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ROBERT MANDROU: da crise do satanismo o abandono do crime de
feitiçaria.
MANDROU, Robert (1968). Magistrats et sorciers en France au XVIIe siècle: une
analyse de psychologie historique. Paris. Plon.
As notas produzidas aqui tem mais do que qualquer outra coisa, um
caráter cronológico. Visa recuperar a especificidade e a ordem de eventos que
são ordenados desta forma devido à necessidade de detalhar o percurso jurídico
que transforma a ordem legal expressa por éditos reais para uma outra, expressa
em código. Esta forma de codificação acaba por produzir uma miríade de
questões dentre as quais interessam mais do que as demais a extinção da
estrutura de apelo que caracterizava a jurisdição da intervenção dos magistrados
e, por outro lado, o desfazimento da ordem eclesiástica como fonte de orientação
criminológica. Ambos os aspectos dizem respeito, antes de mais nada, aos
contornos novos relativos à jurisdição, cuja forma e dinâmica sofrem alterações
decisivas durante o reinado de Louis XIV e vêm a definir, por via da forma
absolutista que lhe e peculiar, fronteiras rigorosas relativas a fenômenos de
imaginação, crença, e religiosidade. Este movimento particular de construção de
um Estado absoluto, talhado em dispositivos que determinam o modo de
circulação de entes, pessoas e objetos segundo uma fórmula mediadora presente
em todos os níveis de relacionamento público é, até aonde compreendo, a gênese
de muitos dos problemas que esta pesquisa enfrenta. Até porque, todas as
distinções futuras a serem constituídas com relação ao universo das associações
livres e ao mundo religioso partem, de uma forma geral deste marco-zero que
anula, inclusive qualquer reconhecimento positivo dos objetos de crença.
SÉCULO XVII: demonopatia
Quadro inicial: a crise de três conventos importantes, em Aix, Loudun e Louviers,
“(...) ce sont les trois phases successives d’un même scandale où se trouvent
impliqués nonnes e directeurs de conscience, où se trouvent condamnés des prêtres
qui ont suscite contre eux de haines passionnés: Gaufridy, Grandier, Boullé (et
Picard) face à Madeleine Demandols, Jeanne des Anges et Madeleine
Bavent.”(1968, 196)
Os episódios mais importantes desta história do século XVII se dão justamente
nas barbas dos eventos da Fronda, outro fenômeno cuja relevância merece ser
considerada – felizmente, o mesmo Mandrou é responsável por um trabalho
cuidadoso que cerca todo o domínio do absolutismo louisiano.
1- “L’historiographie recente de ces procès, particulièrement celui de Loudun,
serait un travail passionant, et importante, pour éclairir les conceptions des
historiens du XIXe siècle, en ces matières entre toutes délicates, où la
politique, l avie religieuse et mystique et les conceptions juridiques se
trouvent étroitement liées. Cette étude historiograhpique n’entre pas dans
les cadres de ce travail, qui vise reconstituer seulement les prises de
conscience des juristes contemporaines, et non celles de narrateurs qui ont,
plus tard, travaillé sur ces dossiers avec préoccupations diverses: eles
n’avaient parfois qu’un lointain rapport avec l’explication historique
proprement dite. Il convient donc se borner à ces seuls traits
originaux.”(198)
Aix-en-Provence;
Última década do reinado de Henry IV. Entendendo haver um surto de
possessões durante os séculos XVI-XVII, é importante salientar porque os casos
de Aix, Loudun e Louviers merecem destaque. O caso de Aix –en-Provence s e dá
em 1611 parte da acusação de um padre ter envolvido as noviças com o véu do
satanismo exatamente por ter sido enfeitiçado pelo príncipe dos sortilégios
(op.cit., 199). O mesmo padre foi julgado e condenado em terminado em 30 de
abril de 1611 em um processo que durou de fins de fevereiro a fins de abril do
ano em questão. O caso insolúvel de Madeleine Demandols de la Palud serve de
pilar para todos os desdobramentos já descritos. Vale mencionar, e este ponto
não pode ser deixado de lado, que todos os movimentos de cada um dos
processos é fortemente acompanhado por padres exorcistas e afins, que são
antes de tudo interessados nos fenômenos de possessão diabólica e que, por
causa de seu interesse ocupam uma posição ambígua na hierarquia da igreja
dado que, pela proximidade que cultivam com o próprio diabo, se tornam
perigosamente especialistas em seus sortilégios a ponto de ser quase que
impossível distinguir o conhecimento sobre o diabo da ação exercida pelo
mesmo. Afinal, como contatar o próprio Satã sem ter a alma tingida por ele?
