita que o ponto de partida para o desenvolvimento
da feminilidade está na inveja do pênis, ou seja, no momento em que a menina se
conscientiza de que ser mulher, por oposição a ser homem, implica na falta de algo.
As relações do sujeito feminino com as figuras materna e paterna derivam, então, da
sua condição de “castrada”. Na fase adulta, para Freud (1969-80), é necessário que
a mulher abandone a sua sexualidade clitoridiana e assuma a sexualidade vaginal6,
ou seja, a maturação de sua feminilidade depende do reconhecimento de uma
postura receptiva: a de que o prazer sexual deriva da passividade.
De todo modo, Freud (1969-80), percebe, embora tardiamente, (e Simone
de Beauvoir (1980) rediscute, alguns anos depois) que ninguém nasce mulher, o que
existe é um “tornar-se mulher”. Nas palavras de Birman (1999, p. 77) “essa condição
não é fundada na ordem da natureza, mas é produzida pelas demandas de uma
história, sendo, pois, da ordem do devir, ele [Freud] acreditava ainda, em
contrapartida, na evidência condição masculina.”
Porém, Freud é também produto de uma tradição patriarcal inequívoca e,por isso, deixa de refletir sobre o “tornar-se homem” e de considerar que, assim
como com a mulher, essa condição não é da ordem da evidência e da natureza, mas
do vir-a-ser e da produção.
5 Conferência XXIII – Feminilidade. Em sua Conferência XXIII – Feminilidade, diz Freud (1969-80) “Com a mudança para a feminilidade, o clitóris
deve, total ou parcialmente, transferir sua sensibilidade, e ao mesmo tempo sua importância, para a vagina. Estaseria uma das duas tarefas que uma mulher tem de realizar no decorrer do seu desenvolvimento, ao passo que ohomem, mais afortunado, só precisa continuar, na época de sua maturidade, a atividade que executaraanteriormente, no período inicial do surgimento de sua sexualidade.”
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Freud não é o único, tampouco o primeiro, a interpretar a feminilidade
como fruto de uma incompletude. Já desde o início da era cristã, Galeno7 dizia que a
definição do sexo no embrião dependia da elaboração e da temperatura dos
humores produzidos pelo corpo. Quanto maior fosse o calor produzido pelos
humores, maiores as possibilidades de o embrião se tornar um menino. A mulher
seria, então, fruto da imperfeição e da insuficiência de humores quentes no
organismo (FOUCAULT, 2002, p. 112; BIRMAN, 1999, p.86).
Em Inventando o Sexo, Thomas Laqueur (2001) traça um panorama
histórico da abordagem biológica da caracterização e diferenciação entre os sexos,
argumentando que o “modelo do sexo único”, que seria justamente aquele segundo
o qual a mulher nada mais é do que um homem “invertido” (literalmente: o aparelho
reprodutor feminino seria o inverso do aparelho reprodutor masculino, seu avesso,
sua internalização, com ovários correspondendo a testículos, e o canal vaginal, ao
pênis), “inacabado” anatomicamente, e – portanto – biologicamente inferior, perdura
até meados do século XVIII. Laqueur (2001) observa que importantes pensadores
como Aristóteles e o já mencionado Galeno debruçaram-se sobre a questão da
diferenciação biológica entre os sexos desde há muito, entretanto, até a proximidade
do século XIX, a biologia pouco avançou na sua interpretação da fisiologia e da
anatomia femininas, envolvendo questões como a gravidez e o ciclo menstrual emmistérios e inferências que pouco ou nada correspondiam às verdades da natureza.
Isso, sem dúvida, não apenas por conta de uma medicina ainda precária, da falta de
elementos para análise (cadáveres de gestantes disponíveis para necropsia, por
exemplo, eram artigo difícil), mas, sobretudo, em função das limitações sócio-
7
Cláudio Galeno (mais conhecido como Galeno) médico grego (Pérgamo, c. 131 - provavelmente Sicília, c.200). Galeno iniciou seus estudos em filosofia e medicina por volta de 146 em Pérgamo, sua cidade natal. Apósdois anos, achou que nada mais tinha a aprender e partiu para outros centros como Esmirna, Corinto eAlexandria a fim de se aperfeiçoar. Voltou para Pérgamo em 157, julgando terminada sua instrução. Passou,então, a ocupar o cargo de médido da escola de gladiadores, especializando-se em cirurgia e dietética.
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culturais que embotaram durante séculos os olhos da sociedade patriar cal quando o
assunto era a feminilidade, produzindo e alimentando tabus.
E – Freud sabia muito bem disso – nada como um tabu ou uma proibição
para alimentar a imaginação criativa, proliferando superstições, crendices, recalques
e – porque não? – preconceitos.
Camille Paglia (1994) em seu estudo sobre arte e decadência, parte da
hipótese de que a feminilidade está intrinsecamente ligada à noção ctônica de
natureza. Dessa forma, o feminino representaria o natural originário, tensão
geradora de vida e de morte que impõe, ao longo do ciclo vital, o seu poder e
violência inerentes, em oposição ao masculino apolíneo, racional, linear .
