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GeoTextos, vol. 11, n. 1, julho 2015. G. Rodrigues. 241-268 .241
Glauco Bruce RodriguesProfessor Adjunto do Departamento de Geografia e do Programa de Ps-Graduao em Geografia da Universidade Federal Fluminense - Campos dos [email protected]
Geografia histrica e ativismos sociais1
Resumo
O artigo prope a articulao de dois campos de pesquisa relativamente negligen-ciados no Brasil, que so a Geografia dos Ativismos Sociais e a Geografia Histrica. Nessa perspectiva, propomos a constituio de uma Geografia Histrica dos Ativismos Sociais. Tal campo pode ser caracterizado pela centralidade da anlise da espacialidade de ativismos sociais a partir de um olhar que incorpora de forma profunda e consistente a historicidade e a temporalidade. Dessa forma, buscamos incorporar o referencial terico e metodolgico da Geografia Histrica, ao mesmo tempo em que se preservam as contribuies e formulaes tericas prprias das pesquisas relativas aos ativismos sociais.
Palavras-chave: Geografia Histrica, Ativismos Sociais, Territrio, Espao.
Abstract
HISTORICAL GEOGRAPHY AND SOCIAL ACTIVISM
The following article proposes the articulation of two often neglected research fields in Brazil, which are Geography of Social Activism and Historical Geography. Through this perspective, it is suggested the conception of a Historical Geography of Social Activism. Such field can be characterized by having the analysis of the spatiality of social activism at its core by means of the incorporation of historicism and temporality in a thorough and consistent inquiry. Therefore, it is intended to incorporate the theoretical and methodological framework of the Historical Geography while fully preserving the contributions and theoretical formulations of researches constituent of social activisms.
Key-words: Historical Geography, Social Activism, Territory, Space.
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1. Colocando a questo
O objetivo deste breve artigo colaborar para a articulao de dois
campos de pesquisa e ao poltica: a Geografia Histrica e os ativismos
sociais. Tais campos, em si, apresentam amplas possibilidades de produo
de conhecimento crtico, assim como de insero poltica do gegrafo na
dinmica das lutas sociais.
Trata-se de um texto que possui um carter introdutrio e geral,
que busca apresentar, de forma breve e sinttica, os elementos tericos e
metodolgicos que julgamos mais pertinentes a cada campo especfico.
A partir desta panormica, sugerimos a possibilidade de articulao de tais
campos como uma forma singular de compreender o processo de produo
e organizao do espao.
A Geografia Histrica um campo que nos permite uma densa
articulao entre tempo e espao na anlise da espacialidade social. Tal
articulao deixa explcita a constituio daquilo que podemos chamar de
complexos espaos-temporais, nos quais a espacialidade e a temporalidade
so elementos indissociveis e no hierarquizados. Essa perspectiva nos
permite superar, ou, ao menos, amenizar de forma significativa, a dico-
tomia entre tempo e espao, quando tais dimenses so pensadas de forma
autnoma, hierrquica ou com uma frouxa relao, fazendo com que se
reproduzam anlises nas quais uma ou outra no passe de uma referncia
distante ou burocrtica, o que nos leva aos famosos quadros geogrficos
e contextos histricos, onde tempo e espao so molduras ou palcos, que
pouco ou nada acrescentam anlise de determinada questo.
A Geografia Histrica, nessa perspectiva, um campo de pesquisa
caracterizado, fundamentalmente, no pelo estudo do passado, mas sim
pela clara e explcita articulao espao-tempo na anlise dos processos
sociais, nas quais as espacialidades de perodos histricos pretritos so
privilegiadas pelas pesquisas. Tal articulao se d pela incorporao do
que podemos chamar de elementos histricos anlise: as diferentes
temporalidades que caracterizam uma historicidade (os eventos, as conjun-
turas e a longa durao) e as periodizaes. Em outras palavras, o gegrafo
deve incorporar as lies do historiador Marc Bloch, que define a Histria
como a disciplina que estuda o homem no tempo, o que implica identificar
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e analisar as duraes e permanncias, as estruturas e conjunturas, os
movimentos, as diferentes temporalidades da dinmica social.
O campo de pesquisa e insero poltica efetiva dos ativismos sociais
nos permite superar aquilo que Souza (2012, p. 21) chamou de olhar de
sobrevoo, adaptando a expresso pensamento de sobrevoo, cunhada por
Merleau-Ponty. Tal expresso refere-se ao predomnio da anlise centrada
nas grandes estruturas socioeconmicas e polticas apropriadas de forma
hegemnica pelas classes dominantes, negligenciando a capacidade de
ao dos demais protagonistas sociais.
Atribuir o carter de protagonista aos ativismos sociais nos coloca
a pos sibilidade de outra perspectiva de produo do conhecimento. Quando
consideramos os ativismos sociais como princpio da ao, estamos nos
descolando do olhar de sobrevoo e partindo diretamente das formas con-
cretas atravs das quais homens e mulheres vivenciam e experimentam
as contradies e os conflitos.
Essa experincia concreta nos remete s formas pelas quais homens
e mulheres atribuem sentido e significado a suas vidas, produzem e ins-
tituem valores que julgam justificar e legitimar suas identidades e modos
de existncia. da experimentao concreta das condies objetivas e
subjetivas de existncia que homens e mulheres formulam ideias e noes
de direitos que acreditam ser legtimas de serem institudas e conquistadas.
Dessa experincia concreta e cotidiana so construdos projetos polticos
e identidades que dinamizam a ao social e impulsionam esses protago-
nistas para o campo dos conflitos e lutas sociais, constituindo os ativismos
sociais. desse processo crtico e conflituoso que surge a possibilidade
do surgimento do novo, da realizao de transformaes conjunturais e
estruturais nas relaes de poder e na organizao scio-espacial. Tais
formulaes no so novas, j foram explicitadas por diversos autores,
dentre os quais destacamos Ribeiro (1980, 1990, 1991), Thompson (1981,
1998), Castoriadis (1982, 1983, 1985, 1992, 2002, 2004), Gonalves (1984,
1999, 2001, 2003), Ribeiro e Machado da Silva (1985), Sader (1988), Zibechi
(1999, 2003), Souza (1988, 2000, 2006, 2008, 2012) e Bernardo (2009).
Quais seriam, concretamente, as vantagens e os avanos, ainda que
modestos, para a Geografia, ao se articular esses dois campos de pesquisa?
