e- book línguas ferinas
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Ebook: Línguas Ferinas. Autor: Jacques A. WainbergTRANSCRIPT
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
Chanceler: Dom Dadeus Grings
Reitor:
Joaquim Clotet
Vice-Reitor: Evilázio Teixeira
Conselho Editorial:
Antônio Carlos Hohlfeldt Elaine Turk Faria
Gilberto Keller de Andrade Helenita Rosa Franco
Jaderson Costa da Costa Jane Rita Caetano da Silveira Jerônimo Carlos Santos Braga
Jorge Campos da Costa Jorge Luis Nicolas Audy (Presidente)
José Antônio Poli de Figueiredo Jussara Maria Rosa Mendes
Lauro Kopper Filho Maria Eunice Moreira
Maria Lúcia Tiellet Nunes Marília Costa Morosini
Ney Laert Vilar Calazans René Ernaini Gertz
Ricardo Timm de Souza Ruth Maria Chittó Gauer
EDIPUCRS: Jerônimo Carlos Santos Braga – Diretor Jorge Campos da Costa – Editor-chefe
© EDIPUCRS, 2010
Capa: Deborah Cattani
Diagramação: Deborah Cattani
Revisão: Rafael Saraiva
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
W141l Wainberg, Jacques A. Línguas ferinas : um estudo sobre a polêmica e os
polemistas [recurso eletrônico] / Jacques A. Wainberg. – Dados eletrônicos. – Porto Alegre : EDIPUCRS, 2010.
Modo de Acesso: World Wide Web:
<http://www.pucrs.br/orgaos/edipucrs/> ISBN: 978-85-7430-945-3 (on-line)
1. Linguística. 2. Retórica. 3. Oratória. 4. Análise do
Discurso. I. Wainberg, Jacques A. III. Título. CDD 418.2
Ficha Catalográfica elaborada pelo
Setor de Tratamento da Informação da BC-PUCRS
Av. Ipiranga, 6681 - Prédio 33 Caixa Postal 1429
90619-900 Porto Alegre, RS - BRASIL Fone/Fax: (51) 3320-3711 E-mail: [email protected] http://www.edipucrs.com.br
JACQUES A. WAINBERG
Doutor em Comunicação. Professor Titular dos cursos de graduação e
pós-graduação da Faculdade de Comunicação Social da PUCRS.
Pesquisador CNPq. Esta obra expande o artigo Polemista, o
Personagem Esquecido do Jornalismo publicado em coautoria com
Jorge Campos e Edelberto Behs na Revista Brasileira de
Comunicação, v. XXV, n.1, janeiro/junho de 2002, p. 47- 68.
Este livro é uma homenagem à minha esposa Helen e a
todos que como ela são capazes de conviver amorosamente
com espíritos inquietos.
Talvez, algum dia, uma longa
história terá que ser escrita sobre a
polêmica, a polêmica como uma figura
parasita na discussão e um obstáculo à
busca da verdade.
MICHEL FOUCAULT
SUMÁRIO _______________________________________________________________________________________
Apresentação ........................................................................................ 9
As Controvérsias e os Tipos de Discurso ................................................. 14
As Estratégias Retóricas e a Etiqueta Linguística ...................................... 21
O Clima Psicossocial e as Emoções ........................................................ 29
Os Elementos da Erística: o ceticismo, a ironia e o humor ........................ 35
A Vigilância e a Punição à Dissidência .................................................... 44
O Papel Social, Cognitivo e Emocional dos Dilemas .................................. 49
O Debate e a Mídia .............................................................................. 54
A Natureza da Polêmica ........................................................................ 60
O Papel Marginal do Polemista .............................................................. 69
O Intelectual: entre a Fé e a Descrença .................................................. 80
O Refúgio Universitário ........................................................................ 95
As Ideias Perigosas e o Pensamento .................................................... 105
A Cantoria dos Sabiás e dos Rouxinóis nos Pampas ............................... 110
Conclusão e Discussão ....................................................................... 119
Anexos ............................................................................................. 124
LÍNGUAS FERINAS: UM ESTUDO SOBRE A POLÊMICA E OS POLEMISTAS
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APRESENTAÇÃO _______________________________________________________________________________________
Incomodados, os intelectuais ou pegam em armas ou escrevem livros. Em
geral, escrevem livros. Como os dragões, cospem fogo. As palavras
incandescentes os aliviam. O efeito é catártico. Por bom senso e gosto pela
sobrevivência eles preferem a guerra das ideias às balas perdidas. Como
pregadores, escolhem o púlpito à trincheira.
No entanto, o objetivo de ambas as guerras, a retórica e a dos tiroteios, é
igual: vencer o inimigo a qualquer custo. Por decorrência, esses pensadores
devem ser vistos como soldados de uma batalha. No fundo, dizem com algum
exagero os mais cínicos, nesse tipo de confronto pouco lhes interessa a verdade.
Portanto, é compreensível a natural tendência dos observadores ficarem à segura
distância desses espadachins da palavra. De longe, observa-se com mais
facilidade o gingar de seus corpos e o zigue-zague de seus discursos. Esse tipo
de confronto tende a se alastrar “em extensão e em profundidade”.1
Os antigos gregos denominaram esse tipo de polêmica de ”erística”. Nela a
resolução das controvérsias não é feita pela lógica, pelo raciocínio e pela razão.
Prepondera a emoção e o desejo de persuasão. O que os contendores querem é
a vitória, mesmo que a ferro e fogo. Trata-se de uma deformação da dialética. A
conversação transforma-se nesse caso numa discussão belicosa. Como propõe
Schopenhauer, referindo-se às recomendações de Maquiavel ao Príncipe, se
existisse no debate lealdade e boa fé, as coisas seriam diferentes.
Está presente
em praticamente todas as áreas, inclusive na ciência, na qual o debate põe em
xeque os dados coletados, a metodologia, os pressupostos teóricos do
adversário, a interpretação das evidências e a teoria sugerida. As reclamações de
parte a parte não cessam.
2
Na verdade, o que está em jogo nesse tipo de enfrentamento é o desejo
dos contendores em conquistar algum grau de poder e controle sobre o clima de
1 Ver os textos de Marcelo Dascal: Epistemology, Controversies and Pragmatics e How rational can a polemic across the analytic-continental 'divide' be? em www.tau.ac.il/humanities/Philo/dascal/papers/dascal3.htm e www.tau.ac.il/humanities/Philo/dascal/papers/divide.html 2 SCHOPENHAUER, Arthur. Como Vencer um Debate sem Precisar Ter Razão em 38 Estratagemas. TopBooks 2003, p.197.
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opinião pública. Por isso a luta retórica parece ser tão dramática. O que mais
importa aos polemistas é simplesmente o desejo de superar o adversário. A boa
vontade em ouvir a verdade e a humildade em admitir o equívoco num debate de
ideias é tão difícil e as consequências são tão duras, que os envolvidos nas
disputas fazem de tudo um pouco para postergar esse momento cruel de
revelação.
Nesse tipo de controvérsia predomina mais a apologia e a pregação e
menos o diálogo; mais a oratória, menos a audição; mais a imposição, menos o
consenso; mais a certeza do orador e menos as dúvidas da audiência; mais o
carisma do polemista e menos o espírito crítico do receptor, seja ele leitor,
ouvinte, espectador ou fiel seguidor. O choque entre os interlocutores pode ter
trajetórias variadas. Por vezes começa como uma mera discussão. Pode evoluir a
uma controvérsia culminando por fim numa disputa. Nesse caso mais grave o
embate pode se eternizar por gerações. O confronto torna-se tão profundo e
enredado que os pacificadores têm dificuldade em evitar que predomine a
ruminação. A situação gerada lembra a de um trauma. Os fantasmas do passado
não deixam os rebentos recém nascidos sossegados. Falam e sussuram aos
ouvidos das novas gerações. Enorme energia é canalizada para entender e dar
continuidade a essas lutas dos pais e avós. Por isso, há que se ter cuidado com a
importância e a relevância que se dá por vezes à discórdia. Por ser tão intensa
torna-se difícil domar aquele tipo de discurso que eterniza o mal-entendido, não
deixa sossegada a imaginação, impede a inovação, e torna o culto a certa versão
da história, a certo desencanto, a certo infortúnio, a certo rancor em fator decisivo
na elaboração de uma identidade. Remete-o ao núcleo duro das crenças
cristalizadas na cultura de um povo. Impede uma rota de fuga através da qual os
jovens podem se encaminhar para construir uma vida disponível a um novo
recomeço.
Em determinadas circunstâncias, esse tipo de discurso evocado sem
cessar em disputas de aparência épica só consegue ser superada com o
esquecimento forçado, com o desinteresse que permite a sobrevivência psíquica
de um indivíduo, de um grupo e dos povos. Assim, todos os que querem viver
uma nova vida são obrigados matar pela heresia os seus mortos. Só assim eles
próprios conseguem renascer sem os vícios de linguagem, sem os ódios
LÍNGUAS FERINAS: UM ESTUDO SOBRE A POLÊMICA E OS POLEMISTAS
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enraizados. No entanto, tal tarefa de não dialogar com a tradição e a memória é
difícil. Na maior parte dos casos, impossível. Em decorrência, há um fator
dramático e explosivo nesses desencontros intergeracionais em que surgem
mandatos e obrigações que comprometem os mártires do amanhã.
Aparentemente, esse é o poder que a palavra tem. Por isso, o exercício da fala é
tão delicado que deveria ser exercido com os compromissos éticos de
autorizarem sempre a vida e a paz. Mas não é o que ocorre com frequência. Os
pais querem legar aos filhos uma memória. Educam e doutrinam para isso. A
cultura que lhes serve de amparo funciona como um programa cujo efeito
operacional é formatar desempenhos e buscar certo grau de eficiência. Mudar a
programação da mente, os valores e as atitudes, é tarefa dura na qual se
envolvem muitos atormentados por sua própria infelicidade, ou pelas dores que
suas recordações em flashback trazem à luz.
Tipos de Polêmicas: Discussão, Disputa e Controvérsia.
1. Discussão
SOLUÇÃO: Trata-se de uma interlocução cujo objetivo se restringe a um problema específico. À medida que a discussão avança os debatedores reconhecem que a raiz do problema é algum erro. A discussão permite encontrar uma solução. Ela v isa remediar o equívoco. O que se quer aqui é a verdade. A oposição entre as posições é lógica, não emocional. O debatedor trata de comprovar a veracidade de seu argumento ou a falsidade da apresentada pelo opositor. Ele está disposto a admitir derrota quando defrontado com argumentos indiscutíveis.
2. Disputa
DISSOLUÇÃO: Trata-se de uma interlocução que apresenta igualmente uma divergência bem definida. Mas não há acordo sobre a existência de um determinado erro a ser superado. A diferença entre os debatedores reside em atitudes, sentimentos e/ou preferências distintas. A disputa não pode ser solucionada. No máximo, pode-se pôr fim à disputa com sua dissolução. Ela poderá retornar em novas versões em torno de outros tópicos uma vez que as diferenças persistem. O que se quer aqui é a vitória. A oposição entre as posições é ideológica. O ambiente é competitivo. O debatedor espera ser apontado como vencedor, independentemente da veracidade de seu argumento. Ele começa e termina o embate convencido de que está certo. Utiliza-se retórica inflamada. O sarcasmo dos discursos não tem piedade. Não há esperança de se vencer racionalmente o embate nem de persuadir o adversário.
3. Controvérsia
RESOLUÇÃO: Trata-se de uma interlocução que se posiciona entre a discussão e a disputa. Pode começar com um problema específico, mas rapidamente alcança outras questões e revela as profundas divergências de atitudes e preferências que separam os contendores
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sobre os métodos de se resolver o dilema. Não visa corrigir erros, o que provoca a continuidade do confronto de ideias e sua recorrência. Os debatedores acumulam argumentos capazes de aumentar o peso e a força de suas posições, visando mover a balança da razão em seu favor. Controvérsias não são nem solucionadas nem dissolv idas, mas podem ser resolvidas. Os argumentos acumulados por uma das partes podem se tornar indiscutíveis, ou, graças à controvérsia, podem surgir posições aceitáveis às duas partes. O que se quer aqui é a persuasão do adversário e/ou do público que acompanha ao vivo ou através da mídia o embate. A oposição entre as posições envolve um amplo leque de divergências quanto à interpretação dos fatos relevantes, avaliações, atitudes, objetivos e métodos. O ambiente é deliberativo. O debatedor se esforça para apresentar razões para que seu argumento aparente superioridade, muito embora elas não sejam conclusivas. Mas ele está disposto também a reconhecer a importância dos argumentos do opositor. Em suma, a controvérsia é um quase-diálogo constituído e elaborado por peças de discurso. Envolve uma ou mais de uma inconsistência entre as declarações de dois personagens que são oponentes. Nesse caso o princípio de cooperação entre eles é bloqueado e o que geralmente é deixado implícito numa conversação precisa, nesse caso, ser amplamente negociado. A controvérsia não consegue ser resolvida no nível do conteúdo, pois envolve uma dimensão existencial (a reputação do debatedor). No fundo, o que se busca é a legitimidade social e por isso mesmo toda declaração se dirige não ao oponente, mas ao público que opera qual uma audiência de um espetáculo. No campo da ciência, as controvérsias são indispensáveis para a formação, a evolução e a avaliação das teorias. A crítica pública permite o controle e o seu aperfeiçoamento. O estudo de tais embates teóricos oferece uma descrição da história e da prática da ciência. Esse é o ambiente natural em que devem viver os pesquisadores. Assim, as teorias vão se sucedendo até que se cristalizem. Mudança e inovação são autorizadas, desde que consigam vencer as resistências. Há controvérsia quando há pelos dois interlocutores que utilizam algum tipo de linguagem para se dirigir ao outro. Assim, confrontam opiniões, argumentos, teorias, etc. Há nela a dimensão lógica e afetiva do emissor e a recepção crítica pelo público ou adversário. Na controvérsia há sempre um elemento de imprevisibilidade já que se assegura ao adversário o direito de resposta. E sua reação é desconhecida. Acaba se tornando ‘um jogo estratégico’, um dá lá toma cá. Inclui documentos e referências a estudos passados dos interlocutores. Um amplo leque de fontes pertinentes ao embate é trazido à tona, visando sustentar um ponto de vista. Assim, o público é levado a navegar numa larga tradição de pensamento e saber.
Fontes: Adaptado de DASCAL, Marcelo. Types of Polemics and Types of Polemcial Moves. In: C. MEJRKOVÁ, S.; H OFFMANNOVÁ, J.; MÜLLEROVÁ, O. & SVETLÁ, J. (eds.) (1998). DialoganalyseVI. Referate der 6. Arbeitstagung, Prag 1996. Beiträge zur Dialogforschung. Tübingen: Niemeyer, 2 volumes./ Sara Greco. Dascal on Interpretation and Understanding. Studies in Communication Sciences 5/1(2005) 217-230
LÍNGUAS FERINAS: UM ESTUDO SOBRE A POLÊMICA E OS POLEMISTAS
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Aquela descrição da memória traumática serve para os quadros mais
sérios de frustração e depressão coletiva. Sua solução passa pelo
desaquecimento do embate, tornando a disputa uma controvérsia e esta por fim
numa discussão. Como referido, o oposto também pode ocorrer, e com frequência
acontece. É o que se vê nas fases anteriores e posteriores aos conflitos abertos,
em muitos casos armados. Todas as técnicas de propaganda e incitação são
utilizadas para fazer o ódio ao inimigo crescer. Há acusações e ameaças de parte
a parte até que se consiga um cessar-fogo, algum tratado e acordo. Na verdade,
o conflito aberto é um tipo de comunicação que todos entendem. A incapacidade
de ouvir atentamente o outro marca esse período em que todos dizem alguma
coisa e ninguém ouve. As variadas técnicas de resolução de conflitos foram
desenvolvidas exatamente para permitir que surja um campo intermediário de
interesses mútuos capaz de fazer a violência cessar. A paz é o resultado mais
dramático desse processo que começa com o silenciar das línguas ferinas. Entre
as técnicas usualmente utilizadas nesse esforço de desacelerar o choque e evitar
o infortúnio estão as reparações e restituições, o perdão mútuo, a penitência, o
julgamento e a punição, a anistia, as comissões de diálogo e verdade, a
dramaterapia, o luto conjunto, a reconstrução e a convivência e o karma.3
Também as variadas formas de negociação, mediação, arbitragem, e curas por
técnicas orientais como o Ho’o Pono Pono têm oferecido exemplos de esforços
bem sucedidos no alívio às crises e confrontos entre os seres humanos.4
3 Recolhemos em nossas vidas aquilo que semeamos em nosso passado. Senão entendermos isso não escaparemos à cadeia de consequências e não saberemos o porquê dos nossos sofrimentos. Quando uma pessoa semeia desgraças, provocando dano aos demais, colherá ela própria os efeitos deste infortúnio. Essa é a lei do Karma. Ela ajusta o efeito a sua causa.
4 GALTUNG, Jonah. Pax Pacifica. Pluto Press. 2005.
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AS CONTROVÉRSIAS E OS TIPOS DE DISCURSO _______________________________________________________________________________________
Portanto, pode-se afirmar que esses dois personagens querem coisas
distintas do mundo. De um lado, está o polemista inquieto, que visa solapar a paz
que o irrita. Ele a considera inadmissível. Pretende com sua agitação provocar
alguma mudança. As consequências de sua intervenção nas controvérsias
naturais da vida podem ser boas, mas podem ser igualmente devastadoras.
Nesse caso, sua cara metade – o pacificador – entra em cena. Seu labor é mais
difícil. Construir pontes é sempre tarefa mais ingrata do que destruí-las. Demanda
muito mais humildade que as ações revolucionárias para as quais sempre há
candidatos disponíveis. O passo lento e não heroico da produção da paz afasta
esse tipo de gente imediatista que imagina ser capaz de produzir um novo mundo
desferindo um único golpe. Mesmo a imprensa não dá atenção ao pacificador.
Como se sabe, ela é turbinada em boa medida pela violência humana e social. A
felicidade das redações é a dor do mundo.
Às vezes é difícil saber o que o enfrentamento de fato é. Possui um pouco
da controvérsia, outro pouco da discussão e por vezes também elementos da
disputa. Também é verdade que o discurso interageracional de tom polemista
pode aparecer sob os disfarces de um discurso proferido no palco mágico de um
evento e momento histórico; de uma nota de aparência despretenciosa publicada
na imprensa ou num panfleto; de uma carta aberta assinada em favor de uma
causa, pronunciando uma queixa e clamando por alguma solução; de uma carta-
testamento de despedida, usual nos casos de morte desesperançada; em
debates públicos televisionados, e das músicas de protesto em que a letra e o
ritmo se combinam para evocar a emoção do público. Boa parte dessas
manifestações funciona como tipos diferenciados de testamento ético que às
vezes os pais deixam aos filhos e netos em sua velhice. A força de tais falas é
conhecida. Esses momentos são de encantamento. O debatedor envolvido numa
celeuma pública encontra as palavras certas, o slogan mágico, o público-alvo
sedento por sua orientação e o contexto disponível a sua pregação. Assim, a
manifestação acaba adquirindo a força de uma revelação. Consegue reunir nos
parágrafos o dilema de um tempo e encaminha sua superação, ou ainda trata de
LÍNGUAS FERINAS: UM ESTUDO SOBRE A POLÊMICA E OS POLEMISTAS
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remeter ao futuro certa interpretação de um instante, de uma vida e de suas
experiências. São falas estratégicas que possuem uma coloração profética,
redentora, amorosa e intimista que expressam uma força comunicativa que
ultrapassa as fronteiras geográficas e do tempo.
É verdade também que o tom melancólico de despedida acompanha certas
manifestações como são os casos das cartas dos suicidas. Desencontros
amorosos, ciúme, doença avançada, remorso, raiva, vingança, vergonha, orgulho
ferido, solidão, problemas financeiros, dívidas, entre outras razões são apontadas
para esse tipo de situação.5
Usualmente, na origem, na tradição judaica, tais textos éticos eram escritos
na calma da idade madura, antes ainda da morte se aproximar do indivíduo.
Faziam referências a tratados e ensinamentos variados. Eram peças filosóficas
destinadas ao consumo interno dos lares. O hábito se difundiu principalmente
entre os judeus a partir do século XIII. No Brasil, ele é também conhecido e tem
sido utilizado. A carta testamento de Mário de Andrade de 1944 é um exemplo.
Ela serve como referência ao estudo de sua obra até hoje.
Sendo pessoas comuns e sem projeção social essas
declarações acabam não interessando à história. Mas o curioso é que mesmo não
suicidas são mobilizados com frequência a deixar aos herdeiros não só bens
materiais como mensagens ”espirituais” desse tipo. Gravam depoimentos,
depõem com entusiasmo em projetos de história oral, organizam acervos
fotográficos, e escrevem cartas, os testamentos éticos que surgiram na tradição
judaica. Esse hábito continua até hoje em várias partes do mundo. A prática foi
recomendada pela revista BusinessWeek e pela American Bar Association como
um elemento a ser agregado aos testamentos tradicionais de repartição de bens
entre herdeiros. Muitos escritórios de advocacia têm ajudado e sugerido aos
clientes incorporarem nesse tipo de documento tais falas com mensagens
capazes de influenciarem as decisões das futuras gerações das famílias.
6
Já personagens históricos preocupados em legar também uma mensagem
política e em buscar um lugar nobre nas páginas da história escrevem cartas-
5 Fragmentos (auto) biográficos nas mensagens de adeus de suicidas, Yonissa Marmitt Wadi /Keila Rodrigues de Souza. Em: http://www.anpuh.uepg.br/xxiii-simposio/anais/textos/YONISSA%20MARMITT%20WADI%20E%20KEILA%20RODRIGUES%20DE%20SOUZA.pdf 6 ANDRADE, Mário. In Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira. (Org.) MORAES, Marcos Antonio de. São Paulo: Editora EDUSP; IEB. 2ª Ed. – 2001 – p. 556.
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testamento. Elas tentam projetar ao futuro seu dizer sobre o sentido da vida
social. Assim como os anciões tribais de antigamente, que falavam e contavam as
histórias comunais como narrativas de encantamento e doutrinação dos jovens,
essa peça de oratória tenta comprometer os seguidores de uma liderança
qualquer a certos vínculos morais que dão identidade a um grupo. Ela é uma
tentativa de manter vigoroso um tipo de discurso, permitindo que o orador, mesmo
que do além, continue a influenciar as controvérsias dos novos tempos. Tais falas
vêm disfarçadas por vezes de conversas de aparência casual. A longa entrevista
que Fidel Castro deu a Ignácio Ramonet, o editor espanhol do Le Monde
Diplomatique, em várias oportunidades no período de janeiro de 2003 a dezembro
de 2008, tem sido interpretada como um testamento político desse tipo.
Já a mensagem oferecida em 20 de novembro de 1975, pelo Generalísimo
de los Ejército de Tierra, Mar y Aire, Caudillo de España por la Gracia de Dios,
Vencedor Invicto por Dios y por España Francisco Franco Bahamonde foi mais
formal. Seu testamento político é uma breve, mas categórica declaração ao povo
da Espanha. Resume sua mensagem num parágrafo grave e solene:
Não esqueçam que os inimigos da Espanha e da Civilização Cristã estão alertas. Mantenham a vigilância e abram mão de todos seus interesses pessoais em nome dos interesses supremos da pátria espanhola. Não enfraqueçam na busca de alcançar a justiça social e a cultura para todas as pessoas da Espanha, e façam disso seu principal objetivo. Mantenham a unidade das terras espanholas, exaltando a rica variedade de suas regiões como fonte de força e unidade da pátria.
Saddam Hussein divulgaria em 2006 uma carta de despedida similar. Um
dia antes de ser ferido em combate, o herói cubano José Marti escreveu uma
carta a seu amigo mexicano Manuel Mercado na qual faz revelações que são hoje
consideradas seu testamento político. Muitos interpretam os discursos sobre o
Estado da União proferidos pelos presidentes americanos e realizados todos os
anos com imponência imperial no parlamento como uma oportunidade para que
fique gravado à história seu ideário. Outro exemplo ainda é o documento escrito
em 1752 por Frederico o Grande, o déspota esclarecido da Prússia entre 1740-
LÍNGUAS FERINAS: UM ESTUDO SOBRE A POLÊMICA E OS POLEMISTAS
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1786, no qual descreve sua teoria política e refere o papel do soberano.7
Em 29
de abril de 1945, pouco antes de se matar, Hitler deixaria o seu testamento
político pronto para a posteridade. Refere sua história pessoal, culpa os judeus
dos infortúnios da Alemanha, interpreta os principais fatos do período de seu
governo, e se despede do povo alemão. No Brasil a Carta-testamento de Getúlio
Vargas é o documento desse tipo mais famoso. Aparentemente essa declaração
política de despedida foi escrita por um ghost-writer, José Soares Maciel Filho, o
que leva a crer que a redação do documento não foi um ato intempestivo e
inesperado. A análise de sua retórica tem dado oportunidade a todo tipo de
inferência e interpretação. Diz o documento numa das passagens mais
marcantes:
Tenho lutado mês a mês, dia a dia, hora a hora, resistindo a uma pressão constante, incessante, tudo suportando em silêncio, tudo esquecendo a mim mesmo, para defender o povo que agora se queda desamparado. Nada mais vos posso dar a não ser meu sangue. Se as aves de rapina querem o sangue de alguém, querem continuar sugando o povo brasileiro, eu ofereço em holocausto a minha vida. Escolho este meio de estar sempre convosco. Quando vos humilharem, sentireis minha alma sofrendo ao vosso lado. Quando a fome bater à vossa porta, sentireis em vosso peito a energia para a luta por vós e vossos filhos. Quando vos vilipendiarem, sentireis no meu pensamento a força para a reação. Meu sacrifício vos manterá unidos e meu nome será a vossa bandeira de luta. Cada gota de meu sangue será uma chama imortal na vossa consciência e manterá a vibração sagrada para a resistência. Ao ódio respondo com o perdão. E aos que pensam que me derrotaram respondo com a minha vitória. Era escravo do povo e hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse povo de quem fui escravo não mais será escravo de ninguém. Meu sacrifício ficará para sempre em sua alma e meu sangue será o preço do seu resgate.
Também o Novo Testamento acabaria eternizando epístolas. Treze foram
escritas (aparentemente) por Paulo. Nove são doutrinárias com lições práticas.
Três foram práticas e pastorais. Uma é fraternal. Algumas foram dirigidas a igrejas
locais, outras a grupos e a pessoas. Outras ainda escritas por líderes cristãos
acabaram não integrando o Novo Testamento. Os A Pedidos publicados na
imprensa hoje em dia por grupos de pressão variados são outra forma muito
comum de intervenção nos debates públicos e que acabam tomando por vezes
7 Frederick II, Political Testament, in Europe in Review, eds. MOSSE, George L. et al. (Chicago: Rand MacNally, 1957), p. 110-112. Reprinted in SHERMAN, Dennis, ed., Western Civilization: Sources, Images, and Interpretations, Vol. II, (New York; McGraw-Hill, 1995) p. 41-42.
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um caráter histórico cuja influência se eterniza num tempo indeterminado. É o
caso do panfleto Eu Acuso de Émile Zola que marcou sua posição no famoso
Caso Dreyfus. A Carta da Prisão escrita por Martin Luther King em 1963 após ser
preso numa manifestação contrária à segregação racial em Birmingham é outro
exemplo. Com menos impacto, mas igualmente relevante ao objetivo de
documentar as formas através das quais o polemista intervém nas controvérsias
públicas, é a música Dear Mr. President de autoria de Pink, nome artístico de
Alecia Moore e gravada pelas Indigo Girls no álbum I’m Not Dead. Trata-se de
uma carta aberta ao Presidente dos Estados Unidos, George W. Bush. Esse tipo
de música de protesto desenvolveu-se amplamente no período da ditadura no
Brasil. Intérpretes nacionais como Chico Buarque, Geraldo Vandré, Caetano
Veloso, Toquinho e Gilberto Gil entre outros marcaram época fazendo
declarações políticas nesse tipo de manifestação. Tal forma de intervir na
polêmica foi marcante pelo efeito que teve na cultura popular e no imaginário
social brasileiro do período. O rap e o funk são as manifestações desse tipo de
expressão no século XXI. Há nessas obras uma queixa e uma denúncia. Blown’In
the Wind de Bob Dylan e Imagine de John Lennon protestaram contra a
intervenção americana no Vietnã. Depois In a World Gone Mad dos Beastie Boys
e To Washington de John Mellencamp protestaram contra a presença das tropas
do país no Iraque.
Além dos Testamentos Éticos, dos A Pedidos, das Cartas-Testamentos e
das músicas também os discursos formais frente às multidões têm ensejado a
participação marcante de personalidades na vida política e na história. Em
oportunidades graves tais pronunciamentos adquirem um tom épico. Por isso,
passam a fazer parte do patrimônio não só de uma nação como da humanidade.
Na Grécia antiga a prática foi estabelecida no fim do século V. Nos funerais
públicos dos mortos nas guerras de Atenas, os restos eram deixados três dias
numa tenda. Oferendas eram oferecidas à memória dos falecidos. Depois um
funeral levava cada corpo a uma das tribos. No túmulo era proferido então um
discurso por um cidadão proeminente. O julgamento que acabaria condenando a
morte Sócrates foi eternizado no discurso ”Apologia de Sócrates” escrito por
LÍNGUAS FERINAS: UM ESTUDO SOBRE A POLÊMICA E OS POLEMISTAS
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Xenofon de Atenas. Platão escreveria igualmente em ”Apologia” relato similar.8
O poder de uma fala desse tipo pode também ser ilustrado pelo discurso
proferido por Winston Churchi ll. ”Sangue, Suor e Lágrimas”, as três palavras que
ele emprestou do ex-presidente americano Theodore Roosevelt que as utilizou
em 1897 numa manifestação ao Colégio Naval, surtiram efeito mágico em 1940.
Nesse ano, o novo Primeiro-Ministro da Inglaterra, em substituição ao fracassado
Nevi lle Chamberlaim, inspiraria seus soldados e os civis do país a enfrentar os
inimigos nazistas que estavam naquele momento invadindo a França. Nesse
mesmo ambiente do conflito internacional, a referência ao ataque japonês a Pearl
Harbor como o ”Dia da Infâmia” no discurso proferido em 8 de dezembro de 1941,
pelo presidente norte-americano Franklin D. Roosevelt aos seus habitantes,
marcaria a história para sempre. Outros exemplos de manifestações memoráveis
desse tipo não faltam. George Wallace diria em 1963, logo após ser eleito
governador do Alabama, em protesto a uma lei federal que punha fim a
segregação racial nas escolas do país, pronunciou o slogan que nunca mais
abandonaria a sua imagem de homem público: Segregation Now, Segregation
Tomorrow, Segregation Forever. Na verdade, este slogan foi incluído no seu
discurso por um assessor racista e antisemita, membro da Ku Kux Klan, Asa
Carter.
Ambos visavam defender e inocentar o filósofo das acusações.
Em Berlim, John Kennedy diria, em 26 de junho de 1963, “Ich bin ein
Berliner” (Eu sou um berlinense). Aquelas palavras ficaram eternizadas e
marcaram o início da fase mais dura da Guerra Fria em que os americanos
declararam apoio à Alemanha Ocidental. O slogan e o discurso foram
pronunciados no exato momento em que o muro erguido pelos soviéticos dividiria
o país até 1989. I Have a Dream, o sonho de Martin Luther King, expresso em seu
discurso a um público de 250 mil manifestantes no Lincoln Memorial, é outro
exemplo desse tipo de manifestação que encontra eco no espírito de um tempo e
que perdura na história como marco moral indestrutível. Salvador Allende se
despediria da história e da vida num último discurso proferido em 11 de setembro
de 1973 no qual procurava legar às futuras gerações sua mensagem derradeira,
mas essencial. Agradece o apoio da população. Acusa o capital estrangeiro, o 8 Ver http://socrates.clarke.edu/aplg0100.htm
JACQUES A. WAINBERG
20
imperialismo e os setores reacionários da sociedade chilena de fazerem o
exército do país quebrar a tradição de respeitar a Constituição.
Por fim, cabe referir o debate público como uma das técnicas mais usuais e
poderosas de argumentação e persuasão utilizadas para perpetuar uma
mensagem e uma presença no palco da história. Nele, a polêmica rapidamente
aflora, se expande, toma conta da audiência que observa o confronto entre os
oradores com a mesma expectativa que aguarda a derrapagem numa corrida de
automóveis numa pista molhada. Exemplo da história brasileira é o embate que
reuniu em 1985, Luis Carlos Prestes, o carismático líder comunista brasileiro, e
seu adversário ideológico mais poderoso, Roberto Campos, à frente das câmeras
de televisão. Depois, em 1988, foi a vez do sindicalista Luiz Inácio Lula da Silva
enfrentar Theóphilo de Azeredo Santos, representante dos banqueiros. No debate
reina todo o poder da retórica. Consistência lógica e apelo à emoção da audiência
combinam-se como que num petardo poderoso dirigido à mente e ao coração dos
observadores. Tem uma aparência de espetáculo e os falantes na verdade
interpretam papéis cênicos. Muitos parlamentares, advogados e promotores,
candidatos a algum cargo de governança, falam em contextos mediados por tais
regras dramatúrgicas de interpretação. Mesmo assim o conflito de ideias foge
com frequência do seu controle. No campo da ciência, da cultura, da política e da
religião não faltaram momentos como esse. Por exemplo, a polêmica produzida
pelo físico Alan Sokal que desmoralizou a revista de estudos culturais Social Text
ao remeter um artigo non-sense, mas compatível com os slogans tradicionais da
publicação. Como se sabe, o mesmo foi aceito e publicado. Outro debate célebre
desse tipo é o confronto realizado entre Noam Chomsky e Jean Piaget em 1975.
LÍNGUAS FERINAS: UM ESTUDO SOBRE A POLÊMICA E OS POLEMISTAS
21
AS ESTRATÉGIAS RETÓRICAS E A ETIQUETA LINGUÍSTICA _______________________________________________________________________________________
Considerando essas e muitas outras evidências disponíveis um observador
vê-se forçado a admitir que o conflito aflora mais facilmente entre as pessoas que
a cooperação. Ele acaba bloqueando a comunicação, impedindo a ponderação
desapaixonada e racional. E quanto maior for a diferença entre os interlocutores
mais esforço de tolerância será exigido dos mesmos. Os atributos altruístas
concentrados num único ator não são fáceis de conseguir. Nem todos nascem
com esse grau de virtudes. Uma larga maioria dos indivíduos é naturalmente
egocêntrica. Já as qualidades humanistas resultam do esforço que se faz para
controlar essa vocação que todos têm de se sentirem o centro do mundo. Como
se vê, a santidade demanda formação e treino.
Outra dura constatação é que a maior parte das pessoas teme a liberdade.
Sabem que o preço a pagar por ela é alto. O ceticismo com frequência gera o
ostracismo, como se aprende do treino escolar. Produz eventualmente o exílio, a
excomunhão e a abominação. A maior parte prefere, por isso mesmo, seguir os
passos do líder e da tradição. É menos sofrível. A obediência aos dois remunera
sempre com o apreço, a sensação de conforto e o acolhimento comunitário. Esse
fato explica também porque as pessoas preferem em suas vidas seguir sendo
crianças.
Não por acaso a deusa da polêmica é Éris. Irritada por não ter sido
convidada à festa de casamento de Peleus e Thetis, jogou a fruta da inimizade
entre os convidados. Seu nome latino é Discórdia. Seu oposto grego é Harmonia
que em Roma foi denominada Concórdia. Éris ensina que as disputas só podem
ser resolvidas por combate frontal. Suas filhas são a Fadiga, a Fome e a Dor. A
deusa da Discórdia foi a responsável pela Guerra de Tróia. Sempre que entra em
ação produz com seus dilemas a angústia, a ansiedade, a agonia, a suspeita e a
incerteza.
Assim, ao contrário da lógica, a erística cultiva a dúvida e o enfrentamento
incessante. Segundo Zeno, considerado o inventor da dialética, a verdade só é
alcançável através da razão. Pergunta e resposta foi o método utilizado por
Sócrates na sua consecução. Testa-se uma proposição visando apontar suas
JACQUES A. WAINBERG
22
falhas. Aos olhos de Platão a dialética era a única forma segura de se alcançar o
verdadeiro objetivo da filosofia. Ao contrário da erística, a conversação em torno
de proposições (tese) e contra proposições (antítese) em busca de uma síntese
deve estar (como dito) despojada de sentimentos.
Por isso, o raciocínio deve estar atento à esperteza e aos jogos de
linguagem. Busca identificar os objetivos dos participantes em diferentes tipos de
diálogo. Depois observa a conclusão oferecida e as premissas em que o
argumento está baseado. Exige de quem fala provas capazes de sustentar a
veracidade da afirmativa. Busca falhas na argumentação, ora atacando suas
premissas, ora oferecendo contraexemplos, identificando falácias ou ainda
demonstrando que a conclusão oferecida não deriva das proposições
apresentadas.
As Estratégias Retóricas: a Prova, o Estratagema e o Argumento
1. Prova
A VERDADE ACIMA DE TUDO: Visa eliminar qualquer dúvida sobre certa proposição. Utiliza regra de inferência capaz de levar de forma explícita e
reconhecível à conclusão a ser provada. A regra e a evidência devem ser aceitas e reconhecidas pelo opositor. A prova não
se refere à demonstração dedutiva formal, como utilizado em lógica e matemática. Refere-se a outras formas de inferência
(indutiva e presuntiva, por exemplo) capazes de afirmar a verdade de uma declaração. Não se refere também à
comprovação como a obtida num experimento, numa observação, num
testemunho e no senso comum. Deve ser neutro em relação às crenças e interesses
dos interlocutores. A verdade deve ser fator decisivo em afirmar determinada crença. Para fazer frente às provas o
interlocutor deve ser capaz de oferecer contraprovas.
2. Estratagema
SEM FALA: Visa provocar no público certa reação induzindo-a a crer que certa
proposição é verdadeira. Pode eventualmente fazer uso da inferência,
mas não obrigatoriamente. Caso faça uso, nem a inferência nem a evidência
precisam ser consideradas de antemão
LÍNGUAS FERINAS: UM ESTUDO SOBRE A POLÊMICA E OS POLEMISTAS
23
verdadeiras. Precisam acima de tudo ser efetivas. O estratagema pode envolver a farsa e a dissimulação. Não precisa ser nem explicíta nem reconhecível pela
audiência desde que alcance seu efeito. Visa deixar o opositor sem argumentos,
‘sem fala’, incapaz de reação. Schopenhauer descreve o estratagema
como um truque desonesto.
3. Argumento
PERSUASÃO: Visa fazer o opositor crer que certa proposição seja verdadeira. Apresenta razões para induzi-lo a ter
certos desejos. O argumento não precisa estar baseado em inferência ou evidência.
Apresenta proposições que o opositor possa aceitar. Leva-o a uma espécie de obrigação a acolher sua conclusão e a
cooperar. Difere da prova por poder ser logicamente inválido. Exemplo do campo
da política é o argumento relativo ao “efeito dominó". Logicamente ele não se sustenta. O efeito em cadeia pode ser interrompido em qualquer ponto. No
entanto, no período da Guerra do Vietnã, serviu como argumento potente. Mesmo
uma falácia pode ser persuasiva.
Fonte: Adaptado de DASCAL, Marcelo. Types of Polemics and Types of Polemcial Moves. In: C. MEJRKOVÁ, S.; H OFFMANNOVÁ, J.; MÜLLEROVÁ, O. & SVETLÁ, J. (eds.) (1998). Dialoganalyse VI. Referate der 6. Arbeitstagung, Prag 1996. Beiträge zur Dialogforschung. Tübingen: Niemeyer, 2 volumes.
Já na erística o gozo está mais na disputa que no desenlace da
controvérsia. As polêmicas que se observam no dia a dia vêm geralmente
cobertas pela tintura dissimuladora da lógica. Mas na verdade, o que os
polemistas como intérpretes da realidade querem é simplesmente o suspiro final
do oponente. Não raro, na falta de melhor alternativa repetem sem cesssar como
tagarelas o mesmo argumento. Sabe-se da experiência que essa estratégia
funciona. Se não fosse isso, que justificativa se teria para a publicidade e a
propaganda que incessantemente martelam em nossos ouvidos o mesmo e
incessante tilintar? O apelo à razão, cabe repetir, requer disciplina, capacidade de
introspecção e desejo honesto de ceder à evidência. Não é o que ocorre
usualmente com as pessoas, possuídas por crenças, sonhos e esperanças, e
especialmente com estas envolvidas no jogo da sedução.