(VIDE PÁGINAS 232-233).
O caso de Madeleine Demandols dura cinco anos, tendo começado em
1605. A partir de repetidos mal-estares noturnos – sintomatologia clássica de
eventos demoníacos e de feitiçaria , Madeleine é levada às Ursulinas de Aix. Em
1609 Madeleine apresenta, além dos terrores noturnos, alucinações diabólicas e,
às vésperas do Natal ela começa a acusar seu confessor de Marselle. No verão de
1610 a mesma Madeleine é confiada ao irmão Michaelis, notório conhecedor da
atividade de exorcismo, ele mesmo sendo constantemente acusado por
Madeleine quando diante da irmã Ursulina Louise Capeau. As atividades de
exorcismo não se davam em ambientes privados.
O diretor do convento, Louis Gaufridy é formalmente acusado de influir
sobre o estado de saúde de Madeleine, processo que teria se dado desde sua
chegada ao convento, ainda 1606. O mesmo Gaufridy é julgado, condenad e
morto no final de abril do mesmo ano de 1611. Vale notar que a confissão de
Gaufridy, assim como a carta que estabelece os termos da relação com o diabo
tem dois pontos ressaltados por Mandrou. O primeiro ponto diz respeito aos
poderes de encantamento que são transferidos do diabo ao assecla, conferindo
uma certa noção pragmática à justificativa que alguém poderia utilizar ao buscar
o pacto como recurso. Ao mesmo tempo, o método de transferência e, ao mesmo
tempo, o que constitui o pecado que é, à forma de uma leitura tomasina dos
juros, a alienação de algo que não pertence ao agente. Assim Gaufridy enuncia
seu pacto com diabo, por escrito:
“Je, Louis Gaufridy, renonce à tous les biens, tant spiritual que temporels qui
me pourraient être conférés de la part de Dieu, de la vierge Marie, de tous les Saints
et Saintes de Paradis, particulièrement de mon patron saint Jean-Baptiste, saint
Pierre, saint Paul et saint François et me donne corps et âme à vous Lucifer icy
présent avec tous les biens que je posséderay, excepté la valeur des sacreents pour
le regard de ceux qui les recvront.”(201).
Gaufridy renuncia a algo que ele não pode renunciar pois os bens que ele
abdica são frutos da Providência. E este tópico é central porque reformula o
pecado da renúncia daquilo que, em tese é de Deus. O ato de alienação de si, ou a
alienação de Deus por via da cobrança de juros que é, no mais a cobrança de um
tempo futuro que não pertence ao homem, coincide neste ponto vindo a
constituir uma espécie de nódulo jurídico no qual repousa o problema. O crime
de alienação.
O primeiro desdobramento do caso se dá no isolamento de Madeleine, o
que marca a dimensão do contagio por contingüidade e influência. Seu estatuto
até este ponto é o de vítima, dado que lesionada pela ação maléfica de Gaufridy. É
preciso atentar que, de acordo com o estado de sofrimento de Madeleine, a
remissão ao culto do sabá não está absolutamente descartada, estando na
verdade comprimida ao caso. Afinal, é junto ao sabá que se encontra Gaufridy
como personagem deste processo.
O que faz o exorcismo como procedimento? – “Os exorcismos precedem e então
preparam os procedimentos judiciais que podem, desse então, ser uma formalidade
ordinária ao tempo de colecionar os casos confirmados de exorcismo, de fazer os
feiticeiros e possuídos serem visitados por médicos, e de proceder nos
interrogatórios conduzidos pelos chefes de acusação.”(206). Lido de outra forma,
reúne uma junta de diferentes práticas disciplinares a fim de atestarem com
distanciamento e método o fato ocorrido. Nisto é possível perceber a forma pela
qual um ato jurídico começa a ser preenchido pela sucessão de observações
parciais que compõem um inquérito, propiciando a tomada de decisão a partir da
visão sinótica que o quadro referencial define. A decisão individual com relação
aos rumos do processo é, por fim, decorrente de uma série de mediações que
constitui o processo como tal. O processo é um agenciamento coletivo, um ato de
colagem entre partes discretas que reúnem em seu término a unidade perdida
pela forma do evento sem testemunhas qualificadas. Assim, acaba por ser a
qualificação mediada de uma forma imediata. No caso o papel da avaliação de
médicos e juízes implica em, antes de tudo, atestar que o evento tal como
qualificado pela ordem jurídica, de fato aconteceu. Em seguida, tal como é de se
esperar, o processo resolve em identificar não somente a identidade dos
responsáveis como em qualificar o grau e a natureza da responsabilidade, o que
se torna muito perigoso quando o que se atesta é a influência do demônio.