A articulao entre a Geografia Histrica e os ativismos sociais nos coloca
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a possibilidade de outra forma de se compreender o processo de formao
do territrio e da produo social do espao. disso que se trata. Outro
olhar, outra forma de se produzir conhecimento crtico que parte da ao
dos ativismos e de suas territorialidades. Nessa perspectiva, partimos da
ao concreta de homens e mulheres para compreender a produo do
espao-tempo social a partir de um recorte especfico, que so os ativismos
sociais, o que significa dizer que a centralidade da anlise est na dinmica
dos conflitos e lutas que constituem a dinmica da sociedade, portanto, do
prprio processo de formao territorial.
fundamental ressaltar que tal centralidade da ao no significa
negligenciar ou marginalizar outros sujeitos e agentes sociais, como o
Estado e as classes dominantes; significa colocar como princpio de anlise
os conflitos e as contradies sociais em estado vivo, latente. Trata-se,
portanto, de atribuir aos ativismos um protagonismo que nem sempre
foi devidamente valorizado e incorporado Geografia, mesmo aquela de
carter crtico, principalmente marxista. Quando atribumos aos ativismos
a centralidade do protagonismo, no podemos nos esquecer que no existe
protagonista sem antagonista, logo, o conflito, as lutas e as contradies
so os elementos centrais da anlise geogrfica, levando em considerao
o movimento amplo e total da sociedade, explicitando as relaes de poder
e a luta de classes. Nesse sentido, a articulao desses dois campos nos
permite colocar em relevo a espacialidade dos conflitos sociais e a ao
dos ativismos como chave conceitual central para a anlise do processo de
formao do territrio, em uma perspectiva histrica. Assim, esperamos
poder contribuir com uma forma de compreender a sociedade brasileira e
seu processo de formao territorial a partir das lutas, dos conflitos e dos
ativismos, retirando do Estado e das classes dominantes o monoplio da
ao e, dessa forma, superando o olhar de sobrevoo.
Passamos agora para a panormica relativa aos dois campos.
Esperamos que o leitor possa visualizar as articulaes que propomos
a partir dos apontamentos acima. No final do texto, apresentaremos um
brevssimo exemplo de como viabilizar empiricamente uma pesquisa nesse
recorte temtico.
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2. Ativismos Sociais e Geografia
As dcadas de 1960 e 1970 foram caracterizadas pela emergncia dos
chamados novos movimentos sociais. Nesse perodo histrico, surgiram
diversas formas de ao coletiva, em diferentes pases, que colocavam em
questo as bases societrias e civilizatrias do capitalismo e do socialismo
real, alm de explicitar diversas formas de opresso. O surgimento de novos
protagonistas, engajados em diversos tipos de lutas, suscitou a constituio
de novas formas de organizao, questes e conflitos. Esse o contexto da
emergncia contempornea dos movimentos ambientalista, feminista, da
juventude, pacifista, indgena, negro, anti-homofbico, pela descolonizao
da frica e da sia e contra as ditaduras na Amrica Latina.
A temtica dos ativismos sociais se constituiu como um campo de
pesquisa particular nas Cincias Sociais, exatamente nesse contexto,
quando diversos intelectuais e pesquisadores incorporam a suas formula-
es questes levantadas por novas formas de ao social que, at ento,
eram significativamente marginalizadas e tinham pouca ou nenhuma
visibilidade poltica no espao pblico.
Inmeros intelectuais no restringiram sua ao ao plano acadmico,
circunscrevendo suas atividades pesquisa. Diversos deles passaram a
colaborar e, muitos, a militar diretamente junto aos ativismos, caracteri-
zando uma insero de parte da intelectualidade na dinmica das lutas e
dos conflitos sociais.
A Geografia, por sua vez, no incorporou de forma significativa a
temtica dos ativismos sociais. Balanos e anlises tm sublinhado um
duplo aspecto: por um lado, sua dimenso espacial tem sido largamente
negligenciada pelas Cincias Sociais em geral e, por outro, temos a reduzida
ateno dada pela disciplina ao tema, assim como lacunas tericas e meto-
dolgicas (NICHOLLS, 2007; SOUZA, 2008; PEDN, 2009 e SANTOS, 2011)2.
O ponto de partida para a anlise da espacialidade dos ativismos
sociais estabelecer a distino conceitual entre ativismos e movimentos,
conforme proposto por Souza (1988, 2000 e 2006). Nesse sentido, vamos
recuperar a formulao do autor, na qual prope uma diferena entre as
diversas formas de organizao e mobilizao social, com o objetivo de
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analisar criticamente o potencial transformador, os limites e as insuficin-
cias dos ativismos:
proponho, assim, designarmos como movimentos, muito amplamente, os ativismos que, pela natureza das suas reivindicaes, e das experincias e dos sofrimentos de seus protagonistas, encarnam, a despeito da no-explicitao em programas e mesmo das contradies poltico-ideolgicas conjunturais, uma afronta ao status quo (SOUZA, 1988, p. 114).
os ativismos sociais (ou ativismos, simplesmente, para evitar uma redundncia) so um conjunto mais amplo de aes pblicas organizadas, do qual os movimentos sociais seriam um subconjunto. Os ativismos sociais, como aes pblicas orga-nizadas e relativamente duradouras, diferenciam-se de aes coletivas efmeras e pouco organizadas ou desorganizadas, como quebra-quebras (vandalismo de protesto), saques e outras; e, como aes pblicas, em sentido forte, diferenciam-se tanto da criminalidade ordinria (mesmo organizada) e de organizaes terroristas, quanto de grupos de presso e lobbies, em sentido restrito, que tendem a atuar nos corredores do poder estatal, pressionando parlamentares ou administradores pblicos e articulando trfico de influncia, entre outras atividades que no pro-priamente pblicas. Os movimentos sociais, de sua parte, seriam uma modalidade especialmente crtica e ambiciosa de ativismo social, distinta de ativismos paroquiais. Estes encaminham reivindicaes pontuais, sem articul-las com questionamentos mais profundos, relativos a problemas nacionais e internacionais, e sem construir pontes entre a conjuntura, cujo domnio no ultrapassam, e as estruturas, que no chegam a tematizar. So, no raro, prisioneiros do ou contaminados pelo clientelismo (SOUZA, 2006, p. 278. Grifos no original).