Locus de onde se origina e para onde se dirige compulsivamente todo
homem, a figura feminina, mergulhada nessa atmosfera simultaneamente atraente e
aterradora, seria, em maior ou menor grau, interpretada por todas as civilizações
como figura dionisíaca. Daí a origem dos mais diferentes mitos em torno da
sexualidade feminina e dos tabus por eles gerados, a fim de lidar com questões
como a virgindade, o incesto, a maternidade, etc.
Figuras como Eva, Maria, Judith e Lilith, na tradição hebraica, Afrodite,
Ártemis, Medusa, Circe e Cila, na tradição grega, são apenas alguns dos muitos
exemplos que se pode aqui citar.Seja a mulher uma figura dessexualizada por meio da pseudo-castidade
imposta pelos valores burgueses e cristãos à mãe e à esposa, seja ela erotizada de
modo intenso pela fantasia masculina, que potencializa seus atributos sensuais e os
associa aos caminhos da proibição e da transgressão, a figurativização8 do feminino
perpassa, inevitavelmente, a questão da sexualidade e do desejo.
8 A acepção do termo, neste contexto, não tem compromisso com o conceito semiótico de figurativização. Otermo será utilizado, aqui, como sinônimo de construção figurativa, representação.
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Observar a constituição dos caracteres comportamentais de personagens
femininas da ficção contemporânea possibilita, então, refletir acerca dos percursos
possíveis de construção do sujeito, a partir das óticas autoral e narrativa que,
baseadas nas valorações do meio e do contexto histórico, manifestam as figurações
do feminino na atualidade.
As personagens selecionadas para o presente estudo configuram-se,
portanto, a partir da imagem da “mulher independente”, expressão da feminilidade
que desponta em Portugal a partir da década de 60, auge da Revolução Cultural e,
ao mesmo tempo, da ditadura salazarista - sinônimo de repressão e censura.
A Revolução Cultural de 1968 teve seu epicentro em Paris e, de acordo
com Göran Therborn (2006, p.150), para os estudantes rebeldes originais, o
Movimento 22 de Março, as restrições sexuais da vida estudantil eram uma razão
significativa para a rebelião. O autor afirma que o “1968”
[...] constituiu-se de um movimento sociocultural internacional, cadavez mais global, encabeçado pela rebelião jovem dos anos 1960 e,em particular, pelas primeiras coortes femininas de educaçãosuperior em massa na América do Norte e na Europa Ocidental. Estemovimento expandiu-se em uma onda global de feminismo, emgrande parte por meio do dispositivo da ONU – O Ano Internacionalda Mulher de 1975 e sua convocatória global no México.
Por volta de 1960, o patriarcado francês constituía-se como um dos mais
explícitos e mais fortemente institucionalizados do mundo rico. A dominação
masculina e imperial napoleônica fora incorporada à corrente principal da tradição
republicana. Assim, para Therborn (2006, p.150), a Revolução de 1968 representa
historicamente um dos mais importantes atos de despatriarcalização no ocidente.
Em A Dominação Masculina (2002), Pierre Bourdieu discorre sobre a
violência simbólica no campo social. Seu ponto de partida é a afirmação de que
existem no mundo social estruturas objetivas que podem coagir a ação e a
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representação dos indivíduos, dos chamados agentes. Tais estruturas são
construídas socialmente assim como os esquemas de ação e pensamento,
chamados por Bourdieu de habitus. Uma das mais importantes questões na obra de
do autor se centraliza na análise de como os agentes incorporam a estrutura social,
ao mesmo tempo em que a produzem, legitimam e reproduzem:
Se é verdade que o princípio de perpetuação dessa relação dedominação não reside verdadeiramente, ou pelo menosprincipamente, em um dos lugares mais visíveis de seu exercício,isto é, dentro da unidade doméstica, sobre a qual um certo discurso
feminista concentrou todos os olhares, mas em instâncias como aEscola ou o Estado, lugares de elaboração e de imposição deprincípios de dominação que se exercem dentro mesmo do universomais privado, é um campo de ação imensa que se encontra abertoàs lutas feministas, chamadas então a assumir um papel original, ebem-definido, no seio mesmo das lutas políticas contra as formas dedominação. (BOUDIEU, 2002, p. 10-11)
Bourdieu afirma que essa estrutura dominante provinda da realidade
histórica é, sem dúvida, passível de transformação, o que faz com que o foco da
transformação não se origine na negação das constantes e invariáveis, que fazem
parte, incontestavelmente, da realidade histórica. É, sim, parte do trabalho de
construção da História questionar as estruturas segundo as quais a ordem
masculina de dominação sobrevive através dos tempos.
Ao trazer à luz as figuras de Mena, do romance Balada da Praia dos
cães (1983), Alexandra, de Alexandra Alpha (1988), de José Cardoso Pires, de
Joana, de Vícios e Virtudes (2002), e de Paula, do romance Pedro e Paula (1999)
de Helder Macedo, sob a ótica das leituras ora esboçadas acerca da feminilidade,
objetiva-se sugerir de que modo, e atingindo quais efeitos de sentido, o foco
narrativo e a autoria masculina constroem as figurações do feminino que transitam
nomeadamente nesse momento histórico, ainda que estejam – e justamente por
estarem – imersas na situação sócio-política portuguesa, com todas as suas
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especificidades.