Loudun1;
O caso de Loudun repete o mesmo drama relativo o caso de Aix. Jeane des
Anges acusa Urbain Grandier, cura de Saint-Pierre-du-Marthe. Este, padre de
renome, bom predicador e confessor e figura conhecida, letrado, sofre a acusação
em 1629. Jeanne des Anges fora prioresa de um convento de Ursulinas – mais
uma vez - , membro da nobreza local e parente do cardeal Richelieu, prima de
Sourdis (arcebispo de Bordeaux). O passo dado em direção a Urbain Grandier,
digo, a acusação, assume ares de movimento conspiratório. Entre os anos de
1629 e 1631, após ser levado ao Parlamento de Paris com a finalidade de se
defender diante da justiça, veio a seguir em confrontos com outra personagem de
nome Mignon. É a própria Jeanne des Anges quem se aproxima da figura de
Madeleine Demandols, aproximação que cria, antes de mais nada uma menção
retrospectiva que indica como o caso deve ser interpretado, apontando para um
caso logo anterior, seu precedente.
Louviers; Madeleine Bavent
Da peculiaridade dos casos do século XVII (até 1640)1 Robert Mandrou faz remissão à forma como o caso de Loudun chama a atenção no século XIX, na forma de uma bibliografia psicológica nascente. Os livros de Gabriel Legué, um deles inclusive prefaciado por Jean-Marie Charcot oferecem o binômio documentação ainda não editada com a avaliação do caso desde um outro ponto de vista que não o da identificação do evento. No final das contas, é uma outra junta de avaliação que avalia a junta anterior. Este tipo de livro que trabalha casos de evidências miraculosas de um outro ponto de vista – que é o oposto do ponto de vista do outro – é define em grande parte o tipo de bibliografia que a pesquisa demanda. Comparar diferentes leituras de Joana D’Arc, por exemplo, é mais do que justificável, lembrando do livro de Leon Dennis, por exemplo.
“Dans le procédures traditionnelles, la sorcière est, par le pacte, sorcière
jurée ; la possédé n’a rien signé, et n’es donc pas complice. Ce dédoublement des
fonctions est important pour les juges et pour les « experts » qui les assistent,
théologiens ou médecins. L’Église revendiquant les simples possédées et livrant à la
justice séculière les seuls sorciers jurés, la distinction ne pose pas de problèmes, en
droit. Même le redoutable Sprenger distinguait à la fin du XVe siècle les possédées
sorcières, plus communes. Mais les choses se compliquent au début du XVIIe siècle
lorsque les possédées dénoncent non pas une intervention diabolique directe, un
Léviathan ou un Asmodée tentateurs, mais un intercesseur qui assume la charge
d’exercer, à la place des démons envoyés par Satan, l’œuvre maléfique. » (235)
(entre as páginas 246 e 261 existe uma listagem e uma breve análise de outros
casos de contágio demoníaco)
Robert Mandrou ressalta algumas peculiaridades importantes para que os
fenômenos de possessão e contagio sejam devidamente avaliadas. Nisso implica
termos em perspectiva o que há de propriamente singular, segundo a
historiografia do mesmo Mandrou, e ao mesmo tempo chamarmos a atenção
para aquilo que Mandrou não chega a considerar com a devida cautela, a saber,
sobre a permanência dos fenômenos de possessão, assim como seu
desdobramento em outras formas de codificação que ocupam o lugar da
demonologia, esta derrubada pela medicina como forma jurisdicionada de
atuação policial. Mas ainda assim, reconstituir ainda que minimamente os passos
que dão forma a um debate público sobre possessão e seus agentes cumpre uma
etapa fundamental dado que, até onde posso compreender, estaríamos a dois
capítulos da emergência do espiritismo – o capítulo seguinte divide um momento
propriamente religioso em que a querela do jansenismo oferece uma
conformação política dos exercícios polêmicos religiosos também presentes na
questão dos escândalos (o padre Tranquille tem papel na questão Aix-Loudun-
Louvier; e também na segunda geração jansenista, exatamente aquela que
culmina nos casos de Saint Médard2), assim como tem um momento
propriamente científico, pautado pela temática da terapêutica secular traçada
pelo advento do mesmerismo e a cura magnética que traça novos problemas a
respeito da agência de forças invisíveis, traduz em novos termos a temática do
animismo como religião natural e instaura dispositivos técnicos de mediação
inéditos à vida moral (sobre isso, vide tanto Robert Darnton quanto Roy Porter).