A constituio de um movimento social o resultado de um processo
de construo coletiva de uma identidade, um discurso, estratgias e tticas
de ao visando a determinados objetivos. Assim, um movimento social
se constitui na experincia concreta das condies objetivas e subjetivas
de existncia, na relao entre estrutura e conjuntura:
Os homens e mulheres retornam como sujeitos, dentro deste termo [a experincia] no como sujeitos autnomos, indivduos livres, mas como pessoas que expe-rimentam suas situaes e relaes produtivas determinadas como necessidades e interesses e como antagonismos, e em seguida tratam essa experincia com sua conscincia e sua cultura (as duas outras expresses excludas pela prtica terica [de Althusser]) das mais complexas maneiras (sim, relativamente autnomas) e em seguida (muitas vezes, mas nem sempre, atravs de estruturas de classes resultantes) agem, por sua vez, sobre sua situao determinada (THOMPSON, 1981, p. 183. Grifos no original).
Ponto fundamental para uma anlise geogrfica dos ativismos sociais
a espacialidade da ao social. Em outras palavras, a preocupao com
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a anlise explcita da espacialidade dos ativismos sociais, enfim, da relao
entre ao social e espao. Esta perspectiva, contraditoriamente, no
devidamente valorizada ou apresentada de forma consistente, fazendo
com que grande parte da produo geogrfica assuma um carter mais
sociolgico ou econmico, do que propriamente geogrfico. Gonalves
(1999) busca estabelecer uma relao entre o conceito de movimentos
sociais e a espacialidade quando afirma que
a expresso movimento social ganha, assim, para nossa compreenso das identi-dades coletivas um sentido geogrfico muito preciso: que o vemos como aquele processo atravs do qual um determinado segmento social recusa o lugar que, numa determinada circunstncia espao-temporal, outros segmentos sociais melhor situados no espao social pelos capitais (Bourdieu) que j dispem tentam lhe impor e, rompendo a inrcia relativa em que se encontravam, se mobilizam movimen-tando-se em busca da afirmao das qualidades que acreditam justificarem sua existncia (GONALVES, 1999, p. 69).
A primeira questo que se coloca : o que, efetivamente, deve-se
entender por espacialidade dos ativismos sociais? Na tentativa de preen-
cher tal lacuna e contribuir para o debate, Souza (2008, p. 368-369), prope
cinco pontos que as reflexes e as pesquisas empricas deveriam ser
capazes de revelar:
1. O espao de referncia identitria, ou seja, a identidade e a subje-
tividade coletiva produzida com uma referncia explicitamente espacial
que funda e constitui o prprio ativismo;
2. O espao enquanto lugar, ou seja, os espaos vividos e percebidos,
apropriados simblica e afetivamente;
3. As estratgias espaciais, ou seja, as formas como o espao utilizado
ttica e estrategicamente pelos ativismos durante suas lutas;
4. A forma como o substrato espacial (a materialidade) influencia,
condiciona ou determina as demandas ou questes que so a razo de
existncia do ativismo (concentrao fundiria, carncia e deficincia dos
bens de consumo coletivo, poluio, desmatamento, segregao scio-es-
pacial etc.);
5. As transformaes espaciais realizadas pelos ativismos a partir das
relaes sociais e de poder produzidas de forma imanente. Novas relaes
sociais e de poder engendram novas espacialidades. Em outras palavras:
que nova organizao scio-espacial instituda pelo ativismo em questo.
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Os cinco pontos propostos por Souza nos permitem pensar, de forma
explcita e efetiva, a espacialidade dos ativismos sociais, uma vez que
ressaltam seus atributos fundamentais. Alm disso, nos oferecem diretrizes
e balizamentos metodolgicos para organizar e orientar as pesquisas.
Outra questo importante acerca da espacialidade dos ativismos a
distino, proposta por Souza (2006), entre ativismos urbanos lato sensu e
ativismos urbanos stricto sensu. Os primeiros dizem respeito aos ativismos
que, apesar de possurem uma determinada espacialidade e utilizarem o
espao urbano para suas manifestaes e reivindicaes (afinal, a cidade
o locus do poder e da poltica), so animados por questes que no colocam
a dinmica do espao urbano em questo ou que se referenciam apenas
indiretamente espacialidade e remetem a questes como a luta contra o
racismo, a homofobia, o machismo, por melhores condies de trabalho,
pela melhoria de servios como a educao e a sade, por exemplo. Assim,
ainda que tais ativismos utilizem de forma estratgica o espao urbano e
estabeleam vnculos entre suas questes fundamentais com a espaciali-
dade (racismo e segregao scio-espacial, distribuio espacial dos equi-
pamentos de sade e educao, por exemplo), a questo da dinmica do
espao urbano no funda ou constitui o cerne dos ativismos. Os ativismos
urbanos stricto sensu so aqueles que colocam de forma direta e explcita a
dinmica do espao urbano em questo, ou seja, so aqueles onde o espao
assume uma centralidade, que funciona como o elemento catalisador
da ao social, referncia para as identidades e vnculos, condiciona as
estratgias e os objetivos da coletividade, afinal, a transformao de sua
dinmica, ou, pelo menos, de parte dela, o objetivo final da mobilizao.
So exemplos desse tipo de ativismo as lutas por moradia, melhorias
nos bens de consumo coletivos, regularizao fundiria, meio ambiente
urbano, contra a especulao imobiliria e a segregao scio-espacial etc.
Ativismos urbanos em sentido estrito e forte giram muito ntida e explicitamente em torno de problemas diretamente vinculados ao espao social. A questo do acesso a equipamentos de consumo coletivo e, mais abrangentemente, as condies de reproduo da fora de trabalho assumem, aqui, importncia central. Trata-se de um tipo de ativismo que tem origem em um clamor pelo direito cidade: luta por moradia e por infraestrutura tcnica e social, luta por regularizao fundiria e desestigmatizao de espaos segregados, luta por maior acesso a equipamentos de consumo coletivo (...). Ativismos urbanos em sentido amplo e fraco, de sua parte, so aqueles que, embora tenham as cidades como seu palco preferencial (e,
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s vezes, quase exclusivo), se referenciam apenas indiretamente pela espacialidade urbana. Sua existncia gravita em torno de questes setoriais (melhores condies de trabalho e resistncia contra a explorao e a opresso na esfera da produo, luta contra desigualdades e injustias de gnero, etc.) (...) (p. 280-281).