Por sua vez, Eva Lopo, de A Costa dos Murmúrios (2004), figura nesta
análise como contraponto em termos de perspectiva autoral, de modo a suscitar
uma reflexão acerca das diferentes possibilidades de figurativização de uma nova
feminilidade que se estabelece a partir de meados da década de sessenta do século
XX.
É importante destacar que uma abordagem dessa natureza não se
propõe a estabelecer um eixo paradigmático da feminilidade no imaginário
português, tampouco uma corrente de expressão literária que possa ser analisada
em separado. Ao selecionar autores do sexo masculino e feminino tem-se, como
objetivo, diminuir o risco da análise reducionista em que aspectos da feminilidade
pudessem ser retratados nos romances de maneira específica somente por se tratar
da imaginação criativa de um homem ou de uma mulher. Entretanto, cinco
personagens configuram um recorte por demais reduzido para que configurem, em
sua análise, qualquer tipo de tendência homogênea na ficção portuguesa
contemporânea.
A bipartição que aqui se propõe em relação ao aspecto autoral das
narrativas selecionadas inspira-se, entre outros autores e falas, na afirmação de
Ruth Silviano Brandão (2004, p. 13) de que a personagem feminina, construída eproduzida no registro do masculino, não coincide com a mulher. Não é sua réplica
fiel, e sim produto de um sonho alheio, e aí ela circula, nesse espaço privilegiado
que a ficção torna possível. Diz Brandão (2004, p. 13):
Como construção imaginária, ela é sintoma e fantasma masculino, eo maior fascínio da ficção reside justamente em fazer coincidir,ilusoriamente, a realidade com uma miragem. E essa miragem dofeminino vem seduzindo há séculos, nesses textos em que onarrador ou poeta são capazes de fazê-lo falar, por meio do gestomágico do deslocamento de vozes. E o que é o masculino torna-se
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feminino, e o desejo do impossível torna-se o possível do desejo.
Nota-se que a autora deixa claro o argumento segundo o qual a autoria
masculina pode ser considerada como um aspecto diferenciador na constituição de
personagens femininas, questão de grande interesse para este estudo.
Assim, a investigação da construção de identidades femininas ficcionais
em narrativas portuguesas pós-Revolução dos Cravos pertencentes a autorias
masculinas e femininas, sobretudo sob a ótica da psicanálise, leva às reflexões
desenvolvidas nos capítulos que ora se apresentam.
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II
MENA E JOANA: OS OLHARES DO MARIALVISMO
Desde os doutores da Bíblia aos estadistas contemporâneos,o “dossier Mulher” é ao fim e ao cabo a panorâmica de
sucessivos mitos que enaltecem a sua posição subalterna noestatuto de cidadania.
José Cardoso Pires, Cartilha do Marialva.
O passado, enquanto História, era o tempo masculino daesterilidade, o tempo da imposta identidade.“O presente é feminino.”
Helder Macedo, Vícios e Virtudes.
Pensar o feminino implica, considerando o campo de análise que aqui se
propõe, pensar, ainda que superficialmente, suas diferentes abordagens possíveis: a
histórica, a sociológica, a antropológica, entre outras. Interessa, aqui, abordar a
constituição subjetiva do “ser mulher” - a feminilidade - em suas formas de
expressão contemporâneas, e, portanto, localizadas temporal e espacialmente.
Pensar o feminino permite, ainda, usar como inspiração e ponto de
partida uma cisão ancestral, cujos reflexos estão arraigados socialmente ainda nos
dias de hoje: os mitos que dão origem a duas possibilidades de realização do
feminino: a “mulher anjo” e a “mulher demônio”, tão sabiamente exploradas, por
exemplo, na literatura Romântica.
Nas mais diferentes culturas podem ser localizadas divindades e
personagens que se enquadram nessa polarização: ou representam a bondade, a
generosidade e a pureza - e a elas são associadas imagens etéreas, luminosas e
angelicais - ou representam a crueldade, os prazeres carnais – sendo a elas
relacionadas imagens violentas, lascivas e mortais.
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A imagem aqui denominada “mulher anjo” deve ser entendida como
aquela por meio da qual o homem encontra salvação, remissão dos pecados,
equilíbrio e vida. A “mulher demônio” é o seu oposto, aquela na companhia da qual o
homem encontrará luxúria, danação e morte.
Observa-se que tais representações do feminino têm como divisor de
sentido um aspecto em especial: o da sexualidade. Quanto mais erotizada é a figura
feminina, mais ela se aproxima da imagem da “mulher-demônio”. Dessa forma, uma
figura mitológica funciona como mote para o estudo que aqui se propõe: a
mesopotâmia Lilith, cujo nome significa “da noite”, correspondente hebraica da grega
Circe.
Disseminada na forma fábula, lenda, ou narrativa mítica, essa figura
origina-se na grande tradição dos testemunhos orais que estão reunidos nos textos
da sabedoria rabínica, definida na versão jeovística, precedendo-a de alguns
séculos, da versão bíblica dos sacerdotes (SICUTERI, 1998, p. 23). De acordo com
tal mito, sendo Adão o primeiro homem - criado à imagem e semelhança do Deus
pai – para apaziguar a solidão do primogênito, teria Jeová Deus criado uma figura
feminina, não da costela do homem, mas a partir do barro e das impurezas (saliva e
sangue).