No caso, a possessão demoníaca deixa de ser fruto de agência direta do
demônio e passa pela mediação de outrem – assim como as mulheres que
figuram nos casos relatados são moças bem nascidas, não pertencendo às classes
populares/servis. Nisso, o assalto satânico aos conventos ursulinos (o caso de
serem devotas de Santa Úrsula também não é examinado pela historiografia por
vezes demasiado abrangente de Mandrou) apresenta algumas personagens e
consequências que apontam para conformações inéditas da relação entre
religião e magistratura. Assim, a emergência da figura do padre-feiticeiro, os
conventos ursulinos livres à intervenção do demônio e a rivalidade entre
clérigos que não somente se entre-acusam como também geram evidências e
conduzem investigações contra inimigos proclamados (caso de Grandier e
Mignon no affaire Ludun) são incorporados como novos eixos problemáticos em
querelas relativas à possessão demoníaca.
Não é por acaso que, ao isolarmos fatore singulares que caracterizam os
processos de exorcismo no XVII, isolamos também outras regularidades
emergentes que acompanham as transformações daquilo que opera como poder,
assim como a situação de novos dispositivos de relação que postos em um
ambiente político diferenciado. Em muitos sentidos, a historiografia que
Mandrou produz fica ao meio do caminho daquela produzida por MacFarlane e
Gauchet, que considero possivelmente duas abordagens metodologicamente
opostas na confecção de uma história política da religião, uma e outra de alto
valor e rendimento para a empresa antropológica. Isto porque Mandrou aponta
para uma alteração na ordem das mentalidades, que não é outra coisa que a
alteração nas operações que condizem ao sentido, da mesma forma que atenta
2 Convém perseguir o padre Tranquille na bibliografia disponível sobre o século XVII-XVIII, especialmente em Catherine Maire, Robert Mandrou e (...).
para complexos de aliança que fazem da acusação demonologicamente
informada a performance de relações de antagonismo e aliança. Se MacFarlane
está exclusivamente preocupado com relações funcionais de parentesco e
afinidade que conduzem a média das acusações de feitiçaria em Essex num
período logo anterior, aplicando à historiografia um enquadramento muito
característico das etnografias do funcionalismo britânico (notadamente, Evans-
Pritchard), Gauchet proporciona considerações relativas à ontologia cristã com
relação ao divórcio entre o mundo e o extra-mundo, extraindo desdobramentos
nada irrelevantes da dicotomia presente na obra de Louis Dumont,
especialmente na fórmula le christianisme est la religion de la sortie de la religion.
Ocorre que a superinflação dos processos que investigam possessões
demoníacas que levam a longos procedimentos de exorcismo (feitos em público,
então) conduz o sistema demonológico para um ponto em que as divergências
confessionais e doutrinais, assim como a tênue linha que discrimina pessoa e
ordem religiosa, divergência e heresia também constituem o cenário em que o
que está em jogo é tanto a existência do demônio – quando o confronto se dá em
ambientes fora da ordem eclesiástica – quanto a veracidade de um fenômeno em
questão em que está presente uma pessoa que conduz o caso; é o que nos leva,
por exemplo, à necessidade de entender a relação entre Grandier e Mignon, tanto
do ponto de vista de uma religião que, por sair do mundo relega a ao mundo a
mera politica (Gauchet) quanto para a compreensão de que se trata de um jogo
de acusações formais cujo plano ritual de uma atividade política se configura.