Apesar do autor centrar sua anlise na dinmica dos ativismos
urbanos, podemos estender o raciocnio para outras formas de luta social
que tenham no espao um carter central, como elemento que catalisa
a ao (a luta pela terra, por exemplo) ou como um elemento ttico e
estratgico fundamental para o desenvolvimento das lutas (o que nos
remete ao uso poltico do espao e s estratgias de ao dos ativismos,
como ocupaes, passeatas, bloqueios etc.).
Apreender a espacialidade dos ativismos sociais implica realizar a
anlise dos atributos que os constituem. A literatura acerca dos ativismos
destaca uma grande diversidade de atributos que os constituem e que
devem ser identificados e analisados (RIBEIRO, 1980 e 1991; GOHN, 1997;
GONALVES, 1999, 2001 e 2003; CASTELLS, 2000[1972]). A partir dessas
formulaes, destacamos os seguintes atributos:
1. Os protagonistas - Quem so aqueles que esto se colocando em
movimento? O que pensam sobre si e sobre o mundo em que vivem? Quais
so as identidades produzidas (culturais, tnicas, polticas, espaciais etc.),
qual a sua base social, sua formao enquanto classe?
2. Os motivos e objetivos - Remetem s causas pelas quais as pessoas
esto se mobilizando, seus objetivos e interesses. O que coloca as pessoas
em movimento? Quais so as condies objetivas e subjetivas que mobi-
lizam uma determinada coletividade? Quais so seus objetivos e projetos?
3. As formas de organizao - Como determinado ativismo se organiza,
como ele se estrutura para alcanar seus objetivos.
4. Os tipos de manifestaes e estratgias de ao - So as prticas,
aes e estratgias desenvolvidas pelos ativismos para alcanar seus obje-
tivos. Quais so as estratgias espaciais utilizadas pelos protagonistas?
5. As escalas - Possuem um duplo aspecto, de extenso, quando
informa sobre a rea de abrangncia e/ou ao de um ativismo, e de
qualidade, que se refere capacidade de articulao poltica e econmica
e seu horizonte de luta poltica.
A anlise de tais atributos, luz dos balizamentos propostos por
Souza (2008), nos permite produzir uma matriz metodolgica cujo objetivo
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central apreender a anlise da espacialidade da ao social de forma
indissocivel de sua historicidade. Da a importncia da Geografia Histrica
em nos fornecer elementos slidos e substanciais na anlise das tempora-
lidades deste tipo de ao social.
3. Geografia Histrica: tentativa de definio e legitimao do campo de pesquisa
Durante o III Encontro Nacional de Histria do Pensamento
Geogrfico e I Encontro Nacional de Geografia Histrica, realizado na
Universidade Federal do Rio de Janeiro, em novembro de 2012, o pro-
fessor Pedro Vasconcelos apresentou um trabalho sobre a constituio da
Geografia Histrica como um campo de pesquisa especfico. Partindo de
um abrangente levantamento bibliogrfico, o autor coloca como ponto
de partida de sua reflexo a prpria definio do que seria a Geografia
Histrica. Em outros termos, coloca a questo do recorte temtico que
confere singularidade, coerncia e consistncia a esse campo de pesquisa.
O autor chama ateno para a diversidade de definies e perspectivas
encontradas ao longo do tempo, quando a Geografia Histrica foi definida,
por exemplo, como a descrio de uma rea no passado (HETTNER,
1898 apud VASCONCELOS, 2012, p. 1), o estudo geogrfico de qualquer
perodo do passado (MITCHELL, 1954 apud VASCONCELOS, 2012, p.
1), o estudo das mudanas geogrficas atravs do tempo (DARBY, 1954
apud VASCONCELOS, 2012, p. 1), os estudos das geografias do passado
(BUTLIN, 1993 apud VASCONCELOS, 2012, p. 1), toda a geografia conju-
gada a toda histria, nas preocupaes e os mtodos mais variados dessas
disciplinas (PITTE, 2005 apud VASCONCELOS, 2012, p. 1) e, finalmente,
como o estudo geogrfico do passado, destacando (que) o interesse prin-
cipal com as mudanas geogrficas atravs do tempo (BAKER, 2003
apud VASCONCELOS, 2012, p. 2).
O que nos interessa mais diretamente no a diversidade de propostas
e perspectivas em si, mas os elementos em comum que existem e nos per-
mitem identificar a singularidade (ou no) de um campo de pesquisa geo-
grfico. Existe esse elemento em comum? A princpio, diramos que sim,
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ele existe de fato, no entanto, a forma como ele foi apropriado, analisado ou
incorporado que apresenta diferenas, da a importncia de se sublinhar
a diversidade. Que elemento esse? a articulao entre historicidade e
espacialidade, ou, como coloca Cortez (1991, p. 12), a Geografia Histrica
podra definir en primera aproximacin como a percepcin temporal de
los problemas espaciales3. No entanto, o que podemos observar que tal
articulao no possui a mesma consistncia ou densidade em todas as
propostas ou perspectivas, principalmente se levarmos em considerao
o atual estado da Geografia Histrica brasileira.
O primeiro ponto a ser discutido remete densidade da articulao
espao-tempo que orienta a perspectiva terica e metodolgica da pes-
quisa. Para usar uma expresso cara ao professor Milton Santos, o campo da
Geografia Histrica deve ser capaz de trabalhar com a relao indissocivel
entre tempo e espao, temporalidade e espacialidade; neste campo, a
Histria, o Tempo e a Temporalidade no so meramente instrumentos
auxiliares que permitem uma vaga contextualizao ou moldura da anlise
geogrfica, mas compem, tal qual a espacialidade, o centro da anlise.
Queremos chamar a ateno para o fato de que no basta situar um evento
ou processo no tempo ou utilizar um determinado perodo histrico como
moldura para caracterizar um campo de pesquisa como Geografia Histrica.