Lilith teria sido, então, nas diferentes versões que circularam de culturaem cultura, a primeira mulher, o feminino originário. E como primeira esposa de
Adão, teria sido designada por Deus ao marido a fim de exercer uma posição
submissa, contra a qual rapidamente se rebela, recusando-se, em especial, a se
deitar por baixo de Adão durante a cópula, por não compreender a razão de ter sido
destinado a ela o sacrifício de suportar o peso do esposo. Adão, respondendo com
uma recusa seca, nega o pedido da esposa de inverter as posições. Tal pedido,
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entretanto, viria a estabelecer uma paridade que significaria a igualdade entre os
dois corpos e as duas almas. Segundo Roberto Sicuteri (1998, p. 35), a imposição
de tal submissão a este arquétipo feminino simboliza um imperativo, uma ordem que
não seria lícito transgredir.
Lilith, indignada, rebela-se contra Adão e contra Deus, sendo banida para
as regiões infernais e passa a assumir, desde então, uma postura assustadoramente
destrutiva. Cabe aqui resumir os diferentes desdobramentos da lenda, apontando
apenas dois caminhos significativos.
Primeiro, o de que, em segundas núpcias, Adão fica isento de tal
indocilidade feminina relacionada a uma postura sexual ativa, uma vez que Eva,
aquela que nasce a partir de uma sua costela, submete-se à soberania masculina.
Segundo, o de que Lilith, copulando com demônios e devorando os
próprios filhos, passa a ser associada às mais diferentes figuras demoníacas e a
simbolizar a mulher em seu estado mais nocivo, violento e indócil. Tal estado, como
se vê, está invariavelmente relacionado à lascívia, ao desejo carnal desenfreado e
assolador. Lilith torna-se simbolicamente figura ctônica, enraizada em dois
imperativos da Natureza: o instinto sexual e a violência. Ou seja, em sua essência,
Lilith representa a tensão entre Eros e Thanatos, entre pulsão de vida e pulsão de
morte. Essa tensão é que vem a gerar a força propulsora da vida.
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O que aqui interessa, no entanto, é a inspiração que a atitude geradora do
rompimento de Lilith e Adão oferece para a discussão da feminilidade, a saber: sua
recusa em desempenhar um papel submisso na relação.
Harold Bloom (apud PAGLIA, 1994, p. 58-59) afirma que Lilith, originalmente
um demônio babilônico, buscava ascendência no ato sexual:
A visão que os homens chamam de Lilith é formada basicamente
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pela ansiedade deles com o que vêem como beleza do corpo damulher, uma beleza que julgam ser, ao mesmo tempo, muito maior emuito menor que a deles próprios.
No imaginário masculino, Lilith passa a figurar como súcubo10, visão
noturna que atormentava os homens, esvaindo suas vidas por meio de cópulas
demoníacas; ou como devoradora de crianças. De qualquer modo, Lilith – a primeira
mulher a rebelar-se em relação à sua condição submissa – representa no imaginário
popular a imagem da luxúria e da perdição. Tal figurativização desdobra-se, ao
longo dos séculos, em diferentes mitos e lendas, que exploram a idéia de que a
mulher é originalmente um ente violento e perigoso, dotado de um poder
extraordinário no campo da sexualidade, capaz de levar os homens à perdição11.
De todo modo, provavelmente, foi o temor do invisível/desconhecido, característico
dos genitais femininos, a razão de tais associações.
Como mito arcaico, a narrativa sobre a origem da primeira mulher teve
efeitos nas mais diferentes culturas ao longo dos séculos, porém, o foco do presente
estudo reside nos valores que fundam a sociedade européia ocidental – mais
especificamente a nação portuguesa – e que caminham, século após século, para a
solidificação de uma visão de mundo patriarcal e falocêntrica, inspirada, sobretudo,
nos fundamentos da família burguesa e na religião católica.
Nas sociedades patriarcais, tornou-se sedimentada a idéia de que a
mulher deve permanecer submissa ao homem (pai e marido), limitando a sua
sexualidade à função reprodutiva, e sem espaço para qualquer atividade fora do
microcosmo familiar.
10 Súcubo: Demônio feminino que, segundo velha crença popular, vem pela noite copular com um homem,perturbando-lhe o sono e causando-lhe pesadelos.
11 Nesse sentido, pode-se observar o exemplo do mito da “vagina dentata,” que aparece em várias culturas. ErichNeumann relata um desses mitos no qual “Um peixe habita a vagina da Mãe Terrível; o herói é o homem quevencer a Mãe Terrível, quebrar os dentes da sua vagina, e então a tornar numa mulher. (Cf. Neumann, Erich.The Great Mother . Princeton: Princeton University Press, 1955, p. 168.)
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proibições. Nas palavras de José Cardoso Pires (1970, p. 97-98):
Nalguns dos nossos centros rurais continua a superstição de que a
mulher em período menstrual não deve tomar parte na preparaçãodo vinho nem amassar o pão sob risco de lhe cortar o fermento.A profanação do pão e do vinho demonstra que, mesmo no exercíciodoméstico, a mulher está condicionada pela sua natureza impura; elaé o «ser defeituoso» de que fala São Tomás, susceptível de maculardois rituais sacralizados.Também nalgumas regiões do Alentejo a mesma limitação éextensiva a outras tarefas como o desmanchar dos porcos ou aconfecção de queijos.