JACQUES A. WAINBERG
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A verdade é que a retórica desfruta hoje muito pouco da confiança que
sofistas como Protágoras, Górgias e Isócrates costumavam lhe dar na Grécia
antiga. Seu prestígio perdurou em graus variados nas universidades europeias
até o século XVIII. Ocupava lugar de destaque ao lado da teologia, da ciência
natural e moral e do estudo da lei. Por fim, sua reputação cairia em desgraça com
a ascensão do positivismo e do empirismo. A retórica passou a ser vista como
uso manhoso da linguagem. Um discurso que em suma é vazio e ineficiente
embora eloquente e que visa simplesmente produzir efeito encantador. Abdica,
pois da busca da verdade. Foi reduzida pelos sofistas a um sistema que podia ser
ensinado. A ”invenção” era sua primeira parte. Tratava da descoberta de material
relevante à argumentação. À organização ou arranjo cabia sua estruturação.
Depois vinha a dicção, preocupada com o esti lo da oratória; a memória,
interessada em estratagemas que ajudassem o orador a lembrar o discurso, e por
fim a apresentação que se dedicava a explorar as técnicas de discurso.
Uma das causas do descrédito popular a tal tipo de prédica é a insistência
com que os sofistas afirmavam que todo argumento pode ser contrariado por
argumento oposto. Para eles o relevante é a maneira como ele é apresentado à
audiência. O que deveria pesar é que o dito parecesse verdadeiro.
Sem dúvida, os demagogos daquele tempo e do nosso aprenderam bem a
lição. O que explica o interesse renovado que a temática do discurso e da
hermenêutica acabaria tendo na modernidade. Nietzche, Foucault e muitos outros
filósofos, pensadores e autores denunciariam a relação existente entre linguagem
e poder. É o caso também de George Orwell. Em seu livro 1984 ele critica a
pobreza do inglês coloquial de seu tempo. Diz que esse fato impedia o
pensamento crítico e a capacidade expressiva dos indivíduos. Ou seja, a
destruição das palavras acaba servindo aos propósitos dos regimes totalitários.
Sugere naquela novela uma língua fictícia adequada ao reino da opressão. Entre
outras medidas, ela deveria ser mais enxuta eliminando os sinônimos e os
antônimos. Palavras com significados opostos seriam removidas como
redundantes. O objetivo era empobrecer o vocabulário e por decorrência o próprio
pensamento, pois o que não pode ser pensado não existe. No seu ensaio Politics
and the English Language de 1946, escrito após lançar com sucesso A Revolução
dos Bichos, e pouco antes de completar 1984, Orwell vai direto ao ponto: a
LÍNGUAS FERINAS: UM ESTUDO SOBRE A POLÊMICA E OS POLEMISTAS
25
limitada amplitude do pensamento das pessoas de seu tempo acabava permitindo
e autorizando a prática de uma política desonesta. Diz que há uma associação
perversa entre a prosa desqualificada e a ideologia desumana.
Esse tipo de denúncia fez parte de seu esforço particular de combater o
comunismo. Denunciou em 1949 numa lista secreta enviada ao Ministério do
Exterior inglês 38 intelectuais simpatizantes de Moscou, entre eles Charles
Chaplin. Seu livro A Revolução dos Bichos receberia ajuda do IRD (Information
Research Department), órgão secreto do governo inglês, para ser editado em
Burma, na China e nos países árabes. Da mesma forma, ajuda foi dada à edição
deste livro no formato de revista infantil (o porco maior receberia uma barba tipo
Lênin e o porco Napoleão um bigode tipo Stalin).
Esse é um detalhe de uma vasta batalha cultural, ideológica e de palavras
desencadeada já no alvorecer da guerra fria, termo criado por Orwell e depois
popularizado por Wiston Churchi ll num de seus veementes discursos. Como
muitos outros intelectuais, Orwell participou do enfrentamento aos comunistas
temendo que as nações democráticas perdessem o conflito. Três livros de
Bertrand Russel (Why Communism Must Fail, What Is Freedom? e What Is
Democracy) foram igualmente patrocinados pelo IRD. Da mesma forma The
Democratic Revolution de Bryan Magee. Tal artifício de patrocinar autores e obras
foi amplamente utilizado igualmente pelos sovéticos e pela CIA em várias partes
do mundo ao longo do tempo. No pós-guerra havia grande simpatia da opinião
pública e dos intelectuais aos soviéticos pelo papel que desempenharam na
vitória sobre o nazismo. Preponderava nos meios escolarizados um entendimento
que Orwell considerava inocente do regime comunista. A Revolução dos Bichos
era panfleto contra o regime de Moscou.9
Outra forma ainda de ressaltar a relevância que a palavra tem é destacar
sua capacidade de incitar e influenciar o comportamento humano. As palavras
podem mover montanhas, diz o dito popular. Podem também fazer a paz e a
guerra. Ou seja, os conflitos nos quais os polemistas se envolvem geralmente são
iniciados com ”palavras incendiárias”. Esse tipo de declaração quando dita em
lugar público não está protegida pela Primeira Emenda da Constituição dos
9 Ver ASH, Timoth Garton. Orwell ’s List. The New York Review of Books. V.50, n.14. 25 de setembro de 2003.
JACQUES A. WAINBERG
26
Estados Unidos (Chaplinsky versus New Hampshire, 1942) que define e protege a
liberdade de expressão. É considerada uma agressão que visa provocar a
violência. O mesmo ocorre no Canadá (seção 319 do Código Criminal), embora
nesse país se enfatize o tipo de risco que o discurso poderá causar. Por exemplo,
é crime advogar o genocídio e incitar e promover publicamente o ódio contra
algum grupo identificável. A apologia pública (instigar, provocar e excitar por
qualquer meio, inclusive a internet, ou forma) à prática de qualquer fato delituoso
tipificado também é crime segundo o Código Penal do Brasil. A doutrina o
qualifica como ”crime sem fronteira”. Mesmo o indivíduo que simplesmente se
vangloria de algum ato desse tipo é considerado culpado. Nesse tipo de situação
não é necessário que a declaração provoque qualquer resultado prático que
perturbe a paz pública.
Esse cuidado com a palavra explica ainda porque a Presidência do Brasil
publicou em 2004, uma cartilha denominada Politicamente Correto & Direitos
Humanos. Diz seu preâmbulo que
todos nós – parlamentares, agentes e delegados de polícia, guardas de trânsito, jornalistas, professores, entre outros profissionais com grande influência social util izamos palavras, expressões e anedotas, que, por serem tão populares e corriqueiras, passam por normais, mas que, na verdade, mal escondem preconceitos e discriminações contra pessoas ou grupos sociais. Muitas vezes ofendemos o “outro” por ressaltar suas diferenças de maneira francamente grosseira e, também, com eufemismos e formas condescendentes, paternalistas.
A cartilha propõe então um glossário de termos espinhosos que deveriam
ser ou banidos do vocabulário dos servidores públicos do país ou referidos com
cuidado, evitando conotações e eufemismos pejorativos de forma a “eximir o
falante de qualquer tipo de prejuízo quanto ao entendimento daquilo que ele
pretende informar.”10
10 ROSSONI, Roberta Justo. A Escolha Lexical do Uso da Linguagem Politicamente Correta: uma análise de acordo com a teoria das implicaturas de Grice. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Letras. PUCRS. 2008, p.7.
São eles: A coisa ficou preta, Africano, Aidético, Aleijado,
Analfabeto, Anão, Barbeiro (para motorista inábil), Beata, Bebum, Branquelo,
Bugre, Burro, Caipira, Ceguinho, Comunista, Coxo, Crioulo, De menor, Denegrir,
Elemento, Está russo, Fanático, Gilete, Judiar, Macumbeiro, Mongoloide, Perneta,
Samba do crioulo doido, Turco, Vadia e Xiita.
LÍNGUAS FERINAS: UM ESTUDO SOBRE A POLÊMICA E OS POLEMISTAS
27
A cultura popular brasileira tem sido igualmente vigiada. Algumas
expressões foram denunciadas por esse novo tipo de mentalidade que tenta
purificar não só o discurso político e coloquial como o das artes. Por exemplo,
letras de músicas têm sido criticadas por seu conteúdo machista.11
Palavras problemáticas em certos contextos agem que nem pólvora.
Noutros, elas adormecem e hibernam. ”Como as pessoas, textos podem viver ou
morrer”, diz Philip Jenkins em Does the harsh language in the Koran explain
Islamic violence? Don't answer till you've taken a look inside the Bible.
Exemplos são
”Se Essa Mulher Fosse Minha” (Sinhô, 1926), ”Ai que Saudades da Amélia”
(Mário Lago, 1941), ”Os Homens são uns Anjinhos” (Zeca Ivo e Custódio
Mesquita, 1932), ”Mulher Indigesta” (Noel Rosa, 1932), ”Minha Namorada”
(Vinicius de Moraes e Carlos Lyra, 1962), ”Silvia” (Marcelo Nova, 1983), ”Loira
Burra” (Gabriel, o Pensador, 1993), ”Mesma que Seja Eu” (Roberto e Erasmo
Carlos, 1982), ”Eu Gosto é de Mulher” (Ultraje a Rigor, 1987), ”Vou Contar Tintim
por Tintim” (Cartola, década de 1950). O politicamente correto fez também com
que a cantiga infantil ”Atirei o Pau no Gato” se tranformasse na nova versão em
”Não atire o Pau no Gato”.
12
11 O Sul. Porto Alegre, 4/10/2008, p.8.
Nestes
tempos de terrorismo islâmico é comum a referência ao Alcorão como um livro
que comanda o martírio e o assassinato. Mas a verdade é que passagens
igualmente numerosas desse tipo aparecem na Bíblia. E no passado, elas foram
utilizadas como justificativas a morticínios variados. Ao que parece, seus efeitos
dependem também do leitor e da forma como as ideias e os argumentos são
apresentados. O fato explica o fenômeno da polissemia. Frente a um mesmo
estímulo há sempre uma variedade de entendimentos e julgamentos de valor. No
caso da Bíblia, por exemplo, as palavras ”guerra” e “batalha” aparecem cada uma
mais de 300 vezes no texto, além de outras ações violentas como estupros e
decapitações. Tudo leva a crer, portanto que a maldição ocorre quando o discurso
odioso encontra a interpretação maligna na hora certa e no lugar exato para
provocar o desastre. O mesmo poder-se-ia dizer de qualquer doutrina, mesmo as
12 Texto publicado em 8 de março de 2009. Professor da Penn State University. É autor de The Lost History of Christianity: The Thousand-Year Golden Age of the Church in the Middle East, Africa, and Asia - and How It Died. O Alcorão (5.33) diz: “Aqueles que combatem a Deus e seu apóstolo (...) deve ser morto ou crucificado.” Um texto da Sura (capítulo 47) começa: “O fiel crente, quando você encontrar o infiel, corte fora sua cabeça.” Na Bíblia, nos livros de Samuel e Reis, inúmeros versículos justificam a morte dos inimigos de Deus. Ver igualmente Deut. (33:42).
JACQUES A. WAINBERG
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ideológicas, que têm servido de justificativa e têm sido acusadas de promover e
justificar a violência.
Ocorre que esse desejo de imposição de uma etiqueta linguística é
ind gest aos polemistas. Usualmente, uma de suas marcas mais características
é a subversão desse tipo de expressão asséptica cuja pretensão máxima é ser
neutra. Críticos afirmam que o movimento PC (Politicamente Correto) é na
verdade um tipo dissimulado de censura que quer em última instância limitar a
liberdade de expressão.
Hoje em dia parece predominar o ponto de vista de que a linguagem é de
fato poderosa porque tem a capacidade de controlar o pensamento (hipótese de
Whorf-Sapir). Os linguistas cognitivistas afirmam que a escolha das palavras não
é inocente e tem importantes efeitos no enquadramento das ideias, da memória e
no condicionamento das atitudes e das ações de uma pessoa. Denunciam,
portanto, a rotulação, a estereotipia e o preconceito que vêm juntos com termos e
expressões. De qualquer forma, o embate em torno do movimento PC não se
encerrou. No campo da ciência, por exemplo, há uma tendência que se opõe a
esse tipo de disciplina. Por exemplo, Tom Bethell divulga no Guia Politicamente
Incorreto à Ciência sua voz dissidente às teorias e paradigmas científicos
convencionais, como é o caso da teoria evolucionista, o aquecimento global, a
AIDS e o fumo passivo. Outros inúmeros polemistas editaram guias similares em
outras áreas.13
13
Há inclusive um manifesto rebelde que ironiza o movimento PC
(Anexo 1).
The Politically Incorrect Guide to American History por Thomas E. Woods; The Politically Incorrect Guide to Islam (And the Crusades) by Robert Spencer; The Politically Incorrect Guide to Women, Sex, and Feminism by Carrie L Lukas; The Politically Incorrect Guide to Darwinism and Intelligent Design by Jonathan Wells; The Politically Incorrect Guide to English and American Literature by Elizabeth Kantor; The Politically Incorrect Guide to the South (and Why It Will Rise Again) by Clint Johnson;The Politically Incorrect Guide to Global Warming and Environmentalism by Christopher C Horner (February 2007) ISBN 1596985011;The Politically Incorrect Guide to Capitalism by Robert P. Murphy (April 2007); The Politically Incorrect Guide to the Constitution by Kevin R.C. Gutzman;The Politically Incorrect Guide to Hunting by Frank Miniter;The Politically Incorrect Guide to the Bible by Robert J. Hutchinson;The Politically Incorrect Guide to the Middle East by Martin Sief; The Politically Incorrect Guide to Western Civilization by Anthony Esolen; The Politically Incorrect Guide to the Civil War by Harold William Crocker III; The Politically Incorrect Guide to the Vietnam War by Phillip Jennings.
i o
LÍNGUAS FERINAS: UM ESTUDO SOBRE A POLÊMICA E OS POLEMISTAS
29
O CLIMA PSICOSSOCIAL E AS EMOÇÕES _______________________________________________________________________________________
Cabe salientar que por vezes a polidez reflete menos um esforço artificial
para evitar um discurso ofensivo e mais uma tendência natural de certa sociedade
indisposta a expressar abertamente desconforto, emoções e disposição ao
embate teórico. Estudos interculturais têm feito comparações dos traços dessas
“personalidades coletivas”.
Uma das pioneiras contribuições a essa temática dos marcadores culturais
dos povos foi a obra de E. T. Hall, The Silent Language de 1959, considerada
uma das mais influentes no estabelecimento da área dos estudos interculturais. O
livro chamou a atenção às distintas formas de comunicação não verbal dos
grupos humanos. Referiu-se à variedade dos tipos de linguagens corporais, de
organização dos espaços e dos signos paralinguísticos, entre outros fatores.
Depois, em 1969, em The Hidden Dimension, este autor classificou e diferenciou
as culturas humanas como Altamente Dependente de Contexto e Levemente
Dependente de Contexto. No primeiro caso, os interlocutores levam em conta o
não dito. É o caso de culturas tradicionais usualmente referidas como as
existentes nos países árabes e mediterrâneos além do Japão, da França, da
Alemanha e da Rússia entre outros. Nas Culturas Levemente Dependentes de
Contexto seria o contrário, ou seja, a maior parte da informação que está sendo
transmitida precisa estar na mensagem. Precisa ser explicitada. Exemplos
referidos desse tipo de cultura são as existentes em países como os da
Escandinávia, a Alemanha, a Suíça, a China e os Estados Unidos. Nessas
culturas nacionais, o que vale é o que está escrito e afirmado às claras. Tais
sociedades são contratuais e o peso dos usos e costumes é menor.
As tensões políticas internacionais e as trocas comerciais mobilizam e
motivam agora também os negociadores globais a levarem em consideração esas
máximas dos estudos interculturais. Muitos desses levantamentos comparados
entre povos, nações e grupos humanos são realizados por pesquisadores das
relações internacionais, do comércio internacional e de áreas afins como o
marketing e a publicidade internacional. Na verdade, predomina nesses
ambientes acadêmicos e científicos o interesse aplicado pelas temáticas da
JACQUES A. WAINBERG
30
cooperação, resolução de conflitos e persuasão. O que está em jogo é a
capacidade desses homens e mulheres de negócios e da política levar em conta
fatores subjetivos e comportamentais graves de seus interlocutores.
Os autores do livro Riding the Waves of Culture, F. Trompenaars e C.
Hampden-Turner, denominaram tal habilidade de “competência transcultural”, a
única que, em suas opiniões, realmente importa para um administrador e/ou
negociador global e que permite em última instância conciliar dilemas e/ou
integrar opostos.14 Afinal, é através do estabelecimento de alianças, dizem eles,
que se produzem riquezas e “70% do fracasso de tais associações ocorre em
conseqüência de causas relacionais”, como, por exemplo, a falta de confiança
mútua.15
Os autores daquela obra constituíram um banco de dados baseando-se
nas informações coletadas através de um questionário aplicado a 70 mil
executivos de um vasto número de organizações de países diversos. As culturas
foram então classificadas considerando-se os padrões de comportamento e os
valores desses respondentes.
Fonte: F. Trompenaars e C. Hampden-Turner
O mais antigo estudo comparado desse tipo foi realizado no período de
1967 a 1973, por Geert Hofstade.16
14 Esta é a temática da obra 21Leaders for the 21st Century dos autores.
O autor descreveu as culturas nacionais com
base nos dados coletados pela IBM entre seus funcionários de 64 países.
15 Culture Club: an interview with Fons Trompenaars. Business Strategy Review, 2002, Volume 13 Issue 1, p. 31-35. 16 Professor Emérito de Antropologia Organizacional e Administração Internacional da Universidade de Maastricht da Holanda.
Percentual dos respondentes que afirmam não estarem dispostos a mostrar emoções em público Kuwait 15 Argentina 28 Brasil 40 Inglaterra 45 Portugal 47 Austrália 48 Áustria 59 Etiópia 81
LÍNGUAS FERINAS: UM ESTUDO SOBRE A POLÊMICA E OS POLEMISTAS
31
Posteriormente, esse levantamento foi expandido para 75 países, sendo replicado
por outros pesquisadores.
As Categorias de Hofstade: Individualismo/Colet ivismo (em % dos respondentes)
No que se refere à dimensão Individualismo, o Brasil tem escore superior à média da população latino-americana (38 contra 21). No entanto, esse levantamento considera todas as sociedades desse continente, a brasileira inclusive, coletiv ista. Ou seja, preferem assumir compromissos de longo prazo junto a seus grupos de pertinência que são coesos (como, por exemplo, a família) e ao qual estão integradas e que os protege, exigindo em troca lealdade. O termo coletiv ismo não tem aqui sentido político e não se refere ao estado. Nas sociedades indiv idualistas os laços entre os indivíduos são tênues. Nesse caso, espera-se que os indiv íduos cuidem mais de suas próprias vidas do que de suas famílias.
Indiv idualismo é contrastado com coletiv ismo e diz respeito ao grau que se espera que as pessoas atuem com autonomia ao contrário do que propõe o conceito coletiv ista que espera que as pessoas atuem em organizações ou grupos. As culturas latino-americanas apresentam os mais baixos indicadores de indiv idualismo.
Estados Unidos 91, Austrália 90, Bélgica 75, Irlanda 70, Suíça 68, África do Sul 65, Áustria 55, Espanha 51, Argentina 46, Irã 41, BRASIL 38, Turquia 37, México 30, Portugal 27, Chile 23, Singapura 20, Colômbia 13, Guatemala 6.
As Categorias de Hofstade: Masculinidade/Feminilidade Masculinidade diz respeito a valores como competitividade, decisão, ambição, acumulação de riqueza e bens materiais, enquanto os valores opostos, geralmente descritos como femininos, valorizam mais os relacionamentos e a qualidade de vida. Quanto mais alto o escore mais alto o grau de ”masculinidade”. O Brasil está numa posição bem intermediária entre o Feminino (valores de modéstia e fraternidade) e o Masculino (assertivo e competitivo). Japão 95, Hungria 88, Itália 70, México 69, Filipinas 64, Estados Unidos 62, Índia 56, Bélgica 54, Líbano 52, Paquistão 50, BRASIL 49, Nigéria 46, Gana 46, Irã 43, Espanha 42, Zâmbia 41, Guatemala 37, Chile 28, Dinamarca 16, Noruega 8.
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As Categorias de Hofstade: Intolerância à Incerteza Já o indicador de Intolerância à Incerteza mostra em que medida uma cultura programa seus membros a sentirem-se confortáveis ou desconfortáveis em situações desestruturadas, novas, desconhecidas e surpreendentes. O estudo de Hofstede mostra que o Brasil tem baixo nível de tolerância à incerteza. Para minimizar ou reduzir esse efeito é necessário a adoção de regras claras, leis, políticas, medidas de segurança, regulamentações e crença religiosa na verdade absoluta. Tais populações são mais emocionais, e motivadas por uma energia interna. O objetivo final dessa população é eliminar ou evitar o imprevisível. O dado revela que o Brasil tem uma sociedade adversa ao risco e indisposta à mudança. Distinta, portanto, dos grupamentos que toleram outras opiniões, e que tenta regular o mínimo possível o ambiente social. Sociedades que são mais relativistas e autorizam que circulem lado a lado correntes opostas. Esse tipo de cultura tende a ser fleumática e contemplativa, não autorizando às pessoas a expressão de suas emoções em público. Reflete o grau que uma sociedade tenta enfrentar a ansiedade minimizando a incerteza. As culturas com grau elevado de intolerância à incerteza preferem as regras claras e as estruturas, e os empregados tendem permanecer mais tempo vinculados aos seus empregadores. Quanto mais alto o escore mais alta a Intolerância à Incerteza. Grécia 112, Guatemala 101, Japão 92, Argentina 86, Coréia do Sul 85, Hungria 82, BRASIL 76, Paquistão 70, Egito 68, Tailândia 64, Finlândia 59, Suíça 58, Quênia 52, Austrália 51, Nova Zelândia 49, Estados Unidos 46, Malásia 36, Dinamarca 36, Singapura 8.
No Brasil o apego a formulações que dão ênfase a tais marcas subjetivas
das nações é antigo. Seus cronistas e comentaristas do cotidiano têm apelado por
vezes ao conceito de “mentalidade” para explicar um sem número de mazelas e
qualidades dos cidadãos do país. Noutros casos, obras clássicas da sociologia,
história, economia, psicologia e antropologia nacional elaboraram sobre o papel
que o “imaginário social” tem tido na vida política, econômica e social do Brasil.
Autores como Gregório de Matos, Mario de Andrade, Gonçalves Dias, José de
Alencar, Castro Alves, Octavio Ianni, Sílvio Romero e Euclides da Cunha trataram
de maneiras distintas da mesma temática da ”identidade brasileira” e dos traços
do ”caráter” dos habitantes do país.
Exemplos clássicos desse tipo de formulação são obras, como Raízes do
Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, na qual se divulga a figura do ”homem
cordial”; Retrato do Brasil, de Paulo Prado, ensaio no qual o autor criticava em
1928 os ufanistas e expunha as mazelas da sociedade brasileira, entre elas a
exploração social, o conformismo e os desmandos; Etnias e Culturas no Brasil,
obra na qual Manuel Diégues Junior elabora sobre o pacifismo brasileiro, seu
espírito de liberdade e a mestiçagem.
LÍNGUAS FERINAS: UM ESTUDO SOBRE A POLÊMICA E OS POLEMISTAS
33
A verdade é que o grau de violência da sociedade brasileira torna difícil
defender o argumento amplamente difundido de que há um traço cordial na
mentalidade brasileira. Medido por esse parâmetro a cordialidade seria
característica de outros povos e culturas. Como visto nos dados apresentados
nas tabelas, o que certamente existe no país é à disposição de 60% de sua
população de expressar abertamente as emoções, algo incomum e inaceitável em
muitas sociedades. A mentalidade brasileira é tida como mais coletivista do que a
existente em muitos outros povos. Ou seja, o cidadão brasileiro dá proteção a
seus compadrios e espera reciprocidade. Mas paradoxalmente os mesmos dados
coletados revelam que a competição também é bem vinda no país.
Aparentemente essa situação não causa desconforto moral e espiritual à
população. Ela aprendeu a viver e a valorizar esse ambiente complexo. Há em
sua mentalidade ainda uma leve tendência conservadora, favorável às velhas
ideias e sensível às mudanças bruscas na rotina da vida.
Examinando também alguns dos indicadores coletados nas duas versões
da pesquisa realizadas pelo Ibope no Brasil em 1991 e 1997 para o World Values
Survey é possível dizer também que entre as marcas culturais de sua população
está a moderação política. Embora haja mais pessoas posicionadas na extrema
direita e na extrema esquerda do que a média de uma amostra de 61 países
examinada, o posicionamento político do brasileiro é de centro (com leve
tendência à direita). Sua moderação é expressa igualmente na sua oposição à
violência política à semelhança do que ocorre em boa parte do mundo, como
indica uma média de 89 países. Tolera muito mais que uma média de 31 países a
extrema esquerda, e muito mais que uma média de 33 países a extrema direita.
Da mesma forma não se atormenta com raças diferentes (o que ocorre segundo
os dados do WVS em grau maior com belgas, finlandeses, italianos, japoneses,
noruegueses e suecos, por exemplo).
JACQUES A. WAINBERG
34
Os valores do brasileiro. 1991/1997. Em % do total de respondentes.
Ideias que resistiram ao tempo são geralmente
melhores que as novas
Competição é algo bom e
positivo
Devemos ser cautelosos sobre
mudanças bruscas em nossas vidas
Preocupo-me com as
dificuldades que as mudanças podem causar
Autoposicionamento numa escala
política
Esquerda
1. 23,5 41,9 40,3 18,2 11,5 2. 4,7 8,8 6,5 3,7 3,9 3. 5,4 8,7 6,7 3,8 7,3 4. 5,1 9,4 7,3 4,2 6,3 5. 14,8 10,6 12,6 10,0 28,7 6. 5,8 3,2 4,0 5,0 7,8 7. 6,4 3,2 4,6 6,7 6,7 8. 9,1 3,4 5,2 11,6 7,2 9. 5,0 2,4 2,3 7,7 3,4
Novas ideias são geralmente
melhores que as velhas
Competição é algo prejudicial
Devemos ser corajosos na
busca de realizações
Dou boas-vindas à possibilidade de que algo novo possa começar
Direita
20,1 8,5 10,4 29,1 17,4 Total/Base: 2868 2839 2875 1730 2501
Média: 5,42 3,51 3,88 6,34 5,65 Fonte: World Values Survey (WVS)
Em suma, o que estes dados querem salientar é a necessidade de se
definir o clima psicossocial de determinada sociedade. Em algumas há clara
propensão à controvérsia (exemplo é a sociedade israelense). Noutras a
tendência é ao consenso (o exemplo é a sociedade japonesa). Nesse último caso,
a polidez social não só previne a confrontação aberta, mas também esconde a
polêmica.
LÍNGUAS FERINAS: UM ESTUDO SOBRE A POLÊMICA E OS POLEMISTAS
35
OS ELEMENTOS DA ERÍSTICA: O CETICISMO, A IRONIA E O HUMOR
_______________________________________________________________________________________
É possível ressaltar ainda que o polemista com frequência lança mão de
artifícios retóricos variados. Esse tipo de jinga verbal é bastante comum na
tradição da política brasileira disponível aos discursos utopistas, salvacionistas,
estatistas, messiânicos e populistas. Com frequência, esse tipo de retórica
mistura maliciosamente em sua argumentação “maçãs com laranjas” para
confundir. Apela a meias verdades para enganar. Apoia-se em fontes que
desfrutam de nenhuma autoridade. Propõe falsos dilemas. Aponta bodes
expiatórios e os demoniza. Afirma sem provas que o opositor tem determinada
posição a qual passa a criticar. Faz ataques pessoais e emocionais.
A propósito cabe lembrar que os talmudistas, em seus estudos bíblicos,
teológicos e filosóficos, criariam um método exegético polêmico e igualmente
controverso. O denominaram Pilpul. O termo hebraico tem como raiz a palavra
pilpel (pimenta). Avot (6:5) (um dos tratados do Talmud) considera esse método
hermenêutico como uma das 48 virtudes que permitem um estudioso adquirir a
sabedoria da Torá. Ou seja, a função de um debatedor é jogar pimenta na
controvérsia visando eternizá-la. O pilpulista por hábito e costume tem que olhar
nesta e naquela direção, nisto e naquilo. Busca examinar as discrepâncias
existentes entre diretivas legais contraditórias e nos paradoxos existentes nas
falas dos sábios ao longo dos tempos, visando de alguma forma conciliar suas
máximas numa norma. Cabe a esse tipo de debatedor primeiro constatar as falas
dos intérpretes bíblicos eternizadas nas páginas talmúdicas. Depois, e só depois,
pode e deve afirmar o que os sábios pretendiam ter dito, o que os sábios
poderiam ter dito e o que os sábios poderiam ter evitado dizer. Dessa forma,
constroem uma ampla argumentação, etapa por etapa, apoiando logicamente a
nova tese na precedente. Em muitos casos, vista como um todo, a peça retórica
de um pilpulista acaba culminando num absurdo. Exemplo é apresentado na
Guemara (Eruvin 13b) (outro tratado do Talmud). Nessa porção um estudante da
Academia de Iavne produziu 150 provas de que um roedor é ritualmente puro.
JACQUES A. WAINBERG
36
Esse tipo de conclusão é inimaginável e inaceitável, pois se sabe perfeitamente
que a Torá o considera treif ou impuro.
Essa tradição de estudo propõe ainda dois personagens. O primeiro é o
polemista ponderado e circunspeto, o douto-sábio, de bagagem enciclopédica. O
segundo é o debatedor agudo, ferino e cortante qual o fio de uma navalha. A
mesma porção da Guemará (uma das porções dos comentários talmúdicos) diz:
“Foi revelado pelo Poderoso que criou o mundo, que não houve em sua geração
outro igual ao Rabino Meir. Por que então a Halachá (a lei judaica) não foi
determinada de acordo com o ponto de vista de R’ Meir?” Diz a resposta: “Porque
seus colegas não puderam imitar a extensão de seu raciocínio.” O mesmo realce
à existência de intérpretes da lei que se destacavam por sua profunda capacidade
hermenêutica, e por isso mesmo incompreendidos, é assinalada noutros
comentários que tentavam entender a disputa pelo cargo de diretor de uma
Ieshivá (escola religiosa) entre Rabino Yosef e o Rabbah, um amora (17
Por fim, a tradição consolidada transformou esse tipo de embate entre
polemistas ferinos e enciclopédicos numa atividade meramente educativa e
acadêmica. Dela não se poderia esperar muito, e muito menos tomar decisões
práticas e legais. Afinal, as controvérsias nas quais se engalfinhavam uns e outros
não visavam encontrar a verdade e não provavam nada.
)
babilônico que dirigira a academia de Pumbedita. Num deles pergunta-se: “Entre
os de ‘Sinai’ (alguém que sabe toda a Torá, o douto sábio) e um ‘desgarrado das
montanhas’ (o polemista agudo e ferino), qual é preferível?”.
O “pilpul” tornou-se proeminente em muitas escolas religiosas da Polônia e
Lituânia até a Segunda Guerra Mundial e é praticada hoje em muitas dessas
academias religiosas em várias partes do mundo. Na visão dos críticos, esse
entusiasmo em comparar as falas de sábios de diferentes períodos acaba
geralmente culminando num ”bilbul”, na confusão pura e simples. Em suma, tal
esforço exegético seria perda de tempo. Mero exercício de erudição desprovido
de sentido e rumo. O famoso Rabino Yehudah ben Bezalel Levai de Praga (1525-
1609) chegou a comentar que “aqueles que vêm a essência do estudo na
esperteza do pilpul revelam desrespeito à Torá e estão perdendo seu tempo
erroneamente, e fariam melhor se aprendessem carpintaria”. 17 Professores de Mishná, a lei oral, no período de 219 a 500 a.e.c.
LÍNGUAS FERINAS: UM ESTUDO SOBRE A POLÊMICA E OS POLEMISTAS
37
Hábito exegético similar ao pilpul é denominado hoje no ambiente jurídico
de “epiqueia”. Frente à ambiguidade, vazio e contradição da lei o intérprete passa
a afirmar o não dito. Os manuais realçam o perigo de seu uso. Temem o desvio e
o enfraquecimento do direito positivo. Por outro lado, afirmam que a epiqueia
“convida o homem a ultrapassar a letra da lei”. A razão disso deveria “ser buscada
no desejo de uma maior justiça em situações concretas forçosamente imprevistas
pela lei positiva”.18
Menos por seus méritos e mais por seus vícios o hábito de debater um
tema à exaustão acabou também sendo rotulado pejorativamente como
”casuística”. O conceito remete à ideia de que os envolvidos nas controvérsias
utilizam as mais variadas sutilezas que visam justificar determinada ação ou ponto
de vista. Também os gregos viram-se autorizados a preencher as lacunas do
discurso e a resolver contradições e enigmas da linguagem. Aristóteles diz que
quando
a lei estabelece uma regra geral, e aparece em sua aplicação um caso não previsto por esta regra, então é correto, onde o legislador é omisso e falhou por excesso de simplificação, suprir a omissão, dizendo o que o próprio legislador diria se estivesse presente, e o que teria incluído em sua lei se houvesse previsto o caso em questão. 19
Desconfiado por práticas discursivas em que a vitória sobre o oponente é o
objetivo único do debatedor, o já referido filósofo alemão Arthur Schopenhauer
identificou na sua Dialética Erística 38 estratagemas retóricos desonestos
utilizados pelos polemistas 20
Portanto, a dissidência parece ser o rebento nobre de Éris. O que mobiliza
esse tipo de manifestação é o ceticismo. Tal estado de espírito, ora expressa a
descrença, ora a desesperança de que o conhecimento seja possível, ou ainda
algo mais modesto, a dúvida. O cético incomoda. Sua implicância é notória não só
na prática do colunismo jornalístico contemporâneo, mas também em áreas como
a moralidade, a ciência, a religião, a política e muitas outras. Filósofos como
Michel de Montaigne (1533-1592), Pierre Bayle (1647-1706) e David Hume (1711-
(Anexo 2).
18 JUNQUEIRA, Luís Zenun. Dano Moral. Breves Anotações. Ajuris. 19 Ética a Nicômano 1137f. 20 Optamos em manter os títulos dados às categorias na obra Como Vencer um Debate sem Precisar Ter Razão. No original nem todas as categorias foram tituladas. Evitamos criar novos títulos para não confundir os leitores.
JACQUES A. WAINBERG
38
1776) são alguns dos pensadores que seguiram os passos de Pirron de Elis (360-
272 a.C), referido como o pai do ceticismo. Pirron renunciou ao desejo de buscar
a verdade considerado um objetivo inalcançável. Suspendeu assim qualquer
julgamento. Sua posição extrema acabaria gerando o pirronismo ou ceticismo
pirrônico, corrente fundada por Enesidemo de Cnossos (I d.C) e difundida na
Renascença graças ao trabalho realizado por Sexto Empírico (200 d.C). Na
origem, seu método tratava de abalar as verdades estoicas. A suspensão de
julgamento dos pirronistas acabou gerando um estilo de vida que chamaríamos
hoje de contemplativo, usual em ambientes místicos e nos ermos destinos dos
eremitas.
Montaigne popularizou o ensaio, o gênero preferencial dos polemistas
desde os seus dias. Mesclou a especulação teórica com a ruminação, anedotas e
autobiografia. Julgava que a única forma de capturar a verdade era seu próprio
julgamento. Bayle, por sua vez, ao retornar ao calvinismo após breve conversão
ao catolicismo, acabaria perseguido como herético. Nessa oportunidade
familiarizou-se com as ideias de René Descartes o que lhe ajudou a consolidar
um temperamento crítico. Seu racionalismo visava subverter a autoridade
eclesiástica e filosófica dos seus antecessores. Tal visão contribuiu para seu
alinhamento a uma concepção humanista em ascensão à época. Ela afirmava a
tolerância intelectual, política e religiosa. Já Hume foi figura proeminente do
iluminismo escocês tornando-se polêmico por sua rejeição do deísmo. Era
favorável aos métodos empíricos e de observação como únicas formas de obter o
conhecimento.
Um curioso subproduto contemporâneo dessa tradição rebelde, de crítica
incessante, geraria nos Estados Unidos ”A Sociedade dos Céticos” que visa agora
desmascarar a pseudociência, a superstição, e as crenças irracionais em todo o
mundo. A revista Skeptic tem tratado de temas como percepção extrassensória,
teorias conspiratórias, o monstro do Lago Ness, o poder da pirâmide,
criacionismo, histeria de massa, gênios, bruxaria e a pseudo-história. A
Sociedade afirma que ceticismo é a aplicação da razão e o reconhecimento da
necessidade de se coletar evidência para sustentar ideias. Outro resultado
igualmente contemporâneo dessa tradição é a ”publicidade subversiva” que faz
paródia dos anúncios publicitários das grandes corporações. Seus autores
LÍNGUAS FERINAS: UM ESTUDO SOBRE A POLÊMICA E OS POLEMISTAS
39
definem a subvertsing como produto de resistência cultural que denuncia o
consumismo e a imagem das empresas. A deformação da logotipia das marcas
dessas organizações famosas é frequente nesse tipo de ativismo político.
Portanto, o ceticismo se expressa de formas e maneiras distintas. Entre
elas está, além da exemplificada paródia, também a sátira. Ambas andam muito
próximas no seu objetivo comum de caricaturar. Costuma-se afirmar que a sátira
é pretensiosa, pois almeja certo grau de mudança da realidade enquanto a
paródia brinca com os fatos não por despeito e oposição, mas pelo afeto que
cultiva ao objeto ironizado. A sátira expõe e ridiculariza as falhas e os limites de
personagens do cotidiano e da sociedade. Sua função é política. Tem pretensão
cívica, pois reflete certo grau de indignação pública. Sua origem é romana
enquanto que a paródia já era conhecida dos gregos. Nesse caso, o da paródia, o
épico era imitado através de um tratamento jocoso e carnavalesco. A obra era
retirada do contexto e não raro, contrastada com um novo ambiente e um novo
tempo.
Emergem dessas comparações as diferenças e são elas que servem de
objeto à reflexão. James Joyce, por exemplo, fez isso em ”Ulisses” ao incorporar
elementos da Odisséia de Homero ao ambiente escocês do século XX. Fica claro
à audiência que há um parodiado. E é a ele que são dirigidas as críticas. A
paródia pode ocorrer também nas circunstâncias em que elementos que
caracterizam uma obra são utilizados noutra com fins humorísticos e irônicos. Não
raro, sua reputação é maior do que a obra original que a inspirou. É o caso da
fama de Dom Quixote (1605) muito superior a da novela Amadis de Gaula. O
cinema tem utilizado esse recurso para ironizar os clássicos que a maioria do
público conhece. Não raro, um cineasta faz numa nova obra-paródia de suas
próprias obras anteriores.
Da mesma forma, as peças e as obras burlescas dos séculos XVII e XVIII
costumavam ridicularizar na Inglaterra e nos Estados Unidos um tema ou um
personagem solene num estilo indigno. O burlesco também tratava com seriedade
indevida um assunto trivial. Essa forma de comédia alcançava seus objetivos
através da caricatura e de distorções ridicularizando com frequência os hábitos
sociais da aristocracia. Ao contrário da sátira, não tem compromissos éticos. A
crítica é exposta por esse contraste e incongruência entre o alvo do humor e o
JACQUES A. WAINBERG
40
tratamento que lhe era dado. O show burlesco tipicamente costumava incluir a
comédia, a dança, o strip tease e a linguagem rude. Muitos comediantes, entre
outros atores desse gênero, acabariam migrando ao vaudeville, uma forma de
entretenimento similar, mas mais respeitado socialmente. Ele tornou-se popular
nos séculos XIX e início do XX nos Estados Unidos. Incluíam em cada ato de 10 a
15 quadros de mágicos, acrobatas, comediantes, animais treinados, cantores e
dançarinos. Hoje há certo renascimento do gênero – o neoburlesco – que apela
menos para a crítica social e mais para a ação cênica, de dança e strip tease .
Já o que caracteriza a sátira é o seu tom. Ele pode variar desde um polo no
qual predomina a crítica moderada a outro em que expressa uma ríspida e
amarga indignação. Ela é encontrada na literatura, na cinematografia, nas artes
visuais, nos panfletos, no jornalismo, na música, na poesia, no teatro, entre outras
formas de comunicação, confundindo-se por vezes com a comédia. Ela combina a
amargura e a raiva com o humor servindo frequentemente a propósitos políticos
variados. Visa ridicularizar o opositor de alguma forma.