O perodo, a temporalidade e a historicidade devem estar organicamente
articulados com a espacialidade para que seja possvel identificar com
clareza os recortes ou complexos espaos-temporais e no constiturem
meramente molduras e referncias que pouco ou nada contribuem para
a anlise do processo em si.
fcil identificar na Geografia uma quantidade significativa de traba-
lhos, principalmente dissertaes e teses, nas quais o captulo do contexto
histrico faz recuos e cortes no tempo que pouco ou nada contribuem para
a anlise da questo central (remetendo ao mito das origens do qual nos
fala Marc Bloch). Nesse sentido, no basta dizer que tal processo ocorreu
na dcada de 1950 se esse perodo histrico no for devidamente articulado
questo central, se sua temporalidade no for ressaltada, devidamente
contextualizada e que tenha sua espacialidade explicitada, de forma que
seja efetivamente possvel articular e compreender a contextualizao
de tal processo espacial em determinado recorte histrico. Assim, como
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argumenta Erthal (2003, p. 30), a Geografia Histrica alm de se preocupar
em recuperar as espacialidades pretritas que marcam as espacialidades
atuais, busca metodologias apropriadas e esfora-se em refletir a categoria
tempo, a fim de fornecer subsdios abordagem espacial e temporal.
A densidade de tal articulao nos coloca outra questo: existe
Geografia que no seja histrica? possvel uma produo intelectual
no campo da Geografia que possa abrir mo da historicidade? difcil
responder negativamente tal indagao quando devemos reconhecer que
a Geografia um produto da histria (e essa, por sua vez, se faz por meio
do espao). E, como sustenta Moraes (2000, p. 2), seja a geografia material
objetivada no espao terrestre, seja o discurso geogrfico acerca de tais
realidades, ambos constituem elementos do fluir histrico, sendo por ele
explicveis. Logo, incluem-se na histria, no podendo se reportar a ela
como um outro. Nesse sentido, impossvel prescindir da historicidade
e da temporalidade dos processos, no entanto, importante ressaltar que
existe uma significativa flexibilidade e diversidade nas formas de incor-
porar as articulaes necessrias entre tempo e espao.
Sem dvida, muito tnue a linha que nos permite circunscrever o
campo da Geografia Histrica, no entanto, levando em considerao as
principais referncias da temtica, nos parece que a densidade desta
articulao espao-tempo que confere singularidade ao campo. Tal den-
sidade conduz, necessariamente, a uma aproximao dialgica com a
Histria seus conceitos, procedimentos metodolgicos e campos tem-
ticos. Aproximao dialgica no significa a converso do gegrafo em
historiador, tampouco o abandono das tradies e do corpo terico e meto-
dolgico da Geografia, mas sim o enriquecimento mtuo, a apropriao
de uma srie de formulaes e procedimentos prprios da Histria, que
vo permitir uma produo consistente no campo da Geografia Histrica.
A aproximao com a Histria nos permite reforar a linha que
circunscreve o campo de pesquisa da Geografia Histrica, principalmente
em relao metodologia. Se o elemento central que confere singularidade
ao campo de pesquisa a densa articulao espao-tempo, ser necessrio
o aprofundamento metodolgico para o desenvolvimento de pesquisas na
rea. Nesse sentido, a vasta produo e o robusto acmulo metodolgico
da Histria podem contribuir para fortalecer a singularidade temtica na
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medida em que um conjunto de procedimentos metodolgicos passa a
ser imprescindvel para as pesquisas no campo da Geografia Histrica,
particularmente no que diz respeito aos processos de periodizao4 e
recortes histricos da pesquisa, levando em considerao a sincronia e/
ou a diacronia (ESTAVILLE, 1991; VASCONCELOS, 1999; SILVA, 2012)
e a seleo, a organizao, a sistematizao, o uso e a apresentao das
diferentes fontes de pesquisa utilizadas, como documentos oficiais, censos,
inventrios, testamentos, arquivos paroquiais e cartoriais, processos judi-
ciais, mapas, fotografias, pinturas, dirios, entrevistas etc. (ABREU, 1987,
1998, 2005a e 2010; NORTON, 1991; LOWENTHAL, 1998; BLOCH, 2001;
CARDOSO; BRIGNOLI, 2002; PINSKY; LUCA, 2012).
exatamente este dilogo crtico com a Histria que nos leva a
rechaar algumas definies simplistas da Geografia Histrica como sendo
o estudo das geografias do passado ou a descrio de uma rea em outro
perodo de tempo. Quando buscamos na Histria o embasamento terico
para lidar com questes sobre histria, historicidade e periodizao, por
exemplo, encontramos formulaes como a de Marc Bloch, que critica
a ideia de que a Histria simplesmente o estudo do passado (BLOCH,
2001) e sustenta a formulao de que a Histria a cincia dos homens no
tempo, cuja categoria fundamental a de durao, que remete diretamente
s ideias de temporalidade e historicidade. Assim, se a Histria, segundo
Bloch, no deve ser circunscrita ao passado, tampouco se define por esse
horizonte temporal pouco preciso, por que a Geografia Histrica deveria
ficar circunscrita ou ser definida, a priori, pelo estudo do passado? Se
considerarmos seriamente o adjetivo histrico, devemos buscar seu
significado mais profundo em seu campo disciplinar originrio, que a
Histria. Nessa perspectiva, devemos considerar as palavras de um dos
fundadores da Escola dos Annales que revolucionou a historiografia, junto
com Lucien Febvre, libertando a Histria dos fatos do passado e colocan-
do-a diante de problemas e questes. Para alm disso, fcil observar a
ampliao do campo de pesquisa e atuao dos historiadores para o que
convencionado chamar de presente.
O debate acerca do estudo do presente e do passado ganha uma cono-
tao singular quando lidamos com a relao entre Histria e Geografia.
No texto Sobre a memria das cidades, o professor Maurcio de Almeida
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Abreu questiona uma determinada ideia, significativamente consolidada
no imaginrio social, que determina uma diviso temporal do campo de
atuao das disciplinas: a Histria trataria do passado e a Geografia do
presente. O autor afirma que mesmo com o processo de renovao da
Geografia a partir da dcada de 1970, sob a influncia do materialismo
histrico, a disciplina no conseguiu
revogar uma das leis frreas da geografia, escrita no se sabe por quem nem quando, mas certamente no por Kant no final do sculo XVIII, que impe despoticamente disciplina o estudo do presente, legando histria o estudo do passado. Uma lei nitidamente freudiana, que s pode ser explicada pela luta travada pela geografia para afirmar-se na diviso positivista do saber do final do sculo XIX, e que s lhe autoriza a tratar do passado se for para buscar nele o entendimento do presente ou a previso do futuro. Uma lei que, paradoxalmente ou pour cause, teve na geografia francesa, originalmente mais prxima da histria do que outras escolas nacionais (Claval, 1984), o seu maior guardio (ABREU, 1998, p. 92).