A Revolução Cultural no ocidente, nos anos 50 e 60, conhecida pela
referência à cultura dos anos 60, começou a ganhar contornos em Portugal no
último pós-guerra. A libertação européia e a influência norte-americana, somadas à
desilusão da expectativa de uma democracia, instauram no país um novo
posicionamento quanto à figuração do feminino, pois exatamente no final dos anos
50, assiste-se à afirmação da mulher independente. A descrição de João Gaspar
Simões é a de uma mocidade cética, no homem acusando uma completa indiferença
pelos abismos idealistas e quimeras românticas, na mulher um orgulho ressentido
por séculos de escravidão ao sexo todo-poderoso (SIMÕES apud CABRAL, 1999, p.
98).
Evidentemente, séculos de falocentrismo não são desestruturados do dia
para a noite. Ainda que as revoluções no pensamento causadas pela teoria
psicanalítica de Freud, que lança um novo olhar para a sexualidade humana – e por
outras importantes correntes de pensamento como o marxismo – e as ciências
sociais de modo geral, tenham sido instrumentos poderosos para que aquilo que
Simone de Beuvoir (1980) chamou de “condição feminina” fosse revista, somente
nas últimas décadas do século XX as mulheres começaram a colher frutos
significativos de suas reivindicações.
A arte, entretanto, adianta, muitas vezes, as angústias e aspirações
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humanas. E a literatura possibilita incursões pelo imaginário humano que fornecem
representações significativas das identidades em via de construção. Vale observar,
porém, que personagens femininas “à frente de seu tempo”, questionadoras da sua
identidade e condição não são um mérito exclusivo da narrativa portuguesa pós-
Revolução.
No século XVII, Mariana Alcoforado, freira enclausurada das Cartas
portuguesas, questiona-se sobre sua identidade – existir enquanto ser que ama – e
problematiza a fragmentação do feminino, apaixonado, dependente do amor:
Eu não sei nem o que sou, nem o que faço, nem o que desejo:encontro-me dilacerada por mil movimentos contrários. Poder-se-áimaginar estado tão deplorável? (ALCOFORADO, 2001, p. 31).
Entre os maiores sofrimentos da freira está a liberdade de ir e vir, que só
ao outro (o oficial por quem se enamora) pertence, e o abandono a que se vê
relegada. O sentimento amoroso é referência insuficiente para assegurar lhe um euconstituído em plenitude.
Segundo Miriam Kelm ([20..], p. 1), somente pelo reconhecimento de si
enquanto mulher, extraindo da experiência, por meio da reflexão, o crescimento
pessoal necessário, é que a identidade ganha forma.
Quina, protagonista de A Sibila (1954), também cumpre a gênese do
distanciamento de sua condição “tradicional” de mulher e floresce no seio de uma
sociedade rural, assumindo papel de destaque e figurando como detentora de
liderança e poder. Entretanto, nesse caso, a personagem abandona qualquer
possibilidade de realização amorosa.
Nas Novas cartas portuguesas (1974), a condição feminina retorna ao
lado da temática amorosa e, em vários momentos, em contraponto às guerras de
todos os tempos. Nelas comparece a figura da mulher que mantém a casa e filhos
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sob sua administração e guarda enquanto o homem luta; a "madrinha de guerra",
que envia cartas de conforto a soldados longínquos; a mulher jovem que padece
grave solidão pela falta do companheiro, a jovem que se guarda para o retorno do
noivo soldado e, enfim, a "Carta de uma universitária de Lisboa de nome Mariana a
seu noivo (?) Antonio em parte incerta":
Antonio, eu quero ir-me embora e quero tanto que voltes. Que malfizemos para nos criarem para reizinhos de tronos à venda, que malfizemos para termos assim ainda as Áfricas entre nós e nós?(BARRENO et alii , 1974, p. 223).
Nesse caso, o pano de fundo das diferentes guerras, inclusive a guerra
colonial, oferece a possibilidade de explorar, ainda, outros aspectos da condição
feminina, além da sua já referida necessidade de rever a posição em que se
encontra.
Os exemplos acima são claramente insuficientes, mas em todos se
localiza o despertar para a necessidade de rever o seu posicionamento na estrutura
social por parte das personagens femininas.
Está feita a analogia: há, no espaço da ficção portuguesa, mulheres
desejosas de compreender o seu papel na sociedade, a sua posição na relação
homem-mulher, desejosas de compreender a razão de terem de suportar o peso dos
homens sobre si, esse peso simbólico que as relega à condição de servas ematrizes. Há novas Liliths caminhando por entre nós em pleno século XX.
Como foi dito, a Revolução Cultural dos anos 60 favoreceu um mergulho
mais profundo nessas questões e, nos anos que se seguiram à ditadura militar,
Portugal encontrou em sua literatura espaço para explorar de modo mais objetivo a
expressão dessa nova feminilidade.
Quem seriam então, as novas Liliths lusitanas?