Exemplo moderno é o filme de Charles Chapplin, O Grande Ditador, no
qual a vítima de sua ironia é Adolf Hitler. South Park é outro exemplo. Esta série
de TV satiriza o cristianismo, o catolicismo, o mormonismo, o judaísmo, a
cientologia e o Islã entre outras religiões. Outro exemplo, ainda, são as
caricaturas de Maomé que publicadas em vários jornais, em 2006, causaram
emotivas reações por parte das comunidades islâmicas em várias partes do
mundo. Da mesma forma, o fi lme Borat provocou indignação de grupos distintos.
A Família Simpson igualmente faz alguma sátira, no caso religiosa, através do
Ramo Ocidental da Igreja Reformista Americana Presbiluteranista, denominação
a qual pertence a maioria dos habitantes de Springfield, a fictícia cidade em que
vivem esses personagens. É uma paródia das denominações protestantes dos
Estados Unidos. Seria uma divisão da Igreja Católica durante o também fictício
“Cisma de Lourdes” em que os rebelados lutaram pelo direito de irem à igreja com
o “cabelo molhado”. Também o fi lme A Vida de Brian satiriza temas bíblicos.
Outra película, Dogma, faz ironia religiosa ao brincar com a ideia de que o último
descendente de Jesus Cristo é uma mulher que trabalha numa clínica de aborto
de Illinois.
LÍNGUAS FERINAS: UM ESTUDO SOBRE A POLÊMICA E OS POLEMISTAS
41
Em 2001, após intensa campanha realizada pela internet, 0,7% da
população britânica declarou nos censos que sua religião era ”Jedi”, ou seja, uma
fé originária do filme Guerra nas Estrelas. Tratava-se de uma brincadeira. No
entanto, antes ainda do filme, desde o fim da década de 50, surgiram várias
”religiões parodiadas” similares. Entre elas estão o ”Eventualismo” (uma paródia
da Cientologia), a “Igreja do Monstro Espaguete Voador” (uma paródia à teoria do
design inteligente como forma de explicar o surgimento da vida), o “Invisível
Unicórnio Cor-de-Rosa” (uma paródia das definições deístas), “Kibologia” (paródia
da Cientologia), a “Igreja do Google” (paródia que afirma haver mais evidência de
que o Google é Deus do que existe para a existência dos deuses de outras
religiões), e o “Discordianismo”. Essa fé reconhece o caos, a discórdia e a
dissidência como qualidades válidas e desejáveis. Contrasta assim com a
harmonia e a ordem pregadas pelas igrejas convencionais. Como não poderia
deixar de ser, a deusa Eris reina nesse universo em que o jocoso é sério. Na
verdade, é indisfarçável a motivação anarquista nesse tipo de pregação. Nela,
incentivam-se os cismas, as intrigas e as conspirações.
O sarcasmo e a ironia também andam com frequência de mãos dadas. A
primeira é uma forma de expressão intencional que visa insultar de alguma forma
o opositor. Já a ironia lhe fornece o humor como companhia. Ameniza-lhe a
agressividade. É uma discrepância entre o que é dito e o que isso significa. Dito
de outra forma há uma evidente contradição e incongruência entre a intenção do
discurso e o que é realmente pronunicado. Há um autor e uma vítima.
O interesse pela função social do humor presente na maioria dessas
manifestações é antigo. Hipócrates (460-377 a.C), o pai da medicina, costumava
afirmar que a fleuma, o sangue, a bílis amarela e a bílis negra determinavam a
saúde, a doença, a dor e o temperamento das pessoas. Mais tarde, Galeno de
Pérgamo, outro médico influente da antiguidade, os relacionou com o fogo, a
água, o ar e a terra. Da combinação desses oito elementos teriam surgido os tipos
de humor: o sanguíneo, o fleumático, o colérico e o melancólico.
Na verdade, essa capacidade de provocar o sorriso, por vezes a
gargalhada do público e dos interlocutores, é uma potente arma de arsenal
retórico do polemista. O sorriso obtido da audiência simboliza sua vitória. É
também uma espécie de escudo que parece proteger a parte que se considera a
JACQUES A. WAINBERG
42
mais fraca no embate. Nas disputas retóricas o humor é bem vindo ainda porque
aumenta a tolerância à dor e provê energia ao público estimulando-lhe o prazer
de viver. Ao relaxar a mente e o corpo 21
As razões do humor
, dá vazão à ansiedade do público. O
ouvinte ri provocado por vários estímulos, entre eles a tragédia e a deformidade
alheia, o ridículo, o absurdo, a incongruência entre um conceito e um objeto real,
o exagero, a distorção, a malícia e a hostilidade, entre outras causas. Em todas
elas o sorriso surge numa fração de segundo, pois é propriedade do humor
surpreender e ser decodificado sem dificuldades. Como afirmado, através de suas
“tiradas”, o polemista provoca a sensação no ouvinte de que triunfou e se
sobrepôs ao adversário. Por isso, o humor é visto como uma atividade social e
uma arma intelectual que serve de vetor à agressividade dos debatedores. Eleva
o polemista a um nível superior a do rival que lhe serve de alvo. Na imprensa
brasileira contemporânea um exemplo desse gênero de crítica bem-humorada é a
coluna de José Simão, na Folha de São Paulo. Um dos segredos é que este
gênero comunica muito mais do que diz através de implícitos variados. Além
disso, o alcance de suas máximas é universal. Ou seja, (1) o humor é um
fenômeno inato, e que é essencial à sobrevivência das espécies (o humor existe
também em primatas e outros animais); (2) é uma das emoções mais primitivas;
(3) os sorrisos e as gargalhadas expressam prazer; (4) cada proposição
humorística é de certa forma ilógica, por vezes contraditória. No entanto, (4) a
piada é percebida diferentemente pelo humorista e seus ouvintes de um lado, e o
“objeto da agressão” do outro.
COGNITIVA SOCIAL PSICOA NA LÍTICA Incongruência Hostilidade Alívio
Contraste
Agressão Sublimação Superioridade Liberação
Triunfo Economia Escárnio
Depreciação Fonte: S. Attardo (1994) 21 Foi estimado que rir 100 vezes ao dia equivale a 10 minutos de esteira de ginástica ou a 15 minutos de bicicleta estacionária. Rir exercita o diafragma, o abdômen, a respiração, a face, as pernas e os músculos das costas. Alivia a ansiedade, protege o coração, diminui o nível de açúcar no sangue, melhora o fluxo sanguíneo, o sistema imunológico, o sono, a disposição física, embora desencadeie em ¾ dos casos a asma.
LÍNGUAS FERINAS: UM ESTUDO SOBRE A POLÊMICA E OS POLEMISTAS
43
O que provoca o humor
Absurdo Ambiguidade Conclusões inesperadas Trocadilho Alegoria
Contraste Simplicidade aparente Caricatura Similaridade Contradição
Expectativa não resolvida Ironia Metáfora Escárnio Ditos populares
Surpresa Subestimação Compreensão
literal das palavras
Paradoxo Exagero
(hipérbole)
Eufemismo Conexão entre
termos incompatíveis
Mistura de estilos Pista a uma cadeia de
associações Repetição
Duplo sentido Contradição Incompatibilidade Fuga do perigo Estabelecimento da superioridade
Transferência Excessiva racionalidade
Desvio do senso comum
Rima imprópria Grotesco
Fontes: Cicero em “O Orador”; Thomas C. Veatch: A Theory of Humor; Miroslav Voinarovsky: http://psi-logic.narod.ru/steb/steb.htm
JACQUES A. WAINBERG
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A VIGILÂNCIA E A PUNIÇÃO À DISSIDÊNCIA _______________________________________________________________________________________
Há um preço a pagar pela ousadia de não temer a liberdade. Michel
Foucault realizou em sua obra ampla denúncia dos mecanismos de vigilância e
punição social aplicados aos desviantes. Instituições como a prisão e o sistema
judicial foram analisados. Não só a opinião, como também a loucura e a
sexualidade foram vistas pelo filósofo francês como comportamentos a serem, ora
dominados e coagidos ao enquadramento e ora banidos.
Exemplos de punição a essa ousadia de caminhar por rotas desconhecidas
não faltam. O “cherem” foi aplicado no caso célebre de expulsão do filósofo judeu
holandês, de origem portuguesa, Baruch Spinoza da vida comunitária. O conceito
cristão equivalente é excomunhão. Por vezes utiliza-se em sua tradução o termo
anátema que no Novo Testamento implica em denúncia e banimento. Em
Romanos (9:3) a expressão “anátema de Cristo” significa excluído da aliança. Em
I Coríntios (16:22) o termo denota entre outras interpretações a que afirma que os
que não amam o Senhor devem ser execrados de todas as coisas sagradas,
merecendo a mais severa das condenações. Entre as ofensas puníveis estão:
pregar outro evangelho (Gálatas 1:8-9), não amar a Deus (I Coríntios 16:22) e a
blasfêmia contra o Espírito Santo (Mateus 12:31). O termo passou a significar a
extrema medida tomada pela Igreja contra os hereges. O Papa de Alexandria
(378-444) pronunciou 12 anátemas contra Nestório (340-451), um monge que se
tornaria o patriarca de Constantinopla. No século V consolidou-se uma distinção
entre anátema e excomunhão. A primeira passou a significar o afastamento de
uma pessoa ou grupo do rito da Eucaristia e a segunda a completa separação do
dissidente da Igreja.
O dissidente pecador pode ainda ser abominado. O ato de ”Pulsa DeNora”
embora controverso e mesmo negado pelas correntes e autoridades religiosas
judaicas de maior prestígio, possuí hoje um tom secreto e mágico usualmente
referido como cabalístico. Sua origem está no tratado Hagigah 15A do Talmud
Babilônico. Na passagem há uma referência a 60 maldições que visavam
disciplinar o anjo Metatron. É também referido no Zohar, um dos principais livros
do misticismo judaico. Adquiriu proeminência após a morte do ex-Primeiro-
LÍNGUAS FERINAS: UM ESTUDO SOBRE A POLÊMICA E OS POLEMISTAS
45
Ministro de Israel, Itzhak Rabin. A mídia desse país acusou grupamentos da
direita de terem ”abominado” a figura do líder nacional incitando seus inimigos a
assassiná-lo. Aparentemente, o mesmo ritual de ”Pulsa DeNora” foi realizado
contra Ariel Sharon, visando evitar que ele pusesse fim às colônias judias
instaladas em Gaza.
Ainda no século V, outro tipo de punição à dissidência foi utilizado na
Grécia antiga. O indivíduo que se aventurasse ao populismo e tendesse à tirania
corria o risco de ser banido por 10 anos. Ou seja, o objetivo principal da
democracia ateniense era menos estabelecer o governo do povo pelo povo e
mais evitar a ditadura. Nas assembleias de cidadãos a penalidade era votada.
Cada um escrevia numa espécie de cédula o nome do indivíduo que considerava
um perigo ao bem-estar social e colocava sua sugestão na urna. Se no mínimo
seis mil cidadãos escolhessem a mesma pessoa esta era então desterrada. Não
havia necessidade de acusação formal. E ao condenado não se permitia a
defesa. Entre as 13 personalidades que sofreram essa pena estão Tucídides,
líder da oposição aristocrática ao imperialismo ateniense; o pai de Péricles,
Xanthippus (em 484), que nas Guerras Persas tinha comandado a frota
ateniense; Aristeides, estadista ateniense que acabou sendo desterrado em 482
após ter entrado em conflito com o influente Themistoclés, um dos principais
idealizadores da construção da frota ateniense. Este por sua vez acabaria
igualmente em desgraça e no ostracismo em 472. O general Cimon, um dos
heróis da Batalha de Salamis contra os persas, se indispôs contra Péricles que o
acusou de colaborar com a Macedônia e Esparta acabando igualmente em
desterro em 461. Esses e outros condenados ao ostracismo tinham 10 dias para
abandonar a cidade. Se voltassem antes do fim da pena eram condenados a
morte. Desafiados pelas ameaças militares dos vizinhos, os atenienses
promulgaram uma anistia, permitindo que seus militares exilados Xanthippus,
Aristides o Justo e Cimon, retornassem a tempo de participar das batalhas. A
ideia de marginalizar os indivíduos por algum tempo ou para sempre como se vê
nesses distintos casos e tradições, tem função disciplinar, visa preservar e
sustentar a solidariedade comunitária assim como alterar o comportamento de um
membro ou afasta-lo do convívio. Ou seja, o dissidente pode ser visto pelo poder
e pela sociedade constituída como ameaça.
JACQUES A. WAINBERG
46
Na União Soviética comunista, muitos dissidentes acabaram exilados na
Sibéria, como se sabe. A medida foi aplicada em especial no período de 1965 a
1985. A crítica interna ao regime levada a cabo por essa gente, muitos deles
intelectuais, acabaria produzindo a imprensa alternativa e dissidente samizdat.
Nela os próprios autores editavam artesanalmente seus livros. Obras banidas
começaram a circular clandestinamente principalmente em Moscou e Leningrado
(atual São Petersburgo), em cópias de carbono e datilografadas. Entre os autores
underground famosos do período estão Alexander Solzhenitsin e Andrei Skharov,
rotulados posteriormente como refuseniks. Outro autor, ganhador do prêmio
Nobel de Literatura, Boris Pasternak, não conseguiu publicar em 1958, em seu
país a obra Dr. Jivago. Ela acabaria sendo intensamente difamada apesar do
sucesso internacional. Outros autores ainda foram presos e condenados a
períodos de trabalho forçado em campos de prisioneiros (são os casos de Andrei
Sinyavsky e Yuli Daniel). Como no Brasil, no período da ditadura, essa imprensa
alternativa cresceria à medida que a repressão aumentava.
A militância samizdat alterou o significado pejorativo que era dado até
então ao termo ”dissidente”. Passou a nomear menos os criminosos e mais os
não conformistas. Nesse caso, como noutros (os expedientes do ostracismo,
desterro e trabalho forçado foram usados também na China maoísta), o controle
do pensamento pela ameaça e coerção policial parece ter sido bastante aplicado.
O efeito em muitos desses casos foi devastador. Noutros foi libertador, tornando o
herege em divulgador da ideia rebelada. Radicalizou os pontos de vista na
sociedade, provocando a ira crescente da opinião pública. Costuma-se referir a
esse estágio de ruptura social como “cisma”. Ele tem ocorrido também em
grupamentos políticos e religiosos variados em praticamente todas as tendências
ideológicas e teológicas.
Na história das religiões um dos principais temores das burocracias
eclesiais foi sempre a possibilidade de ocorrência desse tipo de divisão, o que
explica o feroz combate à apostasia, à idolatria e ao sectarismo. O termo takfir
(herege) tornou-se conhecido no Ocidente depois que os grupamentos da
ortodoxia islâmica não só festejaram os ataques terroristas realizados pela Al
Qaeda contra as torres gêmeas de Nova York em 2001, como difundiram a ideia
da guerra civilizacional contra os hereges. Ele foi usado contra o escritor Salman
LÍNGUAS FERINAS: UM ESTUDO SOBRE A POLÊMICA E OS POLEMISTAS
47
Rushdie autor de ”Versos Satânicos”, à somali Ayaan Hirsi Ali, autora de ”Infiel”, e
à Tasleema Nasreen, de Bengladesh, autora de ”Lajja”. Muitos teólogos
muçulmanos liberais e pensadores como estes se refugiaram em países
democráticos de onde continuam a desferir – alguns deles protegidos pela polícia
– seus petardos retóricos. Tal confronto não é novo no Islã. Exemplo de polemista
ferrenho do século XI na Espanha moura é Ibn Hazm. É descrito nas fontes
islâmicas como debatedor feroz, dotado de uma virulência incomum que atacava
seus opositores com veemência e ardorosamente. Faltava-lhe tato e delicadeza.
Acabou, como é usual nesses casos, isolado, excomungado, perseguido e
odiado.
No Islã a apostasia é denominada ”ridda”. Embora o Alcorão não defina
quais punições devam ser aplicadas aos apóstatas, o ato é visto como insultante.
Os que rejeitam o Islã nascidos no seio da ”ummah” (a comunidade islâmica
mundial) são denominados pejorativamente como ”murtad fitri” e os que se
converteram e após se arrependeram são nomeados como ”murtad milli”. Não
raro, e segundo algumas interpretações teológicas, a pena de morte pode ser
aplicada aos homens apóstatas (é o que ocorre na Arábia Saudita, Iêmen, Irã,
Sudão, Afeganistão, Mauritânia e Camarões) e prisão perpétua às mulheres. Os
literalistas aplicam o hadith “Quem mudar sua religião, mate-o”. Alguns
interpretam essa tradição como traição e não somente apostasia. A medida é
bastante controversa e teólogos liberais islâmicos recusam essa leitura da
passagem. No judaísmo ele é rotulado como yetzia bisheila, o que abandona o
pacto.
No período da Guerra Fria, o traidor da fé política era usualmente rotulado
como “desertor”. Foram os casos de inúmeros alemães e soviéticos (entre outros)
que partiram rumo aos países democráticos, e de ocidentais que se refugiaram no
oriente, entre eles, 21 prisioneiros americanos e um britânico que desistiram da
repatriação após a Guerra da Coréia, elegendo permanecer na China. Foi o caso
também do espião britânico Kim Philby. Ele fugiu em 1963, após ser descoberto
que trabalhava para a KGB soviética. Morreria na Rússia em 1988.
Nesse país o destino destes pensadores polemistas tem sido mais cruel.
No alvorecer do regime comunista, cerca de dois terços deles pereceram ao lado
das forças opositoras aos comunistas ou emigraram rumo aos países bálticos
JACQUES A. WAINBERG
48
vizinhos. Lênin costumava definir essa inteligentsia como “podre” e Stalin, após
perseguir e assassinar muitos deles iria substituí-los por uma nova classe de
autores e pensadores fíéis, disciplinados e acima de tudo temorosos de seu
governo. No Camboja, onde igualmente se instalou um cruel regime comunista, a
hostilidade aos intelectuais era tanta que em alguns setores do regime do Khmer
Rouge (1975-1979) pessoas que usassem óculos eram mortas. Ou seja, os
óculos eram interpretados como marcas de educação, refinamento, elitismo e
intelectualismo. O regime islâmico do Irã provocaria também uma nova onda de
emigrados entre seus mais importantes intelectuais. Entre 1980 e 1982, o
currículo universitário foi ”purificado” e autores foram perseguidos e mortos (o
poeta Said Soltanpour, por exemplo, foi executado).
LÍNGUAS FERINAS: UM ESTUDO SOBRE A POLÊMICA E OS POLEMISTAS
49
O PAPEL SOCIAL, COGNITIVO E EMOCIONAL DOS DILEMAS _______________________________________________________________________________________
Pode-se afirmar que na essência da vida cultural e espiritual estão as
escolhas que os dilemas nos oferecem. Por isso, tende-se a pensar sempre em
duas alternativas de curso à solução dos desafios intelectuais e existenciais. Na
verdade, esta é uma simplificação rude. Com frequência, ocorrem também
trilemas, tetralemas e assim por diante. E nesses casos o número de opções é
maior. Exemplo de trilema na religião foi formulado por Epicuro ou Carneades, um
escritor cético. Ele diz:
1. se Deus é poderoso, mas incapaz de prevenir o mal, ele não é
onipotente; 2. se Deus é capaz, mas não deseja prevenir o mal, ele não é bom; 3. se Deus é poderoso e capaz de prevenir o mal, então por que há
o mal?
Outro exemplo: ao ponderar sobre a declaração feita por Jesus, implícita
ou explicitamente, de que ele era Deus, o pensador cristão (anglicano) C.S.Lewis
(1898-1963) diz que para isso ser verdade, uma das três alternativas abaixo tem
que ser verdadeira:
1. Lunático: Jesus não era Deus, mas acreditava equivocadamente
que era; 2. Mentiroso: Jesus não era Deus, mas afirmava que era apesar de
saber que não era; 3. Senhor: Jesus é o Senhor.
A moderna educação aos valores tem feito uso da polêmica e de seus
dilemas. Evita assim a pregação pura e simples de códigos de postura. Parece
ser mais produtivo o monitoramento dos enfrentamentos teóricos em torno de
controvérsias existenciais, científicas, filosóficas e morais do que a ineficiente
imposição de mandamentos às pessoas. O sentido da vida e sua dimensão
sagrada aparecem mais facilmente aos olhos do educando quando ele
acompanha passo a passo os embates que procuram dar solução a algum tipo de
controvérsia. A estratégia evangelizadora é autoritária. Geralmente encontra
ouvidos surdos. Não há envolvimento afetivo e intelectual por parte do público. A
JACQUES A. WAINBERG
50
passividade do receptor deriva do espírito dogmático do pregador. Já a segunda
alternativa é mais envolvente, pois enriquece o ouvinte tornando certo elenco de
preceitos relevante. Ou seja, é a existência de dilemas e do debate em torno
deles o que estimula e permite a sociedade refletir sobre seu destino e o
significado de sua própria existência.
Hoje em dia não faltam controvérsias capazes de provocar ansiedade
moral. Aborto, suicídio assistido, ação afirmativa, clonagem, mutilação genital
feminina, criacionismo e darwinismo, imigração ilegal, multiculturalismo,
separação entre estado e religião, gravidez na adolescência, corrupção, pobreza
e riqueza são alguns entre milhares de temas capazes de dividir a opinião pública.
Confrontados com desafios existenciais deste tipo os educandos podem ser
expostos aos ensinamentos dos sábios, ao debate filosófico e moral entre eles e
às diferentes opções de solução aos paradoxos e dilemas éticos. Para este
objetivo de se educar aos valores, os polemistas e a polêmica parecem ser
indispensáveis.
A Teoria dos Jogos é outra área que se interessou pelos dilemas.
Desenvolveu empiricamente modelos de comportamento e decisão. Seu interesse
está no entendimento do tipo de cálculo que uma pessoa faz ao adotar certo
percurso e rota. Deseja entender a lógica das decisões dos indivíduos nas suas
interações sociais, ora competindo, ora colaborando, e ora, ainda, adotando
posturas surpreendentemente altruístas. Seus ensinamentos têm sido utilizados
em inúmeras áreas, entre elas a estratégia militar, a economia, o comércio e as
relações internacionais. O Dilema do Prisioneiro concebido na Rand Corporation
por Merril Food e Melvin Dresher, em 1950, é um dos mais conhecidos e
difundidos. Outros jogos similares são o Dilema de Platonia, o Dilema do Viajante,
o Dilema de Segurança, o Dilema do Porco-Espinho e o Dilema de Warnock.
Nestes desafios de laboratório, assim como nas situações reais da vida, as
pessoas são constrangidas a tomarem decisões quando enfrentam escolhas
difíceis. A opção preferencial acaba expondo o indivíduo e os valores que o
constituem. A escolha desnuda seu caráter. As situações extremas são
especialmente reveladoras. Nelas, a decisão do jogador vem envolta em agonia e
ambiguidade. O que muda nesse caso é o grau máximo de sofrimento provocado
LÍNGUAS FERINAS: UM ESTUDO SOBRE A POLÊMICA E OS POLEMISTAS
51
ao ator. Revela o princípio moral que por fim é consagrado ou ferido na trilha e no
percurso adotado pelo indivíduo.
Por isso, os livros de ética estão cheios de exemplos de dilemas radicais.
O exame dos casos permite observar a polêmica e o cálculo moral dos envolvidos
na controvérsia. Os exemplos de dilemas morais ponderam sobre os limites e as
possibilidades da ação humana. Aos nossos fins, cabe simplesmente assinalar
essa virtude do dilema: gera discussão, produz a dúvida, e não raro, predomina
na sua solução o desejo das pessoas em não se distinguirem com sugestões
atípicas e originais. Tendem a dizer o que o senso comum diz; repetem o que
ouvem; seguem as lideranças. Certamente esse não é o caso dos polemistas que
vieram ao mundo para divergir e atormentar o comportamento de horda das
multidões. A vocação e ação subversora dos polemistas vêm por isso envolta em
certa angústia moral, e produz sempre sua consequência inevitável – a
dissonância cognitiva que abala o comportamento de parcela do público envolvido
na celeuma. Ela permite que se vislumbre alternativas e que se rompa com a
tradição dos costumes.
No caso das disputas teológicas a hostilidade entre os debatedores foi
denominada de Odium theologicum. Ele esteve presente, por exemplo, em
inúmeros embates que teólogos judeus e cristãos travaram ao longo do tempo,
mas em especial nos realizados em Paris em 1240, em Barcelona em 1263, em
Burgos em 1375, em Tortosa em 1413, em Roma em 1450 e na Alemanha em
1500. Foram na verdade espetáculos realizados em praça pública, assistidos por
multidões e pelos dignitários da Igreja, que visavam acusar o Talmud de ser uma
peça literária que em essência era difamatória de Jesus e do dogma cristão.
Visavam também amedrontar as comunidades judaicas forçando-as à conversão
ou à expulsão. Certamente não foram os únicos embates do tipo. O conflito entre
cristãos e muçulmanos foi intenso na Península Ibérica durante o período do
domínio mouro da região. Hostilidade similar desenvolveu-se também entre os
dissidentes protestantes e a Igreja. E agora, mais intensamente, o mesmo tipo de
ódio teológico prevalece entre os diversos ramos do islamismo. Por isso,
inúmeras vozes falam hoje da necessidade de aparecer no seio da ummah uma
espécie de ecumenismo islâmico, principalmente entre xiitas e sunitas.
JACQUES A. WAINBERG
52
Na análise das disputas teóricas e entre paradigmas, o historiador e
filósofo da ciência americano Thomas Samuel Kuhn afirmou, em 1962, em seu
estudo seminal ”A Estrutura das Revoluções Científicas” que afinco ”teológico”
similar surge nos embates entre correntes teóricas. Afirmou que raramente os
cientistas debatem explicitamente sobre suas decisões mais básicas de pesquisa
e que os consensos são construídos menos por observações e evidências e mais
por cometimento de grupo. Ou seja, o autor identificou um amplo campo de
preconceitos parti lhados que controlam as expectativas dos pesquisadores. Ele
chamou esse campo de ”matriz disciplinadora”. Imre Lakatos faz afirmação
similar. Para ela, programas de pesquisa são constituídos tomando por base
crenças metafísicas. Não raro, tais crenças resistem à falsificação devido ao
desejo do cientista em sustentar sua crença apesar dos problemas ou apesar da
descoberta de evidências opostas à crença original.
Muitos desses embates científicos, filosóficos, políticos e teológicos
resultam de falsos dilemas, litígios que apontam para um desenlace que autoriza
somente uma de duas opções excludentes. A controvérsia fabricada teria assim a
função estratégica de retardar a consolidação na opinião pública de certa
convicção. Para isso, o debatedor amplifica a incerteza em torno do tópico em
debate e demanda que se dê guarida ao ponto divergente e desprestigiado.
Protágoras ensinava que sempre há duas rotas de solução a uma questão e que
a missão do sofista era fazer o lado mais fraco parecer mais forte. Incomodado
com tal arte do engano é que Aristóteles acabaria escrevendo sua obra Retórica.
Esse tipo de ilusionismo verbal tem sido bastante utilizado em temas
graves como o tabagismo, a existência do holocausto judeu, a AIDS e o
aquecimento global. No primeiro caso é conhecido o esforço da indústria do
cigarro em postergar, sufocar e impedir o debate sobre os malefícios do fumo,
optando por fim e em desespero colocar em dúvida as evidências científicas que
denunciam esse hábito e esse vício como causadora de inúmeras doenças fatais.
No segundo, os revisionistas históricos contestam a veracidade da ”solução final”
de Hitler e seu projeto de extermínio dos judeus nas câmaras de gás dos campos
de concentração, apesar das evidências documentais existentes. No terceiro
exemplo, em 2000, o presidente da África do Sul colocou em dúvida a relação
entre HIV e AIDS e a própria epidemia que contaminava boa parcela da
LÍNGUAS FERINAS: UM ESTUDO SOBRE A POLÊMICA E OS POLEMISTAS
53
população de seu país. Depois, comportamento similar ocorreu em 2008 no
Zimbabwe quando denúncias (verdadeiras) apontavam para uma epidemia de
cólera no país, amplamente desmentidas pelas autoridades locais. Polêmica
similar sobre o aquecimento global tem postergado em alguns países a adoção de
medidas que evitam o agravamento do problema.
A espetacularização obtida de muitos desses embates entre atores que
disputam as preferências das audiências em enfrentamentos realizados nos
palcos montados pela mídia (entrevistas coletivas, discussões políticas, mesas-
redondas, colóquios, etc.) tem uma clara repercussão social inexistente nas
discussões entre indivíduos na intimidade de seus lares. A argumentação sobre
temas públicos apresentada por tais personagens em tais contextos é cada vez
mais comum. Ouvintes e telespectadores acompanham tais discursos despertos
em boa medida pela dúvida sobre o que é dito como também pela simpatia e a
hostilidade ao que é pronunciado. O ruído dessas vozes na TV e no rádio é
incessante e crescente. Com tantas horas à disposição em centenas de canais,
há certamente hoje um vazio na programação das emissoras em todo o mundo.
Aparentemente, o mais fácil é pôr no ar gente a falar. Gente com boa e
consistente opinião, mas também gente com ideias superficiais, impressões
coletadas aqui e ali para impressionar. E como se observa facilmente, tagarelam
sem parar.
JACQUES A. WAINBERG
54
O DEBATE E A MÍDIA _______________________________________________________________________________________
Nem o tema polêmico nem a cobertura polêmica demandam uma mídia
polemista. Ela existe, mas esse é um terceiro e distinto caso. Na história do
jornalismo sempre foi possível distinguir esse segmento da contracultura e de
oposição política na qual se confunde a informação com a propaganda. A
imprensa polemista vive desses embates e seu público é sectário sempre. Vale
recordar a experiência da imprensa partidária da República de Weimar e de Viena
no entre-guerras. Os jornalistas tornaram-se nesse curto e trágico período mais
militantes de partidos políticos em luta pelo poder e bem menos agentes do
esclarecimento público. Suas coberturas jornalísticas mesclavam
intencionalmente fatos e opiniões, o que resultou no abalo da ética e minou a
crença do público na informação difundida pelos jornais. Não são poucos os
autores que apontam essa prática como uma das causas da crise moral da
Alemanha e da Áustria, o que justificou a intervenção de censores e
“reeducadores” aliados na imprensa daqueles países e no Japão no pós-guerra.22
A ação de um tipo de imprensa sensacionalista marcou também a história
norte-americana. Os jornais de propriedade de William Randolph Hearst e Joseph
Pulitzer no fim do século XIX representavam o desejo de seus editores de pagar
qualquer preço na ampliação do mercado leitor, mesmo ao custo da verdade e da
manipulação dos eventos e dos fatos. A imprensa socialista e radical daquele país
igualmente escreveu um capítulo de polêmicas históricas. Entre os personagens
dessa fase radical da década de 1910 destacam-se as revistas denominadas
muckrackers, em especial a McClure's Magazine de forte apelo político em defesa
dos trabalhadores.
Hoje em dia não faltam nos Estados Unidos exemplos de revistas
devotadas à militância e ao engajamento ideológico, político e filosófico. Uma
delas, The American Dissident, fundada em 1998, afirma que se enquadra na
categoria da tradição samizdat estimulando ”Ensaios Contra a Máquina”. Sua
missão prioritária é denunciar o lado corrupto do Complexo
Industrial/Literário/Acadêmico. Retoma para isso o conceito grego de parresía, a 22 Ver A nova Imprensa da nova/velha Alemanha. Revista Brasileira de Comunicação. Intercom, v.XVIII, n. 1, Jan/Julho de 1995, São Paulo/SP, p. 50-66
LÍNGUAS FERINAS: UM ESTUDO SOBRE A POLÊMICA E OS POLEMISTAS
55
ousadia de alguns poucos cidadãos de criticar o poder, mesmo ao preço de
arriscar a vida e a sobrevivência, o que nesse ambiente significa ser despojado de
anos sabáticos, editores, financiamento de pesquisa, estabilidade no emprego,
convites para palestras e bancas de avaliação, tudo o que faz e constitui o
ambiente universitário.
Outro exemplo é a revista Dissent, devotada à temática da política, cultura
e sociedade. Fundada em 1954, deu voz a um número expressivo de intelectuais
de Nova York desde então. Embora classificada usualmente como de esquerda,
na verdade adotou uma postura de centro. No período da Guerra Fria seus
ensaístas foram críticos mordazes da URSS e China, dos experimentos
comunistas em Cuba, Vietnã e muitos outros lugares do mundo. Seu objetivo era
divulgar ideias pouco ortodoxas que não encontravam espaço na mídia
convencional.
Outros exemplos desse tipo de mídia, por vezes rotulada também como
independente e engajada, são as revistas de esquerda New Politcs, The
Progressive e The Nation. No lado oposto do espectro ideológico estão
publicações como The American Interest, The American Spectator, The National
Interest, The New American, Commentary, entre outras. Na lista de publicações
alternativas geralmente aparecem publicações como Mother Jones, Boston
Phoenix e Whole Earth. Já o Village Voice é exemplo de revista usualmente
referida como underground. Noutros países democráticos como a Inglaterra, a
Austrália e a França experiências similares ocorrem.
Esse amplo mercado editorial da dissidência e do protesto encontra
também guarida qualificada nos blogs e sites que se multiplicam rapidamente na
Internet. É nesse ambiente virtual que se desfraldam hoje bandeiras diversas em
confronto direto e mortal. Recorda o espírito anárquico e mágico da panfletagem
de antigamente. Esse tipo de literatura possuía muito dos elementos que
constituíram o polemismo, em especial sua virulência. Na origem, animou-se dos
conflitos do seu tempo, em especial as guerras religiosas e os debates filosóficos
e teológicos. A panfletagem, desde então, serve aos fins da persuasão e da
incitação.
Exemplo de panfleto foi a publicação de La Satyre Ménippé de la vertu du
Catholicon d’Espagne, publicado em Tours em 1594. Trata-se de uma crítica
JACQUES A. WAINBERG
56
política contra a Liga Católica e as pretensões da Espanha na França neste
período da Guerra das Religiões. Defendia a ideia de uma França independente,
mas católica. Seu título derivou de um gênero relevante ao estudo da polêmica, a
sátira menipeia. Ela está diretamente relacionada aos cínicos, escola de
pensamento fundada em III a.C por Diógenes. O cão é o emblema dessa
corrente. Ou seja, afirmava o ponto de vista de que a filosofia deveria ser
acessível, assim como deveria despojar-se de seus ornamentos, de sua aura e
arrogância. O mundo deveria ser visto desde baixo, desde o chão, como faz o
cachorro. Expunha o que havia de pior nas pessoas e na sociedade. Pregava a
renúncia ao prazer, ao dinheiro, à propriedade, ao casamento, à família, à
educação e à pátria. Por isso, Diógenes vivia num tonel. Seu pensamento foi
resgatado por Luciano de Samósata, em Diálogo dos Mortos. São trinta diálogos
entre as figuras mais famosas da Grécia antiga. Neles predominam a sátira, o
humor e a ironia. Desmascaram a cultura de seu tempo. Profanizam seus valores
mais caros. Como toda e qualquer paródia, carnavalizam o senso comum. Não
poupam ninguém. O cinismo, a virulência e o sarcasmo são respostas aos
diálogos platônicos e sua esperança na razão, no equi líbrio e na harmonia
interior. Os cínicos realçam o grotesco contrapondo-se ao saber e ao ideal
filosófico.
O panfleto também deu vazão aos debates literários do século XVII e
permitiu na França, em 1655, o ataque de Blaise Pascal aos jesuítas em defesa
de Antoine Arnauld que havia sido condenado pela Sorbonne por heresia. Na
verdade, esse era um capítulo a mais do embate entre o movimento fundado por
Cornelis Jansen e a Igreja Católica que não aceitava sua ênfase na
predestinação, negação do livre arbítrio, e sua descrença na bondade da natureza
humana. O panfleto foi também o canal para o debate sobre o ”quietismo”, uma
corrente mística fundada no seio da Igreja Católica por Miguel de Molinos no
século XVII. Sua reputação crescente e suas ideias sobre submissão à vontade
divina, com humildade e passividade, provocaram a oposição de alguns jesuítas e
dominicanos que temiam um novo cisma no seio da Igreja.
Depois, no século XVIII, autores como Voltaire e Abbé Sieyés e vários
outros no período revolucionário francês e napoleônico fizeram amplo uso da
tipografia para divulgar em panfletos impressos suas ideias. O Caso Dreyfus
LÍNGUAS FERINAS: UM ESTUDO SOBRE A POLÊMICA E OS POLEMISTAS
57
constituiu-se em verdadeiro laboratório para uma guerra de incitação e
propaganda levada a cabo por uma panfletagem virulenta e agressiva. Emile Zola
sairia em defesa de Dreyfus publicando brochuras. Depois, esse tipo de
manifestação migraria aos jornais, tornando desde então articulistas variados em
celebridades por vezes internacionais.
Os jornais acabariam igualmente acolhendo em suas páginas a crítica
musical que até então circulava igualmente em panfletos, dando vazão aos gritos,
ora de simpatia e ora de hostilidade entre grupos opostos, os simpatizantes da
ópera italiana e da francesa. O mesmo passou a ocorrer na Alemanha, na
Inglaterra e noutros países. O primeiro crítico musical foi contratado pelo The
Times de Londres, em 1845. Publicações especializadas de crítica musical e de
arte começaram a circular a partir de então. No século XIX, muitos compositores
tornaram-se eles próprios críticos musicais. Na Europa os nomes de George
Bernard Shaw, Hugo Wolf, Smetana, Tchaikovsky e Debussy passaram a ser
conhecidos nos círculos especializados. Cabe ressaltar, portanto, que a música
ajudou a abrir espaço na mídia à controvérsia e acostumou aos poucos o público
leitor aos embates teóricos e de opinião que se alastraram à literatura, à arte e ao
cinema, entre outras formas de expressão e comunicação.
No Brasil foi igualmente longo o período da imprensa polemista. Hipólito
José da Costa, desde o alvorecer, e do exílio inglês, discute com veemência em
artigos interpretativos as diretivas do rei português que se refugiara no Rio de
Janeiro. Gregório de Matos tornar-se-á o poeta panfletário do Brasil colônia. Após
escrever a sátira “Juízo Anatômico dos Achaques que Parece o Corpo da
República em todos os seus Membros, e Inteira Definição do que em todos os
Tempos é a Cidade da Bahia," Matos é preso incomunicável e degradado para
Angola, e anos depois só volta com a condição de não mais fazer versos.23
23 Jornal, História e Técnica- História da Imprensa Brasileira. São Paulo: Ed. Ática. 1990. p.32.
Já o
padre Antônio Vieira fará em sua época um discurso mais circunspeto e reflexivo,
mas igualmente controverso. Pequenos veículos envolver-se-ão em disputas
políticas após 1822. Símbolos dessa época são A Malagueta, de Luís Augusto
May, e Aurora Fluminense, de Evaristo Veiga. Destacam-se ainda O Buscapé, o
Doutor Tirateimas, O Narciso, o Novo Conciliador e O Enfermeiro dos Doidos que
circulam nos últimos meses do Primeiro Reinado.
JACQUES A. WAINBERG
58
Em especial, a panfletagem constituiu-se na marca da imprensa brasileira
no período de 1808 a 1880. A restauração e a liberdade dos negros da escravidão
são alguns dos dilemas daquela época que alimentavam as disputas. Cipriano
José Barata de Almeida tornar-se-á no campeão das liberdades públicas. Surge à
época a caricatura que introduz a sátira na reportagem gráfica. Nos tempos bem
mais recentes apareceria fenômeno similar com a imprensa alternativa cujo papel
histórico foi o de criticar e desvendar a lógica e os desmandos do regime militar
iniciado no país em 1964. Tais publicações provocaram o “establishment”, fizeram
crítica social e tentaram alterar o ambiente político através da denúncia e da
cobertura engajada.
Os que temem o polemista, e eles não são poucos, manterão sua pena sob
judice e seu espaço sempre será precário e provisório. O jornalismo comunitário é
um bom exemplo desse tipo de tratamento. A matéria jornalística nessa mídia que
inclui a pequena imprensa interiorana, o jornalismo étnico e religioso, e a
panfletagem política e sindical dos nossos dias, visa mais o congraçamento e a
retórica evangelizadora, e menos o debate de assuntos controversos, seja na
regular e inevitável cobertura de todos os dias, seja na verbe afiada de tais
personagens malditos. A meta desses veículos é dar ao leitor a sensação de
pertinência ao corpo orgânico da comunidade. Deseja-se aqui o consenso e o
estreitamento de laços. Serve mais aos fins da animação cultural e menos, outra
vez, aos fins da reflexão crítica. Uma palavra inovadora, uma ideia não trivial e um
tema polêmico geram nesse tipo de contexto enorme mal-estar. O gatekeeper
desse tipo de veículo sabe de antemão que ele serve mais aos fins educacionais.