A passagem acima retoma, a partir de outra perspectiva, a breve dis-
cusso que fizemos anteriormente. Se, por um lado, a Geografia Histrica
no deve ser somente reconhecida como um campo singular de estudos
pelo fato de trabalhar com o passado, nada impede que este recorte tem-
poral seja aquele privilegiado por este campo como uma forma de se
contrapor presena hegemnica do presente na produo geogrfica.
Assim, no h lei proibindo, e nada impede que a geografia estude o
passado (ABREU, 1998, p. 93). No entanto, Abreu no defende a ideia de
definir a Geografia Histrica simplesmente como um estudo do passado.
Ele chama ateno para a necessria, indissocivel e densa articulao
espao-tempo:
Para estudar e interpretar os espaos do passado, o que fundamental ento definir quais so os conceitos e variveis adequados anlise do tempo que se decidiu estudar. Se o objeto uma cidade, o ponto de partida a recuperao do quadro referencial maior daquele lugar naquele tempo, ou seja, o seu enquadra-mento espao-temporal. Em outras palavras, temos que recuperar o tempo do lugar, isto , o conjunto de temporalidades prprias a cada ponto do espao, [que] no dado por uma tcnica, tomada isoladamente, mas pelo conjunto de tcnicas [amplamente definidas] existentes naquele ponto do espao [naquele momento do tempo] (Santos, 1994, p. 62) (ABREU, 1998, p. 94. Grifos e alteraes no original).
A ideia da espacialidade do social nos permite pensar o desenvol-
vimento dos processos sociais atravs da produo e da organizao do
espao geogrfico. Nessa perspectiva, o tempo histrico entendido como
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GeoTextos, vol. 11, n. 1, julho 2015. G. Rodrigues. 241-268 .255
processo social aberto e se realiza ao constituir uma determinada espa-
cialidade. Assim, tempo e espao so imanentes entre si e s relaes
sociais. Dessa forma, partimos da espacialidade e da historicidade das
relaes sociais para realizar uma anlise onde no h hierarquia ou
predeterminao de um sobre outro. Podemos falar da historicidade do
espao geogrfico e da espacialidade do tempo histrico.
A Geografia, nessa perspectiva, possui como objeto de anlise a
espacialidade das relaes sociais ou, de outra forma, a espacialidade do
processo histrico. Tal espacialidade pode ser apreendida em qualquer
perodo histrico. Nessa perspectiva, possvel remeter formulao de
Moraes (2000, p. 3), na qual o autor sustenta a existncia de uma deter-
minada organizao espacial (geogrfica) das sociedades em qualquer
perodo histrico, o que torna legtimo o interesse do gegrafo na pesquisa
de outros perodos histricos que no tenham como horizonte temporal o
presente. Nesse sentido, este autor argumenta que:
Pode-se, portanto, dizer que qualquer perodo da histria e em qualquer sociedade existe uma geografia (material e discursiva) que compe a cultura de cada grupo social e de cada civilizao. A variedade destas geografias inerente variedade de culturas existentes na histria humana. Logo, h a necessidade de diferenciar e historicizar as culturas para bem contextualizar suas geografias.
Portanto, no faz sentido limitar a anlise geogrfica ao presente,
permitindo a existncia legtima de um campo de trabalho em Geografia
denominado Geografia Histrica. Podemos pens-la como um campo de
anlise da espacialidade das sociedades humanas em diversos perodos
histricos. Na apresentao do livro Rio de Janeiro: formas, movimentos,
representaes, Abreu (2005a, p. 4) coloca a questo da seguinte maneira:
O principal objetivo da linha de pesquisa analisar, sob a perspectiva da Geografia Histrica, os percursos trilhados pela cidade atravs do tempo. Como no poderia deixar de ser, a dimenso espacial ocupa um lugar privilegiado nas investigaes, mas isso no quer dizer que a ateno se limite anlise e/ou reconstituio das formas morfolgicas de outrora, sejam elas naturais ou construdas. O que se objetiva discutir criticamente o processo histrico de produo do espao carioca, identificando, para cada perodo estudado, suas foras propulsoras, seus protagonistas, e agentes modeladores, suas contradies materiais ou simblicas e sua resultante espacial. O que se busca, em ltima anlise, estudar a relao entre processo social e forma espacial atravs do tempo.
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A partir de tais formulaes, inspiradas principalmente nas obras de
Darby (1962), Norton (1984 e 1991) e Baker (2003), as principais refern-
cias da Geografia Histrica brasileira (os professores Pedro de Almeida
Vasconcelos, Maurcio de Almeida Abreu, Antonio Carlos Robert de Moraes
e, mais recentemente, o professor Marcelo Werner da Silva), consolidaram
uma posio na qual sustentam a singularidade da Geografia Histrica a
partir do estudo dos lugares no passado. Nessa perspectiva, uma grande
variedade temtica e de abordagens vai caracterizar o que j foi denomi-
nado de geografias do passado. Segundo Abreu (2010), por exemplo, no
h a necessidade das pesquisas deste campo em chegar at o presente,
fazendo do passado seu campo prprio de pesquisa. Ao mesmo tempo, o
autor argumenta, inspirado no historiador Pierre Nora, que no h a neces-
sidade, tampouco a possibilidade, de se reconstruir ou recuperar o passado
tal qual ele ocorreu, afinal, a histria construo sempre problemtica
do que j no existe mais. Lowenthal (1985), por sua vez, nos alerta que
o passado um pas estrangeiro, uma terra que nunca conseguiremos
conhecer plenamente (ABREU, 1998, p. 88). Nesse sentido, a Geografia
Histrica compartilha a mesma limitao da Histria, campo no qual o
pesquisador pode se aproximar cada vez mais do passado, mas sem jamais
conseguir realmente alcan-lo tal qual existiu: Um trabalho geogrfico em
nada diferente daqueles que vimos produzindo para entender o momento
atual, s que agora dirigido, mutatis mutandis, ao entendimento do passado
de um lugar (ABREU, 1998, p. 94).