Mignon não precisa atestar qualquer relação entre Grandier e Lúcifer,
intimamente, ainda que possa recorrer à acusação para desacreditar um padre
que até o episódio de Loudun era de completa lisura.
Parte do problema que evoca uma ordem epistemológica, a mesma ordem
que culmina em alterações importante em disciplinas exotéricas como a
alquimia, é a resolução pública de problemas, o que demanda inclusiva um novo
passo em direção ao vulgo. Não se trata mais, obviamente de decidir querelas
somente diante de um público especializado, mas criar mecanismos de
correspondência que permitam haver um vocabulário comum e um sistema
objetivo o suficiente para que a variedade de pessoas envolvidas possa não
somente acompanhar o debate mas aplicar fórmulas postas em questão. Eis,
segundo Bensaude-Vincent e Stengers, um dos fatores decisivos para a
emergência da química moderna. Não o objeto enquanto matéria, mas um
materialismo racional e comunicável com experimentos reproduzíveis. Esta é,
talvez, a marca de Lavoisier, por exemplo.
De alguma forma, os escândalos de Aix-en-Provene, Loudun e Louviers se
adiantem em um século este passo, submetendo o alvo das perquirições a outras
consequências importantes. Mandrou é taxativo ao informar que uma dos
problemas relativos aos processos de exorcismo, em especial dos três
escândalos, reside no fato de não somente serem públicos mas de se
transformarem em algo como um espetáculo. Coube ao Parlamento de Paris
controlar este tipo de evento, vale dizer. Mas o século em que este tipo de evento
assumiu ares de publicidade permite a criação de uma atmosfera em que cizânias
internas à Igreja Católica e a exposição de indisposições entre protestantes e
católicos sejam debatidos entre as partes, igualmente em público. A indisposição
entre Grandier e Mignon, que traz em seu seio este tipo de carga, ainda envolve
figuras de responsabilidade como seria o próprio cardeal Richelieu que, por fim,
arbitra contra Grandier por ter sido responsabilizado por seu antagonista quanto
à publicação de um panfleto intitulado Cordonnière de Loudun, que atacava a
pessoa do cardeal.
Entenda-se que dos diversos saberes que envolvem a teologia, as
questões relativas à Providência, a Graça e o Mal participam, tal como podemos
entender, da gama entabulada no quadro do mistérios. A resolução de problemas
relativos aos mistérios, e a elaboração de um regime procedimental coletivo que
se comunica em público para fins de averiguação de fenômenos sobrenaturais
abre a guarda para o passo seguinte, a saber, o do abandono do crime de
feitiçaria.
“Les discussions des théologues ne se situent pas sur le plan de la critique
des temoignes et n’envisagent guère les problèmes de procédure: l’emprisionement
de Grandier ches ses ennemis, la présence parmi les exorcistes de clercs poitevins en
procès avec lui pendant les anées précédents, tout cela n’a guère mentionné. Le
problème essential est celui de l’exorcisme, des preuves de la possession. Jusqu’à la
mort de Grandier, les dénnonciations proferées sans cesse pas les nonnes ont géné
ces hommes d’Église qui n’ignorent pas les décisions recentes de la Faculté de
théologie de Paris condamnant en 1625, 1620 et 1625 la pratique des exorcismes
dénonciateurs: “On ne doit jamais admettre les démons à accuser autrui, moins
encore employer les exorcismes pour connaître les fautes de quelq’un et pour savoir
s’il est magicien”, dissent les théologiens le 16 février 1620.”(269)
(semiótica demonológica: páginas 270-277)
De uma forma geral, o espetáculo do exorcismo participa, com é possível
perceber, de um jogo muito delicado e que contorna algumas das formas da
Reforma e da Contra-Reforma – e, para utilizar o jargão de Catherine Maire, da
Reforma na Contra-Reforma. O jogo de provas e contraprovas que contaminam
as querelas religiosas – e aqui o caso é geral; a querela do jansenismo, por
exemplo, não é outra coisa senão a relação entre jansenismo, jesuítas,
convulcionários, céticos e os poderes ao redor determinando os riscos e a
veracidade dos eventos ao redor de De Paris e Saint-Médard.