Por isso, um veículo comunitário perde em grande medida seu poder
comunicacional. O jornalismo é polêmico por natureza, cercado por opinião
dilacerante. No comunitário a margem para tal provocação é estreita e o conteúdo
vigiado. Trabalha-se na esfera do consenso. Trata-se de um discurso que se
destina a ouvidos que buscam o conforto e a paz.
Como afirmado, hoje em dia muitos polemistas buscam espaço e alcançam
repercussão na Internet. Nas eleições à presidência dos Estados Unidos de 2008,
por exemplo, esse novo canal de comunicação tornou-se a mídia preferencial de
24% dos norte americanos, o dobro da audiência verificada na campanha de
2004. O impacto é especialmente forte entre os jovens. Na faixa etária de 18 a 29
LÍNGUAS FERINAS: UM ESTUDO SOBRE A POLÊMICA E OS POLEMISTAS
59
anos conquistou 42% de preferência, um crescimento de 22% desde 2004. A
nova geração usa a Internet mais intensamente também para socializar, ver
vídeos e se informar. Um total de 8% do público declarou que visitou sites
satíricos relacionados à temática eleitoral.
Onde o Público Norte-A mericano se Informou sobre a Campanha Presidencial de 2008
2000 2004 2008 2008/2004 Idade: 18/29
2008/2004 Idade: 30/49
2008/2004 Idade: 50+
Noticiário de TV local 48% 42% 40% 25% - 39% - 50% -
Noticiário de TV a Cabo 34% 38% 38% 35% - 36% - 41% -
Noticiário de fim de noite na TV 45% 35% 32% 24% - 28% - 40% -
Jornal Diário 40% 31% 31% 25% - 26% - 38% -
Internet 9% 13% 24% 42% 20% 26% 16% 15% 7%
Documentários de TV 29% 25% 22% 21% - 19% - 25% -
Programas Matutinos de TV 18% 20% 22% 18% - 21% - 25% -
Rádio Nacional Pública 12% 14% 18% 13% - 19% - 19% -
Programas de Entrevista e Debate no Rádio 15% 17% 16% 12% - 16% - 17% -
Programa de Entrevista e Debate Político na TV a Cabo
14% 14% 15% 12% - 11% - 18% -
Programas Políticos de TV aos domingos 15% 13% 14% 4% - 12% - 21% -
Programas na TV Pública 12% 11% 12% 6% - 12% - 14% - Revistas 15% 10% 11% 8% - 9% - 13% - Programas de Entrevistas de Fim de noite na TV 9% 9% 9% 10% - 8% - 9% -
Rádios religiosas 7% 5% 9% 5% - 8% - 12% - CSPAN 9% 8% 8% 6% - 9% - 9% - Programas de humor na TV 6% 8% 8% 12% - 7% - 6% - Lou Dobbs Tonight 7% 7% - 5% - 8% - Fonte: Pew Research Center for the People & the Press
JACQUES A. WAINBERG
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A NATUREZA DA POLÊMICA _______________________________________________________________________________________
Do que foi dito até aqui cabe recordar a mensagem de que a polêmica
pública envolve uma dimensão educativa que visa influenciar de algum modo o
estado de espírito das pessoas que observam o embate. Não é por consequência
um mero diálogo ou uma conversação intimista. Simples discordância de opinião
não é fator suficiente para evocar uma polêmica. O que entra em jogo aqui é a
potencialidade de seus efeitos. A controvérsia deve ter um peso maior. Deve
envolver uma quantidade de tópicos entrelaçados. Deve provocar a polarização
dos pontos de vista. Suas consequências são existenciais. Há acusadores e há
defensores que buscam, ora negar a suspeita, ora apresentar desculpas e ora
ainda justificar determinado comportamento, decisão, ideia e preferência.
Como afirmado, é condição da polêmica a existência de um dilema 24
Ao contrário da referida agonia esportiva, a da polêmica não tem hora para
acabar. O espetáculo proporcionado é a exegese, a capacidade de espremer a
palavra. É isso que diverte as massas. O espetáculo do embate é público, mas
geralmente não é frontal. Como os diplomatas, raramente um polemista enfrenta
seu adversário como boxeador num ringue. O choque é indireto, geralmente
,
natural ou provocado. A ambiguidade inerente a tais impasses do pensamento
provoca ansiedade, e por decorrência desejo de resolução. É esse fator que dá
ânimo ao embate. Tem-se aqui, por isso mesmo, gladiadores em luta, com a
agressividade que caracteriza tais disputas. No caso, há uma simulação de um
jogo de vida e morte. A agonia esportiva que atrai multidões aos ginásios e
estádios é o mesmo fator mágico que anima o toma-lá-dá-cá de tais falas. Sabe-
se de antemão que haverá sempre torcidas em oposição. Para cada ginga de
corpo da pena haverá sempre um suspiro de surpresa do público, que treme, ora
de prazer, ora de ódio com o tilintar dos verbos.
24 No campo científico a opção por modificar genes de vacas leiteiras para permitir que um rebanho produza em média 60 litros por dia tem como ameaça a possibilidade de que um determinado vírus passe automaticamente de um animal para outro. Outro exemplo: já se tornou comum a produção de certos medicamentos, como a insulina, por bactérias modificadas com o implante de genes humanos. O próximo passo é a implantação de porções de DNA humano em grandes mamíferos, para produção de compostos sanguíneos úteis. Ovelhas modificadas já produzem experimentalmente o fator de coagulação humano, usado para tratar hemofílicos. O dilema é que como o DNA não é uma molécula estável, teme-se sua contaminação por genes animais.
LÍNGUAS FERINAS: UM ESTUDO SOBRE A POLÊMICA E OS POLEMISTAS
61
através da mídia. Esse fato torna o polemista em personagem da indústria
cultural.
Ao explicar porque não tolerava enfrentamentos desse tipo, Michel
Foucault afirma que o polemista comporta-se como se estivesse numa guerra. A
pessoa que lhe enfrenta é vista como um adversário, um inimigo que está errado
e cuja simples existência constitui uma ameaça. O desejo é aboli-lo como um
interlocutor de qualquer diálogo imaginável. Para ele tudo isso não passa de
teatro. “Anátemas, excomunhões, condenações, batalhas, vitórias e derrotas não
são outra coisa do que formas de expressão”. Classifica o embate como uma
comédia em que se imita a guerra, aniquilamentos e rendições incondicionais. O
que os polemistas expressam com mais clareza é seu instinto assassino.25 Já o
exercício da inquirição é de outra natureza, diz ele. No diálogo, o questionador
tem o direito “de permanecer em dúvida, de perceber a contradição, de demandar
mais informação, de enfatizar diferentes postulados, de assinalar falhas na
argumentação, e assim por diante”. Esse tema, o do diálogo, ocupou igualmente
outros filósofos. Gabriel Tarde, por exemplo, pondera que o mesmo não tem
propósito imediato.26 É aberto, espontâneo, ao contrário do monólogo usual dos
discursos persuasivos. Todos os participantes têm o direito a se pronunciar. A
audição lhes é assegurada. O diálogo emerge da conversação, muito embora
nem toda conversação o produza. Não visa à deliberação. Portanto, predomina no
diálogo a reciprocidade. Entra-se nele admitindo como pressuposto que pode se
estar errado.27
Ao que parece, toda mediação vê-se obrigada a utilizar esse único canal
disponível para a construção da paz. Nesse tipo de ambiente menos propício à
confrontação as partes buscam encontrar áreas de interesse comum. Tentam
contemplar os justos interesses da outra parte. Evitam o exercício do ódio e do
autoódio. Esforçam-se em evitar que a violência, sempre à espreita, possa pôr fim
a reconci liação.
25 Entrevista concedida a Paul Rabinow em maio de 1984, pouco antes de sua morte. 26 TARD, G. L’Opinion et la foule. Paris:Presses Universtaires de France. 1989 p.87 In KIM, Joohan; KIM, Eun Joo. Theorizing Dialogic Deliberation. Coomunication Theory v.18, n.1, feb 2008. p. 51-70. 27 WELSH, S. Deliberative democracy and rethorical production of political culture. Rethoric and Public Affairs 5, p.682 In NOLA, J. Heidlebaugh. Invention and Public Dialogue. Communication Theory. V.18, n.1, feb 2008, p. 27-50.
JACQUES A. WAINBERG
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O diálogo é, de acordo com a obra de Martin Buber, um dar e um receber
cooperativo no qual se tem plena consciência do interlocutor. Não é um jogo
narcíseo no qual impera o silêncio tático, em que jogador espera o momento certo
para dar o bote. Afinal a ausência de expressão também comunica e não deve ser
vista simplesmente como o contexto do discurso.28
Exemplo desse tipo de recolhimento à quietude ocorreu em 2005, no
Brasil, após a imprensa ter desmascarado a profunda corrupção da administração
federal. O silêncio de proeminentes intelectuais que apoiavam fervorosamente o
novo governo de Luiz Inácio Lula da Silva, e que tão cheios de si costumavam em
governos anteriores disparar receitas salvacionistas, chamou a atenção, provocou
a ira de muitos e despertou o debate sobre o papel que eles devem desempenhar
na sociedade brasileira. Por que calaram, logo agora que a realidade lhes
desmentia o verbo e a estampa, perguntavam articulistas e comentaristas.
Não é também o silêncio
obsequioso que tão bem caracteriza o repentino cessar das prédicas e tagarelices
dos intelectuais engajados.
É verdade também que nem todo diálogo é honesto. Nele pode imperar a
manipulação, a mentira e a distorção. Pode ocorrer um tipo de cálculo no qual o
interlocutor é classificado como amigo ou inimigo dependendo do interesse do
que está em jogo e de como ele atua na conversação.29 Nesse caso de
comunicação teleológica, de acordo com a formulação de Habermas, o sucesso é
avaliado se certo efeito ou resultado é obtido. Já o autêntico “diálogo
comunicativo” ocorre quando os atores envolvidos estabelecem relações
interpessoais, visando a compreensão mútua. Habermas alerta, no entanto que
falhas podem ocorrer, especialmente nas discussões e debates, pois nesses
casos acaba-se bloqueando e confundindo ”a ação social”.30
Dito de outra forma, esse tipo de ponderação filosófica almeja um resultado
terapêutico cuja obtenção não é nem fácil nem simples. Não esconde, por isso
mesmo, sua natureza utópica face à dificuldade que os indivíduos têm de colocá-
lo em prática. Como referido, o diálogo nesses termos ideais serve aos fins da
28 ACHESON, Kris. Silence as Gestura: Rethinking the nature of communicative silences. Communication Theory.v.18, n.4. nov.2008, p. 535. 29 HABERMAS, J. The theory of communicative action. Vol.1: Reason and the rationalization of society. Boston. Beacon Press. In Joohan Kim and Eun Joo Kim. Theorizing Dialogic Deliberation. Coomunication Theory v.18, n.1, Feb 2008. p.51-70. 30 HOVE, Thomas. Understanding and Efficiency: Haberma’s Concept of Communication Relief. Communication Theory, v.18, n.2, maio de 2008. p.240-254.
LÍNGUAS FERINAS: UM ESTUDO SOBRE A POLÊMICA E OS POLEMISTAS
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resolução de conflitos variados, seja no âmbito familiar, seja entre grupos
humanos e nações. Tem sido utilizado com frequência por mediadores sociais. O
que se observa, no entanto, é que há sempre uma causa, uma ideia e um
interesse caro e distinto que comove sobremaneira os que estão interagindo,
dividindo-os. O afago e a tolerância pela ponderação alheia muitas vezes ou vem
cercado pela polidez do politicamente correto (que disfarça certo tipo de cálculo
egoísta) ou surge falsamente na ruminação da militância. Em suma, a polêmica
sobrepõe-se com facilidade ao diálogo. A guerra é mais facilmente obtida que a
paz. Essa tem sido uma das críticas mais frequentes às formulações
esperançosas de Habermas. O ”diálogo comunicativo” demanda um tipo de
discurso racional, difícil de obter e produzir. Ele deve ser não ideológico e livre de
restrições e disponível ao melhor argumento.31
Contrariado com o papel desempenhado por boa parte dos intelectuais
nesse tipo de desencontros e noutros, Karl Popper manifesta mal-estar contra a
”arrogância dos pretensamente instruídos”. Denuncia a ”verborreia”, definida por
ele como “o pretensiosismo de uma sabedoria que não possuímos.
32” Rejeita as
palavras grandiloquentes, obscuras, impressivas e ininteligíveis, um “estilo que
deveria deixar de ser admirado ou sequer tolerado pelos intelectuais.33” Diz que o
verdadeiro iluminista, o racionalista genuíno, jamais pretende persuadir. “Na
realidade ele nem sequer deseja convencer, pois está sempre consciente de que
pode enganar-se.34” Rejeita intensamente o utopismo presente no discurso de
muitos desses pregadores, uma espécie de doença que acaba afetando o
linguajar e o trejeito dos falsos messias.35
O papel em boa medida diversional que esse tipo de confronto entre
polemistas acabou assumindo aos olhos do público é uma mutação que responde
Por isso dá ênfase ao esforço crítico
que deve colocar em xeque formulações teóricas. Isso é mais importante do que
tentar colecionar evidências em seu favor. Não se deve justificar teorias. Deve-se
tentar refutá-las. As que sobreviverem ao bombardeio crítico são as que devem
ser saudadas.
31 Ver WEHRENFENNIG, Daniel. Conflict Management and Communicative Action. Communication Theory. V.18, n.3, agosto de 2008. p. 356-377. 32 Em busca de um mundo melhor. p. 90. 33 Ibid, p.173. 34 Ibid, p.187. 35 A Sociedade Democrática e Seus Inimigos. p.179.
JACQUES A. WAINBERG
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ao novo contexto social que obrigou a retórica política a se adaptar às condições
do público receptor. Cabe recordar que mais de 42 milhões de adultos norte-
americanos, 20% dos quais terminaram 12 anos de escolaridade básica, não
conseguem ler. Outros 50 milhões leem como se lê na quarta ou quinta série. Um
terço da população dos Estados Unidos é levemente alfabetizada. Um terço dos
graduados das escolas médias junto com 42% dos graduados universitários
nunca leram um livro depois que terminaram a formação escolar. Em 2007, 80%
das famílias dos Estados Unidos não compraram um único exemplar. Esses
dados ilustram o tipo de linguagem que os persuasores são obrigados a utilizar
por decorrência em seus enfrentamentos levados a cabo de forma indireta
geralmente através da mídia.
Um estudo da revista The Princeton Review analisou as transcrições dos
debates entre Al Gore e George Bush, em 2000, entre Bill Clinton e Ross Perot,
em 1992, entre John Kennedy e Richard Nixon, em 1960 e entre Abraham Lincoln
e Stephen A. Douglas, em 1858. Utilizando um vocabulário padrão, capaz de
indicar um nível mínimo que habilita um indivíduo compreender a leitura de um
texto, o estudo concluiu que George Bush falou como se fala aos estudantes da
sexta série (6.7) e Al Gore aos alunos da sétima (7.6). Em 1992, Bill Clinton falou
no nível da sétima série (7.6) enquanto George H.W. Bush falou no nível da sexta
(6.8) assim como H. Ross Perot (6.3). Kennedy e Nixon falaram no nível dos
estudantes que completaram 10 anos de escolaridade. Lincoln e Douglas por sua
vez falaram respectivamente num padrão de vocabulário equivalente a 11ª. série
e a 12ª. série. Ou seja, a retórica política de hoje naquele país está no nível médio
aproximado de um jovem com até 10 anos de estudos ou de um adulto com
capacidade de leitura equivalente à sexta série.
Segundo Chris Hedges, no blog Truthdig (12 de novembro de 2008), isso
ocorre porque esse é o padrão linguístico que a maioria dos cidadãos dos
Estados Unidos utiliza nas suas conversações, nas suas reflexões e com o qual
se diverte. Isso também explica porque a obra cultural mais sofisticada está sendo
marginalizada. Chris Hedges diz com ironia que enquanto no século XVIII Voltaire
era o personagem mais famoso hoje em dia ele é Mickey Mouse.
A situação brasileira é ainda pior. Dados de 2007 do PNDA mostram que
21,6% dos brasileiros são analfabetos funcionais e 10% são analfabetos
LÍNGUAS FERINAS: UM ESTUDO SOBRE A POLÊMICA E OS POLEMISTAS
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absolutos. Ou seja, 31,6% da população do país não possui domínio pleno da
leitura, da escrita e das operações matemáticas. Estima-se que entre 800 e 900
milhões de pessoas no mundo estejam nesta situação, ou seja, não podem ler
uma história para seus filhos, não podem consultar o cardápio de restaurantes,
não podem ler os ingredientes de uma embalagem de alimento ou remédio, não
podem ler e entender um jornal ou uma revista, não podem ler as instruções de
segurança de um equipamento.
Por tudo isso, Chris Hedges denomina esse novo tempo de pós-literário.
Nele as ideias mais complexas são inacessíveis a maior parte das pessoas.
Estímulos frequentes e incessantes são sempre necessários para atrair e dominar
a atenção do público. O produto cultural é julgado não por seu mérito, mas por
sua capacidade de entreter. Deriva desse fato a ojeriza que este e outros
intelectuais sentem em relação a esse tipo de ambiente em que a cultura
denominada de elite tornou-se inacessível e impenetrável a maior parte das
pessoas. Ele recorda que Hanna Arendt já tinha chamado a atenção ao fato de
que a mercanti lização da cultura poderia por fim degradá-la. Nessas condições a
capacidade de um indivíduo conseguir pensar com autonomia e divergir fica muito
restrita ou até mesmo inviabilizada.
Agora que a mídia audiovisual deslocou a imprensa e abalou a tradição da
leitura, além da imprensa radical, alternativa e independente também a nova e
emergente blogosfera serve de abrigo e refúgio aos comentaristas mais
indispostos e arredios ao enquadramento que o gênero infotainment procura fazer
desses personagens. Tornando-os celebridades da TV e do rádio, tornam-se
palatáveis ao público. Convertem-se também em estrelas de um firmamento que
alimenta o cardápio de atrações das emissoras e de seus departamentos de
marketing. Nessas circunstâncias de exposição massiva, as línguas ferinas são
geralmente dobradas. O apelo ao senso comum é quase irresistível, e o
tratamento que dão a temas graves ocorre entre quadros de receitas de bolo, a
cantoria de alguma estrela da música rancheira e o desfile de lingeries da nova
estação. Essa limitação explica porque agora a blogosfera é uma das novas
fronteiras do polemismo mais autêntico. Ela autoriza a expressão e o pensamento
sem as limitações que o caráter diversional da televisão impõe aos comentaristas
sociais mais críticos e inquietos.
JACQUES A. WAINBERG
66
O tom de aparência anárquica das postagens de mensagens, informação,
comentário e crítica na web prometem ao polemista grau superior de liberdade e
ousadia. Não raro, eventual sucesso nesse ambiente virtual remete o blogueiro a
uma exposição maior na mídia convencional. Curiosamente, há hoje um
crescente tráfego entre as emissoras tradicionais e esse ambiente alternativo.
Celebridades da televisão lançam blogs triviais e os ácidos críticos sociais
convertem-se em personagens do jornalismo eletrônico e da imprensa. Alguns
deles lançam livros que vendem como best-sellers. Foram os casos de Salam
Pax, Ellen Simonetti e Jéssica Cutler. Hoje há inclusive um prêmio para este tipo
de obra, o Blooker Prize, cujo vencedor de 2007 foi Colby Buzzell, autor de My
War – Killing Time in Iraq.
O protesto blogueiro permite a muitos desses personagens evitarem o filtro
usual exercido ao fluxo das informações nas redações de jornais, revistas e
emissoras de rádio e TV. Respeitando hábitos e costumes da rotina diária,
jornalistas vinculados à mídia tradicional acabam produzindo blogs comedidos
enquanto outros abandonam as empresas e encontram nesse espaço virtual uma
rota de fuga ao jornalismo independente.
Outra experiência bem sucedida desse mundo virtual foi realizada por John
Brockman, fundador do site Edge (http://www.edge.org). É na verdade um dos
mais consagrados endereços intelectuais da web. Nele reúnem-se para conversar
personagens de todas as ciências, as humanas, as sociais, as tecnológicas e as
científicas. E os temas são os palpitantes, os capazes de provocar a curiosidade,
a ira e a incerteza de muitos. Com frequência, ficcionistas encontram-se com
biólogos num tipo de evento raro de acontecer. Esses ”intelectuais públicos”
incluem hoje também autores interessados em temas bem distantes das reflexões
utópicas, ensaísticas e políticas tão comuns no ambiente latino-americano e
brasileiro. Bronckman denomina essa tendência de ”Terceira Cultura”. Ela reúne
cientistas e outros pensadores do mundo empírico que em sua opinião estão
tomando o lugar dos intelectuais tradicionais na tarefa de tornar visível o sentido
mais profundo de nossas vidas. Afirma que nos Estados Unidos o intelectual
tradicional está sendo marginalizado.
Hoje, já não basta uma qualificação sobre os ensinamentos de Freud, Marx
e outros pensadores. Diz que os intelectuais de seu país estão tornando-se
LÍNGUAS FERINAS: UM ESTUDO SOBRE A POLÊMICA E OS POLEMISTAS
67
reacionários e orgulhosamente ignorantes de muitas realizações marcantes de
nosso tempo. A cultura que eles praticam desconsidera a ciência e com
frequência não é empírica. Usam um jargão superado. Fazem comentários de
comentários perdendo-se qual pilpulistas pós-modernos. Brockman rebela-se
contra a aplicação do termo intelectual somente aos autores ”literários”. Agora é a
hora de incluir no termo cientistas como o astrônomo Edwin Hubble, o matemático
John von Neuman, o pai da cibernética Norbert Wiener, o físico Albert Einstein e
outros como Niels Bohr e Wener Hsisenberg. Agora a ciência tornou-se visível, ao
contrário de décadas passadas. Revistas e jornais estão dando a atenção devida
aos ensinamentos dessa nova classe de pensadores. E os cientistas começaram
a se comunicar diretamente com o grande público numa forma compreensível e
inteligente.
O termo ”Terceira Cultura” acabou emprestado de C.P. Snow que propôs
na segunda edição de seu livro The Two Cultures (1963) o surgimento dessa
nova categoria. No caso, a ciência e os seus protagonistas, os cientistas. Temas
como a biologia molecular, a inteligência artificial, vida artificial, a teoria do caos e
redes neuronais já são de domínio público. Da mesma forma tópicos como
fractais, sistemas complexos adaptativos, biosfera espacial, realidade virtual,
ciberespaço tornaram-se igualmente populares. E o que diferencia esses
”intelectuais públicos” de outros é que eles ”podem tolerar desacordos sobre que
ideias podem ser consideradas sérias”. Não há dogmas nem cânones. A ”Terceira
Cultura” não resulta de questões menores e marginais, mas de problemas que
afetam a vida de todos no planeta.
Para Bronckman, um intelectual deve se comunicar e assim formatar os
pensamentos de sua geração. É um sintetizador de ideias e do conhecimento.
Agora, no entanto, não é um pequeno grupo de pessoas que tem essa
capacidade de influenciar a sociedade. A tocha do saber estaria trocando de
mãos. Das mãos dos literatos a dos cientistas, os personagens centrais da
”Terceira Cultura”. E os que estão presentes no Edge são estes. São eles que
estão na fronteira do saber.
Por isso, intelectual é um termo que inclui hoje biólogos como Stephen Jay
Gould e Richard Dawkins, essa última celebridade que aparece nas listas dos
autores mais influentes do mundo na atualidade; psiconeurologistas como Daniel
JACQUES A. WAINBERG
68
C. Dennet e Steven Pinker; físicos como Murrey Gell-Mann e Stephen Hawking e
pesquisadores de sistemas complexos como Stuart Kauffmann e W. Daniel Hi llis.
Por fim, cabe assinalar o mérito que Edge tem: proporciona ao público aquilo que
os pesquisadores universitários têm tanta dificuldade de realizar em seus estudos,
a interdisciplinaridade.
LÍNGUAS FERINAS: UM ESTUDO SOBRE A POLÊMICA E OS POLEMISTAS
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O PAPEL MARGINAL DO POLEMISTA _______________________________________________________________________________________
A missão de um polemista é romper com o trivial. Tal tarefa é ameaçadora,
pois desqualifica em certa medida o equilíbrio existente. Torna o senso comum
absurdo. Abala a autoestima de quem se considerava donatário de verdades
absolutas. Verdades estas, muitas vezes, obtidas com esforço existencial. Por
isso há sempre uma dimensão afetiva em tais conflitos de ideias. A torcida se
apega emocionalmente à fala de um debatedor tornando-se surda à
argumentação do outro. Busca reforço às suas crenças, multiplicando anticorpos
(racionais e afetivos) capaz de fazer frente ao que lhe é estranho. É propriedade
do pensamento o conservadorismo, e qualquer distúrbio a tal estrutura através da
qual vemos o novo com as lentes embaciadas pelo velho faz o corpo todo
adoecer.
Tal exposição seletiva às mensagens é, em certa medida, uma reação
física do aparelho perceptor que, como antessala da recepção, torna o emergente
nalgo ameaçador. Sabe-se há muito tempo que a comunicação humana está
permeada por tais obstáculos, por essa rara incapacidade humana de ouvir
verdadeiramente o outro. O que não é trivial tem, como se vê, forte barricada a
enfrentar. Nela habita em especial o amor próprio, fustigado, nesses casos, pelo
dissabor de ver a incerteza chegar.
É o posicionamento estratégico do polemista no sistema que lhe assegura
a ousadia e a coragem que tal tarefa demanda. Como malabarista da fala, cabe-
lhe sempre surpreender a guarda, seja do inimigo, seja da audiência. É próprio de
quem vive ou se coloca à margem ser um fronteiriço, ser alguém que está na
beirada de vários mundos ao mesmo tempo. É um inovador que junta peças
dispersas e cria um novo ser.
A polêmica, por isso, é sempre um show de esgrima no qual o inimigo é
visível, mas distante para conseguir mobilizar seus efeitos de cólera e paixão, tal
controvérsia é pública sempre e não titubeia em aprisionar no alvo o opositor. Ele
é inimigo mesmo, cabe ressaltar. A disputa é pessoal, raivosa. A luta disfarça-se
da retórica da razão, mas é cabra mandada do coração. O opositor é citado à
exaustão. Não cabe nesse tipo de confronto disfarces em profusão. Ao contrário:
JACQUES A. WAINBERG
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a troca de farpas é frontal, sempre. Nessas condições, provocações são feitas de
ambas as partes. É da natureza da performance o dedo acusador e a fala
rotuladora. É mais fácil assim: revela-se ao público o que se espera mesmo de
galos de rinha – bico afiado e coragem teatral. Ou seja, observando-se os insultos
fica-se a pensar que tais personagens não medem as consequências de suas
aparições. O rompante é uma verdadeira avalanche simbólica. Passa como um
estrondo, atordoante. Deixa marcas, feridas. Pretende-se arrasador. O opositor
não lhe foge à mira: é tratado de forma rude. Nesse ambiente viciado, todos são
impiedosos.
O polemista com frequência faz também o papel de Advogado do Diabo
(Advocatus Diaboli). Em poucas ocasiões como essa o Diabo é tão celebrado. A
imagem cabe-lhe perfeitamente. Curiosamente, esse realce foi dado pela própria
Igreja Católica preocupada em evitar que alguém fosse beatificado e canonizado
sem os devidos méritos. Para testar a santidade do candidato um advogado
canônico era apontado para fazer o papel de contestador. Tinha a obrigação de
examinar e duvidar dos méritos e das evidências do provável santo e de seus
milagres. Esse rito foi estabelecido em 1587 pelo Papa Sisto V, sendo finalmente
abolido pelo Papa João Paulo II em 1983. Isso lhe permitiu canonizar mais
rapidamente quase 500 pessoas e beatificar mais de 1300 (os papas que o
tinham antecedido no século XX tinham canonizado somente 98).
Ao longo da história o apologista lhe fez oposição. Este tipo de polemista
tem missão contrária, a de defender uma fé. Exemplos foram os apologistas
judeus em seus enfrentamentos teológicos e políticos contra o helenismo, o
paganismo e o cristianismo entre outros alvos. Eles apareceram também nas
páginas do Talmud, nos embates filosóficos travados entre rabinos e pagãos. Na
Idade Média e Renascença destacaram-se ente muitos David Kimhi, Jospeh
Kimhi, Judá Halevi e Moises Mendelson. A estratégia retórica destes sábios, entre
outros, utilizada à exaustão até hoje por debatedores variados (editorialistas, por
exemplo), foi citar o argumento opositor e refuta-lo integralmente. Defenderam-se
de acusações, explicaram sua crença, denunciaram calúnias. Na verdade, essas
ações são típicas de apologistas variados que atuam hoje nos programas
evangelizadores do Islã36
36 Ver o site
e de outras religiões. Exemplos são o anglicano C. S.
http://www.examinethetruth.com/
LÍNGUAS FERINAS: UM ESTUDO SOBRE A POLÊMICA E OS POLEMISTAS
71
Lewis, o evangélico Norman Geisler, o luterano John Warwick Montgomery, o
presbiteriano Francis Schaeffer, e os calvinistas Gordon Clark e Cornelius Van Til.
Na Igreja Católica obras como Cidade de Deus de Santo Agostinho e
Summa Teológica de Santo Tomás de Aquino são referidas como exemplos do
seu esforço apologético. Como mencionado, o catolicismo enfrentou ao longo da
história disputas, ora contra os judeus, ora contra os protestantes, e ora ainda
contra os muçulmanos, ateus, comunistas, agnósticos e muitos outros. Hoje tais
disputas envolvem igualmente enfrentamentos de seus teólogos e filósofos com
atores variados e sobre temas controversos do cotidiano.
E da mesma forma que polemistas seculares e agnósticos tornaram-se
celebridades da indústria cultural contemporânea por exercerem esse papel
arisco de provocar e rebater, os apologistas tornaram-se na história da Igreja
celebridades exatamente por exercerem a missão oposta, ou seja, a da defesa do
cristianismo. Tal debate de ideias ideológicas e teológicas não cessou, embora
apareça hoje em dia sob o disfarce da polidez e do politicamente correto. Ele é
intenso e mais agressivo hoje em dia na web. O número de sites dedicados tanto
à difusão dessas visões religiosas e ideológicas como de combate a elas não
para de crescer.
Como insinuado nas linhas anteriores, há quem provoca o embate com
prazer e com sabor, a despeito da existência de tema polêmico, da imprensa anti-
establishment e de eventuais coberturas jornalísticas controversas. Por isso, o
polemista é um personagem raro para existir independe desses três fatores. É, na
verdade, um ser sui generis: deseja estar onde todos recusam ficar, na margem
do que se convenciona chamar "senso comum."
Sobre esse tema cabe lembrar o que nos diz Jody Berland, especialista em
geografia das comunicações da York University. “Que é uma margem?”,
perguntou ele, a um amigo seu.37
A reflexão da autora sobre tal descrição da margem permitiu-lhe listar uma
série de perguntas que ajudam a construir uma teoria do polemista como
“É o que está fora do corpo do texto”,
respondeu-lhe o amigo. “É o que mantém a página unida. É também onde você
escreve as notas”.
37 Space at the Margins: critical theory and colonial space after Innis, In ACLAND, Charles & Buxton, WILLIAM, J. Harold Innis in the New Century. Reflections and Refractions. McGill-Queen’s University Press, 1999. p.281-308.
JACQUES A. WAINBERG
72
marginal. Pergunta-se ela: “que texto está na margem, e como lá se mantêm? Em
que medida a forma da margem é determinada pelo texto? E o texto, é definido
também por sua margem? Ainda: o texto marginal reivindica posicionamento e
inclusão no corpo principal do texto do qual ele está distante, observando?”.
O polemista ao desempenhar o papel marginal trata de por em contato
mundos entre si, geralmente o conhecido com outro que está por vir, vivo
somente em sua mente de profeta maldito. Tais personagens agitam a vida
comunitária, causam desconforto e vivem a ambígua situação de serem
amaldiçoados e venerados ao mesmo tempo.
Ao longo da história da imprensa brasileira essa figura do polemista
surgiria no cenário jornalístico repetidamente. Ele se destaca por uma rara
habilidade: animar-se do tempo e problematizar, por vezes com ousadia e falta de
decoro, a rotina mesma de todos os dias, ocupando por vezes espaço nas
publicações mainstream. É seu repentino surgimento no jornalismo de aparência
circunspeta que dá a sua intervenção um vigor que tais manifestações
usualmente não possuiriam. Ou seja, uma aparência de nítido caráter
oposicionista ou crítico.
Sua arte é peculiar: faz emergir a disputa onde ninguém esperava. Por
hipótese, qualquer tópico tem a potencialidade da controvérsia. Basta, para isso,
que intervenha esse agente perturbador. Ele possui a rara habilidade de propor a
ambiguidade onde antes reinava a certeza. Se ele ali não estivesse, não haveria
naturalmente o embate. É sua provocação que faz eclodir o confronto. Age
sempre embalado por causas de aparência nobre, como que disfarçado de um
civismo radical.
A tese é que também no jornalismo tal personagem consagrou um gênero
especial de narrativa. Por isso, cabe a poucos o rótulo de polemista. Embora
comentaristas possam se valer de temas polêmicos, da imprensa polêmica ou
ainda de coberturas polêmicas, a marca do polemista é original: esse personagem
vive no seio do sistema para dele nutrir-se e apresentar, qual sanguessuga, um
olhar inesperado sobre o mais usual dos hábitos e costumes sociais.
Afirma-se aqui, por decorrência, que há no jornalismo em geral, e no
brasileiro em particular, um gênero esquecido. Figuras como Assis
Chateaubriand, Samuel Wainer, Odorico Mendes, Eça de Queiroz, Plínio Correa
LÍNGUAS FERINAS: UM ESTUDO SOBRE A POLÊMICA E OS POLEMISTAS
73
de Oliveira, Paulo Francis, Machado de Assis, Glauber Rocha, Nelson Rodrigues,
Roberto Campos, Carlos Lacerda, Hélio Fernandes, Rui Barbosa, Gregório de
Matos, Olavo de Carvalho, José Guilherme Merquior entre outros, em diferentes
períodos da história da imprensa brasileira, têm algo em comum: como articulistas
e cronistas provocaram e desafiaram as certezas estabelecidas. É disso que trata
a polêmica na qual todos foram e são mestres.
Um dos exemplos marcantes desse tipo de personalidade é Paulo Francis.
Ele afirmava que era um saltimbanco que gostava de uma plateia. Sua conversão
do trotskismo ao conservadorismo foi provocadora. Uma conversão em largo
estilo. Ao optar por seguir os passos de Roberto Campos, o polemista que
habitualmente fazia contraponto à esquerda brasileira, trocou de plateia e
manteve a audiência sob êxtase, como sempre. A semelhança dos polemistas em
geral, não agiu como repórter. Por vezes, desconsiderava totalmente a coleta de
dados. O que importava eram as imagens que tinha do mundo. Sua língua era
agressiva, como agressivos são os polemistas. Disse que a Avenida Brasil tinha
fedor de carniça; acusou o embaixador do Papa de garantir um descontrole da
natalidade; lembrou que em seu tempo de vida no Rio Copacabana era limpa,
"chique até e habitada por gente que parecia banhada e vestida decentemente
(...). O chiqueiro atual é fruto da referida ignorância, pobreza e doença (...)."
Após sua morte, o galardão de principal polemista do país tornou-se
emblema em disputa. Passaram a concorrer com estilos diferentes ao título
Reinaldo Azevedo, Diogo Mainardi, Arnaldo Jabor e Olavo de Carvalho, entre
outros. Este último, ao criticar a esquerda brasileira, a quem fustiga
permanentemente em seus ácidos artigos, diria, por exemplo, ao estilo de
Francis: "(...) meus objetores pertencem em geral a um mesmo grupo social, pelo
qual não se poderia avaliar a inteligência dos demais brasileiros: o grupo dos
intelectuais esquerdistas e das pessoas afetadas, de algum modo, pela linguagem
deles. Não me surpreende que esse grupo reúna o grosso do contingente de
cretinos e incapazes, pois as formas direitistas de cretinice saíram da moda e
refluíram para o círculo fechado dos grupelhos pseuso-esotéricos que vivem de
uma inofensiva auto-adoração.” 38
38 O Irracional Superior, Época 12 de fevereiro de 2001. Seus livros de filosofia são Aristóteles em Nova Perspectiva, O Jardim das Aflições, O Futuro do Pensamento Brasileiro. Suas traduções
JACQUES A. WAINBERG
74
Outro personagem ferino, de outro tempo, marcou a paisagem brasileira.
Carlos Lacerda ficou conhecido pelo seu gênio e humor. Por exemplo, ao criticar
a televisão, diria:
A geração que cresce com os olhos pregados na televisão, ouvindo a voz dos estranhos mais do que a do pai, mãe e professora, tem o direito de esperar que façamos da eletrônica um instrumento da educação e não da cretinização. A tevê não é, não pode ser apenas um meio de alguns ganharem dinheiro, com intervalos lúcidos. A famosa ’civilização cristã’ não pode ser defendida o dia inteiro pelo Batman e, de vez em quando, pelo monólogo de um figurão que vende seu peixe, ou um debate que usa muitas palavras para dizer coisa nenhuma, lançando mais confusão do que idéias. 39
O já referido Gregório de Matos, de formação nobre e sofisticada, também
surpreendeu. Sua sátira marcou época. Rompeu com a Corte e libertou-se dos
controles. Posicionou-se estrategicamente, na margem: ao lado dos brasileiros e
das classes pobres.
Em “Torna a Definir o Poeta os Maos Modos de Obrar na Governança da Bahia, Principalmente Naquela Universal Fome, que Padecia Cidade” Gregório de Matos diz: Epílogos 1. Que falta nesta cidade? ................................. Verdade Que mais por sua desonra.............................. Honra Falta mais que se lhe ponha .......................... Vergonha O demo a viver se exponha Por mais que a fama a exalta, Numa cidade onde falta Verdade, Honra, Vergonha. 2. Quem a pôs neste socrócio? ............................ Negócio Quem causa tal perdição? ............................... Ambição E o maior desta loucura? ................................ Usura. Notável desaventura De um povo néscio, e sandeu Que não sabe, que o perdeu Negócio, Ambição, Usura.
anotadas são Como Vencer um Debate Sem Precisar Ter Razão, de Schopenhauer. Entre seus livros de polêmica está O Imbecil Coletivo. 39 Rosas e pedras do meu caminho.
LÍNGUAS FERINAS: UM ESTUDO SOBRE A POLÊMICA E OS POLEMISTAS
75
Sua popularidade entre os marginalizados vem daí. Escreve para eles. A
igreja tenta calar-lhe o verbo. Oferece-lhe a batina. Ele a recusa. E vai além:
abandona a mulher e fi lho, fecha o escritório de advocacia, deixa-se absorver pela
civilização baiana de seu tempo. Clama em seus versos sua opção, a denúncia
social. Como diz seu comentarista, James Amado: "Os engenhos são seu hotel;
ele come, bebe e ama sem ter dinheiro, a poesia esquece a sátira moralizante e
assume a alegria saudável dos novos valores.”40
Assis Chateaubriand marcou igualmente sua época. Sua lista de inimigos é
infindável. Sua tática: a guerrilha difamatória e o achaque econômico. É o ator
estratégico de um tempo no qual tal personagem era híbrido, verdadeiramente:
visão profética de um Brasil que se faz cultivada num espírito de bandoleiro que
massacra com prazer. Em mais de 20 mil artigos desenvolve esse espírito de
cabra da peste. Esse polemista cria o maior conglomerado de comunicação do
país para fazer valer a sua voz – e a de seus articulistas, que lhe multiplicam o
verbo. Verdadeira artilharia pesada que desenha uma ideologia, um mesmo
sonho e lista os mesmos inimigos para desmanche. Nesses textos estão
presentes todos os elementos da polêmica acima assinalados. Aproveita-se do
trivial e problematiza o senso comum. Aponta o dedo acusador e desfere com
vigorosa voz impropérios à direita e esquerda, qual um esgrimista. Seu inimigo
preferido: Getúlio Vargas. Mas também Samuel Wainer, Roberto Marinho e tantos
outros. Quem, num dia, lhe faz afagos na esperança de obter salvo-conduto,
poderá repentinamente receber traição ampla, como muito bem sabem os
militares brasileiros, que lhe cultivaram apoio em 1964, para em seguida terem-no
como inimigo na trincheira.