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Ao abordar personagens pertencentes à ficção dos últimos trinta anos, ou
seja, suficientemente distantes no tempo da década de 60 (o que favorece uma
visão panorâmica e acabada) torna-se possível considerar que os anos 80
apresentam à cultura ocidental uma nova subjetividade, baseada na articulação
entre narcisismo13 e desencanto político. Tais personagens, portanto, corporizam
uma nova maneira de viver, plurissignificação que o texto romanesco instaura, pois o
narcisismo glorifica o corpo, as emoções e as sensações.
Segundo Lyotard, Freud afirma que o que a mulher quer é que o homem
se torne “[...] nem homem nem mulher, que não deseje nada para além de uma
identificação simultânea com a mulher-objeto de amor e que deixe acontecer uma
comunhão total entre os dois” (CABRAL, 1999, p.101).
Por outro lado, a estruturação do masculino e da respectiva agressividade
na repressão do feminino implica a necessidade fantasmática da mulher como
garantia da masculinidade, impedindo, desse modo, que esta se torne narcísica.
A atividade narcísica objetivada pelas personagens ora abordadas
perpassa a tentativa de afirmação da feminilidade pelo viés de uma postura
sexualmente livre e isenta de censuras morais, como veremos a seguir.
Com a publicação da obra Balada da Praia dos Cães, em 1982, José
Cardoso Pires reconstrói boa parte do cenário sinistro do período ditatorial
salazarista, por meio da investigação de um homicídio de pressuposta motivação
política. Ambientado em 1960, o romance está dividido em duas partes, a
13 O termo pertence à teoria freudiana, segundo a qual, “narcisismo deriva da descrição clínica e foi escolhido porPaul Näcke em 1899 para denotar a atitude de uma pessoa que trata seu próprio corpo da mesma forma pelaqual o corpo de um objeto sexual é comumente tratado — que o contempla, vale dizer, o afaga e o acaricia até
obter satisfação completa através dessas atividades” (Freud, 1969-80). Entretanto, para o estudo que aqui sepropõe, não será dada nenhuma relevância ao caráter patológico do termo, sendo explorada somente a suaacepção como sinônimo de supervalorização das características corporais, que remetem o indivíduo à categoriade objeto.
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“Investigação” e a “Reconstituição”, e tem como protagonista o chefe de brigada
Elias Santana, membro da polícia judiciária, apelidada de “Judite”, polícia esta que
mantém relações com a polícia política do regime, a PIDE. Suas investigações
pessoais e os constantes interrogatórios a Filomena, principal suspeita do crime,
constituem a linha condutora da narrativa.
Filomena, a Mena, é uma jovem de 23 anos, solteira, que vive sozinha e
mantém um intenso e violento envolvimento amoroso com o Major Dantas Castro,
amigo de seu pai, cujo corpo é encontrado por cães, enterrado nas areias da praia
do Mastro, na primeira página do romance. A relação entre o major e a jovem
implica sua participação na fuga de Dantas Castro do Forte em que está preso em
Elvas, após uma frustrada tentativa de golpe contra o regime. O major,
acompanhado de sua amante, do arquiteto Fontenova, simpatizante da causa, e do
Cabo Barroca, aliciado para auxiliá-los na fuga, permanecem foragidos em uma
casa retirada de Lisboa, à espera da ajuda de outros simpatizantes do movimento
para fugirem para Paris. É o fracasso dessa tentativa de fuga que permeia todo o
plano narrativo que antecede o crime.
A caracterização de Mena é baseada em duas perspectivas, a de um
narrador onisciente, possível “leitor dos autos” na década de 80, e a de Elias
Santana, por meio de sonhos, imaginação de cenas, e ao longo dos interrogatórios.Tanto em um caso quanto no outro, Mena é descrita como uma jovem fisicamente
atraente e que possui uma postura apática e indiferente.
As razões que levam a jovem a se relacionar com um homem muito mais
velho, casado e que, posteriormente, vem a se envolver em complicações políticas,
das quais derivam sua prisão, fuga, esconderijo e morte, não são objetivamente
explicitadas no romance, entretanto, permitem ao leitor construir, com base nas
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atitudes e descrições da personagem, a figurativização de uma mulher bastante
segura de suas escolhas, apesar de jovem, e que não se intimida diante das
barreiras morais e sociais.
Sua primeira aparição na narrativa, antes mesmo de ser nomeada, se dá
por meio do relato de um pedreiro, que teria estado em serviço nas proximidades da
casa em que os fugitivos ficaram escondidos após a escapada de Dantas Castro.
Cerca de um mês antes da descoberta do cadáver do major, afirma o pedreiro à
polícia e à imprensa ter visto aparecer na janela das águas-furtadas da casa o dorso
nu de uma jovem. Uma jovem mulher de cabelos negros com seios à mostra.
No início da investigação, após terem sido encontradas roupas dentro da
casa, entre elas uma fantasia de capelão, e diante do testemunho do pedreiro, Elias
Santana constrói a sua primeira imagem de Mena. Nela, a rapariga aparece
chegando à casa, na companhia de Dantas Castro, logo após a fuga do major:
Do fundo do carreiro o chefe de brigada figura toda aquela encostaem torrentes de água, árvores a esbracejar, vento e noite. Pelo quesabe da fuga do Forte não tem dúvidas que foi de noite que o padree a amiga chegaram àquela casa; (PIRES, 1983, p.26; grifo meu).