(O terceiro incluído: os dois campos da medicina (277-284))
Arbitrar: a intervenção do Parlamento de Paris
Por qual razão seria necessário uma arbitragem a mais nos casos escandalosos
de possessão? Como é possível imaginar, e mesmo no que diz respeito ao caso
jansenista, é porque trata-se de uma querela potencialmente infinita. Não é que
ela não tenha fim, que seja inesgotável ou um problema insolúvel. Mas é que, de
acordo com os termos que ela mesmo promove, ela não tem a necessidade de
atingir um fim dado que é a cizânia que ela mesmo promove corresponde às
finalidades mais bem acabadas dos envolvidos. O que o estado absoluto faz, no
final das contas, é interromper esta relação de conflito caracteristicamente ritual
com a finalidade de impor uma estância média de conciliação forçada – na
configuração da intolerância do soberano definida por Koselleck. O Estado
Absolutista é, no limite, um médium com propriedades muito características.
Estas propriedades não impedem, contudo, que o Estado moderno não possa
participar com algum protagonismo da história das religiões de possessão que
articulam, não sem profundas diferenças, outras sortes de mediação que
comparativamente vieram a ser reconhecidas como mediunidade,
O último passo de Mandrou para finalmente dissertar sobre a extinção do crime
de feitiçaria está na decisão tomada pelo Parlamento de Paris em intervir na
questão dos escândalos, entendendo aqui a intervenção dos escândalos em geral.
Vale notar que não é a questão da feitiçaria somente que movimenta as peças ao
redor do caso, mas todo um movimento concêntrico à constituição de um Estado
que arbitre todas as relações públicas. Como podemos notar, a tríade formada
pelos casos de Aix-Loudun-Louviers carrega a chaga inadmissível do conflito
religioso em público, redesenhando aquilo que transtornara a vida europeia nos
últimos séculos, a saber, o conflito religioso. O movimento mais evidente, como
bem ressalta Koselleck está na elaboração de mecanismos de interrupção da
ordem religiosa para fins de constituição de uma nova ordem civil, e
propriamente civil. Nisso, Paris estava já envolta com uma série de discussões,
dentre elas as que configuram a demonologia como solução ou, alternativamente,
como criação de um novo problema.
Os exorcistas das diversas denominações e ordens acabam criando um
empecilho grave para a percepção das atividades diabólicas, assim como para o
julgamento dos casos de feitiçaria. Desde o momento em que Madeleine
Demadols acusa Gaufridy, e a mesma história se repete com Jeanne des Anges e
Urbaine Grandier, o que vemos é um sistema acusatório que em muito excede a
diferença de denominações, vindo a ser produzido em uma rede mais fina e sutil,
interna à própria Igreja Católica, produzindo comunhão de esforços muito
particulares, muito semelhantes às alianças políticas regionais em partidos
políticos brasileiros nos quais há contradições entre escalas de relação;
diretórios nacionais produzem alianças impossíveis em nível regional e vice-
versa. Nisso, um protestante pode estar mais perto de um católico específico da
mesma forma que a Igreja Católica não pode estar em acordo com a Luterana,
por exemplo.
Entendendo que a querela religiosa mobiliza todo este tipo de expediente,
cabe entender que o século XVII é também o século em que o argumento
iluminista penetra nas políticas de Estado, vindo a constituir um embaraço a
mais, tanto para a hierarquia do poder eclesiástico, quanto para novas ações
oriundas de denominações protestantes. Isso porque, e já é possível abstrair este
movimento com mais segurança, parece ser impossível entrar em acordo de um
ponto de vista religioso exatamente porque, de um ponto de vista que segue
algumas das linhas principais do Iluminismo, o religioso não parece ser pródigo
na arte da comunicação. Ora fala coisas de mais com poucas palavras, ora não
parece dizer coisa alguma. É muito complexo, muito simplório. Nunca adequado
a uma comunicação que situe os interlocutores no plano de um entendimento
racional e mutualmente consentido. Não é difícil perceber que este modo
comunicativo é decisivo tanto para as novas formas da atividade científica
quanto para as novas práticas econômico-financeiras. E então descobrimos
porque Lavoisier serve de nexo para toda esta história.
O caso é que o domínio público sobre temas os mais diversos incluem a
percepção mais bem acabada dos casos de possessão demoníaca e demonologia
em geral. Cabe perguntar até que ponto os magistrados e o círculo de relações
das quais participavam estavam de fato informados a respeito do tema. Isso
aponta para o problema dos jogos de comunicação que lança bases sobre as
quais decisões são tomadas publicamente, definindo inclusive o que faz um réu,
ou um caso diante o pecúlio público.