Nesse zigue-zague no tempo cabe um retorno aos anos de 1800. No caso,
o mestre Machado de Assis também nos ensina algo sobre polêmica em suas
mais de 600 crônicas, da série Bons Dias, publicadas na Gazeta de Notícias.
Como nos diz a resenha de John Gledson,41
40 Crônicas do viver baiano seiscentista. 1969.
tais textos não foram escritos para a
posteridade e sim para os leitores que partilhavam esse tempo. Interessava a
Machado de Assis os escândalos triviais de 1889. De resto, é o que interessa a
qualquer cronista – esse é o estilo que dá conta do tempo corrente. Sob
41 ASSIS, Machado de. Bons Dias. Ed. Hucitec/Unicamp. SP:1990.
JACQUES A. WAINBERG
76
pseudônimo, abandona a ficção. Seus textos "pretendem sacudir o leitor e levá-lo
a uma consciência crítica de que elas não são meras apresentadoras da
realidade", diz Gledson. Entre seus temas preferidos estava seu ceticismo em
relação a certos tipos de medicina; caçoava do político César Zama; do
pedantismo linguístico de Antônio de Castro Lopes e do espiritualismo.
Outro polemista oitocentista é Rui Barbosa. Elabora no Radical Paulistano
– ”A Emancipação Progride”. No Diário da Bahia alardeia ”Pelos Escravos”. NO
País afirma em ”O Bezerro de Palha” que
Há, entre as populações rurais da Escócia, um costume singular que os partidos políticos parecem ter parodiado em algumas das suas artes. Quando a teta, mungida com insistência, recusa ao campônio o leite saboroso, um couro de novilho, ajeitado e recheado de palha, basta para fazer verter copiosamente. Há espantalhos contra o progresso das boas causas, que são verdadeiros empalhamentos, ou empalhações partidárias, amanhadas para extrair à população incauta e honesta o leite da sua força sob a forma de votos.
No Diário de Notícias argumenta sobre ”O Nosso Rumo, Nossa coerência, Nossa
veracidade, Nossa democracia, Nossa Ingratidão”.
Nesse mesmo tempo Tobias Barreto também lançava mão da polêmica
para fazer circular no nordeste brasileiro e no país suas ideias reformadoras. Os
comentaristas chamam atenção para o caráter ”azedo e acintoso de seus textos,
a visão asperamente depreciativa do seu meio cultural” e seu deslumbramento
com a filosofia europeia.42 Afirma, ao ponderar criticamente sobre a situação de
isolamento do Brasil no século XIX, que “é preciso sujeitar-se à dolorosa
operação de si mesmo, a fim de conseguir uma cura radical”.43 Também Silvio
Romero, mestre e companheiro de Barreto na Escola do Recife 44
42 CALAFATE, Pedro. O Pensamento filosófico de Tobias Barreto. Universidade de Lisboa.
, era um
polemista inveterado que depenava “quem lhe caísse nas unhas”. José Veríssimo
afirma que “a tinta de escrever embriagava-o” a ponto de perder a cabeça. Araripe
Júnior, companheiro de Veríssimo na Faculdade de Direito, costumava comentar
que quando historiador sergipano chegou ao Rio de Janeiro comentava-se “que
43 BARRETO, T. Sobre a Filosofia do Inconsciente 1874. Estudos de Filosofia, edição dirigida por Luiz Antonio Barreto. SP, p.181 In Ibid. 44 Trata-se de um frente formada por intelectuais reunidos na faculdade de Direito de Recife. Inspira-se nas ideias de Comte, Darwin, Taine e na filosofia evolucionista de Spencer entre autores e pensadores. Advoga também o monismo e reage à filosofia oficial do império. Sua missão política era opor-se à monarquia.
LÍNGUAS FERINAS: UM ESTUDO SOBRE A POLÊMICA E OS POLEMISTAS
77
uma cascavel, vinda dos sertões de Sergipe, tinha-se emboscado à rua do
Ouvidor e ameaçava a todo mundo com a violência de sua mortífera peçonha”.
Era nessa rua, em seus cafés, confeitarias e na Livraria Garnier45 que se
reuniam em ”igrejinhas” esses intelectuais venenosos que utilizavam a polêmica
para desbancar os inimigos de ideias. Ali, no aconchego, costumavam elogiar os
amigos do clube, sempre considerados gênios. Aos inimigos do lado sobravam os
impropérios. Ou seja, esse estado de coisas foi a marca daquele tempo no qual a
polêmica constituiu um tipo de diversão dessas ”panelinhas literárias” que lutavam
entre si pelo escasso público leitor então existente. O espírito belicoso desse
tempo foi registrado nos depoimentos coletados por João do Rio em O Momento
Literário. “Quem deseja vencer, deverá começar demolindo”, diz nessa obra Félix
Pacheco. Já Elísio de Carvalho se define como ”um homem de ideias
extremas.”46
Outra coletânea
47
45 Machado de Assis ia às tardes à Livraria para se encontrar com José Veríssimo, Lúcio de Mendonça e vários outros. Desse grupo e desses encontros nasceria a Academia Brasileira de Letras.
reuniu 16 polêmicas não políticas que movimentaram o
Brasil num século. Ali estão registrados os artifícios retóricos já referidos nesse
tipo de enfrentamento. Por exemplo, José de Alencar agride em cartas remetidas
ao Diário do Rio do Janeiro o poema épico ”A Confederação dos Tamoios”, de
Gonçalves de Magalhães que por sua vez ganharia o apoio de vários aliados,
entre eles até mesmo de Dom Pedro II. O embate se alastraria aos jornais Correio
da Tarde e Jornal do Commercio. Joaquim Nabuco, por sua vez, enfrenta José de
Alencar. Em pauta estava a influência da Europa na literatura brasileira. Outros
personagens envolvidos nesse tipo disputa naquele período são, como já
mencionado, Rui Barbosa (que enfrenta seu ex-aluno, o linguista baiano Carneiro
Ribeiro), Oswald de Andrade e Monteiro Lobato. João do Rio é atacado em 1925,
pelo cronista Antônio Torres que o chama de “uma manta de toucinho com dois
olhos”. Sílvio Romero e Lafayette Rodrigues Pereira debatem com fervor sobre
Machado de Assis.
46 PEREIRA, Milena da Silveira. A Polêmica no final do oitocentos brasileiro. http://www.historica.arquivoestado.sp.gov.br/materias/anteriores/edicao20/materia01/texto01.pdf 47 BUENO, A. e ERMKOFF, G(org) Duelos no serpentário: uma antologia da polêmica inetelectual no Brasil 1850-1950. RJ: G. Ermakoff Casa Editorial, 2005.
JACQUES A. WAINBERG
78
Uma forma doce de polêmica e de aparência inocente acabaria sendo
incorporada à cultura popular brasileira através da literatura de cordel e dos
embates rimados entre repentistas. A característica central dos repentes é o
desafio improvisado e trovado através do qual os músicos fazem suas
apresentações, ora com instrumentos (viola, sanfona e pandeiro), ora sem eles
(como ocorre no nordeste), com letras que, ora insultam, ora fazem adivinhações,
tratam de enigmas, de histórias sagradas e de outros assuntos diversos. A prática
já era comum na Idade Média quando então os trovadores perambulavam entre
os feudos cantarolando seus versos satíricos.
Cabe perguntar agora por que tais polemistas são populares? Por que
gozam de status social? Por que balançam na corda bamba entre a veneração e
o descrédito odioso de opositores ferrenhos? Que efeitos são esses que tornam o
polemista uma celebridade?
Há que se assinalar que como gênero é um sucesso, embora seja temido
e, por isso mesmo, raro na imprensa brasileira atual. A Folha de São Paulo diz em
seu Manual de Redação que "estimula polêmicas em suas páginas. Elas devem
estar presentes em artigos e críticas, assim como refletir-se em reportagens e
entrevistas. A Folha publica também discordâncias conceituais entre seus
jornalistas". Esse jornal, à semelhança de vários outros, remete a presença do
polemista e da polêmica em suas páginas à própria ideia de pluralismo e
democracia. Simula nesses debates a controvérsia existente sobre os mais
diversos assuntos na sociedade. Ao dar guarida a tais personagens vê cumprir
seu papel de vigiar o meio ambiente, retratar a complexidade dos fatos e evitar
um jornalismo panfletário e sectário.
A verdade é que o polemista sente-se mais confortável no polo
indisciplinado desse continuum que se origina no politicamente correto e termina
no incorreto. Por isso, pelo menos no Brasil, sua presença é escassa na televisão,
rara no rádio, ausente no jornalismo comunitário. Na mídia convencional, seu
reduto são alguns jornais diários, geralmente das grandes capitais do país (como
exemplificado), algumas poucas revistas semanais e alguns programas de
jornalismo na televisão a cabo e emissoras de TV educativa e universitária.
Depois lhe resta a mídia engajada, a imprensa alternativa (também escassa no
Brasil democrático), a produção editorial e a Internet. O que se vê em profusão
LÍNGUAS FERINAS: UM ESTUDO SOBRE A POLÊMICA E OS POLEMISTAS
79
são cronistas disciplinados que criticam o que todos criticam, dizem o que todos
dizem, exaltam-se quando todos se exaltam, calam quando todos calam. Evitam
migrar – nem que seja por descuido – ao pantanoso campo das ideias
inesperadas.
JACQUES A. WAINBERG
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O INTELECTUAL: ENTRE A FÉ E A DESCRENÇA _______________________________________________________________________________________
É possível, portanto, acomodar o polemista na já referida categoria
“intelligentsia”, palavra russa criada em 1860 e que remetia tanto aos pensadores
independentes como aos oposicionistas. Ou ainda, na de ”homem de letras”.
Depois, o já referido conceito “intelectual” passou a distinguir a classe de pessoas
envolvida na produção de ideias e teorias, na sua disseminação e produção e que
eventualmente possui uma especialidade que lhe provê a condição de autoridade
cultural.
Embora impreciso esse último termo permanece carregado de pompa, aura
e veneração pública. Isso parece se justificar pela reverência que a sociedade
tem dado ao longo da história aos pregadores em geral, os que denotam ou
aparentam ter sabedoria, autoridade, segurança e, sobretudo confiança e ousadia
profética. É verdade que certo percentual de intelectuais de boa aparência
acrescenta pouco ou nada ao saber e à ilustração pública. Jogam o jogo da
influência pública com a pose de douto sábio, muito embora se nutra
simplesmente do aplauso da confraria e da estima dos afiliados. Por isso, o termo
assumiu também tom pejorativo pelo descrédito público ao dilentantismo de
muitos deles, assim como pela ojeriza que a gente comum sente à verborragia
estéril. O termo foi também abalado pelo preconceito marxista ao ”intelectual
orgânico”, o pensador que está a serviço dos poderosos e do ”sistema” político.
Gramsci difere os intelectuais tradicionais (que como os professores, clérigos e
administradores fazem durante uma vida e durante gerações a mesma coisa), dos
que estão ligados a classes ou empresas na luta por mais poder e controle.
Deve-se recordar que mesmo os intelectuais críticos não foram exceção a
essa relação promíscua denunciada. Muitos deles serviram como cordeirinhos às
ditaduras comunistas e outras em várias partes do mundo. Deram como ainda
dão em muitos casos álibi moral à opressão política e ao terrorismo político e
religioso. Essa denúncia não é nova e foi formulada em 1927 pelo crítico cultural e
novelista francês Julien Benda (1867-1956) em sua obra A Traição dos
Intelectuais. Ele celebrizou o ponto de vista oposto ao de Gramsci. A traição a
qual ele se refere dizia respeito ao abandono à razão por pensadores
LÍNGUAS FERINAS: UM ESTUDO SOBRE A POLÊMICA E OS POLEMISTAS
81
autodenominados radicais/críticos/progressistas que aderiram cegamente às
paixões e ódios nacionais, de raça e de classes. Não raro as três apareciam
juntas numa espécie de coquetel explosivo. Tal ódio serve, diz Benda, de
amálgama à constituição de massas compactas e homogêneas, devotadas à
disciplina, à militância e à ação. Os intelectuais denunciados não só tinham
deixado de se interessar pela verdade como passaram a negá-la. As turbas
enfurecidas e mobilizadas por essa gente passaram à luta de conquista de
territórios, de conforto material e de poder. Estavam contaminados com as ideias
do martírio e da honra.
Benda criticou Nietzsche, Kipling, D'Annunzio, Sorel, Péguy, Maurice
Barrès e a Ação Francesa liderada pelo direitista Charles Maurras. Reagiu
também com vigor aos seus comentaristas, entre eles Gabriel Marcel, Jacques
Maritain, Daniel Halévy e Jacques Rivière. Propôs algo difícil de imaginar hoje em
dia: o afastamento do intelectual da temática mundana. O reino do pensamento é
outro, propõe ele. A missão de um intelectual é apresentar os ideais de justiça e
moralidade que não podem ser traídos por reis, monarcas e assemelhados. Esse
tipo de militância no mundo celestial da cátedra têm sido repelido pelos engajados
apaixonados e pelos intelectuais públicos midiáticos de hoje.
Segundo Benda (1927),
Os intelectuais não só adotam paixões políticas, mas o fazem com todos os traços de paixão: tendência à ação, avidez do resultado imediato, preocupação única com o objetivo, desprezo pelo argumento, exagero, ódio, idéia fixa. A adesão dos intelectuais a esta paixão serve como fortalecimento dessas paixões no coração dos leigos, pois além de remover o obstáculo de considerar interesses acima do mundo, ainda contribui com sua sensibilidade, sua força persuasiva e seu prestígio moral.
No Brasil, mal-estar similar foi expresso pelo professor Roberto Romano.
Em ”Intelectuais e Universidade”48
ele afirma:
Os intelectuais pretendem atingir o conceito mesmo do universal, com ele confundindo a sua pessoa particular. Deste modo, ser “crítico” significa anunciar, sem interrupção, a “verdade” do próprio discurso, e a mediocridade alheia. Este tipo interessante de pessoa forma-se na luta
48 Palestra proferida em 18 de junho de 1998 em debate promovido pela Associação de Docentes da UERJ.
JACQUES A. WAINBERG
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para “ter razão” em todos os níveis da cultura, das ciências à ética. Mas como o universal concreto, o Eterno, não se abala com esta guerra de formigas (satirizada pelo riso amargo de Luciano, de Erasmo, de Diderot, de Voltaire, de Swift, de Joyce, de Kafka...) os intelectuais, rápido, dão-se conta que suas “verdades” limitam-se ao tempo, e com ele desaparecem. Donde a invenção de conceitos fantasmagóricos: a hispóstase das verdades na Verdade, em maiúscula, seguida pela Beleza, pelo Bem. Assim, os intelectuais nunca se interessariam pelas pequenas coisas, eles se dirigem ao Absoluto. Donde, imaginariamente, seria uma perda de substância, de sua parte, “tomar partido”, ou se prender a esta ou aquela causa “mesquinha.” Todos os intelectuais autênticos julgam-se puros, dignos de unirem seu nome às divindades acima indicadas, ou seja, ao verdadeiro com maiúscula, ao belo, ao bom. Mas como todos estão imersos no tempo, e todos querem, simultaneamente, atingir o Absoluto, todos passam a maior parte de seu trabalho procurando destruir a obra dos demais. Sua realização, ilusória, passa pelo suicídio coletivo. Rápido, todos descobrem que o “desinteresse” alegado é uma impostura (Betrug). “Assim, o intelectual, sobretudo o que se deseja grande e célebre”, não se interessa de fato pela sociedade, pelo Estado, etc. Ele sonha com o "sucesso de sua obra; ele quer atingir uma 'situação', ter um 'lugar', um 'posto', no mundo dado (natural e social). Assim, ele não se sacrifica pelo Verdadeiro, pelo Belo, pelo Bem (...) o universo ideal que ele opõe ao mundo é fictício. O que o intelectual oferece aos outros não possui valor efetivo; ele os engana, pois. E os outros, admirando ou invectivando a obra e o autor, o enganam por sua vez, pois não o ‘levam a sério’. Eles enganam a si mesmos, pois acreditam na importância de seu ofício (a ‘elite intelectual’). A república das letras é um mundo de ladrões roubados”.
Aos olhos do economista Friedrich Hayek, o intelectual é um vendedor de
ideias de segunda mão, orgulhoso de “não possuir um conhecimento especial de
algo em particular”, que não “assume responsabilidade direta pelos assuntos
práticos” e que não necessita ser “nem mesmo particularmente inteligente” para
levar a cabo sua “missão”.
Outra razão de hostilidade aos intelectuais rebeldes é a percepção pública
de que esses personagens são elitistas, dominam o cenário público com pompa e
boa dose de falsidade. São vistos como pessoas que não são do povo e que não
sentem os problemas comuns das camadas mais pobres e marginalizadas. Por
isso, a perseguição aos mesmos não encontra por vezes reação popular. Em
culturas religiosas, são percebidos com hostilidade como ateus indispostos às
tradições mais caras das comunidades. Noutras são atormentados por desafiarem
ditaduras e governos teocráticos, trazendo ideias cosmopolitas e universais hostis
ao nacionalismo; por desviarem os jovens de uma educação prática,
contaminando suas mentes com teorias e ideias radicais e pouco aplicadas.
LÍNGUAS FERINAS: UM ESTUDO SOBRE A POLÊMICA E OS POLEMISTAS
83
Exemplo recente de crítica desse tipo é a militância do intelectual David
Horowitz nos Estados Unidos. Ex-trotskista, convertido ao neoconservadorismo,
tem denunciado o que ele considera ser a doutrinação dos jovens do país a uma
postura antiamericana por uma militante classe de acadêmicos de esquerda. Sua
lista na qual denúncia 100 professores (The Professors. Most Dangerous
Academics in America) provocou intensas discussões e fortes reações. Horowitz
afirma que os radicais dos anos 60 obtiveram estabilidade funcional nas cátedras
universitárias e agora transformam seus cursos em atividade ideológica e
doutrinária. Diz que numa democracia deve-se ensinar os estudantes a pensar, e
não o que pensar. Rebela-se contra iniciativas do tipo que transformou na
Universidade da Califórnia (Santa Cruz) o Departamento de Estudos sobre a
Mulher em Departamento de Estudos Feministas. Diz que há uma politização dos
currículos. A liberdade de expressão deve ser assegurada a todos os cidadãos e
aos professores para expressar-se em espaços públicos fora da sala de aula. Dos
professores se espera, no entanto, que mantenham, como no caso de outras
atividades, um comportamento profissional que os habilite aos privilégios do
emprego. Em temas controversos sempre há dois lados e eles precisam ser
equilibradamente apresentados, o que não ocorre em muitos casos, diz ele.
A esquerda tem dada uma vigorosa réplica a esse tipo de afirmativa. O
anti-intelectualismo dessa gente conservadora seria cobra mandada dos
poderosos. Fazem de tudo para justificar o poder econômico e político
concentrado em suas mãos. Manufaturam o consenso. A democracia liberal seria
por decorrência uma falsa democracia. No caso brasileiro, os filósofos
conservadores Olavo de Carvalho e Denis Rosenfeld são exemplos de alvo desse
tipo de campanha de esquerda. No caso norte-americano não faltam exemplos,
sendo Rush Limbaugh e Bill O’Reilly dois dos mais aguerridos comentaristas
conservadores profundamente hostilizados pelos radicais e liberais do país.
Na definição de Edward Said49
um intelectual
é um indivíduo dotado de uma vocação para representar, dar corpo e articular uma mensagem, um ponto de vista, uma atitude, filosofia ou opinião para (e também por) um público. E esse papel encerra uma certa agudeza, pois não pode ser desempenhado sem a consciência de se ser alguém cuja função é levantar publicamente questões embaraçosas,
49 Representações do Intelectual, Cia das Letras.
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confrontar ortodoxias e dogmas (mais do que produzi-los); isto é, alguém que não pode ser facilmente cooptado por governos ou corporações, e cuja raison d'être é representar todas as pessoas e todos os problemas que são sistematicamente esquecidos ou varridos para debaixo do tapete. Assim, o intelectual age com base em princípios universais: que todos os seres humanos têm direito de contar com padrões de comportamento decentes quanto à liberdade e à justiça da parte dos poderes ou nações do mundo, e que as violações deliberadas ou inadvertidas desses padrões têm de ser corajosamente denunciadas e combatidas.
Para este autor e pensador a morada de um intelectual é a fronteira. Vive
entre mundos, como um náufrago e exilado. Desacomodado, inquieto, perturbado
deve se empenhar em “não sentir-se em casa em sua própria casa”. Como um
Sartre, como um Bertrand Russel, Susan Sontag e Theodor Adorno. Irritava-lhe a
alma tanto o profissionalismo acadêmico que parecia poder domar o espírito
endiabrado tão vocacionado ao controverso, como a especialização que impede a
opinião fora de um campo específico de conhecimento. Atormentava-lhe o
pragmatismo e os valores da competência. Na verdade, ”intelectual” é um termo
que surgiu em ambiente inóspito, no fogo cerrado dos debates franceses sobre
cidadania no já referido Caso Dreyfus. Ali a erudição de Émile Zola serviu ao
propósito da crítica social, a despeito do senso comum e da adversidade política.
Superou a mesquinhez e denunciou a mediocridade. Sua carta J’Acuse, publicada
no L’Aurore, ganhou o apoio de escritores como Proust e Anatole France que
junto com Zola assinaram o ”Manifesto dos Intelectuais” em defesa de Dreyfus. A
partir dali o engajamento de pensadores e autores em causas públicas e políticas
passou a ser tradição especialmente no campo da esquerda.
O filósofo francês Jean Paul Sartre tem sido referido como exemplo
recente mais bem acabado de ”intelectual engajado”. Envolveu-se na luta
anticolonial ao lado dos argelinos, apoiou o regime comunista russo no pós-
guerra, distanciou-se de Raymond Aron por divergências ideológicas, tornou-se
maoísta e manifestou-se sobre praticamente todos os problemas de seu tempo.
No caso dos Estados Unidos termo similar e mais difundido é o já referido
”intelectual público”. Ele foi lançado por Russel Jacoby em seu livro de 1987, The
Last Intellectuals: American Culture in the Age of Academe.50
50 Ver The Chronicle Review. Volume 54, Issue 18, Page B5.
O conceito foi
amplamente utilizado pelas revistas Foreign Policy (FP) e Prospect para organizar
LÍNGUAS FERINAS: UM ESTUDO SOBRE A POLÊMICA E OS POLEMISTAS
85
os rankings dos intelectuais mais influentes do mundo, na Inglaterra e no espaço
ibero-americano. O mesmo fez a revista O Debatedouro no Brasil. FP e Prospect
definiram intelectual público como alguém que ”possui uma sólida obra e tem a
habilidade de comunicar idéias e influenciar o debate internacional em temas
distintos ao de sua especialidade”. Além disso, os incluídos nos rankings
precisavam estar vivos e ativos na vida pública no momento da compilação dos
nomes. Portanto, as listas (veja anexos) expressam a influência pública, e não o
mérito de uma realização acadêmica ou científica. Ou seja, o que é realçado no
conceito e avaliado no ranking é seu traço de polemista vibrante. Na obra, Jacoby
lamentou a falta de sucessores a uma geração de pensadores que tinha
dominado a cena por mais de 20 anos. Na sua visão a profissionalização
acadêmica estava pondo a pique uma tradição de especulação teórica que tinha
produzido autores originais e autodidatas do porte de um Daniel Bell, Gore Vidal e
Kenneth Galbraith. Ele lembrou que Lewis Mumford e Edmund Wilson se
distanciaram propositadamente da universidade e de seus hábitos. A prosa de
ambos destinava-se a ganhar a popularidade de uma audiência não profissional.
Recorda que Edmund Wilson remetia a todos que lhe pediam algo um postal no
qual estava impresso: “Edmund Wilson não escreve artigos ou livros sob
encomenda; não escreve prefácios ou introduções; não dá entrevistas ou aparece
na televisão, e não participa de simpósios”.
Não é o que se vê hoje em dia. Poucos intelectuais querem abandonar o
conforto das universidades. Na verdade, dizem os críticos, estão entricheirados
nela. Outro autor, o jurista Richard A. Posner, é ácido igualmente contra essa
tendência. Na obra Public Intellectuals: a Study of Decline (2001) afirma que
quanto mais atenção os intelectuais públicos ganham menos credibilidade acaba
tendo o trabalho científico e teórico por eles produzido. Quanto mais eles se
referem a temas fora de seu campo de especialidade, menos servem de
referência aos colegas, “e por boas razões”. Na verdade, esse é um fenômeno
cada vez mais comum nos países democráticos. A mídia distribui à população
muita opinião, mas não qualquer opinião. Esses intelectuais são fontes
consultadas porque aparentam ter alguma dose de credibilidade. Mas o que falta
nesse mercado dos palpites é “controle de qualidade”, diz Posner. Com
frequência tais pensadores acabam tendo algo a dizer sobre qualquer coisa,
JACQUES A. WAINBERG
86
“muitas vezes de forma irresponsável”. E a audiência tem demonstrado
dificuldade em avaliar com inteligência as opiniões que essa gente lhes oferece.
Em boa medida, o que atrai os ouvidos e os olhos do público são a fama e
o currículo desses falantes que passam a ocupar um papel similar aos dos astros
do cinema. O que dizem e argumentam fica em segundo lugar. O que as pessoas
buscam nesse tipo de manifestação é mais apoio as suas próprias crenças do
que ilustração. Posner sente saudades dos livre-pensadores que não dependiam
das regras universitárias. Hoje, ao contrário, é o professor o que ocupa com mais
frequência esse palco dos microfones. Esse tipo de intelectual público, diz
Posner, está numa posição muito confortável para dizer besteira e sair impune.
“Não são cautelosos o suficiente.” Aponta como exemplo os truques de retórica
de Noam Chomsky. "Seu método de discussão consiste simplesmente em mudar
de assunto. Se alguém afirma que a intervenção ocidental em Kosovo foi um
esforço justificável, ainda que ineptamente implementado, de evitar o genocídio
da população albanesa, sua resposta é perguntar por que falhamos em proteger
os curdos dos turcos". Paradoxalmente, apesar de ser crítico dos rankings dos
intelectuais mais influentes, Posner acabaria criando sua própria lista dos mais
citados (anexo 3).51 No exame realizado por Dawisson Belém Lopes (52) da lista
dos ”50 intelectuais públicos mais influentes do Brasil contemporâneo” de 2005,
(anexo 4) foram assinaladas várias características desse novo personagem no
país. Ele destaca o fato de que, de uma forma geral, os intelectuais públicos
nacionais também se adaptaram aos meios de comunicação. Por isso, são por
vezes depreciados e chamados pejorativamente de ”papagaios da mídia”.53
51 Como todos os rank ings desse tipo também o apresentado no livro de Posner encontrou forte reação e crítica. Ver Reactions to Richard Posner’s Public Intellectuals. Complete Review Quarterly. V. III n.2, may 2002.
A
opção por essa ave que fala sem originalidade, repetindo o que outros já
disseram, é intencional, como se vê. Como ela, esses oradores parecem dóceis e
sedutores. Quando movem a cabeça e os músculos do pescoço demonstram
afeto. Quando se esfregam querem dizer que gostam do interlocutor. Quando
exibem a cauda querem afirmar que estão emocionados. Se arrancarem as asas
é porque estão estressados. Estes traços que parecem ser as marcas desse
52 Observatório da Imprensa. Intelectuais Bons de Mídia. 7/11/2005. 53 Ver BELÉM, Euler de França. Chomsky não é o intelectual mais importante. Jornal Opção. 20 a 26 de novembro de 2005.
LÍNGUAS FERINAS: UM ESTUDO SOBRE A POLÊMICA E OS POLEMISTAS
87
personagem em outros países foi lamentado por Russel Jacoby. Este
comentarista parece ver a imprensa como um agente corruptor de um espírito que
por vocação deve ser modesto e que no passado se mantinha propositadamente
distante das discussões mundanas. Alguém que não se interessava em intervir
nos debates corriqueiros da pauta jornalística e que concentrava sua energia na
produção de uma obra capaz de sobreviver ao desgaste do tempo.
O novo intelectual público da era eletrônica por vezes tem ou deseja ter
igualmente uma obra pretenciosa, mas sua prosa alimenta e nutre agora em
especial o que se convencionou chamar de jornalismo de opinião. Tornou-se por
isso muito mais engajado, militante e participativo do que os pensadores da era
tipográfica. O fato é comum também e em especial na França onde o intelectual
desfruta de uma reverência pública excepcional. A geração de Sartre (Barthes,
Althuser, Lacan, Foucault, Lévy-Strauss, Aron) já dava sinais de que os encontros
nos salões literários e conferências intimistas entre ilustres não bastavam mais.
Passaram a frequentar as páginas dos jornais e os debates públicos sobre os
temas palpitantes, escrevendo, falando e também liderando manifestações de
rua. Aprenderam como ninguém a utilizar os novos meios de comunicação para
popularizar suas ideias e livros. Deram exemplo à nova geração de filósofos do
país que se tornaram agora celebridades midiáticas por excelência. No caso
brasileiro, boa parcela dos listados é de acadêmicos que ao atuar também como
colunista e/ou articulista tenta influenciar o debate político do país. São os casos,
por exemplo, de Marilena Chauí, Roberto DaMatta, Renato Janine Ribeiro, Emir
Sader, Demétrio Magnoli, Marcelo Gleiser, José Murilo de Carvalho, Roberto
Mangabeira Unger e Boris Fausto.
Outras características assinaladas por Lopes na nominata apresentada no
ranking nacional são: (1) a personalidade versátil do intelectual público do país
(Chico Buarque de Holanda, Arnaldo Jabor, Ariano Suassuna, Jô Soares,
Fernando H. Cardoso, Antônio Delfim Neto e Millôr Fernandes); (2) o fato de que
a maioria é paulista e carioca, estados que desfrutam dos principais veículos
nacionais de comunicação. A lista apresenta ainda (3) um traço de ”homem
cordial”, graças à presença de personagens de aparência dócil e doce como
Chico Buarque de Holanda, Luis Fernando Veríssimo, João Ubaldo Ribeiro,
Ariano Suassuna, Caetano Velloso e Paulo Coelho. No caso brasileiro, (4) os
JACQUES A. WAINBERG
88
cientistas ”duros” permanecem bastante distantes da arena pública (somente
Marcelo Gleiser, físico que conquistou certa notoriedade graças à sua coluna na
Folha de São Paulo, aparece no ranking). A lista (5) é machista, com uma única
mulher (Marilena Chauí) presente. A maioria está ligada (6) à esquerda brasileira,
muito embora o intelectual ibero-americano escolhido pelos leitores em 2008,
Reynaldo de Azevedo, seja um crítico ferrenho do PT e da esquerda brasileira e
latino-americana, em geral. Sua antiga revista, Primeira Leitura, expressava esse
ponto de vista arredio aos gritos de guerra lançados desde as barricadas
chavistas, lulistas, petistas e comunistas. Sua prosa é crítica, afiada e sarcástica.
Quando apresenta suas lições de como um polemista deve se comportar é
irônico. Recomenda que ele deve ser “O primeiro a acusar o outro de agressivo”.
O polemista deve “mudar sempre o objeto da polêmica”. O interlocutor deve ser
acusado de vaidoso. “Diga que ele invadiu sua privacidade”, recomenda. Nas
lições seguintes sugere: “Faça da dúvida sua única certeza”, “Seja um
cosmopolita”, “Abuse do futuro-do-pretérito”, “Acuse o outro de fazer apenas o
debate ideológico”, “Seja um bom pessimista”, “Renuncie ao triunfo, mesmo que
(e especialmente), de fato, você não tenha triunfado”.54
O físico Alan Lightman
Já os dados do Google
mostram a frequência e o grau de exposição dos personagens do telejornalismo
brasileiro na web. 55
54
, professor do MIT, descreve três níveis nos quais
atua o intelectual público. Ele o define como uma pessoa treinada numa
disciplina, pertencente a uma instituição, e que decide em certo momento de sua
carreira comunicar-se com uma audiência muito maior do que a usual no
ambiente universitário. O nível mais baixo é o restrito ao seu campo de
especialidade. Limita-se a escrever e a se manifestar sobre temáticas limitadas a
ele. O segundo nível é aquele no qual o intelectual faz relações entre seu campo
de conhecimento e o ambiente social, cultural e político circundante. No terceiro e
mais alto nível ele passa a simbolizar algo maior do que sua disciplina. Fala a
grandes audiências sobre uma variedade de temas. É o caso de Einstein. Depois
www.supersitegood.com/atento/texto.php?mat=503 55 Alan Lightman é Professor de humanidades do MIT. É autor de duas novelas, Einstein's Dreams e Good Benito. Seus títulos de obras que não são de ficção incluem Origins: the Lives and Worlds of Modern Cosmologists (com R. Brawer), Ancient Light: Our Changing View of the Universe, e Great Ideas in Physics. Ver também The Role of the Public Intellectual.
LÍNGUAS FERINAS: UM ESTUDO SOBRE A POLÊMICA E OS POLEMISTAS
89
de 1919 começou a se pronunciar sobre religião, educação, ética, filosofia e
política internacional. O ensaísta e polemista Christopher Hitchens pondera que é
necessário distinguir entre o ”verdadeiro intelectual” e os demais líderes de
opinião, especialmente os vinculados ao mundo da televisão.56 Ele se refere ao
tipo de pensador que se estabelece fora da academia, sem ligação com editoras
poderosas, e que inicia uma carreira de forma independente ou ligado a revistas
alternativas. Ele recorda que Daniel Bell acabou entrando na universidade, mas
só depois de receber o título de doutor (PhD) em reconhecimento a sua obra já
produzida. Susan Sontag nunca teve um emprego regular, nem uma fonte de
renda estável. Gore Vidal nunca estudou na universidade. O professor Ulrich
Oslender, da Universidade de Glasgow, afirma que os intelectuais franceses
estão cometendo um ”harakiri” coletivo. Não haveria em sua opinião um novo
nome capaz de ocupar o lugar do falecido Pierre Bordieu, por exemplo.57
Nesse mesmo espírito de repulsa aos ”novos filósofos” o Le Monde
Diplomatique tem manifestado sua repulsa aos novos filósofos franceses. Eles
(André Glücksman, Philippe Sollers, Alain Minc, Pascal Bruckner, André Comte-
Sponvi lle, Luc Ferry, Lévy, Jean-Paul Dollé, entre outros) deram uma guinada à
direita, lamenta o periódico. Repudiam a figura do intelectual engajado. Refugiam-
se na universidade. Estão confinados em seus gabinetes. Dedicam-se à
“pesquisa da verdade”. Dão ao capitalismo um aspecto humano. São ”intelectuais
de paródia”. Poucos se dedicam ao trabalho minucioso de investigação e coleta
de dados, correndo riscos. Não estão a serviço de uma causa. São narcisistas.
Promovem-se nas empresas. As acusações não cessam. São comparados aos
gigantes. Zola teve que se exilar. Saint-Exupéry, George Bernanos, François
Mauriac e André Malraux, entre outros, denunciaram o fascismo. François
Mauriac, André Mandouze e Pierre-Henri Simon denunciaram a tortura do exército
francês na guerra da Argélia. Estes e mais 121 outros intelectuais apoiaram os
O tão
celebrado Bernard-Henri Lévy não passaria de um acomodado, um personagem
da mídia.
56 Ver seu texto How to be a public intellectual. www.prospect.magazine.co.uk/article_details.php?id=10163 57 Ver seu texto The Resurfacing o the Public Intellectual: towards the proli feration of public spaces of critical intervention. www.acme-journal.org/vol6/UO.pdf
JACQUES A. WAINBERG
90
desertores nesse conflito. A nostalgia por aqueles dias é grande. O luto e a
saudade por aqueles tempos heroicos ainda perdura.
Para o sociólogo Sérgio Miceli uma das marcas dos intelectuais mais
”populares” do Brasil é sua cooptação pelo Estado. Cita como exemplo clássico o
Estado Novo, um dos regimes mais hábeis na atração, sedução e controle do
verbo dos bem-pensantes da história do Brasil. O mecanismo da cooptção nunca
foi desligado, diz ele. O fato explica porque intelectuais engajados ficam no Brasil
engasgados, optanto, como dito, pelo ”silêncio obsequioso” nos casos em que
seus protegidos são desmascarados. Comenta em sua obra Intelectuais e a
Classe Dirigente no Brasil (1979), vários exemplos, entre eles o do poeta Carlos
Drumond de Andrade, que foi chefe de gabinete de Gustavo Capanema, e
Fernando Henrique Cardoso, que após o retorno do exílio saiu do Departamento
de Sociologia da USP (onde reinava Florestan Fernandes) e se fixou na ciência
política. Acabou virando político profissional, abandonando a academia e seus
requintes de soberba imparcialidade. Em muitos casos, no entanto,não procede a
usual afirmativa de que os intelectuais só têm compromissos com as ideias e com
nada mais. O fato parece ser verdade também nos Estados Unidos onde o
fenômeno da ”porta giratória” já foi registrado por inúmeros analistas. Ou seja,
numa administração o acadêmico deita o verbo na sua cátedra universitária. Na
outra, assume o poder em distintos órgãos governamentais. Na seguinte, volta
para a sala de aula, seu refúgio permanente. Isso também ocorre com inúmeras
personalidades da imprensa nos dois países.
Na língua ferina de Olavo de Carvalho, a intelectualidade brasileira é
constituída por ”idiotas presunçosos”. A prédica desses personagens resulta de
”uma quantidade ínfima ou nula de conhecimentos”. Nunca sabem responder
como chegam a determinadas conclusões, não sabem responder. Improvisam
justificativas. Confundem o presente com o passado. Já Noam Chomsky é outro
engodo. É o que é porque é o intelectual com maior presença na mídia, o mais
citado em trabalhos estudantis nos Estados Unidos e o mais permanente ativista
em campanhas políticas. Têm um corpo permanente de colaboradores, editores,
tradutores, divulgadores e relações públicas que o acompanham, disseminando
cada vocábulo que sai de sua boca por todo o mundo. “Nem mesmo Voltaire, o
Chomsky do século XVIII, teve uma infra-estrutura tão sólida e tão vasta à sua
LÍNGUAS FERINAS: UM ESTUDO SOBRE A POLÊMICA E OS POLEMISTAS
91
disposição. No mínimo, ele teve de escrever pessoalmente cada palavra dos
cento e tantos volumes de suas Obras Completas. Chomsky apenas ejeta pela
boca a matéria-prima. A indústria faz o resto. Por esses detalhes mede-se a
hipocrisia do sujeito quando, notificado da vitória (no ranking dos mais influentes),
declarou que ’não presta atenção nessas coisas.’ Na verdade, ele nunca presta
atenção em nada mais (ou seja, no que a mídia publica).58
No passado, eram doadores privados que mantinham em suas cortes e
áreas de influência os intelectuais de sua preferência. Autores célebres como
Marx, Spencer, Shakespeare, Goethe, Descartes, Locke e mesmo os críticos
contemporâneos afiliados à Escola de Frankfurt (Theodor Adorno e Max
Horkheimer principalmente) não fugiram a essa regra de dependerem da boa
vontade de algum financista, seja ele pertencente à nobreza real ou econômica.
Quando um falhava, logo procuravam outro. Com frequência moviam-se na busca
de um bom e confortável padrinho. Hoje em dia muitos entre eles tornaram-se
empregados públicos beneficiados com a estabilidade funcional. Esse fato torna
suspeita suas posições ideológicas. Por exemplo, muitos deles suportam e
advogam numa bem elaborada retórica o estatismo. Rebelam-se contra as regras
do mercado (competição, produtividade e eficiência), justificando a posição como
sendo de interesse público e progressista. Aos olhos de Friedrich Hayek (1899-
1992), economista austríaco-britânico, o pecado original de ser pago pelo Estado
torna o labor de muitos intelectuais suspeito. Não são neutros. Preferem ideias
que lhes dão emprego, renda, poder e prestígio. Como não são responsáveis
diretos pelas consequências de suas ideias, gastam o tempo com visões e
utopias. E o socialismo apela a esse tipo de prédica redentora.