Baseado nas informações de que dispunha sobre locais e datas, Elias
reconstitui toda a cena da chegada do casal. Nela, observamos os típicos clichês
facilmente reconhecíveis em romances policiais noir e no cinema: a noite sombria echuvosa, a chegada de um casal ávido de desejo, aflito e ofegante a uma casa na
penumbra, como no exemplo:
A moça e o sacerdote aparecem-lhe num clarão lívido, de gelo. Umfrente ao outro no pequeno hall da moradia. O padre como um felinofugido ao dilúvio: todo de negro, a assoprar água pelas costuras. Elaencostada à porta, a arfar, a arfar. Torcia o cabelo, espremia-o nos
dedos mas pouco a pouco foi-se imobilizando, ainda imprecisadentro da esfera de água que a envolvia, ainda apagada, mas comum brilho velado a carregar-lhe o olhar. E o padre, curvado e a
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sacudir a cabeça, que era um tudo-nada grisalha e escurecida pelachuva, o padre tinha também os olhos nela, parados. Mediam-se osdois, como que se mediam. E de repente jogaram-se um ao outro,assim mesmo, jogaram-se, e rolavam pelas paredes, e sorviam-se napele, nos cheiros, saliva, tudo, irmanados na chuva que traziam, e sóse ouvia uma voz soluçada, um gritar para dentro, cego e obstinado(«Homem... sim, oh, homem...») - a voz dela retomada em toda a suaverdade ao fim de oito meses de ausência. Oito meses, porra.(PIRES, 1983, p. 27).
Devoravam-se em campo aberto, ali mesmo sobre o soalho, contraos pés duma mesa, por cima dum tapete de retalhos que era todo emfio áspero, cru do pano, e que lhes lavrava a pele levantando calor,luz por dentro. Quando fecharam enfim o nó do tempo, deram poreles num espaço desconhecido, uma sala vagamente insinuada pelaluz que vinha do hall. Assim se achavam e assim se deixaram ficar.
Lado a lado. Nus e rodeados de humidade, num sossego morno adivagar à flor da pele. Fumegavam?«Às vezes que eu sonhei com este momento.» A moça sorria demanso, para longe.«E eu», disse o homem. Sonhei também. «Cheguei a pensar que jánão era capaz».Oh, fez ela. Levantou os braços para o tecto mas pesavam-lhe,deixou-os tombar. Então sorriu doutra maneira. Com malícia, só paraela.Agora voltavam a sentir a tempestade. Verdade, o vendaval andavalá fora, e era como se os dois, assim nus e no meio dos destroços deroupa espalhados pelo chão, tivessem sido levados pela água e
pelas trevas para um território secreto à margem do pavor e dotempo. (PIRES, 1983, p. 28; grifo meu)
A partir desse intercurso amoroso, a imagem de uma mulher de seios nus
é substituída por uma descrição mais detalhada da figura de Mena na imaginação de
Elias. Fica evidente que o apelo sexual é prioritário na reconstituição que o chefe de
brigada vai, aos poucos, desenvolvendo:
O homem - padre, capelão, ou lá o que fosse - inclinou-se sobre ocorpo que estava ao lado dele e que tinha uma claridade tranquilaentre os vultos sombrios derramados pela sala: era duma nitidezassombrosa apesar da vaga penumbra a que estava exposto. Ah, eviam-se os dentes da jovem a cintilarem muito brancos (PIRES,1983, p. 28).
O homem sentia os vincos do soalho gravados nos joelhos e noscotovelos mas continuava fascinado com o espectáculo da jovem. Láfora era chuva e vento, e à volta deles havia manchas de roupa
espalhadas pela sala, um sapato, um vestido a monte - despojosabandonados pela maré. E em grande plano, muito alvo, ocabeção do padre a boiar no luar do hall. Gargalhada de Mena:
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«Padre! Nunca pensei!» (PIRES, 1983, p. 29; grifo meu).
O interessante é que Elias ainda não conhece Filomena, todas as suas
conjecturas são baseadas em dados da investigação: “Conhece os personagens
pelas fotografias em poder da Judiciária” (PIRES, 1983, p. 27). Além disso, fica clara
a intenção de tornar a cena algo polêmica, imaginando o intercurso amoroso entre
uma jovem e um padre grisalho. Para finalizar a “tomada”, Elias imagina o cabeção
do padre em primeiro plano, simbolizando a transgressão à qual testemunha.