“Le monde parlamentaire parisien de l’époque, conseillers, présidents, avocats, est
intimement mêlé à l avie “académique”: il n’y a pas de salon scientifique parisien
dans lequel les magistrats n’aient leurs entrées, ne participent à ces réunions,
hebdomadaires le plus solventes, quotidiennes pour quelques-uns, comme les
Dupuy, où se discutent tous les sujets de l’actualité, littérraire, scientifique, vois
politique.”(p.316)
sobre médicos e parlamentares; sobre teólogos e parlamentares; Ancien Régime
francês:
É mais ou menos óbvio que estudantes de teologia na Sorbonne tenham criado
interesse em casos como o de Loudun dado a durabilidade do processo do qual,
inclusive alguns participaram (como André du Val) . Assim, não há muito o que
anotar no que diz respeito ao que produziram como novidade. Estes mesmos
teólogos que circulavam nos mesmos círculos que parlamentares – que
cumpriam a função judiciária, vale notar – fizeram somente estudar e buscar
sinais da atividade demoníaca nos casos em questão. Como é reconhecido pela
bibliografai a respeito, ressaltaram exatamente a forte impressão e a veracidade
inquestionável do caso de Loudun, justamente o caso com implicações políticas
regionais mais delicadas. Ainda assim, a forma pela qual estes estudiosos se
portaram acrescentaram uma postura nova aos hábitos do julgamento de casos
relativos à feitiçaria: a cautela. Isso porque a novidade dos três escândalos do
século XVII implica na transformação do sistema de possessão, alternando a
relação diabólica direta para com o feiticeiro ou feiticeira, para uma relação
mediada em que pesasse a acusação promovida por uma vítima da sedução do
feiticeiro. O fato de haver um elemento a mais de acusação, de uma vítima
possuída cuja possessão é intermediada por alguém também possuído atuando
por contágio evidencia a delicadeza do processo que tem, por fim, uma
sintomatologia delicada, segundo vemos na síntese da medicina libertina da
época:
“Au total, sur les dix indices choisis pas le clerc nîmois, aucun n’est donné par le
médecins comme “marque infaillible” et valable: les deux seuls pour lesquels ils
admettraient une intervention diabolique sont les don des langues et le rejet de
produits avalés, dans certaines conditions bien définies. Tout le reste se réduit à un
“effet naturel”, ou bien une définition de tempérament; rien qui vaille comme
preuve de la présence diabolique. Donc tout l’opposé de ce qu’affirment à la même
époque les médecins “possessionistes” multipliant les “preuves” du caractère
surnaturel présenté par ces phénomènes.”(pg. 329)
Interessante ver que o único sintoma levado a sério é o mesmo que constitui o
ato pentecostal por excelência. A ênfase no universo da comunicação oral como
definidor da vida da religião da era moderna não parece ser, por fim, um engodo.
Ao menos não se levarmos em conta esta “ante-sala” da modernidade que é o
absolutismo. Ao mesmo tempo a contraposição entre possessionistas e libertinos
evoca a necessidade de contrabalancear o jogo entre os fenômenos naturais e os
sobrenaturais – sendo notoriamente sobrenatural falar uma língua que é
impossível ter aprendido. Uma vez que esteja posto à mesa a qualificação do
evento segundo sua natureza ou sobrenatureza, entra em cena a série de
problemas relativos à qualificação da observação dos fenômenos de possessão, o
que cria um outro tipo de problema. Nisso, a regularidade de elementos
contraposto à raridade do evento demoníaco, assim como a busca de constantes
que transponham o evento da possessão permite que o mesmo seja comparado
com outra sorte de sofrimentos, como a melancolia e, posteriormente, a histeria.
A escala da comparação, uma vez alterada, parece reforçar não somente a
raridade dos fenômenos que de fato demandam exorcismo como diminuem
fortemente o repertório reconhecido como diabólico. De uma forma ou de outra,
trata-se de uma vitória do Iluminismo sobre a ordem eclesiástica, o que em nada
nos diz se esta é uma vitória ou uma derrota do diabo...