”
Raymond Aron é outro autor que bateu forte nesse vício que torna
dependente o intelectual moderno do aparato estatal. Em O Ópio dos Intelectuais
ele compara as doutrinas reformista e revolucionária.59
58 A origem das opiniões dominantes. 25 de outubro de 2005. Diário do Comércio.
Mostra que o que falta no
primeiro sobra no segundo: o discurso grandioso pela boa nova. Esses
intelectuais mais radicais criticam a economia de mercado e sua distribuição
injusta da riqueza, em especial a dirigida aos seus próprios bolsos vistos por eles
59 The Intellectuals and Socialism: As Seen from a Post-Communist Country Situated in Predominantly Post-Democratic Europe. Václav Klaus, Comentários preparados para o Mont Pelerin Society Regional Meeting, Reykjavik, Iceland, august 22, 2005.
JACQUES A. WAINBERG
92
próprios muito mais meritórios do que quaisquer outros. Como o regime
comunista sucumbiu de vez esse tipo de discurso acabou migrando à social-
democracia que aprendeu da experiência que a melhor maneira de calar essa
gente é financiá-la em alguma medida. Como o mundo ocidental é rico, pelo
menos mais rico que outras partes do mundo, ele pode se dar ao luxo de manter
viva essa tradição do mecenato do século XIX.
Esse tipo de denúncia sobre tal relação promíscua tem sido feita por uma
geração de intelectuais-anti-intelectuais liberais.60
Há nos comentários críticos publicados sobre essas listas e rankings de
intelectuais influentes uma nostalgia pelo tempo dos ”gigantes”. No caso
brasileiro, nomes como Gilberto Freyre, Celso Furtado, Sérgio Buarque de
Holanda, Raymundo Faoro, Roberto Campos, Nelson Rodrigues, Carlos
Drummond de Andrade e Paulo Francis são referidos. No caso inglês a saudade é
por gente do porte de Isaiah Berlim, Boek Wittgenstein e Eric Hobsbawn. Na lista
inglesa há poucos jovens. Predominam cientistas e historiadores. O escritor
americano David Herman rotula esses autores como “as crianças de Orwell,
falando de temas graves em boa prosa”, todos eles partilhando um sentido de
moralidade política e internacionalismo.
Mas a verdade é que mesmo
intelectuais liberais célebres foram financiados por fundações privadas. São os
casos Ludwig Von Mises que recebia seu salário do Lawrence Fertig e William
Volker Fund (que financiava sua cátedra na Universidade de Nova York). Essa
prática não cessou até hoje, como se sabe.
O ranking da FP e Prospect de 2008 mostra que os únicos intelectuais que
mantiveram as mesmas posições de 2005 foram Samuel Huntington (28ª.) e
Harold Varnus (94ª.). Os que mais ascenderam foram Yusuf Al Qaradawi que
passou da 56ª. à terceira posição. A maior queda foi o do já referido Richard
Posner que passou da 32ª. à 84ª. Naomi Klein, uma das mais bem posicionadas
em 2005, não foi incluída em 2008. Sessenta nomes apareceram nas duas listas,
o que mostra estabilidade no grau de influência que esses intelectuais públicos
exerceram no período. Por aparecerem em várias listas os mais influentes entre 60 HOPPE, Hans-Hermann. Natural Elites, Intellectuals, and the State. Hans-Hermann Hoppe, professor de economia da University of Nevada, Las Vegas. Pertence ao Ludwig von Mises Institute e é coeditor de Review of Austrian Economics. Concluiu seu doutorado e pós-doutorado na Goethe University de Frankfurt, Germany, e é autor, entre outros trabalhos de A Theory of Socialism and Capitalism e The Economics and Ethics of Private Property.
LÍNGUAS FERINAS: UM ESTUDO SOBRE A POLÊMICA E OS POLEMISTAS
93
todos parecem ser Noam Chomsky, Richard Dawkins, Salman Rushdie, Vargas
Llosa e Ayaan Hirsi Ali.
O que lhes dá destaque é a obra intelectual, a biografia e a militância,
juntas ou em separado. Ayaan Hirsi Ali aliou intensa militância contra os preceitos
islâmicos à sua história pessoal (seu drama apresentado na obra autobiográfica
Infiel tornou-a celebridade internacional). Rushdie, por sua vez, desfruta, como
Ali, dessa especial condição de perseguido político devido à fatwa iraniana que,
como já referido, o condenou à morte por seu romance: Versos Satânicos (1988).
Os outros três, Chomsky, Dawkins e Vargas Llosa combinam suas obras
acadêmicas com a militância política e social. Todos os cinco despertam fortes
simpatias e críticas. Dividem as opiniões. Causam celeumas.
Noam Chomsky, professor do MIT, tornou-se celebridade do mundo da
linguística quando em 1957 publicou em seu livro Syntatic Structures sua teoria
sobre gramática transformacional generativa. Depois gradativamente fez o que se
espera que faça um intelectual público: passou a publicar e opinar sobre temas
políticos e sociais variados. Tornou-se também um ativista. E foi mais nesta
condição de socialista libertário, anarquista, ou liberal radical (os rótulos variam)
que passou à condição de celebridade internacional. Denunciou em vários de
seus livros a mídia, as corporações e a política externa americana. Os livros
Manufacturing Consent (1988), Propaganda and the Public Mind (2001), American
power and the new mandarins (1969), For Reasons of State (1973), entre outros o
tornaram uma espécie de novo guru intelectual da esquerda no mundo.
Dawkins, por sua vez, dedicou sua carreira em Oxford aos estudos
zoológicos. Sua obra The Selfish Gene (1976) tornou-o uma celebridade
científica. Nesse estudo descreveu o comportamento altruísta de pássaros que
sacrificavam suas vidas para alertar os bandos da aproximação de um predador.
O fato foi apresentado pelo autor como o comportamento de um gene egoísta
interessado em assegurar sua sobrevivência. Aplicaria depois a teoria
evolucionista ao estudo da difusão das ideias (a teoria da ”meme”). Sua fama se
ampliaria ainda mais com a militância social e política na promoção do ateísmo,
combatendo o criacionismo e difundindo o racionalismo. Como Chomsky, tem um
estilo vigoroso que confronta e ataca opositores.
JACQUES A. WAINBERG
94
O caso de Salman Rushdie é, como dito, peculiar. A perseguição que lhe
foi desferida pelo regime islâmico do Irã em decorrência da forma como
apresentou em sua obra figuras centrais do islamismo, entre elas Maomé, o
tornaram paradoxalmente uma celebridade internacional solicitada agora a se
pronunciar sobre inúmeros temas graves do cenário internacional. Além de
ficcionista tornou-se, como não poderia deixar de ser nessa circunstância,
também num ensaísta de renome. Da mesma forma, a referida Ayaan Hirsi Ali,
refugiada da Somália na Holanda, tornou-se personagem da mídia internacional.
Militava, em 2008, sob a proteção do American Enterprise Institute, um think thank
conservador norte-americano. Seu estilo vigoroso, ácido e corajoso lhe
proporcionou ao mesmo tempo muitas simpatias e forte oposição. Sua denúncia
de que o Islã ortodoxo é uma nova forma de fascismo a obrigou a viver como
Rushdie sob proteção policial em muitas partes do mundo.
Finalmente temos o caso de Mario Vargas Llosa, um dos mais renomados
ficcionistas peruanos e latino-americanos, que abandonaria em certo momento
sua carreira de ficcionista para envolver-se com os destinos políticos de seu país.
Livros como La ciudad y los perros (1963/1966), La casa verde (1985/1968),
Conversación en la catedral (1969/1975) o consagraram em todo o mundo. Ao
abandonar a esquerda e o fascínio, que cultivava pela revolução cubana, passou
a advogar um ideário liberal. Ajudou a criar o Movimento Liberal em seu país. Foi
candidato à presidência da República do Peru em 1990, recebendo 34% dos
votos, sendo derrotado por Alberto Fujimori.
LÍNGUAS FERINAS: UM ESTUDO SOBRE A POLÊMICA E OS POLEMISTAS
95
O REFÚGIO UNIVERSITÁRIO _______________________________________________________________________________________
A despeito do mau humor de Lewis Munford e Edmund Wilson à
universidade, a verdade é que boa parte dos 361 polemistas listados nos rankings
dos intelectuais mais influentes do mundo se abriga (em não poucos casos se
refugia) hoje em dia naquela instituição (Anexo 5). É bom salientar criticamente
que uma fração dos mesmos, inclusive e em especial no Brasil, transforma o
aluno em público cativo, a sala de aula num púlpito e sua docência numa prática
evangelizadora. Face à diversidade de ideias e teorias que circulam nos campi, a
instituição fez por bem (embora em muitos casos a contragosto) advogar em
muitos países a causa da liberdade acadêmica. Na verdade, não teve escolha.
O que está em jogo nesse caso é o livre fluxo de informação e ideias na
sociedade. Por isso a universidade trata de protegê-lo. Esse tipo de postura
começou a se consolidar a partir do século XVI e XVII em algumas academias
como é o caso da Universidade de Leiden (1575). Esse espírito de tolerância
emergiu também do cansaço europeu da luta travada entre católicos e
protestantes. Depois foi impulsionada com o amadurecimento do estado liberal e
de sua concepção e valorização da competição comercial e de ideias. Hoje está
claro que tal liberdade acadêmica protege o direito do professor estudar,
investigar, expressar o que pensa e apresentar a verdade como ele a entende. Da
mesma forma, consolidou-se em muitos países também o direito dos alunos
aprenderem. A premissa que sustenta ambas as liberdades afirma que a única
forma de obter a verdade e fazer avançar o saber é com o livre confronto de
ideias, com a investigação liberta de constrangimentos em que o erro pode ser
exposto, “por colisão de mente com mente, e do conhecimento com o
conhecimento.” 61
Na universidade ideal e livre o direito de divergir deve ficar assegurado a
professores e a alunos. Não é possível nem desejável evitar dentro de seus
muros a controvérsia. Ela é condição para uma sociedade saudável. Sem uma
Ou seja, a erudição é incompatível com um ambiente de
desconfiança e suspeita. Nessa visão, a sala de aula deve funcionar como uma
espécie de mercado no qual se troca, se observa, se namora e se compra ideias.
61 Cardinal Newman. What is a University? Historical Sketches [1872], I, 16.
JACQUES A. WAINBERG
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não há a outra. Sabe-se que a liberdade do professor está sob fogo cerrado de
diferentes grupos de pressão e interesses e a Instituição vê-se forçada de tempo
em tempo fazer valer com vigor esse princípio que é sua marca registrada nas
democracias.
No entanto, e como exposto, a coerção e a perseguição ao pensamento
livre existe há tempo e em muitos lugares. Na China, por exemplo, durante a
Dinastia Qin (213 e 206 a.C.) todas as publicações clássicas foram queimadas,
visando suprimir a liberdade de expressão, unificar o pensamento e as opiniões
políticas. Motivado pelo medo à dissidência, o primeiro imperador do país, Qin Shi
Huang resolveu escrever seus próprios livros de história. Os que debatessem as
obras do seu índex deveriam ser mortos. Os que uti lizassem exemplos antigos
para satirizar a política daqueles dias deveriam igualmente ser eliminados. E os
que não queimassem os livros listados em 30 dias seriam remetidos ao exílio
como condenados a trabalhar na construção da Grande Muralha. Em 213 a.C.
todos os livros de Confúcio foram igualmente queimados, com exceção de uma
cópia de cada obra guardada na biblioteca estatal. Mas como acontece com
frequência, o que é banido e perseguido num regime, torna-se culto no próximo.
O confucionismo superaria as demais escolas de pensamento, tornando-se a
ideologia oficial do estado imperial chinês após a queda da Dinastia Qin.
A fuga desde regimes fechados aos abertos tem sido a rota comum de
pensadores e autores na história, em especial a partir do século XV quando
acadêmicos gregos se dirigiram à Itália. Esse tipo de perseguição aos intelectuais
foi intenso no período da Segunda Guerra Mundial, em que luminares de todas as
áreas do conhecimento deixaram o Velho Mundo fugindo do nazismo em direção
à América, em especial a do norte. Depois, continuou com a eventual fuga do
regime comunista, das ditaduras militares da América Latina e de regimes
autoritários de outros continentes e mais recentemente de países árabes e
islâmicos.
Por outro lado, entre as críticas mais comuns que se ouve em muitas
partes é a de que os professores doutrinam os alunos, apresentando um único
ponto de vista de uma controvérsia ou de um tema polêmico; que enganam
disfarçando nos seus roteiros de cursos suas verdadeiras intenções ideológicas;
que colocam suas atividades docentes a serviço de causas pelas quais militam
LÍNGUAS FERINAS: UM ESTUDO SOBRE A POLÊMICA E OS POLEMISTAS
97
fora do campus; e de que sofrem influência também de grandes empresas e de
órgãos do governo que patrocinam seus projetos de pesquisa.
O conceito filosófico referente à liberdade acadêmica que protege o
professor, a despeito daquelas críticas (por vezes procedentes), foi consolidado
aos poucos nos tribunais superiores dos Estados Unidos. No período do
Macartismo, o termo ”liberdade acadêmica” surgiu no parecer minoritário do juiz
William O. Douglas no caso Adler versus Board of Education de 1952. Discordou
da maioria que manteve a proibição das escolas públicas de Nova York de
contratar professores que pertencessem a ”organizações subversivas”. Hoje em
dia, a decisão de Adler não é mais acompanhada pela jurisprudência do país. Os
funcionários públicos, incluindo os professores, têm o mesmo direito de expressão
dos demais cidadãos. No famoso caso Sweezy versus New Hampshire (1957) a
corte aceitou que um professor marxista recusasse responder perguntas sobre
suas crenças políticas.
Hoje em dia, em muitos países, a liberdade acadêmica está diretamente
relacionada à estabilidade no emprego. Ela é oferecida ao professor após um
período probatório. Depois, ele só perderá sua posição caso seja condenado em
processo legal que determine seu afastamento por razões que não estejam
diretamente ligados as suas opiniões e visões. Pode-se verificar que em 5 dos 23
países da Comunidade Europeia há um alto nível de proteção à liberdade
acadêmica. Curiosamente, três deles são originários do antigo bloco soviético. Na
Finlândia, por exemplo, a liberdade de expressão e acadêmica estão protegidas
na Constituição. Leis específicas asseguram nesse país que os funcionários das
universidades tenham maioria nas decisões institucionais. O reitor é eleito e
apontado internamente sendo oferecida estabilidade no emprego a todos os
acadêmicos. Os professores têm status de servidores públicos. Já a Inglaterra
oferece o caso mais complexo, já que não há proteção constitucional nem à
liberdade de expressão nem à liberdade acadêmica. Os professores e
pesquisadores têm um papel pequeno na tomada das decisões administrativas. O
reitor é nomeado por órgãos externos. A estabilidade é oferecida somente a
poucos acadêmicos.
Em 13 países há um alto nível de proteção constitucional à liberdade de
expressão, um baixo nível em dois, enquanto nos demais há um nível médio. No
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que se refere à legislação específica, protegendo ambos os direitos, ela ocorre
em 11 estados. Em outros seis esse nível de proteção por lei específica é baixo.
Os demais têm um nível médio de proteção legal. Por fim cabe assinalar que, ao
contrário do que ocorre nos Estados Unidos, é pouco frequente a oferta de
estabilidade no emprego aos acadêmicos. Isso acontece somente em 11 nações.
Há uma proteção média do emprego em nove. Ou seja, a sala de aula é outro dos
poucos refúgios que restou a esse tipo de personagem inquieto.
Grau de Proteção Const itucional e Específica à Liberdade de Expressão e Acadêmica e
Estabilidade no Emprego ao Professor Universitário na Comunidade Europeia
País Proteção Constitucional
Proteção Legislat iva Específica Estabilidade no emprego
Finlândia Alta Alta Alta Eslovênia Alta Alta Alta
Rep. Checa Alta Alta Alta Hungria Alta Alta Alta Espanha Alta Alta Alta Lituânia Alta Alta Média Lituânia Alta Alta Média
Eslováquia Alta Alta Média Polônia Alta Média Alta Áustria Alta Média Alta França Média Alta Média
Portugal Alta Média Alta Itália Alta Baixa Média
Estônia Alta Média Média Grécia Média N/D Alta
Alemanha Média Alta Média Irlanda Média Alta Alta
Luxemburgo Média Média Média Suécia Média Baixa Alta
Malta Média N/D Baixa Dinamarca Média Média Baixa
Holanda Baixa Baixa Média Inglaterra N/D Baixa Baixa
Fonte: KARRAN, Terence. Academic Freedom in Europe: A Preliminary Comparative Analysis. Higher Education Policy (2007) 20, 289-313.
A despeito da incompreensão de muitos, a universidade não só continua a
acolhê-lo em boa parte do mundo democrático, como continua a protegê-lo do
mau tempo, dando ao polemista prestígio, evitando sua extinção por perseguição.
LÍNGUAS FERINAS: UM ESTUDO SOBRE A POLÊMICA E OS POLEMISTAS
99
É bem verdade que paga o preço de nem sempre acalentar o mais lúcido, o mais
ilustrado e equilibrado.
É verdade que a docência acaba se transformando no reino de uma só
pessoa. E o que se vê nela então, é um pouco de tudo: educação, mas também
alguma dose de alucinação. Por serem narcisistas e personagens de si próprios,
os polemistas não se caracterizam num bom número de casos pela modéstia.
Acompanham-lhe os passos por decorrência as já mencionadas ”palavras
grandiloquentes" e suas coirmãs, as ”incendiárias”. Aparentemente, esse é o
preço que a sociedade é obrigada a pagar por ter que tolerar tais línguas ferinas.
Tolerar não é gostar, cabe recordar. É aprender a suportar a diferença. O preço é
pago porque com a tolerância pode se obter algum benefício, certamente. No
caso, é a inovação, sempre tão necessária, sempre tão temida. Os que favorecem
esse ponto de vista afirmam que sem a ousadia, a liberdade e a tolerância não
teriam surgido notáveis contagiados pelo espírito da desconfiança e da rebeldia.
A premissa é conhecida. Como o sistema social é formado por pessoas
pensantes, ele depende do que essas pessoas pensam. O fato explica porque
tanto esforço é feito pelos atores sociais e políticos para influenciar as imagens
que carregamos em nossas mentes. Afinal, todos sabem que há uma interação
entre ação e pensamento. Se mudarmos o que pensamos mudaremos da mesma
forma a maneira como nos comportamos. Se essa mudança atingir um grande
número de pessoas haverá uma alteração no próprio sistema. O papel que líderes
de opinião têm na manutenção da ordem e na provocação da desordem dos
sistemas parece compreensível. O desempenho desses personagens que atuam
em nossas cabeças é estratégico e o que sai de suas bocas em direção aos
nossos ouvidos é com frequência matéria de disputa. Por ser combustível puro,
seus efeitos são conhecidos, desejados por uns e temidos por outros. As ideias
que tais polemistas difundem através de movimentos intelectuais variados podem,
por consequência, ser monitoradas. Podemos perguntar que ideias novas tais
movimentos advogam? Por que pensam que o que dizem é importante? Que
novo problema ou perspectiva nova de um velho problema eles percebem? Que
tipo de grupo a nova ideia apoia ou se opõe? Quem é o alvo de sua pregação
persuasora? Em que direção a sociedade se encaminhará uma vez aplicada a
nova ideia? Que tipo de lacuna a nova ideia pretende preencher?
JACQUES A. WAINBERG
100
Compreendendo e Criando Movimentos Intelectuais
1. Qual é o problema? O que é necessário?
2. Por que o problema é importante? Quem o considera importante?
3. O problema ainda não é reconhecido como importante pelas pessoas? Por que não? Que tipo de valor ou crença impede que ele seja reconhecido como tal?
4. Em vez de atentar para o novo problema, no que a atenção das pessoas está interessada então?
5. Por que no passado o foco da atenção direcionado a outro tema era adequado?
6. Que razões levam agora à exigência de mudança do foco da atenção das pessoas?
7. A mensagem capaz de conquistar a atenção ao novo problema é adequada? Há uma filosofia, uma teoria e um método de comunicação apropriada? 8. A frequência da emissão da mensagem ao público-alvo é suficiente? Os canais dessa difusão de ideias são adequados? Quais são eles?
9. A difusão das novas mensagens está sendo monitorada e avaliada? Como?
10. Quais são as evidências que revelarão a obtenção dos objetivos desejados pelo persuasor? Em quanto tempo se espera que os primeiros resultados sejam obtidos?
11. Que mudanças de comportamento são esperadas caso as pessoas de fato alterarem crenças e valores? Adaptado de Stuart A. Umpleby. The design of intellectual movements. Research Program in Social and Organizational Learning. The George Washington University
É bom salientar que num bom número de casos a irritação que essa gente
causa nos leitores, nos alunos, nos telespectadores e nos crentes é justificável.
Com frequência os polemistas são implicantes e rabugentos. Alguns escondem
nas profecias alguma dose de melancolia por sonhos acalentados e frustrados,
por fantasias revolucionárias e decepções políticas e existenciais. Como
incendiários, também escondem o prazer que sentem em ver a agitação tomar
conta do ambiente. E não são poucos entre eles que atuam também como se
mafiosos fossem: caridosos em casa e cruéis nas páginas dos jornais no embate
aos inimigos.
Noutros casos são as ideias as culpadas. Elas são subversivas mesmo.
Teme-se nelas o ”efeito galileu”. Honra ao mérito é dada a Galileu Galilei (1564-
1564), o primeiro a confirmar a teoria de Copérnico (1473-1543), o astrônomo que
em seu tempo havia sugerido que a Terra não era o centro do universo. Por
perspicácia, e sabedor das consequências de tal ideia perigosa, Copérnico evitou
divulgar sua publicação com essa notícia até os últimos dias de sua vida.
Trabalhou em segredo. Durante 30 anos coletou informações. Propositadamente
LÍNGUAS FERINAS: UM ESTUDO SOBRE A POLÊMICA E OS POLEMISTAS
101
sua explanação foi confusa. Dissimulou as evidências para assim evitar a
perseguição da Inquisição. Sua obra Revolutionibus orbium coelestium (Sobre as
Revoluções das Esferas Celestes) entraria por fim na lista dos livros proibidos, no
Índex Librorum Prohibitorum da Igreja Católica em 1616. “No meio de tudo habita
o sol”, disse ele. “Sentado no trono real, ele rege a família dos planetas que
circulam à sua volta (...) Encontramos, assim, neste arranjo a harmonia do
mundo.”62
Já Galileu, mesmo sendo amigo do Papa Urbano VIII e um dos mais
famosos cientistas de sua época, não conseguiu evitar o choque com a Igreja
Católica. Pensou que sua forma de apresentar no livro Diálogo os dois grandes
sistemas do mundo, o de Ptolomeu e o de Copérnico, não causaria celeuma.
Estava enganado. Dez cardeais o acusaram de heresia
63
Não foi o caso de Giordano Bruno (1548-1600), considerado um dos
primeiros mártires da ciência. Seus dois livros baseados na obra de Copérnico o
levariam à fogueira. Recusou-se a compatibilizar a ciência de Copérnico com a
crença no Deus católico. Ao longo do tempo, outras 87 pessoas seriam
queimadas nas fogueiras da Inquisição, 9 hereges foram executados pela Igreja
Anglicana, 3 pelas Igrejas ortodoxas e 1 pelos calvinistas.
. Para sobreviver,
voltaria atrás em sua convicção heliocêntrica.
Como exemplificado, naquele tempo e em todos os tempos ”ideias
perigosas” causam temor e fortes reações. Cada tempo e cada comunidade têm
62 Esta lista inclui, entre inúmeras obras e autores, as seguintes: Rabelais (CW) Montaigne (Essais), Descartes (Méditations Métaphysiques et 6 autres livres, 1948), La Fontaine (Contes et Nouvelles), Pascal (Pensées), Montesquieu (Lettres Persanes, 1948), Voltaire (Lettres philosophiques; Histoire des croisades; Cantiques des Cantiques), Jean-Jacques Rousseau (Du Contrat Social; La Nouvelle Héloïse), Denis Diderot (CW, Encyclopédie), Helvétius (De l'Esprit; De l 'homme, de ses facultés intellectuelles et de son éducation), Casanova (Mémoires), Sade (Justine, Juliette), Mme De Stael (Corinne ou l 'Italie), Stendhal (Le Rouge et le noir, 1948), Balzac (CW), Victor Hugo (Notre Dame de Paris; Les misérables jusqu'en 1959), Gustave Flaubert (Mme Bovary; Salammbô), Alexandre Dumas (divers omans) Emile Zola (CW), Maeterlinck (CW), Pierre Larousse (Grand Dictionnaire Universel), Anatole France (prix Nobel en 1921, CW à l'Index en 1922), Andre Gide (prix Nobel, CW à l'Index en 1952), Jean Paul Sartre (Prix Nobel (refusé), CW à l 'Index en 1959), Peter Abelard, Erasmus, Nicholas. Machiavelli, John Calvin, John Milton, Malebranche, Baruch Spinoza, John. Locke, Bishop Berkeley, David Hume, Condillac d'Holbach, d'Alembert, La Mettrie, Condorcet, Daniel. Defoe, Jonathan. Swift, Swedenborg Laurence. Sterne Emmanuek. Kant, H. Heine, J. S. Mill, G. D'Annunzio, H. Bergson. 63 Os movimentos heréticos são os seguintes: Anabaptistas, Paulícianos, Montanismo, Ofismo, Marcionismo, Adocionismo, Adamismo, Monarquianismo, Gnosticismo, Sabelianismo, Maniqueismo, Donatismo, Arianismo, Apolinarianismo, Monotelismo, Nestorianismo, Pelagianismo, Monofisismo, Catarismo, Bogomilismo, Socianismo, Quietismo, Americanismo, Calvinismo, Luteranismo e Protestantismo.
JACQUES A. WAINBERG
102
atores que acabam tornando-se porta-vozes da novidade. Como alertado, nem
todas as ”ideias perigosas” promovem o progresso. As mudanças podem também
levar a humanidade para trás. Com frequência também boas ideias têm um mau
destino. Sem Einstein muito provavelmente não haveria a bomba atômica.
Outro exemplo são as ideias de Charles Darwin. Hoje em dia, ele continua
provocando furiosos debates. O neodarwinista Daniel C. Dennet descreve A
Origem das Espécies (1859) como um “ácido universal; corroe todo e qualquer
conceito tradicional e deixa no seu rastro uma visão de mundo revolucionada”. 64
Também Olavo de Carvalho é um crítico feroz do darwinismo.
Não é o que pensa o pensador brasileiro José Osvaldo de Meira Penna. E seu
livro Polemos. Uma Análise Crítica do Darwinismo é, segundo suas palavras
introdutórias, “Uma modesta tentativa de contrariar a tese de Wilson (Edward
Wilson, entomólogo de Harvard, fundador da sociobiologia), segundo a qual a
moral, o sentimento de ‘altruísmo’ ou, em outras palavras, a ética se pode e deve
sustentar sobre premissas materialistas.” Polêmica deriva de polemos, termo
referido no título e que expressa o grau de violência presente nesse tipo de
enfrentamento. É uma arte do ataque e contra-ataque que se distingue do
diálogo. 65
O apreço
que Hitler demonstrou às ideias evolucionistas não foi acaso, diz ele. O
darwinismo
é um esforço para camuflar a ideologia genocida que está embutida na própria lógica interna da teoria da evolução. Quando os apologistas do cientista britânico admitem a contragosto que a evolução ’foi usada’ para legitimar o racismo e os assassinatos em massa, eles o fazem com monstruosa hipocrisia. O darwinismo é genocida em si mesmo, desde a sua própria raiz. Ele não teve de ser deformado por discípulos infiéis para tornar-se algo que não era.
Passagens de Darwin como a que segue é referida pelo polemista
brasileiro para comprovar aquela tese:
Em algum período futuro, não muito distante se medido em séculos, as raças civilizadas do homem vão certamente exterminar e substituir as raças selvagens em todo o mundo. Ao mesmo tempo, os macacos antropomorfos (...) serão sem dúvida exterminados. A distância entre o
64 JOHNSON, Phillip E.. Daniel Dennett ’s Dangerous Idea. University of California. 65 Por que não sou um fã de Charles Darwin. Diário do Comércio, 20 de fevereiro de 2009.
LÍNGUAS FERINAS: UM ESTUDO SOBRE A POLÊMICA E OS POLEMISTAS
103
homem e seus parceiros inferiores será maior, pois mediará entre o homem num estado ainda mais civilizado, esperamos, do que o caucasiano, e algum macaco tão baixo quanto o babuíno, em vez de, como agora, entre o negro ou o australiano e o gorila.
Diz Darwin ainda: “Olhando o mundo numa data não muito distante, que incontável número de raças inferiores terá sido eliminado pelas raças civilizadas mais altas!”
Para completar, diz Carvalho, há ainda um apelo explícito à liquidação dos
indesejáveis:
Entre os selvagens, os fracos de corpo ou mente são logo eliminados; e os sobreviventes geralmente exibem um vigoroso estado de saúde. Nós, civilizados, por nosso lado, fazemos o melhor que podemos para deter o processo de eliminação: construímos asilos para os imbecis, os aleijados e os doentes; instituímos leis para proteger os pobres; e nossos médicos empenham o máximo da sua habilidade para salvar a vida de cada um até o último momento (...). Assim os membros fracos da sociedade civilizada propagam a sua espécie. Ninguém que tenha observado a criação de animais domésticos porá em dúvida que isso deve ser altamente prejudicial à raça humana. É surpreendente ver o quão rapidamente a falta de cuidados, ou os cuidados erroneamente conduzidos, levam à degenerescência de uma raça doméstica; mas, exceto no caso do próprio ser humano, ninguém jamais foi ignorante ao ponto de permitir que seus piores animais se reproduzissem.
Outra fonte de reação ao darwinismo resiste à capacidade dessa teoria ser
capaz de explicar a qualidade mental do ser humano, em especial a linguagem.
São os casos de Noam Chomsky e Stephen Jay Gold, por exemplo. Há também
círculos de opinião que querem de alguma forma manter viva a necessidade de
um Criador. Para Daniel C. Dennet, autor de Evolution and the Meaning of Life
(1995),
O deus bondoso que amorosamente moldou cada um de nós e salpicou o céu com estrelas brilhantes para nosso encanto – esse deus é um mito da infância, nada em que um adulto de mente sã e sem ilusões possa acreditar literalmente.
Essa polêmica sobre o ”design inteligente” é hoje uma das mais intensas e
envolve um esforço concentrado de instituições, intelectuais e igrejas variadas em
todo o mundo que se articulam contra a militância crescente de ateístas e
agnósticos, muito deles posicionados nos círculos científicos. O Discovery
Institute, um think thank cristão e conservador dos Estados Unidos, criaria a
International Society for Complexity, Information and Design, uma sociedade
JACQUES A. WAINBERG
104
profissional dedicada a tomar parte nessa disputa, criticar o darwinismo e
promover o design inteligente. Também o Center for Science and Culture,
fundado em 1996, faz parte daquele Instituto. Seu objetivo é militar pela inclusão
do criacionismo no currículo das escolas públicas e fazer com que a descrição
bíblica seja uma explicação aceitável da origem da vida e do universo. Em torno
dessa instituição circulam todos os intelectuais envolvidos na luta contra o
darwinismo no país, entre eles, por exemplo, Stehpen Meyer, Phi llip E. Johnson,
Michael Denton, Michael Behe e William Dembski. O objetivo dessa instituição e
desses personagens é, de acordo com a estratégia montada por eles, “derrotar o
materialismo científico e seu legado moral, cultural e político destrutivo”. Segundo
o New York Times, entre 2004 e 2005, os criacionistas promoveram 78
campanhas em 31 estados, gastando mais de um milhão de dólares ao ano.
Oferecem bolsas de estudo e suas atividades incluem também a gravação de
especiais de TV, patrocínio de exposições públicas e a publicação de livros. Em
resposta, seus críticos dizem que não há controvérsia a enfrentar já que o
evolucionismo está consagrado no ambiente científico. Essa disputa é fabricada e
falsa. Acusam aqueles militantes de serem intelectualmente desonestos.
LÍNGUAS FERINAS: UM ESTUDO SOBRE A POLÊMICA E OS POLEMISTAS
105
AS IDEIAS PERIGOSAS E O PENSAMENTO _______________________________________________________________________________________
O que é certo é que ”ideias perigosas” sempre estão à espreita para
atormentar. Hoje em dia, são os cientistas que promovem uma revolução sem
precedentes nas crenças habituais. Suas ideias são explosivas e politicamente
incorretas. Despertam o rancor e o ódio de grupos variados. Seus estudos e
visões têm promovido modificações profundas na forma como entendemos a
sociedade, a natureza e o universo. As ”ideias perigosas” são motivo de grande
agitação e especulação também no Edge. Cientistas, autores e pensadores têm
sido estimulados por este site a apresentar suas ideias malditas. Entre as que
surgiram em 2006, por exemplo, está a de que os seres humanos não terão
problemas para se adaptar na utilização de um corpo não humano. Seria uma
questão de tempo antes que a Realidade Virtual ou a Engenharia virtual ou a
Robótica produza algo assim. Irene Pepperber afirma que não há diferença real
entre os humanos e os animais. Os bancos tornar-se-ão irrelevantes no futuro, diz
Douglas Rushkoff. Juan Enriquez afirma que a tecnologia destruirá os Estados
Unidos. Judith Rich Harris polemiza ao afirmar que os pais não têm qualquer
influência na forma como os filhos se tornam adultos. Em breve a manipulação de
genes será tão trivial como manipular os códigos de computador hoje em dia,
afirma Freeman Dyson. As bombas de plutônio podem explodir a qualquer
momento uma vez que não entendemos como funciona esse elemento químico (o
alerta é de Jeremy Bernstein).
Outras provocações são afirmações como “antidepressivos que aumentam
a produção de serotonina (como o Prozac) podem colocar em xeque sentimentos
de amor romântico e podem acabar com o amor materno” (Helen Fisher,
antropóloga da Universidade de Rutgers); “a revelação da base genética da
personalidade criará conflitos sociais” (J. Craig Venter); “o livre-arbítrio está
desaparecendo” (Clay Shirky, da Universidade de Nova York); “o governo é o
problema, não a solução” (Matt Ridley); “a escola faz mal para as crianças – as
deixam tristes e não ensinam muito” (Roger C. Schank, da Universidade Trump);
“se o que você entende por alma é algo imaterial e imortal, que funciona de forma
independente do nosso cérebro, então alma não existe” (Paul Bloom,
JACQUES A. WAINBERG
106
Universidade Yale); “povos tribais também destróem o meio ambiente e travam
guerras” (Jared Diamond, geógrafo, autor de Colapso).
Com esse mesmo espírito de provocar e surpreender, Richard Dawkins
(Universidade de Oxford), diz:
Pergunte às pessoas por que elas apóiam a pena de morte ou longas prisões e as razões normalmente envolverão retribuição. Elas querem matar um criminoso como troco pelos horrores que fez, ou para dar "satisfação" às vítimas do crime. Mas retribuição como princípio moral é incompatível com a visão científica do comportamento humano. Acreditamos que nossos cérebros – ainda que não funcionem como computadores – são governados pelas leis da física. E, quando um computador não funciona, não o punimos: o consertamos. Será que um assassino não é apenas uma máquina com um componente defeituoso? Ou uma educação defeituosa? Ou genes defeituosos?
A Revista Foreign Policy (edição de setembro/outubro de 2004) provocou
oito intelectuais de renome a proporem as ideias mais perigosas e destrutivas que
a humanidade está condenada a enfrentar nos próximos anos. Francis Fukuyama,
por exemplo, chamou a atenção para a revolução na biotecnologia. Como
decorrência da mesma poderia surgir em breve o transhumanismo, uma
modificação grave e profunda em nossos corpos e cérebros.
“Nossas boas características estão intimamente conectadas com as más: se não fossemos violentos e agressivos, não seríamos capazes de nos defender; se não tivessemos sentimentos de exclusividade, não seríamos leais aos que estão próximos de nós; se não sentíssemos ciúmes, também, não sentiríamos amor” diz ele.
Cabe explicar que essa tendência ao pós-humanismo, ou humanismo
transitório (transhumanismo), é hoje um movimento intelectual e cultural que visa
ampliar a capacidade física e mental das pessoas. A bioteconologia e outras
tecnologias emergentes como a nanotecnologia, a biotecnologia, a tecnologia da
informação, a ciência cognitiva, a realidade virtual, a inteligência artificial, a
superinteligência e a criônica serviriam a este propósito. Tal corrente futurista está
hoje bem estabelecida na Universidade da Califórnia, em Berkeley. Ela crê que
será possível transformar o ser humano em algo maior, mas que a nova criação
respeitará a liberdade morfológica e a liberdade dos seres. Espera-se que o
desempenho prático desse novo ser humano seja de grau superior ao atual. Foca
LÍNGUAS FERINAS: UM ESTUDO SOBRE A POLÊMICA E OS POLEMISTAS
107
sua atenção no corpo individual, visando melhorar sua qualidade de vida. Alguns,
como o teórico Raymond Kurzweil, acreditam que haverá nos próximos 50 anos
uma mudança real na natureza humana. Os perigos que cercam essa nova
tendência de ”se brincar de Deus” provocaram uma série de tendências, entre
elas a abolicionista (uma ideologia que visa aplicar as novas tecnologias para
aliviar o sofrimento humano), o transhumanismo democrático, o extropianismo
(defende uma postura pró-ativa sobre a evolução humana); o imortalismo (uma
ideologia baseada na fé que a imortalidade tecnológica é possível e desejável), o
transhumanismo libertário (conjuga libertarianismo e transhumanismo), o pós-
gênero (deseja eliminar a diferenciação entre homem e mulher através da
aplicação de avanços da biotecnologia e tecnologias reprodutivas), o
singularitarianismo (ideologia moral baseada na crença de que a singularidade
tecnológica é possível), e o tecnogainismo (uma ideologia ecológica sobre o
poder que as tecnologias têm de restaurar o ambiente). Esse tipo de provocação
do Edge continuou em 2009 com a pergunta feita a 151 cientistas: ”O que
modificará tudo? Que ideias científicas e desenvolvimento você espera viver para
ver?”. (Anexo 6)
O livro Grandes Idéias Perigosas apresenta uma boa coleção desse tipo de
profecias e alertas. Geralmente elas vêm sob a forma de perguntas. Por exemplo,
Steven Pinker questiona: “terão os homens aptidões e emoções diferentes das
mulheres?” (SIM); “os acontecimentos descritos na Bíblia são fictícios?” (SIM); “as
vítimas de estupro sofrem conseqüências por toda a vida?” (NÃO); “os homens
têm uma tendência ao estupro” (NÃO); “o estupro cairá quando a prostituição for
legalizada?” (SIM); “a sociedade teria mais benefícios se a heroína e a cocaína
forem legalizadas?” (SIM); “as pessoas religiosas mataram mais pessoas que os
nazistas?” (SIM); “mais pessoas seriam salvas se um livre mercado de comércio
fosse implantado para órgãos a serem transplantados?” (SIM) “as pessoas
deveriam ter o direito de se clonar e melhorar as características genéticas dos
seus filhos?” (SIM).
Saber perguntar parece ser um mérito e um atributo de polemistas
vocacionados ao embate erístico e aos cientistas dispostos a abalar crenças com
ideias ”tóxicas”. É a pergunta que anima qualquer tipo de investigação, seja ela
jornalística, acadêmica, médica, policial ou científica. A vocação de todas é a
JACQUES A. WAINBERG
108
mesma. Para que se cumpra sua missão não cabe a pergunta retórica e
protocolar. A que se impõe nesses casos é a que permite acesso à informação
relevante, o primeiro e decisivo degrau rumo ao conhecimento. Os demais
estágios do pensamento, a compreensão, a aplicação, a análise, a síntese e a
avaliação derivam dessa decisiva fase que está na base do pensamento.
Quem não pergunta não conhece, não pensa e não sofre. Quem não sabe
perguntar não descobre. Essa propriedade, é bom reconhecer, é de poucos. A
maior parte pensa como ”empilhador”. Põe dado recém coletado sobre dado já
arquivado e tenta com dificuldade fazer sentido dos mesmos. Com frequência,
apela a intérpretes e provedores de pistas. É uma minoria que pensa como
”cartógrafo”, capaz de descobrir novos mundos e de criar novos mapas mentais
para orientar as pessoas a trilharem novos caminhos, chegando muito
provavelmente onde outros nunca estiveram antes. É uma jornada perigosa que a
maioria das pessoas tenta evitar.