Em artigo recente, Gomes e Machado (2013) buscam apresentar um
panorama da Geografia Histrica brasileira contempornea a partir da
anlise das obras de Maurcio de Almeida Abreu e Antonio Carlos Robert
de Moraes, que, segundo as autoras, seriam os principais expoentes deste
campo de pesquisa no Brasil (devemos acrescentar o professor Pedro
Vasconcelos a esta lista). interessante a anlise proposta, pois identifica
duas correntes ou formas de abordagem dentro da Geografia Histrica.
No resumo do artigo, as autoras deixam explcitas quais seriam essas
abordagens, vejamos:
O eixo representado pela produo de Maurcio Abreu consolida e modela os estudos e debates em histria e poltica urbana, revelando a clara opo do autor pelo estudo das cidades. Suas investigaes fogem das tendncias s anlises morfolgicas urbanas puras e simples, para preocupar-se tambm com os processos que do contedo a essa morfologia. As obras do autor dedicadas cidade do Rio
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de Janeiro dos sculos XVI, XVII, XVIII e XIX constituem referncias, no apenas para a Geografia, mas tambm para a Histria e a Antropologia.O eixo representado pela produo intelectual de Robert Moraes, por sua vez, consolida um modelo de investigao fortemente associado geopoltica e gesto do territrio nacional, temas como a construo territorial do Brasil Colonial, zonea-mento ecolgico-econmico brasileiro e polticas territoriais, so alguns exemplos (GOMES; MACHADO, 2013, p. 2).
Os dois grandes eixos da Geografia Histrica brasileira seriam, nessa
perspectiva, a Geografia Histrica Urbana, cuja centralidade est em ana-
lisar processos relativos dinmica urbana e, nesse sentido, no podemos
deixar de recordar, evidentemente, a obra de Pedro Vasconcelos, que,
juntamente com os esforos de Maurcio Abreu, inauguram e consolidam
essa vertente temtica e analtica e, de outro lado, a centralidade das
dinmicas territoriais associadas, prioritariamente, s aes do Estado e das
diferentes fraes do capital. fcil perceber que no existe contradio
ou ambiguidade em tais propostas, apesar de diferentes enfoques e aborda-
gens, e sim complementaridade. Para alm das diferenas, principalmente
relativas s escalas espaciais de anlise, o que h de mais importante em
comum nas duas abordagens a densidade da articulao espao-temporal
em termos tericos e metodolgicos.
4. Articulando os dois campos: um exemplo emprico
A concluso deste breve artigo ser na forma de um exemplo concreto
para que o leitor possa visualizar de forma clara a proposta de articulao
que estamos apresentando. O exemplo utilizado ser a experincia anar-
quista durante a Guerra Civil Espanhola (1936-1939).
A questo geral que orienta nosso trabalho a espacialidade dos
ativismos sociais ou, de forma mais ampla, a espacialidade da ao social.
Nesta pesquisa, delimitamos um escopo mais especfico, que pode ser
resumido da seguinte forma: que tipo de espacialidade se institui a partir
de relaes sociais e de poder pautadas pela prxis libertria (anti-estatal,
anticapitalista e autogestionria)? Quem so os protagonistas que em
determinadas conjunturas e estruturas so capazes de engendrar processos
de transformaes scio-espaciais calcados em outras relaes sociais e de
poder, em outros modos de existncia?
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A partir da questo central comeamos a construir um objeto de
pesquisa que pudesse servir, adequadamente, como campo de investigao
emprico para a questo fundamental que nos orienta. O recorte emprico
que delimitamos para desenvolver nossa questo central foi a experincia
do movimento anarquista espanhol, que se desenvolveu durante a Guerra
Civil Espanhola (1936-1939), tomando-a como exemplo de um processo de
produo e organizao do espao geogrfico por parte de um movimento
social de carter libertrio. Na pesquisa em tela, buscamos analisar a espa-
cialidade imanente a um processo revolucionrio de carter libertrio.
Nesse sentido, buscamos recuperar uma experincia que foi levada a cabo
por trabalhadores urbanos e camponeses, aglutinados na Confederao
Nacional do Trabalho (CNT), sindicato anarcossindicalista de carter revo-
lucionrio e na Federao Anarquista Ibrica (FAI), demonstrando como
possvel a instituio de novas relaes sociais e de poder baseadas em
princpios libertrios e, consequentemente, em uma espacialidade distinta
daquela produzida pelo capitalismo e pelo socialismo real.
Creio que no h dificuldade para o leitor estabelecer as relaes
entre a Geografia Histrica e os ativismos sociais nesse exemplo. De um
lado, buscamos analisar a espacialidade do movimento anarquista espanhol
luz dos balizamentos propostos por Souza (2008) e dos atributos apre-
sentados anteriormente. Assim, buscamos caracterizar os protagonistas,
seus objetivos, formas de organizao, estratgias de ao e suas escalas
de atuao (o que nos levou a uma anlise multiescalar das aes). Esta
anlise foi orientada pelos balizamentos nos quais buscamos identificar e
analisar o espao de referncia identitria, as formas de uso e apropriao
do espao (o lugar e o territrio), as estratgias espaciais da luta, a insti-
tuio de um novo modo de existncia, a influncia do substrato material
na constituio da ao e, por fim, as transformaes realizadas na espa-
cialidade hegemnica a partir das ideias de refuncionalizao espacial e
reestruturao territorial (SOUZA, 2006). Assim, centramos nossas anlises
nos processos de coletivizao de terras, fbricas e servios (nos quais os
trabalhadores se apropriaram efetivamente dos meios de produo), nas
novas formas de organizao territorial a partir das coletividades e conse-
lhos municipais, que reconstituram o territrio espanhol. Tais processos
deram origem a uma nova espacialidade, ou seja, a novas formas de uso e
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apropriao do espao e da produo de novos territrios institudos por
novas relaes de poder.
A anlise da espacialidade anarquista foi indissocivel da historici-
dade dos processos sociais, polticos, econmicos e culturais da sociedade
espanhola. Buscamos estabelecer periodizaes, analisar as diferentes
temporalidades dos processos sociais (eventos, contextos e estruturas),
principalmente relativas s dinmicas poltica e econmica da Espanha,
estabelecendo suas relaes com a espacialidade (por exemplo, a estru-
tura agrria e urbano-industrial, distribuio da populao, infraestrutura
tcnica, regionalismos etc.).
Em relao metodologia, destacamos trs pontos fundamentais:
1. as periodizaes; 2. as escalas; 3. as fontes.