(VIDE HUME SOBRE OS MILAGRES)
lista de libertinos interessantes:
Cyrano de Bergerac
Guy Patin
SOBRE A NOVA JURISPRUDÊNCIA FRANCESA – 1640 em diante; o Parlamento
de Paris e a constituição de uma nova ordem jurídica.
Marcas substantivas, ainda em 1624: apelo automático em julgamentos de
feitiçaria e proibição de ordálios de quaisquer formas; atenuação das penas;
sanção contra juízes subalternos que viessem a violar a posição assumida pelo
Parlamento de Paris; cada uma dessas posturas que são traduzidas como forma
jurídica – vale o esforço de definir o que viria a ser uma forma jurídica e, quando
ela passa de éditos para o sistema de código pleno, pois são duas formas
diferentes – daquilo que virá a ser o modo de centralização da administração, ou
então o que pode ser compreendido como governo.
Mas o que é mais importante, e é a razão de ser destas notas, é a reedição de um
velho problema, a saber, o que fazer com a feitiçaria que para além da questão
demoníaca, traz consigo outra carga trazida à tona pela historiografia de Carlo
Ginzburg: as práticas de possessão que ele mesmo chama de xamanismo
euroasiático que, ao menos desde a alta idade média opera como uma questão
que transita para além da questão do diabo; ou a o diabo como questão é
também outra coisa.
Mas no que diz respeito às formas jurídicas, cabe lembrar que não operam como
mera fala, como simbolismo, ou mesmo no plano das idéias – coisa que, custo
acreditar que tenha de fato merecido atenção para além da má vulgarização do
platonismo. No caso, a discussão acerca dos conceitos transita em grande parte
na criação de sentido, polemização e em grande medida, orientação. Conceitos
que ordenam a forma pública da esfera pública, assim como comunica suas
decisões podem sofrer desdobramentos outros, como se dá no vínculo entre
direito criminal e atividade científica moderna na produção de um código
específico de um sistema evidenciário. E é este movimento que conecta, de forma
indissociável, quero crer, os movimentos iniciados no seio do absolutismo e algo
que veio ser de alguma forma banal, ou de menor repercussão: o procès des
spirites.
“La délimitation exacte qui disqualifie le crime et le réduit peu à peu au simple délit
commis par les escrocs, charlatans ou diseurs de bonne aventure, s’est faite
lentement, pêniblement même: dans la première moitié du XVIIIe siècle, bien des
polygraphes savants discutent encore de toutes ces questions, pillant Lancre,
Boguet et Bodin, pour démontrer l’erreur des magistrats; pourtant faux sorciers,
charlatans et empoisonneurs, derniers héritiers des suppôts de Satan, ne
répresentent plus que les traces effacées d’une ancienne tradition définitiveemnte
reniée par la magistrature. “(368)
A marca dos surtos do segundo cinquênio do século XVII, contudo, não diz
respeito tanto às possessões em massa quanto diz respeito a um processo
acusatório que reproduz a novidade dos processos de Aix-Loudun-Louviers: a
intermediação possessora, isto é, de que o médium do diabo opera em seu ugar,
sendo ele um feiticeiro, um participante de algum culto do sabá.
SURTO DE 1655-1660 traz consigo um outro problema que diz respeito à
ordem jurisdicional das províncias. Ainda que estivessem de alguma forma
cientes das decisões e dos mandatos emitidos pelo Parlamento de Paris,
especialmente no que dizia respeito à lenta abolição do acolhimento do crime de
feitiçaria aliada aos casos de possessão, a relação entre parlamentos merece
atenção exatamente porque é a autonomia da decisão concernente à existência e
modalidade de malefícios que a constitui. Assim, é entre a aceitação e a
resistência ao que veio a ser decidido em Paris que o jogo se dá, ao mesmo tempo
em que a Coroa começa a se mover para desenhar o ato centralista definitivo
com relação ao que virá a ser o poder judiciário: a elaboração de um código que
presida todas as tomadas de decisão, todos os julgamentos feitos em solo francês,
violando de vez a forte diferenciação da dinâmica da vida nas províncias. Vale
lembrar o quanto a Revolução Francesa ampliará o modelo jurídico, atingindo
também a linguagem, a política e a economia.
Estatística aproximada dos casos em que houve absolvição em maior número
que de condenações: Pg. 296-397