Outra tendência natural é evitar também de pronunciar a opinião dissidente
quando os indivíduos percebem que estão em minoria. Por isso, no conflito entre
a fala e o silêncio, o que é sufocado leva por vezes uma centena de anos para
mover a balança da opinião pública a seu favor. As pessoas tendem a se proteger
na zona de conforto. O desconforto acaba surgindo na voz desses personagens
todos, e dependendo do vigor do novo discurso a fé pública na tradição acaba aos
poucos combalida. E até que a maioria se torne minoria muito embate, e com
frequência, muito sangue corre solto nas páginas dos jornais.
Como é comum em muitas organizações, em muitas universidades e na
sociedade em geral, os servis concordinos parecem avançar mais facilmente e
rapidamente nas carreiras. Encorajar a dúvida e ensinar a perguntar é missão
escolar e educativa com frequência traída. Eterniza-se em muitos desses
ambientes concorridos não só a polidez, mas o hábito. Aprende-se por fim a dizer
o que todos querem ouvir. Predomina o wishful thinking.
A boa investigação demanda outra coisa. A dúvida fertiliza a mente. Ela
provoca as boas perguntas. Traz a novidade a tona. A boa dúvida é construtiva e
está animada pelo encanto de uma nova verdade. As mentes duras e as
personalidades rígidas e inflexíveis acusam incomodadas essas mentes inquietas
de serem desleais, infiéis, destrutivas e hostis.
LÍNGUAS FERINAS: UM ESTUDO SOBRE A POLÊMICA E OS POLEMISTAS
109
Exemplos de pensamentos: a diferença entre absorver e aprender
MEMORIZA R E ABSORVER APRENDER, GERA R E PRODUZIR
1. Arquivar 1. Julgar 2. Calcular 2. Suspeitar
3. Incorporar 3. Desafiar 4. Condensar 4. Persuadir 5. Abstrair 5. Rejeitar
6. Memorizar 6. Destruir
7. Compreender 7. Descobrir 8. Revelar 9. Teorizar
10. Generalizar 11. Planejar 12. Prever 13. Criar
14. Adaptar 15. Inventar
Fonte: MCKENZIE, Jaime. Learning to Question to Wonder to Learn.
Em suma, o medo as ideias ”tóxicas” pode ser comprensível, mas não é
aceitável, segundo Steven Pinker, professor de psicologia da Universidade de
Harvard. Por isso “a luz do sol é o melhor desinfetante”. Esta declaração proferida
pelo juiz norte-americano Louis Brandeis (1856-1941) numa de suas sentenças,
envolvendo um caso sobre liberdade de expressão e pensamento é referida por
Pinker em sua argumentação contra a intimidação intelectual que os inovadores
sofrem. Afinal, a ciência não leva e não pode levar em consideração se e que
sentimentos são feridos. Por vocação, ela é fonte de heresia. E graças à internet
os heréticos têm hoje mais condições de se encontrarem, fortalecerem,
solidarizarem e apoiarem.
Eles foram combatidos no passado e são perseguidos na atualidade
porque as pessoas ”comuns” temem pelas consequências da sua pregação.
Pinker admite que o tabu é inaceitável no esforço que se faz para descobrir como
o mundo funciona e como se governa um país. “É difícil imaginar algum aspecto
da vida pública onde a ignorância e a enganação sejam melhores que a
consciência à verdade, mesmo que não prazeirosa”. Somente crianças envolvem-
se em ”pensamento mágico”, diz ele.66
66 Ver In Defense of Dangerous Ideas. 15 de julho de 2007.
JACQUES A. WAINBERG
110
A CANTORIA DOS SABIÁS E DOS ROUXINÓIS NOS PAMPAS _______________________________________________________________________________________
Como exposto, a polêmica é um fenômeno complexo de conversação.
Entre todos os seus tipos, a que ocorre através da mídia tem especial relevância
política e social. É por vocação um mecanismo público de ponderação. Os
debatedores funcionam como provedores de pistas e intérpretes da realidade à
população. Para muitos telespectadores e ouvintes essas vozes são as mais
influentes na formulação de uma visão de mundo e na consolidação de uma
opinião. Por isso, cabe salientar o fato de que toda sociedade tem sempre um
estoque de vozes à sua disposição. Vozes em posição stand by e a um braço dos
microfones para entrar em ação. Como recusamos acima a imagem do papagaio
para descrever essa gente propomos outras aves nessa catagolação. Operam
como os sabiás. O canto que lhes sai da boca se parece a de uma flauta doce. É
um canto sem cortes, agradável, nem muito alto, nem muito baixo. O timbre é
constante e inspirador. Mesmo com toda sua agitação, muitos querem tê-lo por
perto. Gostam de ouvir o seu vozeio e o cantarolar dos seus versos. Quando
choca algum ovo, fase em que a libido está em alta, quase não canta. Quando
regurgita alguma prosa, ela nos chega embalada. Em volume baixo, é raiva. Num
tilintar como o das castanholas é provocação. Em volume alto, é discurso
desafiador. Quando mia quer seduzir.
O levantamento dessas vozes em confronto nos programas de debate mais
expressivos na mídia de uma determinada comunidade num período de tempo
permite que se tenha ideia do perfil desses debatedores e dos temas em
discussão. Esse tipo de cadastro esclarece quem fala, com que frequência e
porque razão. Logo fica claro que em todo lugar há sempre um limite a esse
estoque de discursos predispostos à pregação. Percebe-se também que quem
fala tende a falar periodicamente, em inúmeros lugares, ao longo do tempo e por
muito tempo sobre tópicos variados, além dos que envolvem sua especialidade de
origem e vocação. Sua exposição cumulativa à mídia acaba lhe conferindo
reputação. Isso ajuda a dar a essa gente certa aura e por decorrência produz
veneração. São vozes que querem falar, mas que aprenderam a esperar. De
tempos em tempos, por necessidade mesma da programação, a mídia os incita à
LÍNGUAS FERINAS: UM ESTUDO SOBRE A POLÊMICA E OS POLEMISTAS
111
confrontação. Provocadas, elas saem então da toca e passam a tagalerar. São
vozes que contam um conto. Vozes que são dispostas ao consumo e que gozam
desse especial privilégio de também cantar um canto. São vozes por vezes
ambíguas por serem muito precavidas. Algumas são vozes didáticas. Outras são
teatrais, eventualmente coléricas. Não são vozes inocentes. Para melhor cantoria,
aprenderam a se posicionar nos arbustos mais altos. Levantam bandeiras,
provocam conflitos, evitam a negociação, eternizam a ruminação só para
continuar a falar. Noutras oportunidades buscam ”sarna para se coçar”. Assim,
tornam-se porta-vozes e dizem o que todos pensam, mas temem afirmar. Nem
sempre falam o que têm a dizer para convencer. Preferem irritar, discordar,
retrucar. Visam, sobretudo, eternizar o embate, e assim a própria voz, e o
interesse dos veículos de comunicação no seu discursar. Há certamente, vozes
bem intencionadas, que desejam também elucidar. Ao produzir o seu coquetel
diário de vozes os programas de debate escolhem assim uma variedade de sons.
Vozes carismáticas. Vozes cínicas. Vozes bem humoradas. Vozes cheias de
pompa e autoridade. A arte, a boa arte da mídia é saber misturar.
O exame empírico de tal cantoria permite observar que lá no meio dos
sabiás estão cheios de prosas outros pássaros, os rouxinóis da mídia. São
cantores ainda mais notáveis. São conhecidos pela pureza de suas notas e pela
variedade de suas melodias. Têm um extenso repertório, com trinados fluidos
terminando em crescendo. Ficam muito no solo, observando e buscando
alimento. Adoram engolir em especial os insetos. Perambulam muito. Estão na
Europa. Foram vistos na África tropical. No verão migram à Ásia Menor.
Frequentam lugares estranhos: charnecas, matas e bosques. O rouxinol é um
cosmopolita. Seu ninho, no entanto, é montado sempre no mesmo lugar.
Perambula, mas sabe de onde veio e para onde deve voltar. Esse grupo, o dos
rouxinóis, é formado por número restrito de debatedores.
Por alguma razão é provocado numa frequência superior a dos sabiás da
mídia. A verdade é que tanto entre os sabiás como entre os rouxinóis há vozes
que falam sem parar. Há também vozes que costumavam assobiar, mas que de
repente, sem se saber bem porque, calam sem esperar. Há vozes que hibernam
para se pronunciar. Na sociedade, há também outras vozes que cantam e das
quais nunca se ouve falar. Há vozes fóbicas, que têm medo de se expressar. Há
JACQUES A. WAINBERG
112
vozes pernósticas que só dizem o que tem a dizer com muito floreio e jinga de
corpo nas salas de estar.
Há vozes que só falam aos sussurros, queixosas. Há vozes que fazem um
jogo de esconde-esconde, como crianças a brincar. Há vozes rimadas, vozes
mimadas e agitadas, vozes que se escondem na ficção e na imaginação. Vozes
que só falam por via indireta, por metáforas, através de personagens, alguma
trama e à prestação. Para elas a realidade é a fantasia. Na verdade, são vozes
que vivem no mundo da lua. Para dizer às claras o que pensam demoram um
tempão. Até lá fica esse jogo de faz de conta a exigir muita interpretação e
concentração.
Debatedor x polemista etc.
Exemplo de aplicação dessa metodologia é o cadastro realizado pelo autor
de todas as vozes convocadas, em 2008, por dois programas de debates da
mídia eletrônica de Porto Alegre.
O estoque de vozes no mercado de Porto Alegre. Polêmica e Conversas Cruzadas. 2008
Número de edições do programa
Polêmica da Rádio Gaúcha
em 2008
Número de Vozes que falaram no
Programa Polêmica da Rádio Gaúcha
em 2008
Número de debatedores que
falaram no Programa Polêmica da Rádio Gaúcha
em 2008
Número de edições do
programa CC da TV Com em
2008
Número de Vozes que falaram no
Programa CC da TV Com em
2008 1. 2. 3. 4. 5.
249 980 636 286 902
Média de vozes/ Programa Polêmica
Média de debatedor-
Programa Polêmica
Média de Vozes/ CC
Média de debatedor/
Programa CC
Número de debatedores
que participaram
em mais de um debate
10. (2/1) 11. (3/1) 12. (5/4) 13. (6/4) 14.
4 2,5 3,0 2 1128 Número de Vozes que falaram no
Programa CC da TV Com em
2008
Número de debatedores que
falaram no Programa CC da TV
Com em 2008
Total de programas Total de vozes Total de
debatedores
5. 6. 7 (1+4) 8.(2+5) 9 (3+6) 902 572 535 1882 1208
LÍNGUAS FERINAS: UM ESTUDO SOBRE A POLÊMICA E OS POLEMISTAS
113
Número de debatedores que participaram em
mais de um debate
Média geral de debatedor repetido
por programa
Número de debatedores com participação nos dois programas
Média geral de debatedor por
programa
14. 15. (14/7) 16. 17. (9/7) 1128 2,1 62 2,25
Os sabiás da mídia – Porto Alegre. 2008.
Tipos de debatedores
Os mais frequentes: número de
participações no Polêmica
Os mais frequentes: número de
participações no CC Total Ranking
Professor/Acadêmico 113 80 193 2º.
Parlamentar 110 186 296 1º.
Advogado 91 70 161 4º.
Func. Público 63 122 185 3º.
ONG/Associação 57 53 110 5º.
Jornalista 52 15 67 10º.
Médico 52 18 70 9º.
Cientista Político 42 5 47 11º.
Economista 41 66 107 6º.
Sindicalista 40 60 100 7º.
Juiz 32 39 71 8º.
Psicólogo 30 12 42 14º.
Psiquiatra 29 7 38 15º.
Militante 25 21 46 12º.
Policial 24 20 44 13º.
Militar 20 15 35 15º.
Promotor 12 20 32 16º.
Procurador 8 14 22 17º. Fonte: FP em Espanhol / Obs: Criadores (Autores e Artistas)
Observa-se que essa espécie de ave que canta e assobia muito na mídia é
fenômeno mundial. No exame comparado entre esse vozerio dos pampas e os
dos intelectuais mais influentes no mundo parecem estar representados, entre
outros, principalmente, os cientistas políticos, os economistas, os filósofosos,
ativistas/militantes e os jornalistas. O que faltou na lista gaúcha são os cientistas.
Sua influência parece ser menor que a observada no cenário internacional.
JACQUES A. WAINBERG
114
100 Mais influentes em 2008
02468
1012141618
C.Polí
tico
Econom
.
Filóso
fo
Cientista
Jorna
lista
Criado
res
Historia
dor
Ativist
a
Religios
o
Ecologis
ta
Série1
A Origem dos 100 Mais Influentes
05
10152025303540
A.Nort
e
Europa
Ásia
O.Méd
io
A.Latina
África
S.Asiátic
o
Série1
Fonte: FP em Espanhol. 2008.
Um total de 1.882 vozes de 1.208 debatedores foi listado nas 535 edições
do “Polêmica” da Rádio Gaúcha e ”Conversas Cruzadas” da TVCom. Ou seja,
uma média de 2,25 debatedores por programa. É fácil entender que o número de
vozes superou o número de debatedores, porque 1.128 debatedores participaram
mais de uma vez nos debates ao longo do ano. Um total de 62 debatedores
frequentaram ambos os programas. É verdade que outros programas similares
existem noutras estações de TV e rádio de Porto Alegre. Também é verdade que
estes números (1.208 debatedores) não incluem fontes exclusivas de outras
LÍNGUAS FERINAS: UM ESTUDO SOBRE A POLÊMICA E OS POLEMISTAS
115
emissoras. De qualquer forma, considerando a importância jornalística do
”Polêmica” e ”Conversas Cruzadas”, sua periodicidade diária, sua sólida
audiência, afirmamos que esse total é relevante e serve como banco de dados
confiável ao fim de se avaliar as principais características desses protagonistas da
controvérsia naquela cidade.
Portanto, os dados coletados revelam que: (1) entre as mais frequentes
vozes presentes nesse tipo de debate na mídia gaúcha estão a dos
parlamentares (vereadores, deputados estaduais, deputados federais e muito
raramente senadores), a dos professores (principalmente acadêmicos), a dos
funcionários públicos (geralmente representantes de todos os níveis e órgãos do
poder executivo), a dos advogados e a dos representantes de associações e
órgãos de classe. Por terem preferências editoriais distintas o recrutamento das
vozes pelos dois programas também se distingue. Geralmente quem fala num
programa não fala no noutro. Geralmente quem fala o faz mais de uma vez ao
longo do tempo (somente 80 não participaram em mais de um programa).
Somente uma minoria, cerca de 5% (62 debatedores) participou dos dois
programas. Ou seja, as vozes escolhidas constituem uma espécie de acervo
intelectual acionado pela produção. São vozes mobilizadas em rotação.
O que se vê também é que a pauta que os mobiliza gira principalmente em
torno de temas ligados aos atos de governo, às crises sociais, econômicas e
políticas e aos dilemas existenciais do cotidiano das pessoas como educação,
amor, segurança e comunicação.
Os parlamentares e os advogados são os que mais se parecem com os
polemistas. Acima de tudo, desejam a vitória nos embates. Os professores
carimbados pelos amuletos de prestígio de suas cátedras e universidades batem
o ponto com alguma pose de saber e pompa. Aparentam ser intelectuais
persuasivos, alguns exibidos, dispostos a troca de farpas embora sob o disfarce
da lógica e da razão. Os funcionários públicos são os mais angustiados. Tem a
dura tarefa de justificar, defender, levar trombadas de todos que têm queixas e
lamúrias a cultivar. Por fim, é a vez dos representantes de classe. A missão desse
personagem é a ruminação. Queixam-se exigindo reparação.
Esse tipo de palco tem muitas outras atrações. O cardápio completo tem
outros pratos além da política, sindicatos, leis e constituição. Entre eles estão o
JACQUES A. WAINBERG
116
medo à insegurança e a catarse da corrupção. Na sobremesa surge a política e
tudo que diga respeito à saúde e ao corpo são. Ou seja, em boa medida as
controvérsias mediadas por rádio e televisão são um tipo de embate destinado a
formar cidadãos. Como dito, o cardápio é variado o que facilita a digestão. No
entanto, a presença deste trio – segurança, escândalo e política – parece fazer
parte de boa parte da transmissão (Anexo 7).
Percebe-se que (2) na ”gaiola” em que estão reunidos os rouxinóis da
mídia (anexo 8) há cantores com timbres variados. Fazem parte dessa nobre
estirpe os representantes de oito categorias de personagens: os economistas, os
cientistas políticos, os professores, os psiquiatras, os parlamentares, os
militantes, os advogados e os policiais militares. O que distingue os indivíduos
desse grupo varia. Alguns são virtuosos da boa retórica. Outros funcionam como
símbolos. Ou seja, representam algo além deles próprios. Os acadêmicos tentam
dar um tom sóbrio aos embates. Já os militantes, os advogados e os
parlamentares são ”galos de rinha”. Do outro lado do picadeiro estão os
psiquiatras a balancearem em voz pausada esse tipo de apetite por luta e algum
sangue.
Dois personagens posicionados em primeiro lugar entre os rouxinóis são
acadêmicos de boa prosa. Quando solicitados demonstram sabedoria. Falam com
calma sem afetação. Têm aparência de bonachão. Em seus discursos, parece
imperar sempre o cálculo frio da boa argumentação. O que lhes acompanha o
passo nessa posição de liderança é personalidade distinta, representa e simboliza
claramente uma facção. Por isso, é provocado a fazer o contraste, iniciar a
labareda e alguma confusão. Já o número dois é chamado assim porque quando
fala representa um povo e uma multidão. Seu verso é ideológico, claro e cristão.
O outro é duro no jargão. O Militar, representa uma instituição. O número três, o
advogado, é craque da polêmica. Diz o que diz com senso de humor, mesmo não
agradando os companheiros de partido que estão de plantão. Dá a impressão de
ser honesto e sincero, qualidades muito úteis à persuasão. São algumas
características que podem eventualmente explicar porque esses personagens são
os preferidos pela produção.
O temário exclui uma ampla agenda de tópicos que poderia acolher mais
facilmente o ‘intelectual público’ ausente nesse tipo de transmissão. Como se
LÍNGUAS FERINAS: UM ESTUDO SOBRE A POLÊMICA E OS POLEMISTAS
117
sabe, esse tipo de gente está menos interessada na pequenez do dia a dia e mais
focada nas tendências, na memória, no futuro, na ciência, nos sonhos e fantasias.
Nesse cardápio diário de controvérsias provocadas há até mesmo esporte, mas
muito pouco de arte, literatura, ciência, biografia e antropologia. Esse tipo de
temário encontrou um restrito refúgio nas emissoras educativas. Mas nada que se
compare ao gosto pelo desgosto da mídia massiva.
Tipologia das vozes
Tipos de vozes Características Atores Est ilos de Vozes
1. Institucional
Representa figura jurídica, sela ele o
governo ou sindicatos. Engaja-se no debate
para explicar seus atos, justificar ações fazer e responder às críticas.
Representantes de instituições políticas e/ou representativas que se enfrentam no cenário
público.
Carismática
2. Militante
Representa parte interessada.
Usualmente se queixa e rumina. Exige
reparação. O discurso é em boa medida
emocional.
Representantes de ONGs, associações, independentes
ideologicamente comprometidos, parlamentares e advogados.
Intelectuais engajados.
Humorada
Crítica
3. Independente
Mantém equidistância das partes envolvidas
na celeuma. Faz o papel crítico. Analisa
friamente o dilema. Sua postura aparenta ser racional. Seu prestígio
provém de sua expertise.
Os acadêmicos com frequência buscam esse espaço do analista. Mas outros personagens podem
igualmente exercê-lo.
Sarcástica
Afetiva
4. Simbólica
Esse atributo parece estar presente e bem
distribuído em todas as categorias anteriores.
Ou seja, todo debatedor deve
representar algo além dele próprio. Por vezes há vozes convocadas
por terem esse atributo mais forte.
Títulos acadêmicos, história de vida, e honrarias ajudam dar credibilidade ao orador. São atributos de prestígio. Mas o
importante é que seu discurso remeta a audiência para algo
maior e mais importante do que sua figura particular. Quanto
mais dotado for o orador desta virtude mais apelo terá sua figura
à participação nesse tipo de programação.
Provocadora
Diplomática
Humilde
JACQUES A. WAINBERG
118
Cabe afirmar, por fim, que o polemismo é a circunstância do maldito que
vive sempre à beira dos desfiladeiros. Ora nele cai. Ora dele se recupera. Mas é
ali, sempre à disposição do desastre, que se anima e encontra o que de melhor
tem de si para dar ao público.
LÍNGUAS FERINAS: UM ESTUDO SOBRE A POLÊMICA E OS POLEMISTAS
119
CONCLUSÃO E DISCUSSÃO _______________________________________________________________________________________
No cerne de tudo há sempre um tema sobre o qual os polemistas pensam
que vale a pena sustentar um confronto. Por ser um embate aberto a controvérsia
acaba adquirindo uma relevância política e social. Diferencia-se daquele outro tipo
de desassosego, a conversa intimista em que o caloroso diálogo é intrapessoal.
Na meditação inaudível o indivíduo pondera e sofre.
Mas ao sair da toca, ao aparecer à vista, esse personagem adquire uma
aparência nada discreta. Acusa o opositor e defende suas ideias num jogo
usualmente referido como estratégico. Justifica, apresenta provas, dá exemplos,
faz analogias, discorda, objeta, critica, ironiza e espera em posição de defesa o
revide do adversário. Envolve-se na ponderação sobre a resolução de dilemas
que por natureza são complexos. O debate traz a tona tópicos entrelaçados e
divergências polarizadas. Desde uma perspectiva otimista, esse tipo de
interlocução não deixa de ser uma conversação. É verdade que é uma troca de
ideias atormentada, movida à paixão e pelo gosto nem sempre sereno de se
vencer e superar o adversário a qualquer custo. As discussões, as controvérsias e
as disputas são fenômenos de aparência universal. Não se pode fugir a essa
circunstância vital e humana da discórdia, sempre presente em nossas vidas. Em
algumas culturas ela existe, mas é constrangida. Quando aparece, vem tímida e
pálida. Seu aparecimento no meio social provoca medo e apreensão. Temem
todos que possa provocar a deserção e a desagregação. Noutros ambientes,
mais coléricos, o choque é explícito. Nas nossas sociedades massivas a polêmica
e os polemistas estão presentes na mídia, nos tribunais, nas salas de aula, nos
parlamentos, nos colóquios científicos, nos artigos dos articulistas, nos ensaios
filosóficos e agora, principalmente, também nos sites e na blogosfera.
Aparentemente, é isso o que as pessoas querem. Precisam consumir palavras.
Desejam poder fazer sentido dos fatos e das ocorrências que estão à volta. E se
nutrem com frequência dessas vozes que falam sem cessar. Com frequência,
lhes impressiona também a aparência, a petulância, a soberba e o verbo
frequentemente ríspido de tais línguas ferinas – isso quando elas não se curvam
JACQUES A. WAINBERG
120
envergonhadas no silêncio obsequioso ou amedrontadas pela ameaça da
perseguição, da abominação e do exílio.
Portanto, cabe ressaltar, que a distância entre o pilpul (a interpretação) e o
bilbul (a confusão de ideias) é pequena. Basta observar que qualquer diferença
de forma (como a existente entre P e B) é capaz de gerar a controvérsia. Basta
uma sutil alteração de sonoridade (como entre [P] e [B]) para que a labareda se
forme. Talvez esse caos potencial seja o que atraia ao ringue midiático os
polemistas, os gladiadores da palavra. O que eles gostam mesmo, o que os
anima, é o embate. O que os provoca é o dilema. O que essa gente parece fazer
melhor é trocar farpas. A existência de uma corrente de pensamento origina de
imediato o aparecimento de outra, no outro lado da barricada. E logo se formam
as seitas de seguidores e as cátedras como que cultos a obras e autores. Nesses
ambientes de compadrio, o polemista com frequência atua caridoso com os
companheiros que lhe bajulam o verbo e violento com os que lhe desafiam a
estampa.
Sua presença no palco social tem efeito paradoxal. Por vezes, anima a
conversação comunal. Desafia verdades estabelecidas. Rompe com o trivial.
Noutras, faz de tudo para eternizar embates que clamam por solução. Sua voz
antes bem-vinda torna-se rabugenta. Nesse caso mais pernicioso, seu discurso
desmoraliza os esforços de pacificação. O que explica porque o intelectual é ao
mesmo tempo venerado e odiado.
Hoje em dia esse ”homem de letras”, originário da tradição renascentista,
parece mesmo fadado a dar lugar ou juntar-se numa coabitação pouco
confortável ao cientista. As ”ideias perigosas” e ”tóxicas” parecem se originar
agora com mais intensidade nos silenciosos laboratórios de pesquisa do que nos
exercícios diletantes da pura retórica erística.
Como exposto, a voz do polemista é pronunciada também sob disfarces
variados. Nas cartas-testamento, nas notas de imprensa, nos debates públicos
televisionados e nos discursos frente às multidões sua verbe parece evocar uma
mensagem que se propõe à eternidade. Há nela sempre um tom profético, não
raro épico. Noutras oportunidades mais modestas trata de contestar o dito e o
repetido. Rompe com o senso comum e com a linguagem polida.
LÍNGUAS FERINAS: UM ESTUDO SOBRE A POLÊMICA E OS POLEMISTAS
121
Ameaçado pela tradição, o polemista busca refúgios, espaços de
sobrevivência. Os mais tradicionais, que ainda cultuam a imagem dos livre-
pensadores do passado, se irritam com esse esforço dos novos rebentos da
oratória grandiloquente de buscar na universidade guarida e conforto. Ficam
bravas porque, na verdade, essas personalidades, hoje eméritas em muitas
oportunidades do passado, tiveram elas próprias que pedir talvez constrangidos o
carinho e o patronato de alguma alma caridosa.
Na imprensa são eventualmente bem-vindos embora temidos. Esse tipo de
jornalismo polemista é subproduto do articulismo. O que se observa é que com
sua presença a circulação e audiência aumentam na proporção direta da raiva e
do amor que esses debatedores envolvidos em controvérsias provocam no
público. No entanto, o que predomina é a timidez de muitos veículos no
acolhimento de tais profetas malditos. O polemista não nasceu para aquela linha
de conforto da mesmice. Seu espaço é outro: viverá sempre distante do consenso
e do debate burocrático e enfadonho usual no cotidiano das pessoas. Seu mundo
é o da transgressão dos sentidos.
A polêmica pública estimulada por esse tipo de personagem não é
fenômeno recente. A panfletagem mostra que houve na história universal e
brasileira, inúmeros confrontos de ideias estimulados por debatedores que se
deleitavam com os embates públicos. A erística, por sua vez, revela que ocorreu
no alvorecer da história ocidental uma ruptura profunda entre a filosofia
mobilizada pela razão e a retórica persuasiva que movida à paixão caracteriza a
guerra de nervos dos propagandistas, as operações psicológicas dos exércitos
em combate, e a guerra de ideias levada a cabo por intelectuais armados com
sonhos, ideias, visões e palavras, muitas palavras. Hoje em dia sabe-se também
que é um traço das democracias a defesa desses dissidentes e a proteção de
suas opiniões por vezes minoritárias. Apesar de doloroso e difícil de suportar, as
democracias aprenderam a lição de que a verdade é fruto do choque entre
narrativas dominantes e periféricas.
A polêmica vive esparramada em vários recantos. Na ficção televisiva e
cinematográfica, nos programas jornalísticos de debate, na produção fonográfica,
na boca de personagens irônicos e debochados que desafiam os costumes. Ela
varia de cultura a cultura. Em algumas é dura e inflamada. Noutras a emoção
JACQUES A. WAINBERG
122
arrebatada é contida e aprisionada. Este estudo mostrou que entre tantos tipos de
polemistas há um em especial cujo atributo intelectual é demandado. Combina
uma obra de fôlego com sua capacidade e desejo de influenciar o destino
comunitário. Aparentemente, o ”intelectual público” está em todos os lugares, no
ocidente e no oriente, e não raro, coagido, foge em direção às sociedades livres
de onde, protegido, continua a disparar seus petardos retóricos contra seus
opositores, por vezes inimigos.
Nesse tipo de discurso há de tudo um pouco: sátira, ironia, sarcasmo e
humor. O polemista com esse tipo de coquetel retórico e politicamente incorreto e
indisciplinado cumpre um papel que cabe ao diabo. Atormenta a sociedade ora
com ideias brilhantes, ora com alucinações inconsequentes. Foi dito e é agora
repetido que os polemistas tornam-se por vocação celebridades da mídia. Ao
contrário dos autores da era tipográfica, acostumados ao silêncio das bibliotecas
e a sisudez de maçantes e por vezes incompreensíveis compêndios, os de agora,
os deste tempo eletrônico, assumiram um papel menos austero e mais disponível
às massas. Servem-lhes como conselheiros e intérpretes da realidade. Como
exposto, há quem não goste do rebaixamento vocabular a que se submetem para
se comunicar. No entanto, é da adequação de seu verbo às audiências
superficialmente educadas que depende esse seu papel de guia e pároco das
sociedades secularizadas.
A luta entre o velho e o novo encontra assim esse mediador e interlocutor.
O fato de sofrer o ostracismo, a perseguição, a abominação, o exílio e
eventualmente a morte por pensar e dizer o impensável é preço a pagar em
certos ambientes por deflagrar uma luta incerta por corações e mentes. Até que
vença e faça sucumbir seu opositor entricheirado na tradição, no senso comum e
nas verdades incontestáveis terá que suportar estoicamente a desconfiança
pública.
Ao desafiar o senso comum, o polemista faz surgir o novo. Mas o novo não
surge nunca facilmente. Muitos o temem pelo efeito devastador que pode causar
nos equilíbrios existentes. Tal dinâmica pode ser observada nos comportamentos
humanos, nas opiniões expressas sobre temas públicos, nos hábitos cotidianos, e
na ruminação psicológica que impede as pessoas verem os velhos problemas de
um novo jeito. O polemista tem a coragem que falta à maioria dos indivíduos. Na
LÍNGUAS FERINAS: UM ESTUDO SOBRE A POLÊMICA E OS POLEMISTAS
123
verdade, a torcida vibra em seu favor por expressar o que essa parcela da opinião
pública sente, mas evita pronunciar. Esconde-se atrás de sua verbe, como que
entrincheirada num si lêncio sepulcral. E há certo gozo nesse desfrute da
petulância de se dizer o indizível. Como paladino do não dito, mas existente,
desafia o establishment. Esse efeito é surpreendente. Há uma ousadia que
encontra ouvidos desconfiados, de mentes que abominam o jogo de forças que
nas sombras empurram a história de um lado para o outro. O polemista educa,
pois estimula o embate. Acorda mentes adormecidas como que narcotizadas pelo
que é usual. Ele está presente nas disputas teológicas, nas controvérsias
científicas, políticas, literárias, culturais e sociais.
Afinal, é a diferença sempre que é percebida. É o estranho que faz os
olhos ver por vezes o que estava já a nossa disposição, mas era desconsiderado.
A sociedade da informação não assegura esse efeito mágico do encantamento
que o entendimento dos fenômenos e processos produz. Como exegeta, sua
ação tem também efeito terapêutico. Com frequência o polemista também irrita.
Desafia e desacomoda com a inquietude o padrão moral estabelecido pela
tradição. Em boa medida, como todo intelectual é um atormentado. Os genuínos
pensadores estão em sofrimento. A busca da cura os leva a problematizar os
dilemas visando à resolução dos impasses humanos. Nesse sentido, a obra, o
discurso, o que sai da alma desses personagens expressa a luta que sustentam
contra os fantasmas que habitam seus espíritos.
JACQUES A. WAINBERG
124
ANEXOS _______________________________________________________________________________________
ANEXO 1
O MANIFESTO PC Saul Jerushalmy & Rens Zbignieuw X. “Para forjar um acordo cósmico sobre uma unidade e harmonia sem precedentes, o Movimento do Politicamente Correto exige que todas as pessoas, a despeito de suas condições sociais, aceitem a incipiente ordem mundial que oferecerá felicidade e alegria ilimitada. Dammit.” Prof. Dr. Skipyy “Houng Lau” Whitmore Berkeley CA, 1965 O que é PC? PC significa Politicamente Correto. Nós, da filosofia Politicamente Correto, acreditamos na tolerância crescente para uma diversidade de culturas, raças, gêneros, ideologias e estilos de vida alternativos. O Politicamente Correto é a única perspectiva social e moral aceitável. Quem discordar dessa filosofia é um fanático, preconceituoso, sexista, e/ou conservador. Por que eu deveria ser PC? Ser PC é legal. O PCismo é não só uma atitude, é um estilo de vida! PC oferece a satisfação de saber que você está combatendo as maldades sociais de séculos de opressão. Sou um homem branco. Ainda assim posso ser PC? Certamente. Na verdade, a maior parte da vanguarda do grande destino PC são homens brancos. Mas lembre, como homem branco, você deve sempre sentir-se culpado. Por quê? Se você é um homem branco, seus ancestrais foram responsáveis por praticamente todas as injustiças do mundo: escravidão, guerra, genocídio e os xales dos casacos esportivos. Isso significa que você é parcialmente responsável por estas atrocidades. Agora é tempo de equilibrar as balanças da justiça para os descendentes daqueles indivíduos cujos ancestrais seus ancestrais oprimiram. Como ? É simples. Você tem que ser cuidadoso com o que diz, com o que pensa, e com o que faz. Você não quer ofender a quem quer que seja. Você quer dizer que devo evitar ofender alguém? Exato. Ser ofensivo é destrutivo, e não tornará o mundo uma Utopia harmoniosa, como em Imagine de John Lennon. O que mais posso fazer para ser um PC? Oh, há muitas maneiras. Por exemplo, por que comprar sorvete se você pode comprar algo comestível da Floresta Amazônica? Segregue – opa-opa – separe tudo em diferentes containers: vidro, metal, papel, plástico, etc. Tenha certeza que sua maquiagem não foi testada em animais. Tente encontrar pelo menos 60 maneiras de usar sua água, quando você toma banho, escove os dentes na mesma hora. Então não deixe a água escoar, use-a para irrigar seu gramado. Ou melhor ainda, troque seu gramado por uma horta. Não use aerosol. De jeito algum, não queime ou deforme nossa bandeira. Lembre, como cidadão dos Estados Unidos, você está vivendo no país de Deus. [Na versão brasileira poderíamos sugerir: Lembre-se que Deus é brasileiro.] Se você for suficientemente afortunado em saber sua origem étnica, vista-se de acordo. Não use drogas. Você deve ouvir a pelo menos um dos seguintes músicos PC: U2, REM, Sinead O’Connor, Sting ou k d lang. Assedie as pessoas que usarem casacos com peles de animais. Lembre-se que uma inocente foquinha foi espancada sem misericórdia. Ou simplesmente grite, “FUR!” Eles odeiam este grito. E nunca coma carne. Nunca comer carne? Por que não? Vacas são animais, assim como seres humanos são animais. Isso significa que eles têm direitos. Quando você come carne, você está oprimindo os animais! Então toda matança é ruim?
LÍNGUAS FERINAS: UM ESTUDO SOBRE A POLÊMICA E OS POLEMISTAS
125
Não, não sempre. Às vezes a matança pode ser justificada, como no Golfo Pérsico. Você tem que ser capaz de dizer quando um animal tem direito, e quando não. Como posso saber quando um animal tem direitos? A regra geral é a seguinte: se o animal é raro, bonito, grande, simpático, peludo, doce ou amável, então ele tem direitos. Examine a lista abaixo:
DIREITOS SEM DIREITOS
vacas baratas coelhos mosquitos baleias tubarões
esquilos vermelhos esquilos cinzas corujas madereiros
marinheiros crustáceos
Ufa. O que mais posso fazer para ser um PC? Suba numa árvore. Alegre-se todos os dias por conta de nossas diferenças culturais, já que elas dão sabor a nosso grande país. Tome consciência de sua identidade sexual. Dê uma olhada no seu refrigerador para ver se há vazamento de gás. Assine a National Geographic. Procure nela as tradições culturais e costumes não ocidentais. Depois de lê-la, use o papel como fonte de energia alternativa. Tente vestir roupas com a letra X gravada nelas se elas forem de fibras naturais. Acima de tudo, sempre desafie a autoridade! Espere um pouco, pensei que — Não se preocupe, isso não é importante. Bem, não estou convencido disso. Se você está inseguro sobre sua motivação, basta recordar. Você está certo. É simples. Você, como um guerreiro PC, está certo. Como posso saber quando uma ação é ant i-PC? Boa pergunta. É importante saber quando alguém está dizendo algo inadequado de forma que você possa afastar essa pessoa da sociedade. A orientação é a seguinte: O confronto é entre duas pessoas brancas? Sim: o liberal está certo. Não: o branco está oprimindo o outro. Aqui está um exercício legal para você: Veja quantos artigos de jornal você pode escrever sobre histórias preconceituosas. É legal! Alguns PCistas são tão bons que eles conseguem tornar a previsão do tempo parecer um panfleto da Klu Klux Klan! O que posso fazer se vejo alguém fazer algo que não seja PC? Tudo dependerá da situação. Se você está numa posição de autoridade, trate de imediato de comunicar o fato a seja lá quem for o responsável. Se o líder de sua escola, empregador, ou superior for simpático às tendências dos anos 90, ele ou ela adotará as medidas necessárias contra o agressor. Mas isso não é censura? A Constituição nunca pretendeu que o racismo, o sexismo e a insensibilidade fossem defendidos por alguém. Não é disso que trata a liberdade de expressão. Dizer algo negativo sobre uma determinada raça ou gênero é tão prejudicial como, digamos, dar-lhes um soco na cara. Não podemos admitir esse tipo de assalto verbal. Ouvi muito dizer que o PC está substituindo palavras como ”Negro”, ”Índio”, etc. Sim. Isso faz parte do movimento PC. Você vê, parte do que pensamos sobre as pessoas vem diretamente das palavras que usamos para descreve-la. Veja ”negro”, por exemplo. Por que uma pessoa deve ser julgada pela cor de sua pele? Você quer dizer que é preferível ser julgado pelo conteúdo de seu caráter? Não, quis dizer que eles devem ser julgados pela origem de seus ancestrais. Se seus avós tiverem vindo da África, ou Ásia, ou seja lá de onde for, então você deve ser identificado por este fato. Você pode inclusive se candidatar a bolsas de estudo! Sou uma mistura de francês, alemão, inglês e russo. Como posso ganhar uma? Não, não há bolsas de estudo para este tipo. Mas se você for mulher poderá haver.
JACQUES A. WAINBERG
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Opa, uma pessoa branca da Líbia ou Egito tecnicamente poderá ser afro-americano? Tecnicamente sim. Mas não é este tipo de afro-americano que eles se referem. Referimos-nos a afro-americanos negros. Outro exemplo: um imigrante branco da África do Sul também não é afro-americano. Gostaria que meu filho fosse PC. O que devo fazer? Bem, deveríamos encorajar os estudantes a dedicar de forma voluntária seu tempo com filantropia. Também, deveríamos reenfatizar perspectivas não ocidentais da história. Finalmente, deveríamos reestruturar testes e questionários para reflet ir preconceitos culturais. Não entendi. Bem, este é o jeito que o sistema funciona agora, “selecione” as minorias sub-representadas que tendem a se sair pior nos testes de seleção, que têm os piores desempenhos na escola e no trabalho e eles recebem tratamento preferencial. Isso é injusto e errado. É? Sim. O verdadeiro jeito PC de ser tem um escala de avaliação para grupos diferentes de grupos que dá ou subtrai pontos do escore final, dependendo quem está fazendo o teste. Se você é branco, então você foi beneficiado pela sociedade durante sua vida. Isso significa que você perde de dez a quinze pontos para tornar o teste justo para todos os demais. Suspeito que isso seja correto. Está correto. Isso é que é belo no PC. Com que mais devo tomar cuidado? Humor. O pessoal PC leva todo comentário muito seriamente. Não aceitamos qualquer comentário, piada, consideração, ou qualquer coisa que pareça ser insulto racial ou étnico. Isso é tudo? Sim. A crença Politicamente Correto é essencialmente o reconhecimento que as pessoas são diversamente iguais. Alegramos-nos nesta igualdade tratando as pessoas diferentemente baseada em sua individualidade igualitária. Seja bem-vindo no nosso trem... Seja PC. Ou então você é um intolerante, racista, sexista e um porco insensível.
ANEXO 2
Estratégias retóricas segundo Arthur Schopenhauer
Estratagema Retórico Conceituação Objetivo Alguns exemplos
1. Extensão
Levar a afirmação do adversário para além
de seus limites naturais. Toma-lo no sentido mais amplo possível. Por outro lado, restringir ao máximo a própria
afirmação.