Assim, à medida que vai traçando cinematograficamente a cena dachegada dos fugitivos à casa da Vereda, Elias cria uma imagem de Mena, imagem
essa que reflete tanto as suas referências culturais – sobretudo o cinema e as
narrativas de investigação –, quanto os apelos da sua imaginação masculina, como
vemos:
Pelas fotografias apreendidas na busca da polícia ao apartamento deMena, Elias adivinha esse corpo. Um corpo sumptuoso; e todo noconcreto, cada coisa no seu lugar. Admira-o em particular numafoto em que ela aparece em bikini num relvado; de piscina comum friso de pavões ao fundo - e era uma verdade, aquele corpo.Coxas serenas e poderosas, o altear do púbis, era isso, era essaverdade saudável e repousada que o homem fugido à tempestadecontemplava, apoiado num cotovelo. Alongava-se ao correr da peledela, subia à curva viva do pescoço e voltava aos seios que naqueledia talvez estivessem em botão de mel, ou em ponta crespa,endurecida e escura; e ia e voltava; com gravidade, com demora;detendo-se uma vez e sempre no púbis denso, renda e almíscar,
plantado no triângulo de brancura que o bikini deixara no verão dapele. Tinha um esplendoroso, um pródigo e ardente púbis,imaginava Elias (PIRES, 1983, 28-29; grifos meus)
Mena possui uma beleza agreste. Fisicamente descrita por Elias Santana
em seus devaneios lascivos, torna-se ainda mais erotizada. Ao ser imaginada em
pleno intercurso sexual com um homem em trajes de religioso, sua força como figura
feminina transgressora se potencializa. Nesse sentido, pode-se explorar o caminho
que o narcisismo atribuído à figura de Mena percorre. Por um lado, a jovem
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representa a imagem da mulher livre de preconceitos morais e sociais, tantas vezes
valorizada pelos ecos da Revolução Cultural. Por outro, atende aos preceitos do
narcisismo secundário presente em Elias, uma vez que é por ele imaginada. Cada
um dos aspectos de seu corpo revelados pela descrição da cena amorosa tem
suporte na imaginação e no desejo do chefe de brigada, bipartindo a personagem,
que vem a ser não apenas quem de fato é (uma imagem literária), mas também a
imagem que dela se projeta (do ponto de vista específico de Elias Santana).
A esse respeito, observam-se as palavras de Freud (1969-80) em sua
Introdução ao Narcisismo, segundo as quais:
Uma comparação entre os sexos masculino e feminino indica entãoque existem diferenças fundamentais entre eles no tocante a seu tipode escolha objetal, embora essas diferenças naturalmente não sejamuniversais. O amor objetal completo do tipo de ligação é,propriamente falando, característico do indivíduo do sexo masculino.Ele exibe a acentuada supervalorização sexual que se origina, semdúvida, do narcisismo original da criança, correspondendo assim a
uma transferência desse narcisismo para o objeto sexual.
Entretanto, um dado anterior a isso chama a atenção se levado em
consideração o posicionamento de Mena diante de seus próprios atos (envolvimento
com Dantas Castro, cumplicidade na fuga, etc.): suas escolhas justificam-se, já em
um momento adiantado da narrativa, em razão do seu amor pelo Major, ainda que
esse amor seja fundado em forte apelo sexual, o que, aliás, corrobora para a
constituição de Mena como uma figura feminina representativa da liberdade sexual
reivindicada nos anos 60, época em que transcorre a diegese.
Nesse sentido, comenta Freud (1968-80):
Já com o tipo feminino mais freqüentemente encontrado,provavelmente o mais puro e o mais verdadeiro, o mesmo nãoocorre. Com o começo da puberdade, o amadurecimento dos órgãos
sexuais femininos, até então em estado de latência, pareceocasionar a intensificação do narcisismo original, e isso édesfavorável para o desenvolvimento de uma verdadeira escolha
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objetal com a concomitante supervalorização sexual. As mulheres,especialmente se forem belas ao crescerem, desenvolvem certoautocontentamento que as compensa pelas restrições sociais quelhes são impostas em sua escolha objetal. Rigorosamente falando,tais mulheres amam apenas a si mesmas, com uma intensidadecomparável à do amor do homem por elas. Sua necessidade não seacha na direção de amar, mas de serem amadas; e o homem quepreencher essa condição cairá em suas boas graças. A importânciadesse tipo de mulher para a vida erótica da humanidade deve serlevada em grande consideração. Tais mulheres exercem o maiorfascínio sobre os homens, não apenas por motivos estéticos, vistoque em geral são as mais belas, mas também por uma combinaçãode interessantes fatores psicológicos, pois parece muito evidente queo narcisismo de outra pessoa exerce grande atração sobre aquelesque renunciaram a uma parte de seu próprio narcisismo e estão embusca do amor objetal.
Para Freud, no processo de narcisismo, a mulher volta o objeto de desejo
para si, objetivando o “ser amada”, a despeito da idéia de “amar”.
Observa-se, por exemplo, na ocasião em que a jovem é acusada pela
senhoria do seu prédio de ter, em uma briga com o amante, escrito palavrões pelas
paredes do apartamento, que a prisioneira, ao receber a acusação por escrito das
mãos de Elias, tem a seguinte reação:
Mas Mena lê a queixa e devolve: Sim, é verdade.Elias Chefe: Confirma, nesse caso.E ela: O que está aí? Ah, mas evidentemente.O chefe de brigada pregado na moldura da porta; a presa ao fundoda cela, de braços cruzados.E agora? Agora tudo simples, afinal. A acusada confessa, o políciapõe o selo e a galinheira ofendida canta de poleiro e acolhe-se à asado juiz, ele que a ature. Tudo simples, tudo conforme. Mena pode no
entanto alegar atenuantes se as tiver, deve mesmo alegá-las, é aopinião de Elias.Mena dando de ombros: Atenuantes.
[...]Mena, muito directa, cabeça erguida: A menos que seja atenuantegostar-se dum homem. Ou agravante. Talvez lhe interesse apurar,veja lá.[...]Elias C