Estabelecemos um perodo histrico central (1936-1939), caracteri-
zado pela Guerra Civil e que foi efetivamente nosso recorte emprico de
investigao e analisado a partir da sincronia dos processos e eventos.
Porm, para compreend-lo de forma adequada, foi necessrio estabelecer
o que chamamos de perodos auxiliares. Esses perodos foram: a. de 1845
a 1936, dedicado anlise do desenvolvimento do movimento anarquista,
a partir de uma perspectiva diacrnica (estudo de um elemento ao longo
do tempo) e b. de 1931 a 1936, caracterizado pela dinmica poltica e
econmica da Segunda Repblica Espanhola, analisado a partir de uma
perspectiva da sincronia dos processos.
A complexidade da questo nos levou a uma anlise multiescalar dos
fenmenos e processos. Em outras palavras, no estabelecemos, a priori,
uma escala de anlise particular, mas operamos pela articulao e codeter-
minao de uma escala sobre a outra. Assim, buscamos compreender de
que forma processos que se davam em escalas distintas contriburam para
a constituio da experincia anarquista durante a Guerra Civil Espanhola.
Nessa perspectiva, articulamos elementos da escala europeia, relativa,
por exemplo, geopoltica anterior Segunda Guerra Mundial, que teve
influncia direta nos rumos do conflito, passando pela escala nacional
(relativa, principalmente, s grandes estruturas socioeconmicas e pol-
ticas da Espanha), passando pelas singularidades regionais at a anlise do
lugar, materializado em coletivizaes, fbricas, campos e oficinas.
Finalmente, no que se refere s fontes5, destacamos as seguintes:
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a) Livros, artigos, teses e dissertaes, o que nos permitiu partir de
uma srie considervel de dados sistematizados produzidos a partir
de fontes primrias;
b) Censos, relatrios e pesquisas produzidas pelos rgos oficiais do
Estado espanhol que nos permitiram levantar informaes bsicas
sobre a populao (tamanho, distribuio, renda, nvel educacional,
expectativa de vida), recursos naturais (fontes de energia, gua,
minrios) e infraestrutura. Ressaltamos que diversas informaes
dessa natureza estavam disponibilizadas nas fontes listadas no
item a;
c) Documentos de diversas naturezas: leis, decretos, inventrios,
atas, regulamentos, balanos financeiros, listas nominais de traba-
lhadores, registros de filiao sindical etc. Os documentos foram
produzidos pelas instituies estatais e pelas organizaes dos
trabalhadores (sindicatos, milcias, coletivos autnomos);
d) Peridicos editados pelas organizaes dos trabalhadores;
e) Fotografias que nos permitem visualizar episdios relativos ao
conflito e ao processo revolucionrio.
Esperamos que este brevssimo exemplo possa ilustrar a articulao
entre os dois campos de pesquisa. Buscamos realizar a anlise de um
complexo espao-tempo a partir da experincia concreta dos trabalhadores
espanhis, integrando os principais elementos constitutivos de cada campo
em uma nica anlise na qual tempo e espao so indissociveis.
Notas
1 Este trabalho resultado de nossa pesquisa de ps-doutorado, realizado no Programa de Ps--Graduao em Geografia da UFBA, sob a superviso do Prof. Dr. Pedro de Almeida Vasconcelos. No tenho palavras para agradecer ao professor Pedro pela ateno, seriedade, cuidado e hospitalidade com que se disps a desenvolver esse projeto e pela carinhosa recepo que tive em Salvador. Estendo meus agradecimentos aos demais professores do programa de ps-graduao que me receberam na UFBA. O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico - Brasil.
2 Conforme ressaltado por Souza (2008), a partir da dcada de 1990 pode-se observar uma estagnao da produo referente aos ativismos urbanos, enquanto h um crescimento daquela relativa aos ativismos sociais rurais, com destaque para as obras de Fernandes (1996, 2000a e 2000b), Oliveira (1988 e 1991) e Gonalves (1999, 2001, 2002 e 2003). Em relao aos ativismos urbanos, h um crescimento expressivo a partir do ano 2000, quando podemos destacar Souza (2000, 2006 e 2012), Rodrigues (2005, 2009, 2011 e 2012), De Paula (2005
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e 2012), Teixeira (2009), Souza e Teixeira (2009), Grandi, Moreira e Almeida (2009), Grandi (2010), Almeida (2011 e 2012), Santos (2011), Ramos (2012) e Zilio (2012). Alm disso, devemos destacar o relativo aumento do nmero de trabalhos apresentados nas edies do Encontro Nacional dos Gegrafos, do Simpsio Nacional de Geografia Urbana e da Associao Nacional de Ps-Graduao em Geografia.
3 Poderia ser definida em uma primeira aproximao como a percepo temporal dos pro-blemas espaciais (traduo nossa).
4 O processo de periodizao, desta forma, pode ser definido como um exerccio intelectual e uma construo do pesquisador a partir das questes que coloca para a reflexo. fundamen-tal justificar, de forma clara e explcita, o uso e a construo de determinada periodizao. Nesse sentido, crucial que os elementos constitutivos e os critrios de periodizao, ou seja, aqueles que do consistncia e coerncia interna ao recorte histrico sejam explicitados e justificados. O que nos leva a outra questo: muitas vezes, uma nica periodizao no suficiente para dar conta da complexidade do tema que est sendo pesquisado, o que nos obriga a criar periodizaes auxiliares que nos permitam realizar uma anlise consistente de determinada questo, o que significa articular periodizaes e temporalidades distintas.
5 Os principais arquivos para fontes primrias foram os seguintes: http://archivo.cnt.es/Do-cumentos e o Portal de Archivos Espaoles, mantido pelo Ministrio da Cultura Espanhol (http://pares.mcu.es/). O portal utilizado aglutina acervos importantes como o do Centro Documental de La Memoria Histrica, que administra o Archivo General de La Guerra Civil Espaola, localizado na cidade de Salamanca. Neste centro, podemos ter acesso ao Portal de las vctimas de la Guerra Civil y represaliados del Franquismo, base de datos de militares y miembros de las fuerzas de orden pblico al servicio de la Repblica, Los carteles de la guerra civil espaola. No PARES ainda temos acesso ao Archivo Fotogrfico de la Delegacin de Propaganda de Madrid durante la Guerra Civil, tambm conhecido como Archivo Rojo.
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Recebido em: 18/09/2014
Aceito em: 11/11/2014