Quanto mais geral uma afirmação se torna mais ataque pode se dirigir a
ela.
Eu disse: “Os ingleses são a primeira nação no gênero
dramático.” O adversário: “Todo mundo sabe que na música e, por conseguinte
na ópera, eles nunca foram importantes.” Repliquei: “a
música não está compreendida no gênero dramático; este
corresponde unicamente à tragédia e à comédia.”
2. Homonímia
Tornar a afirmação apresentada extensiva àquilo que pouco ou nada tem em comum com a coisa de que se
trata.
Isso permite refutar a segunda
afirmação dando a impressão de ter
refutado a primeira
A: “Você ainda não está iniciado nos mistérios da filosofia de
Kant.” B. “Ah! De mistérios nem quero
saber.”
LÍNGUAS FERINAS: UM ESTUDO SOBRE A POLÊMICA E OS POLEMISTAS
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Estratagema Retórico Conceituação Objetivo Alguns exemplos
3. Mudança de Modo
A afirmação que foi apresentada em modo relativo é tomada como
se tivesse sido apresentada em modo
absoluto.
A afirmação relativa pode ser assim
refutada com base neste segundo
contexto.
Numa conversação sobre filosofia, reconheci que meu sistema
defendia e elogiava os quietistas. Pouco depois surgiu uma
conversa sobre Hegel e afirmei que grande parte dos seus
escritos não tem sentido ou, ao menos, em muitas de suas
passagens o autor colocava as palavras e o leitor tinha de
colocar o sentido. Meu adversário não tentou refutar esta crítica. Disse que eu havia elogiado os
quietistas embora estes escreveram também muitas
coisas sem sentido. Aceitei este fato, mas corrigi sua afirmação dizendo que não elogiara os
quietistas enquanto filósofos e escritores, mas como pessoas,
por seus atos, apenas sob ponto de vista prático. Mas no caso de
Hegel, ao contrário, de realizações práticas. Deste modo,
o ataque cessou.
4. Pré-Silogismos
Se quiser chegar a certa conclusão,
devemos evitar que esta seja prevista.
Temendo a argúcia do adversário,
apresentaremos as premissas das
premissas, fazendo pré-silogismo.
Deve-se atuar de modo que o
adversário admita as premissas uma
de cada vez e dispersas e sem
ordem na conversação.
Procura-se fazer com que admita as
premissas de muitos dos pré-silogismos, sem
ordem e confusamente,
ocultando o nosso jogo.
5. Uso Intencional de premissas falsas
Se o adversário não quiser aceitar as
proposições verdadeiras, fazer uso de proposições falsas
Adotaremos proposições que são falsas em si mesmas, mas verdadeiras e
argumentaremos a partir do modo de
pensar do adversário.
Se alguém é militante de alguma seita com a qual não estamos de acordo, podemos adotar contra ele, as máximas dessa seita.
JACQUES A. WAINBERG
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Estratagema Retórico Conceituação Objetivo Alguns exemplos
6. Petição de princípio oculta
Ocultar o que se quer afirmar.
Para isso deve se usar um nome
distinto ou conceitos
intercambiáveis para fazer com que
se aceite o que parece
controvertido e que na verdade quer se
afirmar.
“Boa reputação” em vez de “honra”; “virtude” em vez de
“virgindade.”
7. Perguntas em desordem
Fazer de uma só vez muitas perguntas
pormenorizadas. Em contrapartida, expor rapidamente a sua
própria argumentação, fundada nas
concessões da outra parte.
Ocultar o que queremos que seja admitido. Os que
compreendem com lentidão não conseguem
acompanhar a discussão e não se darão conta das
eventuais falhas e lacunas da
demonstração.
8. Encolerizar o adversário
Provocar a raiva do adversário com algo
injusto, humilhando-o e tratando-o com
insolência.
Enfurecido o adversário não é
capaz de raciocinar o que o impede
eventualmente de ver sua vantagem
no embate.
9. Perguntas em ordem alterada
Fazer as perguntas numa ordem distinta da exigida pela conclusão que dela pretendemos.
O adversário não conseguirá saber onde queremos chegar e não
poderá prevenir-se. Poderemos servir-
nos de suas respostas para tirar várias conclusões,
até mesmo contraditórias, conforme as respostas o permitam.
LÍNGUAS FERINAS: UM ESTUDO SOBRE A POLÊMICA E OS POLEMISTAS
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Estratagema Retórico Conceituação Objetivo Alguns exemplos
10. Pista Falsa
Se o adversário responde pela negativa
às perguntas cuja resposta afirmativa poderia confirmar
nossas proposições, então devemos
perguntar o contrário da proposição que
queremos usar, como se quiséssemos que fosse aprovada, ou então por as duas à
escolha.
Impede que o adversário perceba
qual proposição queremos afirmar.
11. Salto Indutivo
Se fizermos alguma indução e o adversário
admitir os casos particulares em que esta se baseia, não
devemos perguntar-lhe se admite também a verdade geral que
deriva desses casos.
Devemos introduzir a verdade geral
desde logo como se estivesse
estabelecida e aceita, pois às
vezes ele poderá crer que a admitiu, e o mesmo pode acontecer aos
ouvintes.
12. Manipulação Semântica
Este é o que mais se usa de maneira
instintiva. É preciso escolher a metáfora que mais favoreça a
nossa tese.
Aquilo que se quer dizer é introduzido já na palavra, na denominação, da qual se deriva por um simples juízo
analítico.
O nome ”protestante” foi escolhido por eles mesmos. O
nome herege, em contrapartida, foi escolhido pelos católicos.
13. Alternativa Forçada
Apresentar a tese contrária a nossa e
deixar que o adversário escolha.
Ressaltar com veemência a
oposição entre as duas teses de
modo que escolha a nossa por ser
muito mais provável.
Desejamos que alguém admita que um homem tem que fazer tudo o que seu pai lhe ordene.
Para isso, perguntamos: “Deve-se obedecer ou desobedecer aos
pais em todas as coisas?”
14. Falsa proclamação de vitória
Tratar como prova o que não é prova.
Se o adversário for tímido ou tolo
poderá aceitar o golpe.
15. Anulação do paradoxo
Propor ao adversário para que aceite uma
proposição correta cuja exatidão não é
totalmente evidente. Ou então aplicaremos o estratagema anterior.
Se ele suspeitar e recusar,
provaremos o absurdo da tese,
mostrando que ela leva a pelo menos uma consequência
absurda.
JACQUES A. WAINBERG
130
Estratagema Retórico Conceituação Objetivo Alguns exemplos
16. Modalidades do argumentum ad hominem
Se fizer uma afirmação devemos perguntar-lhe senão está de algum modo em contradição
com algo que anteriormente disse ou
aceitou, ou com princípios de uma
escola ou seita que ele elogie ou aprove.
De uma maneira ou de outra sempre
estamos sujeitos a nos deixar apanhar
por semelhante tramoia.
Se alguém defende o suicídio, logo gritamos: “Por que você não
se enforca?”
17. Distinção de emergência
Quando a questão admite algum tipo de dupla interpretação ou dois casos diferentes, fazer alguma distinção
sutil.
Responder a uma prova contrária a
nossa apresentada pelo adversário.
18. Uso Intencional da mutatio controverse
Evitar e interromper o debate a tempo de não
ser derrotado, ou desvia-lo de rumo.
Responder ao uso de argumentação que ameaça nos
abater.
19. Fuga do específico para o geral
Enfocar o aspecto geral da tese e ataca-la
assim.
Responder à objeção do
adversário contra um ponto concreto
da tese.
Se tivermosmos de dizer por que uma determinada hipótese física
não é crível, falaremos da incerteza geral do saber humano,
ilustrando-a com toda sorte de exemplos.
20. Uso da premissa falsa previamente aceita pelo adversário
Se já interrogamos o adversário acerca de
nossas premissas e ele as aceitou não
devemos perguntar-lhe mais nada.
Devemos tirar nós mesmos a
conclusão dessas premissas. A presumiremos como aceita e tiraremos a conclusão.
21. Preferir o argumento sofístico
Responder o argumento sofístico
com outro argumento sofístico
O objetivo não é a verdade, mas a
vitória.
22. Falsa alegação de petitio principii
Se o adversário exigir que admitamos algo do qual deriva o problema em discussão devemos
recusar.
Nosso adversário e os ouvintes
enxergarão como sendo idêntica ao
problema uma proposição que lhe seja muito afim. Desse modo lhe subtrairemos seu
melhor argumento.
LÍNGUAS FERINAS: UM ESTUDO SOBRE A POLÊMICA E OS POLEMISTAS
131
Estratagema Retórico Conceituação Objetivo Alguns exemplos
23. Impelir o adversário ao exagero
Podemos provocar o adversário
contradizendo-o e induzindo-o ao exagero
para além do que é verdade uma afirmação
que em si pode ser verdadeira. Quando o
adversário nos contradisser devemos
cuidar para não exagerar nossa tese.
Ao refutar o exagero parece termos refutado
também a proposição original. Com frequência o adversário buscará
também nossa afirmação para além do que havíamos
expressado.
24. Falsa redução ao absurdo
Tiram-se falsas consequências da
proposição do adversário e fazem-se
distorções dos conceitos.
Tira-se a força dos argumentos do
adversário.
25. Falsa instância
Apresentar um único caso para o qual o princípio não seja
válido.
Assim, o argumento é demolido.
Todos os ruminantes têm chifres. Mas o camelo é ruminante e não
tem chifres.
26. Retorsio argumenti
Considerar o argumento do
adversário para seus fins de argumentação.
O argumento que o adversário usa a
seu favor pode ser usado com mais razão contra ele.
O adversário diz: “É apenas um menino, devemos deixá-lo fazer o
que quiser.” Retorsio: “Precisamente porque é um
menino, deve-se castigá-lo para que não persevere em seus maus
hábitos.”
27. Provocar a raiva
Frente a um argumento o adversário fica
nervoso.
Nesse caso devemos usar o argumento com
frequência já que ao que parece
tocamos seu lado fraco. Assim, dominamos a
situação.
28. Argumento ad auditores
No caso de uma pessoa culta discutir com um auditório inculto faz-se uma objeção inválida a
um argumento.
Tal invalidade só um conhecedor do
assunto pode captar. E esse não
é o caso dos ouvintes. O
adversário estará assim derrotado
aos olhos do público.
Na formação da crosta rochosa primária, a massa que mais tarde
se cristalizou para formar o granito e outras rochas por efeito
era líquida e teria que ser fundida. O falso argumento é: a temperatura a 250 graus teria
feito a água evaporar. A explicação esconde que a
ebulição depende também da pressão atmosférica.
JACQUES A. WAINBERG
132
Estratagema Retórico Conceituação Objetivo Alguns exemplos
29. Desvio
Se percebermos que vamos ser derrotados, recorremos de forma
modesta ou insolente a um desvio.
Podemos falar de algo totalmente
diferente como se fosse pertinente à
questão e constituísse um
argumento contra o adversário. Na discussão só se
deve usá-lo na falta de algo melhor.
Se um debatedor lança ao outro reprovações pessoais, este não responde com uma refutação,
mas sim com reprovações pessoais ao primeiro, deixando
subsistir os lançados contra ele e, portanto, quase os admitindo.
30. Argumento que apela à credibilidade e à honra de alguém
Utilizamos uma autoridade que é
respeitada por nossos adversários para estar ao nosso lado. Ou a
citamos. Ou podemos falsificá-lo para os
nossos fins.
As pessoas comuns têm profundo respeito pelos especialistas.
Para evitar ter de pavimentar a rua em frente a sua casa um
padre francês citou uma frase da Bíblia: paveant il li, ego non
pavebo (“eles que se apavorem, eu não me apavorarei”). Para os
ouvintes de língua francesa, paver soou como pavimentar.
31. Incompetência irônica
Declara-se frente ao adversário como incompetente
Damos a impressão de que o
argumento do adversário é
insensato. Esse passo pode ser
dado quando temos a certeza de que o público tem estima maior por nós do
que pelo adversário.
“O que você diz ultrapassa minha débil capacidade de
compreensão. Não posso compreendê-lo e renuncio a todo
julgamento.”
32. Rótulo odioso
Reduzir o argumento do adversário a uma
categoria odiosa.
Assim, tornamos suspeita a
afirmação do adversário.
“Isso é maniqueísmo”, “Isso é panteísmo”, “Isso é ateísmo”.
33. Negação da teoria na prática
Pode ser verdadeiro em teoria, mas na prática é
falso.
Aceita-se os fundamentos, mas
negam-se as consequências.
Contradiz a regra: da premissa à consequência a conclusão é
obrigatória.
34. Resposta ao meneio de esquiva
Se o adversário não dá uma informação ou
uma resposta direta a uma questão ou a um
argumento e se esquiva significa que
encontramos um ponto fraco no seu argumento.
Refugia-se numa proposição que não
tem nada a ver com o tema. Isso corresponde a um mutismo relativo.
Devemos persistir no ponto e não deixar o adversário sair do lugar
LÍNGUAS FERINAS: UM ESTUDO SOBRE A POLÊMICA E OS POLEMISTAS
133
Estratagema Retórico Conceituação Objetivo Alguns exemplos
35. Persuasão pela vontade
Em vez de fornecer razões ao
entendimento, influi-se com motivações na
vontade, e o adversário e os ouvintes são
ganhos para a nossa opinião.
Fazemos o adversário perceber
que sua opinião faria um dano notável a seus
próprios interesses.
Um eclesiástico defende um dogma religioso. Fazemo-lo
observar que isso está indiretamente em contradição
com um dogma fundamental de sua igreja, e ele o abandonará.
36. Discurso incompreensível
Aturdir o adversário com um caudal de
palavras sem sentido.
Podemos impressionar o
adversário oferecendo, com ar grave, um absurdo que soe como algo douto e profundo, e
como se fosse prova incontestável de nossa própria
tese.
37. Tomar a prova pela tese
Se o adversário tem razão, mas escolheu
para defender-se uma prova ruim, será fácil
refutar, e daremos isto como refutação da
própria tese.
Se ao adversário ou aos ouvintes não lhes vem à mente uma prova melhor, então vencemos.
Se alguém emprega, para provar a existência de Deus, o
argumento ontológico que é fácil refutar. Essa é a forma pela qual
bons advogados perdem uma causa boa. Querem defendê-la
com uma lei que não é aplicável e aquela que é aplicável não lhes
vem à mente.
38. Último estratagema.
Quando percebemos que o adversário é
superior e que acabará por não nos dar razão, então nos tornamos
pessoalmente ofensivos, insultuosos,
grosseiros.
Já que a partida está perdida, ataca-
se a pessoa do opositor para assim evitar o objeto da
discussão.
Essa regra é popular e todo mundo é capaz de aplicá-la.
ANEXO 3
Lista dos intelectuais mais citados na mídia e na academia segundo Richard Posner
Os intelectuais mais citados na mídia americana Os intelectuais mais citados na academia americana Richard Posner/Lista Publicada na Revista Veja* Richard Posner/Lista publicada na Revista Veja*
1. Henry Kissinger Michel Foucault 2. Daniel Moynihan Pierre Bordieu 3. George F. Will Jürgen Habermas
4. Lawrence Summers Jacques Derrida 5. William J. Bennett Noam Chomsky
6. Robert Reich Max Weber 7. Sidney Blumenthal Anthony Giddens
JACQUES A. WAINBERG
134
Os intelectuais mais citados na mídia americana Os intelectuais mais citados na academia americana 8. Arthur Miller Stephen Jay Gould 9. William Safire Stephen Posner
10. George Orwell John Dewey 11. Alan Dershowitz Cass Sunstein 12. Toni Morrison Roland Barthes 13. Antonin Scalia Amartya Sen
14. Tom Wolfe Erik Erikson. 15. Norman Mailer. Richard Rorty
16. George Bernard Shaw William James 17. Václav Havel Jerome Bruner
18. William Kristol James Coleman 19. William F. Jr. Buckley Paul Krugman
20. Kurt Vonnegut Edward Wilson 21. H.G. Wells Edward Said
22. John Steinbeck Carol Gilligan 23. Stephen G. Breyer Theodor Adorno
24. Gore Vidal Milton Friedman 25. Robert Bork William Justus Wilson
26. Herbert Stein Judith Butler 27. Timothy Leary Paul Ehrlich
28. Thomas Friedman Ronald Dworkin 29. E.J. Dionne Claude Levi-Strauss 30. C.S. Lewis Jared Diamond 31. Philip Roth Charles Taylor 32. John Silber Jean-Paul Sartre
33. Milton Friedman Robert Putman. 34. Bill Moyers Robert Merton
35. Doris Kearns Goodwin George Stigler 36. H.L. Mencken Joseph Stiglitz
37. Jonathan Turley James Q. Wilson 38. W.H. Auden Samuel Huntington 39. Saul Bellow Richard Lewontin
40. Arthur Jr. Schlesinger Jr. Richard Epstein 41. Joyce Carol Oates Paul Samuelson
42. Bertold Brecht Richard Dawkins 43. Ayn Rand Umberto Eco
44. Benjamin Spock Hilary Putnam 45. Gabriel García Marquez William Eskridge Jr.
46. David Halberstam Raymond Willians 47. Betty Friedan Albert Hirschman. 48. Paul Krugman Homi Bhabha 49. Aldous Huxley Akhil Amar 50. Thomas Mann John Seymour Lipset 51. Anthony Lewis John Maynard Keynes 52. James Baldwin Friedrich Hayek 53. E. M. Forster Howard Gardner.
54. Henry Louis Gates Jr. Richard Herrnstein 55. Stephen Jay Gould Laurence Tribe
56. Susan Estrich Michael Walzer 57. Susan Sontag. Amitai Etzioni 58. Rachel Carson Martha Nussbaum
59. Ezra Pound Martin Feldstein 60. E. L. Doctorow Do 60º a 100º
Bruce Ackerman, Robert Solow, Theda Skocpol, E.J. Hobsbawm, Herbert Simon, James Buchanan, Stanley Fish, Thomas Schelling, Catharine MacKinnon, H.L.A
61. Gloria Steinem
62. Richard Dawkins
LÍNGUAS FERINAS: UM ESTUDO SOBRE A POLÊMICA E OS POLEMISTAS
135
Os intelectuais mais citados na mídia americana Os intelectuais mais citados na academia americana
Do 63º a 100º Jean-Paul Sartre, John Maynard Keyne, Camille
Paglia, Oliver Wendell Holmes, Andrew Ross, John Kenneth Galbraith, Richard Posner, Ralph Ellison,
Aleksandr Solzhentsyn, Lillian Helmann, Ann Coulter, David Horwitz, Albert Camus, Christina Hoff, W.E.B. Du Bois, Allen Ginsburg, Archibald Cox, Jeffrey Sachs, Marshall Mcluhan, Zbigniew Brzezinky, Laurence Tribe, David Brooks, Henry Luce, Pauline Kael, Paul Johnson, Garry Wills,
Isaiah Berlin, Noam Chomsky, Floyd Abrams, John Hope Franklin, Margaret Mead, James Q. Wilson,
David Frum, William Butler Yeats, Alan Wolfe, Lanu Guinier, George Stigler.
Hart, Hannah Arendt, Robert Nozick, Robert Bellah, Francis Fukuyama, Thomas Nagel, Daniel Bell, Ernest Gellner, Cornel West, Eve Kosofsky, Georg Lukacs,
Kenneth Boulding, Erich Fromm, Cristopher Jencks, C. Wright Mills, Henry Louis Gates Jr., Robert Reich, Michael Sandel, Duncan Kennedy, Guido Calabresi,
Isaiah Berlin, Robert Bork, Owen Fish, E.P. Thompson, Robert Frank, Michael McConnell,
Lawrence Lessig, Gunnar Myrdal, Antonin Scalia, Jeffrey Sachs, Alfred Kinsey.
* O critério de Posner para a inclusão de um nome em sua lista foi uma combinação de menções na mídia, referências na web e citações em publicações acadêmicas.
ANEXO 4
Os intelectuais brasileiros mais
influentes
Os Líderes Intelectuais do
Brasil
Os 50 intelectuais brasileiros mais
influentes
Os intelectuais mais influentes do
mundo ibero-americano
Fonte: Revista O Debatedouro (506 respondentes que
votaram).
Fonte: Google (Número de referências
encontradas)
Fonte: Revista O Debatedouro (720 respondentes que
votaram).
Fonte: Foreign Policy/edição em
Espanhol
Ano da divulgação: 2005
Ano de Divulgação: 2007
Ano da divulgação: 2008
Ano da divulgação: 2008
1. Fernando Henrique Cardoso -
1. Arnaldo Jabor/ TV Globo
1. Paulo Coelho
1. Reinaldo de Azevedo
Eleito o Intelectual Ibero-Americano pelos leitores da
Revista. 2. Chico Buarque de
Holanda 2. Reinaldo Azevedo 2. Chico Buarque de Holanda
2. Gabriel Garcia Marques
3. Arnaldo Jabor 3. Diogo Mainardi 3. Oscar Niemeyer 3. Mario Vargas Llosa 4. Luís Fernando
Veríssimo e Olavo de Carvalho
4. Luís Fernando Veríssimo 4. Ariano Suassuna 4. Fidel Castro
5. Marilena Chaui 5. Olavo de Carvalho 5. Luis Fernando Veríssimo 5. José Saramago
6. Ariano Suassuna 6. Emir Sader 6. Cristóvão Buarque 6. Yoani Sánchez 7. Roberto DaMatta
Jô Soares 7. Paulo Henrique
Amorim 7. Arnaldo Jabor 7. Fernando H. Cardoso
8. Millôr Fernandes Renato Janine Ribeiro 8. Franklin Martins 8. Marilena Chauí 8. Eduardo Galeano
9. Emir Sader 9. Elio Gaspari 9. Diogo Mainardi 9. Fernando Savater
10. Demétrio Magnoli 10. Carlos Heitor Cony
10. Fernando Henrique Cardoso 10. Carlos Fuentes
JACQUES A. WAINBERG
136
Os intelectuais brasileiros mais
influentes
Os Líderes Intelectuais do
Brasil
Os 50 intelectuais brasileiros mais
influentes
Os intelectuais mais influentes do
mundo ibero-americano
11. Cristovam Buarque Francisco de Oliveira João Ubaldo Ribeiro
Rubens Ricupero
11. Augusto Nunes 11. Millor Fernandes 11. Felipe Gonzalez
12. Eduardo Suplicy Marcelo Gleiser 12. Tereza Cruvinel 12. Ferreira Gular
13. José Murilo de Carvalho
Roberto Mangabeira Unger
13. Alexandre Garcia 13. Boris Fausto
14. Alberto Dines Elio Gaspari Paulo Coelho
14. Clóvis Rossi/ Folha de S. Paulo/ 14. Eduardo Suplicy
15. Antônio Augusto Cançado Trindade
Antônio Delfim Netto Caetano Veloso
Dalmo de Abreu Dallari Diogo Mainardi
15. Eliane Castanhede 15. Olavo de Carvalho
16. Boris Fausto Eduardo Giannetti da
Fonseca Fernando Morais
Ives Gandra Martins Leonardo Boff Rubem Alves
16. Boris Casoy/ Jornal do Brasil 16. Tom Zé
17. Celso Lafer Clóvis Rossi
Luiz Felipe de Alencastro
Luiz Gonzaga Belluzo Roberto Pompeu de
Toledo Aziz Nacib Ab'Saber
Miguel Reale
17. Stephen Kanitz 17. Reinaldo de Azevedo
18. Luiz Carlos Bresser-Pereira
José Sarney Mino Carta
Reinaldo Azevedo José Ângelo Gaiarsa
Boris Casoy Enéas Carneiro
Manfredo Araújo de Oliveira
Paulo Ghiraldelli Jr.
18. Joelmir Beting/ 18. Roberto DaMatta
19. Fausto Wolff/ Jornal do Brasil 19. João Ubaldi Ribeiro
20. Mauro Santayana/ Jornal do
Brasil 20. Aziz Ab’Saber
21. Caetano Velloso
LÍNGUAS FERINAS: UM ESTUDO SOBRE A POLÊMICA E OS POLEMISTAS
137
Os intelectuais brasileiros mais
influentes
Os Líderes Intelectuais do
Brasil
Os 50 intelectuais brasileiros mais
influentes
Os intelectuais mais influentes do
mundo ibero-americano
22. Gilberto Gil 23. José Murilo de
Carvalho 24. Tostão
25. Ali Kamel 26. Antônio Ermírio de
Moraes 27. Fernando Meirelles
28. Lilia Morits Schwartz
29. Demétrio Magnoli 30. Antônio Delfim Neto 31. Carlos Heitor Cony
32. Elio Gaspari 33. Fernando Novais
34. José Serra 35. Marcelo Gleisser
36. MV Bill 37. Renato Janine
Ribeiro 38. Roberto Pompeu
39. Rui Castro 40. Soninha
41. Carlos Lessa 42. Celso Laffer
43. Eduardo Gianetti 44. Gilberto Dimenstein
45. José Arbex Jr. 46. Luis Felife de
Alencar 47. Mano Brown 48. Miriam Leitão 49. Nelson Motta
50. Roberto Schwartz
ANEXO 5
100 Intelectuais mais influentes no mundo
100 Intelectuais mais influentes no mundo
Os 100 intelectuis mais influentes da Grã-
Bretanha Fonte: Foreign
Policy/Prospect** Fonte: Foreign Policy/Prospect Fonte: Prospect
Ano da divulgação 2005
Ano da Divulgação: 2008
Ano da Divulgação: 2004
1. Noam Chomsky 1. Fettulah Güllen 1. Tariq Ali 2. Umberto Eco 2. Muhammad Yunnis 2. Martin Amis
3. Richard Dawkins 3. Yusuf Al-Qaradawi 3. Perry Anderson 4. Václav Havel 4. Orhan Pamuk 4. Karen Armstrong
5. Christopher Hitchens 5. Aitzaz Ahsan 5. Colin Blakemore 6. Paul Krugman 6. Amr Khaled 6. Philip Bobbitt
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100 Intelectuais mais influentes no mundo
100 Intelectuais mais influentes no mundo
Os 100 intelectuis mais influentes da Grã-
Bretanha 7. Jürgen Habermas 7. Abdolkarim Soroush 7. Samuel Brittan
8. Amartya Sem 8. Tariq Ramadan 8. Gordon Brown 9. Jared Diamond 9. Mahmood Mamdani 9. Ian Buruma
10. Salman Rushdie 10. Shirin Ebadi 10. Melvyn Bragg 11. Naomi Klein 11. Noam Chomsky 11. AS Byatt 12. Shirin Ebadi 12. Al Gore 12. David Cannadine
13. Hernando de Soto 13. Bernard Lewis 13. John Carey 14. Bjørn Lomborg 14. Umberto Eco 14. Linda Colley
15. Abdolkarim Soroush 15. 15. Robert Cooper 16. Thomas Friedman 16. 16. Michael Craig-Martin 17. Papa Benedict XVI 17. Fareed Zakaria 17. Bernard Crick
18. Eric Hobsbawm 18. Garry Kasparov 18. Matthew D’Ancona 19. Paul Wolfowitz 19. Richard Dawkins 19. Richard Dawkins 20. Camille Paglia 20. Mario Vargas Llosa 20. Terry Eagleton
21. Francis Fukuyama 21. Lee Smolin 21. David Elstein 22. Jean Baudrillard 22. Jürgen Habermas (7) 22. Brian Eno
23. Slavoj Zizek 23. Salman Rushdie 23. Niall Ferguson 24. Daniel Dennett 24. Sari Nusseibeh 24. Michael Frayn 25. Freeman Dyson 25. Slavoj Zizek 25. Lawrence Freedman 26. Steven Pinker 26. Vaclav Havel 26. Timothy Garton Ash 27. Jeffrey Sachs 27. Christopher Hitchens 27. Anthony Giddens
28. Samuel 28. Samuel Huntington 28. Paul Gilroy 29. Mario Vargas Llosa 29. Peter Singer 29. Charles Grant
30. Ali al-Sistani 30. Paul Krugman 30. John Gray 31. E.O. Wilson 31. Jared Diamond 31. AC Grayling
32. Richard Posner 32. Papa Benedict XVI 32. David Green 33. Peter Singer 33. Fan Gang 33. Susan Greenfield
34. Bernard Lewis 34. Michael Ignatieff 34. Germaine Greer 35. Fareed Zakaria 35. Fernando Henrique Cardoso 35. Fred Halliday 36. Gary Becker 36. Lilia Shevtsova 36. David Hare
37. Michael Ignatieff 37. Charles Taylor 37. Seamus Heaney 38. Chinua Achebe 38. Martin Wolf 38. Peter Hennessy
39. Anthony Giddens 39. E. O Wilson 39. Christopher Hitchens 40. Lawrence Lessig/Estados 40. Thomas Friedman 40. Eric Hobsbawn
41. Richard Rorty 41. Bjørn Lomborg 41. Richard Holmes 42. Jagdish Bhagwati 42. Daniel Dennett 42. Michael Howard
43. Fernando H. Cardoso 43. Francis Fukuyama 43. Will Hutton 44. J.M. Coetzee 44. Ramachandra Guha 44. Michael Ignatieff 45. Niall Ferguson 45. Tony Judt 45. Lisa Jardin 46. Ayaan Hirsi Ali 46. Steven Levitt 46. Charles Jencks
47. Steven Weinberg 47. Nouriel Roubini 47. Anatole Kaletsky 48. Julia Kristeva 48. Jeffrey Sachs 48. John Kay
49. Germaine Greer 49 Wang Hui 49. Frank Kermode 50. Antonio Negri 50. VS Ramachandran 50. Mervyn King 51. Rem Koolhaas 51. Drew Gilpin Faust 51. Thomas Kirkwood
52. Timothy Garton Ash 52. Lawrence Lessig 52. Richard Layard/ 53. Martha Nussbaum 53. JM Coetzee 53. Julian Le Grand
54. Orhan Pamuk 54. Fernando Savater 54. James Lovelock 55. Clifford Geertz 55. Wole Soyinka 55. Noel Malcolm
56. Yusuf Al- Qaradawi 56. Yan Xuetong 56. David Marquand 57. Henry Louis Gates, Jr. 57. Steven Pinker 57. Peter Maxwell-Davies
LÍNGUAS FERINAS: UM ESTUDO SOBRE A POLÊMICA E OS POLEMISTAS
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100 Intelectuais mais influentes no mundo
100 Intelectuais mais influentes no mundo
Os 100 intelectuis mais influentes da Grã-
Bretanha 58. Tariq Ramadan 58. Alma Guillermoprieto 58. Robert May
59. Amos Oz 59. Sunita Narain 59. Ian McEwan 60. Lawrence Summers 60. Anies Baswedan 60. Neil MacGregor
61. Hans Küng 61. Michael Walzer 61. Mary Midgley 62. Robert Kagan 62. Niall Ferguson 62. Jonathan Miller 63. Paul Kennedy 63. George Ayittey 63. George Monbiot
64. Daniel Kahneman 64. Ashis Nandy 64. Geoff Mulgan 65. Sari Nusseibeh 65. David Petraeus 65. VS Naipaul 66. Wole Soyinka 66. Olivier Roy 66. Tom Nairn 67. Kemal Dervis 67. Lawrence Summers 67. Onora O’Neill
68. Michael Walzer 68. Martha Nussbaum 68. David Pannick 69. Gao Xingjian 69. Robert Kagan 69. Bhikhu Parekh
70. Howard Gardner 70. James Lovelock 70. Adam Phill ips/ 71. James Lovelock 71. J Craig Venter 71. Melanie Phillips 72. Robert Hughes 72. Amos Oz 72. Philip Pullman
73. Ali Mazrui 73. Samantha Power 73. Martin Rees 74. Craig Venter 74. Lee Kuan Yew 74. Matt Ridley
75. Martin 75. Hu Shuli 75. Richard Rogers 76. James Q. Wilson 76. Kwame Anthony Appiah 76. Steven Rose 77. Robert Putnam 77. Malcolm Gladwell 77. WG Runciman 78. Peter Sloterdijk 78. Alexander De Waal 78. Salman Rushdie
79. Sergei Karaganov 79. Gianni Riotta 79. Malise Ruthven 80. Sunita Narain 80. Daniel Barenboim 80. Jonathan Sacks
81. Alain Finkielkraut 81. Thérèse Delpech 81. Ziauddin Sardar 82. Fan Gang 82. William Easterly 82. Simon Schama
83. Florence Wambugu 83. Minxin Pei 83. Roger Scruton 84. Gilles Kepel 84. Richard Posner 84. Amartya Sen
85. Enrique Krauze 85. Ivan Krastev 85. Gitta Sereny 86. Ha Jin/ Novelista 86. Enrique Krauze 86. Robert Skidelsky 87. Neil Gershenfeld 87. Anne Applebaum 87. Quentin Skinner
88. Paul Ekman 88. Rem Koolhaas 88. David Starkey 89. Jaron Lanier 89. Jacques Attali 89. George Steiner
90. Gordon Conway 90. Paul Collier 90. Tom Stoppard 91. Pavol Demes 91. Esther Duflo 91. Raymond Tallis 92. Elaine Scarry 92. Michael Spence 92. Adair Turner
93. Robert Cooper 93. Robert Putnam 93. Mary Warnock 94. Harold Varmus 94. Harold Varmus 94. David Willetts
95. Pramoedya Ananta Toer 95. Howard Gardner 95. Rowan Williams 96. Zheng Bijian 96. Daniel Kahneman 96. Robert Winston
97. Kenichi Ohmae 97. Yegor Gaidar 97. Jeanette Winterson 98.Wang Jisi 98. Neil Gershenfeld 98. Martin Wolf
99.Kishore Mahbubani 99. Alain Finkielkraut 99. Lewis Wolpert 100.Shintaro Ishihara 100. Ian Buruma 100. James Wood
JACQUES A. WAINBERG
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ANEXO 6
As ideias tóxicas
Nome Tema 1. Kevin Kelly Um novo tipo de mente
2. Howard Gardner Abrindo o cofre dos talentos 3. Timothy Taylor 4. John Gottamn Colônias terrestres no espaço
5. Ed Regis A manufatura molecular
6. Douglas Rushkoff Descobrindo vida inteligente em algum outro lugar
7. Juan CEO Enriquez A evolução humana 8. Roger C. Schank O renascimento da sabedoria 9. Stuart Kauffamn O universo aberto 10. Karl Sabbagh O adeus à ofensa 11. Marc Hauser O real, o possível e o inimaginável
12. Rodney Brooks A vida (ou não) em marte 13. Marcelo Gleiser Administrando a morte 14. Nick Bostrom Superinteligência 15. William Calvin Mudança climática mudará tudo 16. Chris Anderson Uma mudança no ensino graças a web
17. Gregory Paul O primeiro grande avanço no cérebro humano e a mente desde o pleistoceno
18. George Dyson Vírus interestelar 19. Michael Shermer Energia e economia: o caminho à civilização 20. Daniel Everett Desfazendo a Babilônia
21. Thomas Metzinger Viagem da alma ao altruísmo 22. Jesse Bering Deus não precisa ter existido para evoluir
23. Richard Foreman Nada mudará tudo 24. Clifford A. Pickover Prova da hipótese de Riemann 25. Nicholas Humphrey Por que a natureza humana irá se rebelar
26. Freeman Dyson Radiotelepatia: a comunicação direta de sentimentos e pesnamentos de cérebro à
cérebro. 27. Ian Mcewan O florescimento da teconologia solar
28. Irene Pepperberg Pensando pequeno: compreendendo o cérebro 29. Haim Harari Finalmente: teconologia mudará a educação
30. Paul Steinhardt Os buracos negros: a última fronteira 31. Mark Pagel Estamos aprendendo a fazer fenótipos
32. Brian Goodwin O próprio organismo como significante emergente
33. Carlo Rovelli E se a grande mudança não ocorrer?
34. Jonathan Haidt Evolução mais veloz significa mais diferenças étnicas
35. Andy Clark Auto re-enegenharia celebratória 36. Leo Chalupa Controlando a plasticidade do cérebro
37. Laurence Smith Antártica occidental e sete outros gigantes adormecidos
38. Alison Gopnik A infância que nunca acaba 39. John D. Barrow Uma bateria muito, muito boa
40. Lawrence Krauss O uso das armas nucleares contra a população civil
LÍNGUAS FERINAS: UM ESTUDO SOBRE A POLÊMICA E OS POLEMISTAS
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Nome Tema 41. Stephen H. Schneider Conservando o clima
42. Aubrey de Grey Desmascarando a verdadeira natureza humana 43. Donald D. Hoffman O laptop quantum 44. James J. O’Donnell África 45. Gregory Benford Viver até os 150
46. Steve Nadis Descobrindo outro universo em nosso universo
47. Barry Smith Pequenas modificações fazem as maiores diferenças
48. Susan Blackmore Máquinas de memes artificiais e auto-reprodutoras
49. Kenneth W. Ford Lendo as mentes 50. Ernst Poppel O futuro como presente: um experimento final 51. Charles Seife A fome por informação malthusiana
52. Gino Segre A existência de dimensões adicionais de espaço-tempo
53. Steven Pinker Se você insistir: genômica pessoal? 54. Lewis Wolpert Fazendo a computação do cérebro
55. Stephon H. Alexander No campo do basquete e a ciência 56. Robert R. Provine O que muda tudo?
57. Alan Alda Cercando um círculo vicioso sem fim
58. Gerald Holton O transporte de um significativo aparato nuclear nocivo
59. David Darrylmple Escapando o tonel da gravidade 60. Keith Devlin O telefone móvel
61. Frank J. Tipler Mas nós todos devemos nos modificar 62. Terrence Sejnowski Computadores são os novos microscópios
63. Helen Fisher Os persuasores escondidos
64. Lera Boroditsky O conhecimento sobre como nós sabemos o que modificará tudo
65. Tor Norretranders Dentro e fora: a epistemologia de tudo 66. Emanuel Derman ”No more time decay” 67. Gregory Cochran Formas melhores de medir
68. Howard Rheingold A alfabetização social sobre a mídia
69. Brian Knutson Neurofenomenologia + estimulação direcionada = otimização psicológica?
70. Eric Drexler A disseminação do conhecimento 71. Nicholas A. Christakis A antroposfera
72. Neil Gershenfeld A re-implantação da vida em materiais inventados
73. Anton Zeilinger O colapso de todos os computadores 74. Yochai Benkler Recombinações do próximo possível
75. Paul Davies A biosfera na escuridão 76. Stewart Brand Clima
77. David Myers Barato, consumível, interativo e textos para o uso global
78. Martin Seligman Pessoas muito mais inteligentes 79. Max Tegmark Uma guerra nuclear acidental
80. Stephen M. Kosslyn Superando as diferenças 81. Lee Smolin A liberação do tempo 82. Marti Hearst O declínio do texto 83. April Gomik Os sentimentos dos animais
84. Joel Garreau A erupção das novas religiões causada pela revolta
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Nome Tema 85. Rupert Sheldrake O crédito ao materialismo 86. Roger Highfield “Star Power” 87. Alun Anderson O óleo verde 88. Patrick Bateson Adotando a racionalidade e a sustentabilidade 89. David Gelernter ”Tracks & Clusters”
90. Monica Narula O aumento no tempo de vida dos indivíduos
constrangido pela diminuição do tempo de vida das espécies
ANEXO 7
Os tópicos mais populares de debates
Tópico Frequência Tópico Frequência 1. Segurança Pública 53 7. Regras e Leis 19
2. Escândalos 46 8. Educação 18 3. Política Estadual 38 9. Transporte 14 3. Comportamento 38 10. Esporte 12 4. Política Nacional 34 11. Economia Intern. 10
5. Ciência e Saúde 28 12. Movimentos sociais/sindicais
11
6. Porto Alegre 24 13. Ambiente/ Pol. Municipal/ Crise/Litoral 8
ANEXO 8
Os Rouxinóis da Mídia Gaúcha. 2008
Nome Atividade Freqüência Total: Polêmica e CC
1. Paulo Moura Cientista Político e acadêmico 13
1. Marcelo Portugal Economista e acadêmico 13 1. Raul Pont Parlamentar 13
2. Percival Pugina Colunista e Militante 12 3. Cel. Paulo Mendes Militar 12 2. Ricardo Giugliani Advogado 12 3. Rogrigo Gonzáles Cientista Político 11 3. André Azevedo Economista 11 4. André Marenko Cientista político 10 4. Ibsen Pinheiro Parlamentar 10 4. Fabiano Pereira Parlamentar 10
4. Fernando Ferrari Filho Parlamentar 10 5. Ático Chassot Acadêmico 9
6. Gabriel Camargo Psiquiatra 9 7. Zila B. Parlamentar 9